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OS ALPES

Georg Simmel

O predomínio geral da concepção de que a impressão estética do visível


se baseia na sua forma nos oculta, amiúde, que ainda um outro fator determina
esta impressão: a dimensão na qual a impressão se oferece. Não temos a
mínima condição de fruir uma forma pura, ou seja, a simples relação de linhas,
superfícies e cores. Antes, nossa natureza sensitivo-espiritual liga esta fruição
a uma certa quantidade de tais formas. Esta quantidade dispõe de uma certa
margem de manobra, mas se movimenta entre uma grandeza, muitas vezes
precisamente determinável, na qual a forma - permanecendo como tal
completamente inalterada - perde seu valor estético e uma pequenez, na qual a
mesma perda se apresenta.
Antes, e mais profundamente do que costumamos perceber, as formas e
a escala constituem uma inseparável unidade da impressão estética; e uma
forma revela a sua essência estética, partindo da sua raiz, assim como sua
significação se transforma com a modificação de sua dimensão.
Na medida em que, principalmente, a transferência das formas da
natureza para a obra de arte toma isso visível, estabelece-se uma gradação de
formas, que começa com aquelas que, em variados tamanhos, ainda possuem
valor estético e termina com aquelas que ligam este valor exclusivamente a um
único quantum de sua apresentação. No primeiro pólo encontra-se a figura
(Gestalt) humana. Onde captamos, a partir de dentro, o sentido de uma figura,
por meio da experiência conjunta de sua vida, toma-se relativamente fácil ao
artista saber dos deslocamentos, dos acentos e das atenuações necessários
para deixar que a significação e a unidade corretas da forma atuem inalteradas,
em medidas modificadas; o homem - e somente ele, por nós não conhecermos
nenhuma outra essência tão profundamente como ele - pode, portanto, ser
representado na arte tanto como figura colossal, como quanto miniatura. No
pólo oposto estão os Alpes. Apesar de não ser exigido da obra de arte que ela
repita de modo naturalista a impressão do seu objeto real, o essencial deste

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objeto, não importa quão transformado ele esteja, terá de viver nela, para que
seja reconhecido como tal e não como qualquer outro objeto. Os Alpes, porém,
parecem negar isso às suas imagens: nenhuma alcança a impressão
subjugante da massa dos Alpes. E os maiores pintores dos Alpes, Segantini e
Hodler, procuram antes, com o recurso da estilização refinada, do
deslocamento de acentos e dos efeitos de cores, esquivar-se desta tarefa do
que resolvê-la. As formas, então, não têm aqui um valor estético próprio, que
sobreviveria a uma mudança de quantidade. Este valor permanece ligado às
suas medidas naturais. Apesar de o efeito da forma ser independente da sua
escala em quaisquer outros objetos, manifesta-se pela primeira vez o caso - no
qual este efeito cessa pela ausência de uma certa dimensão - em que os dois
fatores constituem uma imediata unidade de impressão; só a análise posterior
os dividiu em uma dualidade.
A significação específica do momento da massa baseia-se na
particularidade da configuração (Gestaltung) alpina. Ela tem, em geral, algo de
inquieto, casual, onde falta qualquer unidade de forma verdadeira. E é por isso
que os Alpes são, para muitos pintores que consideram a natureza como tal
apenas pela qualidade de sua forma, difíceis de suportar. Mas este lado
irritante da forma é, em certa medida, dominado pelo peso monstruoso do
quantum material e atenuado até permitir a fruição. Onde há formas ligadas
para formar um sentido, elas se apóiam mutuamente, cada uma acha na outra
uma resposta, uma preparação. E com isso elas constituem uma unidade
reforçada em si, que não carece de nenhum suporte para mantê-las unidas,
além dos seus próprios elementos. Mas onde as formas se encontram tão
casualmente dispostas lado a lado, sem estarem ligadas por nenhum sentido
da linha total, como nos Alpes, uma forma única seria desagradavelmente
isolada e não teria um ponto de apoio no âmbito do todo, se a massa da
matéria não fosse perceptível. A indiferenciação desta última estende-se
unitariamente por baixo dos picos e dá à individualização - em si absurda -
deles um corpo unitário. O material sem forma precisa ter aqui, na impressão,
uma preponderância que de outro modo seria desproporcional para que o caos
dos perfis dos picos reciprocamente indiferentes encontre, por assim dizer, um
lastro e uma coerência. A inquietude dispersiva das formas e a materialidade
pesada no seu mero quantum engendram, na sua tensão e equilíbrio, a

