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LITERATURA E REALIDADE(S) Heidrun Krieger Olinto Karl Erik Schollhammer [organizadores] sresente colegio de artigos é TOMO nT Tense accent econ Pen ete TM econ et) silo do Seminario Internacional Estudos de Literatura: Literatura SITUA Ra CliCzts Cone ered ete) 2008, Organizada pelo Grupo de quisa do CNPQ, Tendéncias atuais acca ATE ey Programa de Pés-Graduacio do Men eect tee een ensaios ¢ dedicada & discussdo das ies complexas entre literatura DIR Rone Reeser trent Rome emo cate emen cers Mice caer Dosen tC On cists ee conte mee tte-C) necituagao de literatura e Rite ce nento contemporaneo pela Md esr cece ester Oe eerie cme Dene naar ee Me [Hotel igas, em circunstancias histéricas e MTOM OKs cto ete te CSN red MOMs a teo Koncert ety OOM Con ee Mea Roe ree TetL TON SIRS senate ntos académicos — evidenciam Senn erect tnvtasr) Meeker nites tate Recon ure terres SI e nen rane ty Ru enone one tn te LITERATURA E REALIDADE(S): UMA ABORDAGEM organizacao Heidrun Krieger Olinto Karl Erik Schollhammer Beeteas] 2011 © Heidrun Krieger Olinto e Karl Erik Schollhammer Este livro segue as normas do Acordo Ortogréfico da Lingua Portuguesa de 1990, adotado no Brasil em 2009, Produgao editorial Cristina Parga Isadora Travassos Larissa Salomé Reviso Marina Vargas CIP-BRASIL, CATALOGAGAO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RI Lys5 Literatura ¢ realidade(s) : uma abordagem / organizagio Heidrun Krieger Olinto, Katl Erik Schollhammer. - Rio de Janeiro : 7Letras, 201. 2gzp.:il. ‘Trabalhos apresentados na nona edico do Seminirio Internacional de Estudos de Literatura literatura ¢ realidade(s). Realizado na Pontificia Universidade Catdlica do Rio de Janeiro em outubro 2008, organizado pelo grupo de pesquisa do CNPq. Inclui bibliografia ISBN 978-85-7577-670-4 1, Literatura - Histéria e critica - Congressos. 2. Realidade na literatura. I. Olinto, Heidrun Krieger, 1940-. II. Schollhammer, Karl Erik. 10-4234. aon Viveiros de Castro Editora Lida. R. Goethe, 54 Botafogo | Rio de Jancito RJ cep 22281-020 (21) 2540-0076 | editora@glecras.co 1 | wow. 7tectas.combr Sumario Literatura ¢ realidade(s) — uma abordagem Heidrun Krieger Olinto Karl Erik Schollhammer Sobre a representagéo da fome Ana Kifer Hannah Arendt: a que chamamos julgar? Fiduardo Jardim Os restos do real. Literatura ¢ experiéncia Florencia Garramunio Uma pedra no meio do caminho do real Ieidrun Krieger Olinto rtura como espetdculo Jaime Ginzburg Literaturas postauténomas 3.0. Escrituras latinoamericanas de los tiltimos afios: otros mods de pensar y de imaginar Josefina Ludmer Além ou aquém do realismo do choque? Karl Erik Schollbammer © realismo na imagem construido pela minissérie da televisao britanica contemporanea Liz, Antonio Coelho Fotografia como arte do trauma ¢ imagem-agao: jogo de espectros na fotografia de desaparecidos das ditaduras na América Latina Marcio Seligmann-Silva Viagem ¢ experiéncia na narrativa argentina contemporanea Paloma Vidal Algunas determinaciones del arte y las letras en afios recientes Reinaldo Laddaga a 23 32 4B 75. 80 93 m9 150 168 O instante ¢ 0 cotidiano urbano: um paradoxo de certo realismo literdtio e mididtico Renato Cordeiro Gomes ‘Memérias do horror: 0 testemunho em O explendor de Portugal Rosana Cristina Zanelatto Santos Literatura y realidad: tres episodios en la narrativa argentina contempordnea Sandra Contreras Poesia: para além da violéncia Vera Lins 185 201 21 227 Literatura e realidade(s) — uma abordagem Heidrun Krieger Olinto e Karl Erik Schollhammer A presente coletanea de ensaios é resultado de uma selecéo dos tra- balhos apresentados na nona edigéo do Semindrio Internacional de Estu- dos de Literatura: LITERATURA E REALIDADE (s). O semindrio, que acon- teceu na puc-Rio em outubro 2008, organizado pelo grupo de pesquisa do cnpgq “Tendéncias atuais nos estudos da literatura”, foi dedicado a dis- cussio das relagdes complexas entre literatura ¢ realidade e suas conse- quéncias em termos estéticos, politicos ¢ éticos para os escritores e para os géneros ficcionais. Durante dois dias, o debate foi organizado em qua- tro sessdes, cada uma com dois paingis que ofereceram abordagens varias i discussdo dessas quest6es, a0 abordar as pesquisas mais recentes na drea de acordo com quatro temas principais. O painel “Escritas da violéncia” foi resultado da parceria com 0 pro- jeto de pesquisa integrado do 1et-Campinas/Departamento de Literatura Brasileira da usp apoiado pela Fapesp. O tema geral era a relagao dindmica cntre a violéncia no Brasil ¢ as produgées literdrias ¢ artisticas, sendo anali- sadas as caracteristicas estéticas ¢ estilisticas dessas express6es comparadas com exemplos de outros contextos. Algumas propostas de seus produtores foram discutidas sob a perspectiva das possibilidades de intervengao histé- rica, Nas tiltimas décadas, a presenga particularmente importante do tema da violéncia na produgio cultural tornou-se evidente, atualizando a dis- cussio teérica e analitica dos elementos estéticos dessas obras assim como dla rel to dos mesmos com o componente histérico. © segundo painel abordou © tema “O desafio ético da literatura”. A cmergéncia da ética no cerne da experiéncia estética representa hoje © tinico clemento transformador da literatura ¢ da obra de arte, capaz de criar novas relagées intersubjetivas no contexto no qual se dé como um puro evento, isto é um “puro acontecer”, sem remeter a uma subs- Lincia oculta em forma de valores morais metafisicos, ¢ sem se restrin- yyir ao escopo de uma experiéncia existencial. Tanto na literatura quanto contemporaneas, existe a procura de um efeito estético has artes plastic com forga ética de transformagio efetiva, como a preocupagio de colocar 4 relerencialidade na ordem do dia, abrindo camino para um novo tipo de realismo, que visa a realizar 0 aspecto performitico e transformador da linguagem lite € da expressio artistica. Outra perspectiva emerge hoje na literatura e em certas experiéncias artisti , reivindicando a pre: senga do real na obra nao apenas na tematica, mas, por exemplo, por meio da acentuagao de suas qualidades materiais, afetivas ¢ estético-ex- pressivas ¢ firmando um compromisso com a criatividade técnica ¢ artis tica, & procura da criagio literdria de efeitos de realidade. Assim, o desa fio ético nao se coloca apenas em termos de uma literatura “engajada” ¢ politicamente comprometida, mas como a exigéncia ctiativa de marcar a presenga de uma sensibilidade ética no contexto da produgio mididtica generalizada de “realidade”. Tanto na literatura quanto nas artes visuais, assistimos a uma preo- cupagao com a referencialidade que foi discutida no painel “Novos Rea- lismos”. A volta ao realismo se expressa na acentuagio do aspecto perfor- matico da linguagem literdria, destacando o efeito afetivo e sensivel em detrimento da questo representativa. Uma nova evocagao de “realidade” se evidencia hoje nas tendéncias expressivas da literatura e das artes A pro- cura de “efeitos” de realidade na transgressio dos limites representativos do realismo histérico. Tal tendéncia tenta demarcar seu espago por uma “sede” geral de “realidade” que, com facilidade, se verifica no cinema, na fotografia, nos grandes meios de comunicacao, em particular na televi- sao, em que a noticia imediata, as diferentes formas de documentarismo, 0s programas de auditério, os reality shows e a televisio interativa hoje representam aquilo que mais atrai o ptblico, oferecendo a possibilidade de se vestemunhar, em tempo presencial, tanto a intimidade de persona- gens conhecidos ou anénimos quanto os eventos dramaticos, nos focos de conflito do mundo, de maneira permanente. A sessdo “Literatura sem fronteira” discutiu as fronteiras movedicas do fenémeno literdrio, do seu circuito de comunicagio ¢ da elaboracio do seu sentido nos dias atuais. Centrado nas novas relagGes entre criticos, tedri 05, escritores e artistas tanto no processo criativo quanto na compre- ens do seu objeto de investigagao, 0 semindrio se empenhou em apro- fundar 0 dislogo com os estudos culturais ¢ mididticos que inauguraram perspectivas complexas ¢ estimulantes para a critica literdria. Os debates em toro dos estudos literdrios — seja em manuais, livros, revistas espe- cializadas, teses ¢ eventos académicos ~ evidenciam um campo discipli- nar em constante expansao e rearticulagao. Essa situagdo contrasta com querelas hegemdnicas anteriores, marcadas, em suas extremidades, pela énfase nas abordagens textualistas © contextualistas, geralmente fundadas em pressupostos cpistemolbgicos, estéticos ¢ politicos antagonicos. A nova intransparéncia, ao carter provisério de solugées propostas para a investigagao do fendmeno literdrio, demanda uma atengéo constante por parte dos estudiosos da 4rea, néo apenas pela dificuldade em delimitar 0 objeto de andlise, mas também em fungao da crescente convicgio nas ciéncias humanas ¢ sociais de que projetos teéricos diferentes, em seu con- junto, nfo produzem nem traduzem objetos mais completos, mas obje- tos distintos. 9 Sobre a representagao da fome Ana Kiffer Comeco este texto agradecendo em primeiro lugar 0 convite ¢ a pos- sibilidade de participar mais uma vex desse semindrio, jé tZ0 consolidado, dganizado pelos meus queridos colegas ¢ ex-professores Karl Erik Schol- hammer e Heidrun Olinto. Dedico-o ainda aos meus alunos do curso le Pés-G ema em questo. Como voces verdo, a responsabilidade é sempre maior quando nos enderegamos aqueles de quem gostamos. Por isso, no meu duagdo em Letras da puc-Rio, ministrado em 2008, sobre o caso, tudo se complica. Explico-me: desde 2004 venho, com intimeras ‘elormulagdes, buscando um lugar de onde possa pensar ¢ discutir as rela- bes entre fome e literatura, ¢ ainda nao o encontrei. Passada a possibilidade de assumir sem conflicos uma pedagogia do engajamento do discurso intelectual, assim como a possibilidade do dis- \uitso apenas como pritica retérica, desejo de convencimento, discurso jormalmente inflado e inflamado, ficamos nos equilibrando, no melhor los casos, em discursos esqudlidos ¢ frégeis, tais como os corpos andni- mos da fome. Esse incémodo € antigo ¢ atingiu aqueles que, mesmo no seio de ideologias dominantes ¢ claras, campos doutrindrios bem defini- los, desconfiavam do outro, ¢ sobretudo de si, como observou Graciliano Huamos, em carta a Candido Portinari, em 1946: {A sua carta chegou muito atrasada, e receio que esta resposta jé nfo o ache fixando na tela a nossa pobre gente da roca. Nao hé trabalho mais digno, penso eu. Dizem que somos pessimistas ¢ exibimos deformagées; contudo, as deformagées € a miséria existe fora da arte e so cultivadas pelos que hos censuram, O que As vezes pergunto a mim mesmo, com angtistia, Porti- nari, é isto: se elas desaparecessem, poderfamos continua a trabalhar? Dese- jaremos realmente que elas desaparecam ou seremos também uns explora- lores, t2o perversos como os outros, quando expomos desgracas? (RAMOS, 1946, Acervo Projeto Portinari.) Na angtstia critica ¢ dcida do velho Graga ja se esboga 0 semblante daqucles que buscam, de um modo ou outro, pensar o impensével. Pensar « impensvel, no caso da fome, significa atingir, ao menos inicialmente, 0 dois campos bastante distintos. O primeiro deles pode nos parecer hoje bastante ébvio, posto que se relaciona com o que Josué de Castro (2001) nomeou em 1945 de o “tabu da fome”. Para ele, 0 siléncio que cercava, € ainda cerca, © assunto diz respeito aos interesses econdmicos na produ- ao da miséria e da fome no mundo. Além disso, Josué, dvido leitor de Freud, via na fome um instinto (ou pulsio, para cortigir hoje a termino- logia) que deveria, tal como as pulsdes sexuais, ser recalcado. E. nesse sen- tido que Josué poderd inferir toda uma linhagem de “vergonha” de nossa prépria fome. Como podemos observar, sua leitura politica subjetiva da questo langa as bases