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impressão, na qual excitação e paz parecem penetrar-se de maneira singular.
A questão da forma leva a impressão dos Alpes às últimas categorias da
alma. Há elementos desta impressão tanto aquém como além da forma
estética. Os Alpes, por um lado, atuam como o caos, como uma massa
volumosa não-enformada, que recebeu, apenas por acaso e sem o sentido
próprio da forma, um contorno. O segredo da matéria cala sobre o que, nas
configurações da montanha, se percebe mais com um olhar do que em
qualquer outra paisagem. Sentimos aqui o terreno como tal, no seu ímpeto
monstruoso, que ainda está distante de toda vida e significação próprias da
forma. Por outro lado, porém, as rochas gigantes que se elevam, os gelos
transparentes e cintilantes, a neve dos cumes - que já não têm mais nenhuma
relação com os terrenos baixos da terra - são todos símbolos do transcendente,
que elevam o olhar da alma acima do que ainda é alcançável com grandes
perigos, até onde se encontra aquilo ao qual o mero ato de vontade não chega
mais.
Por isso, a impressão estética desaparece concomitantemente com a
impressão mística, nela aqui entremeada, tão logo o céu sobre as montanhas
de neve fique encoberto, pois, nesse momento, elas são pressionadas pelas
nuvens para baixo, em direção à terra, apanhadas e encadeadas a tudo o mais
que é terra. Somente a partir do momento em que não há nada além de céu
acima delas, elas remetem ilimitada e ininterruptamente ao sobrenatural e
podem pertencer a um outro ordenamento que não o da terra. Se fosse
possível dizer de uma paisagem que ela é transcendente, isto valeria para a
paisagem glacial - e sem dúvida somente onde exista gelo e neve, mas
nenhum verde, nenhum vale, nenhuma pulsação da vida. E como o
transcendente, o absoluto, em cuja disposição de espírito esta paisagem nos
entretece, está acima de qualquer palavra, ela estará também, se ela não for
infantilmente humanizada, acima de toda forma, pois tudo que é enformado é,
como tal, submetido a limites - seja pelo fato de a prensa e o golpe mecânicos
enformadores determinarem a uma peça lá onde começa uma outra, seu limite,
seja pelo fato de que a essência orgânica, que embora determine
positivamente sua forma mediante as de suas forças internas, em função da
finitude destas forças, também só poder desenvolver-se em uma figura
limitada.