para 0 manifesto cinemanovista, escrito em 1965 por Glauber Rocha (1981) ¢ intitulado “Estética da fome”. A vergonha de nossa fome seré um dos motor fundamentais que fardo rodar as estraté- plas discursivas ¢ imagéticas dese Glauber. No entanto, acrescentaria a esse campo de problema, levantado em parte explorade por Josué ¢, posteriormente, pelo préprio Glauber Rocha, un segundo, menos evidente, ¢ menos herdico, que diz respeito 10 funcionamento do proprio ato de pensar. Cito Frangois Zourabichvili (2004) ao dein 1 nogio de problema para a filosofia deleuziana: Inracional: a palavra sé a medo, ou justifica amélgamas aflitivos, do ponto de vista de uma nostalgia do racionalismo, isto é, de um pensamento que nao teria percorrido o circulo do fundamento ¢ nao se teria convencido de dever sua necessidade apenas ao fora, isto é, a um encontro com 0 que o obriga a pensar. Tal encontro tem como critério que o pensamento se veja obrigado a pensar 0 que nao obstante ainda nao pode pensar, no dispondo de esquema disponivel para reconhecé-lo, nao dispondo da forma que lhe permitiria a priori colocé-lo como um objeto. (ZOURABICHYILI, 2004, p. 92). E af mesmo que situo as relagdes entre a fome ¢ a literatura: como problema. Entendendo o problemstico como algo da ordem do paradoxo, da sustentagao de um paradoxo, que poderia ser também aludido, como na passagem anterior como aquele que busca pensar o ainda impensé- vel. Conforme vocés podem observar, estou quase “cercando Lourengo”, falando do que néo falo, como a minha pesquisa, que vem avangando do mesmo modo como avangam as politicas piblicas de erradicagao da fome € combate & miséria: quase nada; algo se fez, mas ainda muito pouco. Pois € isto mesmo que tentarei aqui pensar: 0 prato magro da fome, 0 esboco uulo da mio que ja nao escreve, algo ainda mével, mas também, por ju mesmo, desejosamente movente. doxo constitutive que é pensar o impensével. No Partimos do px ‘ano da literatura ¢ da fome, esse paradoxo se estende para o seguinte: para ‘eremos sempre 0 corpo sem ewcrever hei de ter comido. Entéo, pergunt jpalavra da fome ou a palavea sem corpo da literatura? Uma literatura da Jone & impensavel € impossivel? Diria inicialmente que a fome ¢ 0 pré- prio “fora da literatura’, que vem cutucé-la, remetendo-a para seus pré- jirios limites de palavra etrante e sem corpo (RaNCrERE, 1995). Nesse sen- tido, um encontro entre a literatura ¢ a fome, pensando 0 encontro como {Io da ordem do que me obriga a pensar, mas para o qual ainda no sou cipar de formular um objeto, vai necessariamente fazer com que os ele- jncntos constitutives do “pensar” literdtio, tais como narrativa, enredo, penonapens, didlogos ou a propria definigdo de um género de escrita, © impacto desse mesmo e inelutdvel “encontro”. Fazendo com aparecam de um ou outro modo, ou seja, desaparecendo {que esses termo: desfazer alguns dos pilares fundamentais da prépria enun- sse “fora” que o encontro com a fome pode vir a ser afe- © obrigando clagho literse Lari, nao sem consequéncias, 0 sistema literério. E isso, como sugerimos, w dari de modo contundente ao longo do século xx. E bem verdade que \s transformagées econdmicas e politicas que caracterizaram a Revolucao Industrial, a Revolugo Francesa ¢ os novos regimes burgueses e de tra- hullo acarretario novas configuragdes que virdo apartar e ligar a fome e a liietatura, ao campo e& cidade. Essas transformagées se oferecerao como licus fundamental de inéimeras mudangas sensoriais e perceptivas que sletarao os modos de narrar. Muitos “encontros” dessa ordem nao deixa- hin de ocupar o cenério da literatura, sobretudo na passagem do século lo xx, tendo a cidade ¢ seus “excessos” como personagem AIX panto sé ‘ential desse encontro com um “fora” No entanto, de modo contundente, 0 “encontro” com a fome parece, por um lado, apresentar-se sempre como experiéncia de uma radicali- ‘lade, Sua escassez como questéo para a literatura nao deixa de esbogar \ excegao