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Deste modo, o transcendente não tem forma: forma é limite, e assim o
absoluto, o que não tem limite, não pode ser enformado. Há, então, um sem
forma aquém de toda configuração e um sem forma além de toda configuração.
A cadeia de montanhas, com a não-redimissibilidade e o ímpeto abafado de
sua massa simplesmente material com as transfigurações além de toda
mobilidade da vida de sua região de neve, que simultaneamente aspiram ao
sobrenatural, faz com que ambos nos soem em uníssono. Aquela falta de uma
significação própria e verdadeira permite que nela o sentimento e o símbolo
das grandes potências da existência - da que é menos que toda forma e da que
é mais que toda forma encontrem o lugar que lhes é comum.
Neste distanciamento da vida encontra-se, talvez, o último mistério da
impressão dos picos alpinos. A oposição ao mar evidencia isso. Por toda parte,
o mar é percebido como o símbolo da vida: seu movimento que muda
alternadamente de forma, a impossibilidade de se conhecer suas profundezas,
a mudança entre estar tranqüilo e tempestuoso, seu perder-se no horizonte, e o
jogo desprovido de objetivo de seu ritmo - tudo isso permite à alma transpor
para o mar seu próprio sentimento da vida. Mas na medida em que isto é
mediado somente por uma certa igualdade de forma simbólica (Symbolische
Formgleichheit) e o mar representa a configuração da vida em um esquema
estilizado, supraindividual, sua visão concede aquela libertação que confere por
toda a parte à realidade, a partir de sua forma imagética, exatamente seu
sentido mais puro, mais profundo e, por assim dizer, mais real.
O mar nos redime da realidade (Gegebenheit) imediata e da mera
quantidade relativa da vida, por meio da dinâmica subjugante (überwaltigende)
que leva a vida além de si mediante suas próprias formas. A remissão da vida
como algo casual e opressivo, algo único e baixo nos vem, nos picos, da
direção oposta: não da plenitude estilizada da paixão da vida, mas a partir de
uma distância dela; aqui a: vida é envolvida por algo, e de algum modo inserida
em algo que é mais silencioso e mais rígido, mais puro e mais alto do que a
vida jamais poderia ser. Nas impressões obtidas por Worringer a respeito da
contraposição original dos efeitos artísticos, temos que o mar atua por meio da
intuição (Einfühlung) da vida; os Alpes por meio da abstração da vida. E mais
uma vez este efeito eleva-se, na subida da paisagem do penhasco, à pura
paisagem glacial. No penhasco, percebemos ainda, de algum modo, as forças

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opostamente dirigidas: a constituidora, que elevou tudo, e a corrosiva, com
suas enxurradas e avalanches. Na configuração momentânea, este mútuo
opor-se e imbricar-se das forças parece chegar ao repouso, e isto revive
novamente no observador, como que visse uma reconstrução anímica que
compreende instintivamente.
A paisagem glacial, no entanto, não permite mais que nenhum jogo de
fatores dinâmicos seja percebido. O que é constituído a partir de baixo é
inteiramente recoberto por uma camada de neve e gelo. A constituição, por
meio da neve, do derretimento e da formação de geleira, não é mais
perceptível no constituído. Na medida em que nenhum efeito da força é
intimamente intuído, e que nenhuma mobilidade tornada latente - não importa
quão esquecida - se aviva novamente na alma, estas formas alcançam o atem-
poral, o afastado do fluir das coisas. Os Alpes simbolizam aquela "ausência de
forma" que mencionei, como são também sem forma no tempo; eles não são o
símbolo da negação da vida - pois este está ainda no nível da vida e a tem
como pressuposto - mas simplesmente seu "outro", o que é intocado pela
mobilidade temporal "que constitui a forma da vida. O espaço das neves
eternas constitui, por assim dizer, a paisagem "a-histórica" absoluta; aqui, onde
sequei verão e inverno modificam a paisagem, são rompidas as associações
com o destino humano - futuro e passado - que, em alguma medida,
acompanham todas as outras paisagens. Geralmente, a imagem da alma de
nosso ambiente é colorida pela forma da existência da alma; somente na
atemporalidade da paisagem glacial esta extensão da vida não encontra
nenhuma conexão. E, agora, a oposição absoluta ao mar, o símbolo de algo
alheio ao humano (Menschenloses) continuamente movido, alcança também
uma expressão histórica.
O mar está intimamente ligado ao destino e ao desenvolvimento da
nossa espécie; ele demonstrou inúmeras vezes ser não a separação, mas o
contato entre os países. As montanhas, ao contrário, em função de sua altura,
atuaram apenas de um modo essencialmente negativo na história humana.
Elas isolaram a vida da vida e impediram seu movimento de troca recíproca, do
mesmo modo como o mar os intermediou.
E mais uma vez a impressão dos Alpes desmente o princípio da vida,
que se baseia na diferença de seus elementos. A medida é inerente à nossa

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existência, cada fenômeno que passa por nossa consciência tem uma
qualidade, um mais ou um menos de sua qualidade. Todas as quantidades
determinam-se reciprocamente. Há um grande somente porque há um
pequeno, e vice-versa, um alto porque há um baixo, um freqüente porque há
um raro, e assim por diante. Cada coisa se mede em seu oposto, cada uma é
um pólo relacionado a um pólo contrário. E, assim, cada realidade só pode se
nos configurar em uma impressão, na medida em que esta é uma impressão
relativa, ou seja, na medida em que ela se diferencia de alguma coisa que lhe é
contraposta num mesmo plano do ser.
Aqui fica claro como justamente a paisagem da montanha é
eloqüentemente caracterizada por, e a isso deve sua unidade, pois, na medida
em que cada alto só é possível por meio de um baixo e cada baixo - como tal -
por meio de um alto, suas partes são incomparavelmente muito mais
dependentes uma da outra que as partes de uma paisagem plana, da qual
qualquer parte poderia ser cortada e, mesmo sem sua vizinha, continuar
existindo autonomamente, inalterada. Por meio de sua relatividade, as partes
da paisagem da montanha formam uma unidade da imagem estética que é
semelhante à configuração orgânica, com a influência recíproca vital de suas
partes. O maravilhoso é que toda a altura e nobreza dos Alpes toma-se
justamente perceptível a partir do momento em que na paisagem glacial todos
os vales, vegetações e habitações dos homens desaparecem, quando então
nenhum baixo, que pareça condicionar a impressão do alto, é mais visível.
Todas essas outras imagens remetem em si para baixo, especialmente a
vegetação, na qual sempre transparece a sensação das raízes que se
estendem para baixo; em toda parte, nas outras paisagens, sentimos também
as profundezas. Mas aqui, no entanto, a paisagem é perfeitamente "pronta":
por ela ser sem relação, por lhe faltar qualquer possibilidade de deslocamento
e de jogo mútuo com um seu correlato, ela não necessita de nenhuma
perfeição nem redenção por meio da visão artística ou do vir a ser enformada,
ela contrapõe a essas o ímpeto invencível de sua mera existência. Isto pode
ser a razão profunda - além das anteriormente citadas - de elas terem se
tomado, menos que todas as outras paisagens, objeto das artes plásticas. Mas,
sem dúvida, é somente na paisagem glacial pura que o terreno parece ter
perdido seu direito sobre as coisas. Quando o chão do vale desaparece

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completamente, gera-se a relação pura com o alto, isto é, não estamos mais
relativamente, mas simplesmente "altos"; não mais tantos metros acima do
profundo. A nobreza mística desta impressão não é mais, portanto, de forma
alguma, comparável ao que é reconhecido como "bela" paisagem dos Alpes:
na qU<11 montanhas de neves servem apenas como coroamento de uma
paisagem baixa, leviana (leichtlebig), com florestas e campinas, vales e chalés,
em cuja alegria elas são envoltas. Somente quando se deixa tudo isso para
trás, alcança-se o novo original e metafísico: uma altura absoluta, sem as
profundezas correspondentes; um lado de uma correlação, que, em verdade,
não poderia existir sem o outro, encontra-se, não obstante, aí, em um evidente
ser para si (Für sich sein). Este é o paradoxo da cadeia de montanhas: que
toda altura se apóia na relatividade do acima e do abaixo e é condicionada pela
profundeza - e aqui, no entanto, ela atua como algo incondicional, que não
apenas não precisa da profundeza, mas que exatamente, apenas quando esta
desaparece, se desdobra na altura plena. Aqui a sensação do ser redimido -
que agradecemos à paisagem glacial nos instantes mais solenes baseia-se,
indubitavelmente, na percepção de seu contraposto à vida, pois a vida é a
interminável relatividade das oposições, a determinação de um pelo outro e do
outro pelo um, a mobilidade transbordante na qual cada ser só pode existir
como um ser condicionado. A partir da impressão da cadeia de montanhas,
porém, se nos confrontam um pressentimento e um símbolo, segundo os quais
a vida na sua mais alta elevação se redime no que não entra mais em sua
forma, mas que está sobre e contraposto a ela.

Extraído de: SOUZA, Jessé e ÖELZE, Berthold. Simmel e a modernidade. Brasília:


UnB. 1998. p. 145-152.

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