que representa. Por outro lado, sua apari¢o ¢ sua constancia ww longo da histéria da escrita no Ocidente so tio marcantes que pare- ‘em mesmo fazer alusio ao fato de que literatura ¢ fome estariam, “em . Das pinturas nas cavernas ao Antigo Testamento sneia”, interligada 1s representagdes do comer ¢ do dizer nao se deixam negar. A ameaga da fome como forga destrutiva dos lagos de vida ¢, portanto, dos lagos comu- nitdrios, se deixa entrever pelo siléncio que lhe consagra a lite mesmo tempo pela exigéncia do dizer que a comida, ou o desejo de comer se impée & necessidade do “escrever”. O paradoxo parece subsistir & ques- tao por mais longe que tentemos levé-la no tempo ou no espaco. Dado que € impossivel adentrar no paradoxo através dele mesmo, comecemos a falar da fome por meio da comida. Nao fujamos aqui a essa longa tradigo. Poderfamos comesar em um ponto longinquo, tal como se nos oferecem as narrativas do Antigo Testamento, perguntando como a comida operou a nossa primeira distingao como mortais. O primeiro traco que nos deu um corpo e, para tanto, nos apartou de Deus. A Deus os seres vivos (por meio do sactificio), aos homens somente os vegetais. Isso por- que ndo matards! Como lembra Julia Kristeva (1980) em seu ensaio sobre a abjegio, a autorizacdo para comer a carne sé aparece depois de um grande cataclismo. O dihivio, e com ele a constatagao de que 0 “objeto do cora- gao do homem ¢ 0 mal” (xrisreva, 1980). A separacio seria a partir de entdo instaurada no mais entre o vivo ¢ o vegetal, mas, sim, entre a carne € 0 sangue. O sangue sendo o limite que demarca a impureza do homem; mesmo sangue que deve, por conseguinte, ser purgado, sendo entregue a Deus. A carne a ser comida pelo homem deve ser, portanto, uma carne sem sangue, que dissipe todo ¢ qualquer fantasma da carnificina, Lembro: nao matards! Os animais comestiveis pelo homem devem obedecer a uma taxonomia que garanta que sejam animais herbivoros. Para evitar que 0 homem coma um animal carnivoro, 0 campo da impureza se estende do sangue para uma série Igica e abstrata, que faz entrever, como leu Kris- teva, que 0 puro é da ordem ¢ 0 impuro, da mistura, da desordem. Como podemos observar a partir dessa leitura de Kristeva do Antigo ‘Testamento, a relagao entre a comida ¢ a fundagao do humano € crucial. Nao hé como separar, nesse sentido, 0 que se come daquilo que se pode ser. A constituigao da humanidade do homem, no sentido mesmo de sua mortalidade e de sua separacao de Deus, é designada por meio da comida. Nao a toa muitas das figuracdes da fome na literatura apontam para um processo continuado de desumanizagao, por meio da aproximagao entre o homem € o animal (Graciliano Ramos ¢ Josué de Castro), do homem monstruoso (Dante, Dostoievski, Artaud), do homem insano (Hamsun, Artaud), ou do homem curiosamente mais perto de Deus do que todos os outros humanos (Kafka, Glauber Rocha — incluiria aqui também o recente documentério Fstamira, de Marcos Prado). cura, ao 4 Mais recentemente, 0 estudo fenomenolégico do filésofo francés Jérome Thélot intitulado No infcio era a fome: tratado do intratdvel (2005) val também postular a fundagdo do mundo por meio da fome. Para Thé- lata fome é 0 afeto universal, posto que mesmo aqueles que tém o que ‘omer sentem fome. Ela é que vai dar 0 mundo aos homens. Isso porque sJundagio do mundo se faz a partir da distingao entre o comfvel ¢ 0 inco- nivel. Eu posso comer o meu préprio filho, mas nao o tecido da minha ‘amina, Crucldade intrfnseca & fome. A fome instaura, dese modo, 0 nomear do mundo: “aferado pela Jome o homem fala: forgosamente” (THELOT, 2005). Um pdthos da fome « aquele que une e desune fome e palavra. O fildsofo francés parece ter-se nteressado mais pelos caminhos da continuidade entre a fome e a pala- vin 56 assim ele pode ler e postular que, entendendo-as como um conti- nun, «tome seria 0 afeto poético por exceléncia, o jejuador seria aquele {jue rejuntaria a poténcia da palavra, palavra da fome, que renuncia & \Wislagao (a retérica do mundo) para reencontrar 0 Verbo. Para o filésofo, (liv di A fome quase a mesma satisfagao que a comida, quase 0 mesmo eiquecimento da fome que a comida provoca. E nesse sentido que, tal como a comida, a palavra serd constitutiva, para o autor, da humanidade do homem, Apesar de estarmos diante de um estudo consistente, ele esquece jus- tumente de pensar a descontinuidade entre a fome ¢ a palavra. Para o itor, o mundo da palavra vem retificar e preencher o vazio da fome. Ele nto ouviu 0 siléncio de Josué de Castro ¢ certamente desconhece a diver- ivladle das nossas condiges concretas materiais que impedem que os {amintos tenham direito & palavra. Talvez por isso, a parte menos desen- volvida de seu livto seja 0 ultimo capitulo, destinado a pensar a ques- ‘io politica da fome, formulada em termos de uma grande “compaixao”. Ona, como sabemos, a compaixao e a lembranga de que um dia tive fome © {ui alimentado ja nao respondem mais a realidade da fome hoje no undo. A nossa infancia tem, sistematicamente, vivido 0 desamparo irre- panivel de nao ter sido alimentada. O Estado da compaixao seria ainda ‘ose Estado assistencial que vem camuflar as nossas condig6es materiais. Como sabemos, as redes de solidariedade vém maquiando toda ¢ qual- (uer_possibilidade de se retragar 0 mapa da fome e, por conseguinte, dle combaté-la, Quer dizer, nés, pais de famintos e de analfabetos, nao Consepuimos reduzir a fome ao circulo ininterrupto da palavra, ¢ muito Ks paradoxo constitutive desse incmodo, dessa pesquisa ¢ de minha fala. A fome, antes de ser representacio, é fratura na apreensio continua da rea- lidade e, por conseguinte, ferida recorrente que constitui esse real intra- tdvel, esse insuportdvel. © que Thélot esquece ¢ justamente de pensar a descontinuidade entre a fome e a palavra, a rasura na representacéo de uma pela outra, a perturbacao desse circuito, o siléncio premeditado, como dizia Josué, ¢ os menos de sua representagto no mundo da palavra. Essa é a pagucira ou 0 impasses que a literatura, imersa nessas condiges, vai enfrentar ao se colo- car esse problema. O que ele também esquece é que a fome, assim como esse impossivel que ¢ uma literatura da fome, acaba por nos apresentat no a garantia de humanidade por meio da palavra, mas, sim, seu contré- rio, a oportunidade radical de questionarmos a invencéo dessa humani- dade, dos diferentes projetos que forjaram os modelos de humanidade ¢, mesmo, as poténcias libertadoras do devir animal, do monstro, do louco, de todos aqueles que viveram a impossibilidade de se conformarem, de se fazerem forma, que liberaram a ortografia em sucessivas “monstrogralias’. Um pouco disso tudo tragard as relagées entre a literatura e a fome, sobre. tudo ao longo do século xx. No entanto, um romance fundador, escrito ainda no século x1x, em 1890, pelo noruegués Knut Hamsun, foi funda- mental para levantar muitas das trilhas posteriores ¢ do campo de pro- blema aberto pela relagio entre a literatura e a fome no século xx. Esse romance, intitulado Fome, que leio na edicao brasileira de 1977 com tradugao de Carlos Drummond de Andrade feita a partir da tradu- Gao francesa, serd o objeto por exceléncia de meu texto. Ele servird como motor questionador da representacéo da fome pela literatura e, nesse sen- tido, permitiré retomar algumas das consideragées até agora levantadas. Como muitos jé observaram, 0 romance de Hamsun deseja decla- radamente combater 0 arcabougo de uma representagio realista natura- lista na literatura de entGo. Para tanto, 0 texto, que foi considerado sua obra-prima, toma como sujeito o mais real dos assuntos: a fome. Por isso mesmo, sua empreitada ser pioneira para as postetiores problematiza- goes do campo da representagio na literatura, que, como também sabe- mos, percorrerd todo 0 século xx. Ora, mesmo no seio do que se chamou posteriormente de “novo realismo”, ou “realismo social”, no qual a fome foi amplamente estudada, se poderé observar em muitos escritores uma severa critica a toda ideia congelada do referente c do compromi soem 16 lidade. Mesmo nao sendo esse o foco do texto, nao coloca no retratar uma certa re: nunciar ot reeito campo de problema que poderia deixar de a problematizagao da eatudo das relagdes entre fome e literatura, qual \leia de representagao da fome pela literatura. Como jé apontamos na crf- ticaa'Thélot, nos interessa, em longo prazo, interrogar se toda literatura da fome é uma literatura de entrecruzamento com as diversas perspectivas rea- listas, Ou se é possivel falar com a fome, ou fazer falar a fome, numa rup- ina radical com 0 compromisso de representagao realista, seja ele um rea- lismo problemético ou nao. Também por isso Knut Hamsun ser a pedra ile toque para as andlises posteriores de muitos autores que, no século xx, shordaram o problema da representagéo da fome na literatura. Sobre o romance de Hamsun, comegaria destacando todo o oculta- imento da fome que se faz na construcao de sua trama narrativa. Curio- vimente, o romance intitulado Fome nao se propoe a dar a ver a fome, € \\ por meio das estratégias do ocultar, vai revelando-a de modo surpre- endente ¢ chocante para o leitor. E bem claro que o personagem narrador jue burla a temporalidade narrativa, fazendo-a oscilar entre um tempo ‘ontemporineo ao ato de narrar e um tempo constante e de fundo, que indica uma experiéncia jé vivida, narrada por um sobrevivente, esconde lo leitor toda caracterizagdo ¢ todo e qualquer indice que 0 remeta a tin teferente externo, social ¢ coletivo da realidade. Temos a narracao thi lome por meio da ascenséo de uma experiéncia solitdria ¢ individual. Ui romance de formagao as avessas, um romance, diria, da deformagao. Mas 0 ocultar da fome se faz notar ainda nos modos de narrar a experi- éncia, constitutivos dos modos de viver do sujeito em questao. Ai entra « o1yulho como indice extremo de sobrevivéncia da fome na narrativa. Nu medida em que corro 0 risco de morrer porque nao accito a fome hw lugar da miséria pedinte e claudicante, fago sobreviver a fome como liyar de forga, por mais contraditério que pareca, e € isso que faz 0 per- vonagem sem nome de Hamsun. A caracterizagdo do personage tam- lim vem ocultar os indices de localizagao da fome na realidade. Ele nao tem nome, nZo tem classe, nem profiss4o. Mesmo que possa parecer um jornalista, na verdade, sente-se um génio nao revelado. Mesmo que possa Jurccer um escritor, todo o drama da fome vai se colocando como impos- ibilidade da propria escrita. O romance cria uma zona esfumagada que impede até mesmo a leitura positivista e desenvolvimentista, na qual a ‘ausa de sua paralisia como escritor. Questionando a fome lome seria a 7 como referente inicial da realidade que levaria 4 impossibilidade de crian, introduzir outro campo de problema, que alia o desejo de lite. ratura & ruina e & miséria. A escassez torna-se a matéria, por exceléncia, do literdrio. De todo modo, seu personagem amb{guo no pode se carac- terizar como fldneur porque a fome o impede de sé-lo. Sua deambulagao pela cidade ¢ errética, deformada, miserével, sempre sob pena de cair no beco escuro — fome, violéncia, morte. Mas cle ainda nao & © mendigo, Jumpen proletariat que vai esmigalhar, no século xx, o ideal de uma cidade livre ¢ aberta pelo flaneur. O que o impede de mendigar é a literatura. Da mesma forma que a fome o impede de ser um flaneur. Pendurado entre esses dois registros, personagem nao tem salvaco, apesar de perambular pela cidade de Christiania, num calvério nao edificante e diverso daquele de Cristo. Seu softimento s6 encontraré safda na fuga e no éxodo. Nesse romance eu identificaria trés estagios distintos da relacio entre a fome ea literatura. Num primeiro estdgio a fome aparece como abertura para o devir. Cito: “Que € que nao inventam as sensagdes quando a gente tem fome? Sinto-me absorvido por essa mtisica, dissolvido, tornado miisica; € fluo, sinto-me distintamente fluir, pairando alto sobre montanhas, dan. gando em zonas luminosas” (HAMSUN, 1977, p. 66). A fome, tal como a roy, pode ser, num primeiro momento, liberadora de intensidades, como ele par mostia o didlogo do personage com 0 redator-chefe de um jornal: Vou lélo = (..) Sem diivida todos os seus escritos representam esforco, #0 senhor é demasiado violento, (.,.) Tem sempre uma febre excessiva, ) Viquel na divida, Qusaria pedit-the uma coroa? Explicar-lhe por que HHetHe encrito eam sempre febtis? (HAMSON, 1977, p. 68). Num segundo estigio, a fome vai perdendo sua forga de abrir devires © vai fazendo com que seja impossivel deixé-la. Uma relagéo de escravidao © submissag se estabelece. A comida continua sendo desejada e necess4- Tia, mas © corpo a recusa numa série intolerdvel de vémitos € nojo se con- solida a experiéncia da abjecao. Como para o jejuador de Kafka, nao hé mais comida que responda a essa fome: O alimento comesava a produit efeito, Sentia-me tio mal que sem dtivida ‘Zo poderia guards-lo por muito tempo. Ia esvaziando o estémago em cada lugar escuro por onde passava; lutando por aplacar o enjéo que mais uma vex me oprimia (..) (HAMSUN, 1977, p. 95). 18 Nam tltimo: 1 ferocidade tomam cont as sensagées. ao mesmo tempo. Um certo ideal de literatura que antes era uma safda, uma forga conflitante ¢ com- ltente da experiéncia da fome, desaparece como tal. Agora trata-se de aida qualquer ou da morte. Trata-se de, impulsionado pela feroci- ‘hue, ainda caminbar alguns passos ou de se deixar morrer imével. Esse snagem inaugura o éxodo da fome no século vindouro e deixa Chris- stigio, estabelece-se @ maior tormento: a imobilidade € de si ina vet i \nia como reles trabalhador num navio que parte. No entanto, apesar do ocultar da fome como estratégia de fazé-la (ular na literatura, Hamsun nao foi adiante no paradoxo constitutive da teligio entre esses termos. Ainda prenhe de palavras ¢ a sua fome, cheia ile um mundo incetior que busca significé-la, um mundo onde a palavra \juivaleria 20 esquecimento da prépria fome. Palavra que significaria 0 jwencontro com a prépria humanidade, como poderemos ver em muitos cmunhos da fome num século de guerras. No entanto, outras relacées ‘stabelecerao entre esses termos. Algumas delas se fario mar- «it como desafio & prépria literatura, A fome seré, no caso da experién- ‘in de Antonin Artaud, aquilo que abrir a propria nogao de literatura, (uvendo com que seus pilares sejam abalados. Autor, texto € leitor serdo Jilares ou fungdes esburacadas no trajeto de Artaud. Mas aqui jd terfamos \y\We Comegar outra etapa da conversa, Ficaria hoje apenas ¢ ainda com um ‘eto mimero de quest6es: uma literatura da fome estaria interrogando a vilidade fundamental da prdpria literatura a partir do que nao é litera- ‘ina, a partir desse fora radical? No lugar em que estamos hoje, carente de }rojetos c utopias, pensar uma literatura da fome é ainda desfiar desafiar 1» Lito politico do fazer literdrio? Que nogées de engajamento daf deriva- tum? Essa ainda é uma nogo valida diante da literatura contemporanea? 1) nossa sequéncia: seria possivel uma relacao néo metaférica entre a lite- também se fatura co real da fome? 19 Resumo O texto buscard analisar as relagoes entre a literatura © a fome, pen- sando a fome como elemento que problematiza a nogio de representa- cao literdria. Para tanto, além das andlises tedricas da questio, o texto buscar pensar o romance Fome, de Knut Hamsun, como pioneito, na’passagem do século x1x para o século xx, dessa instabilidade que 0 encontro com a fome pode gerar no Ambito literétio. Referéncias bibliogréficas AGAMBEN, Giorgio. Estdncias, a palavra e o fantasma na cultura ocidental. Trad. Selvino Assmann. Belo Horizonte: Editora UrMG, 2007. - A linguagem e a morte: um semindrio sobre o lugar da negatividade. Trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UEMG, 2006, anraup, Antonin. Oeuvres. Edition établie, présentée et annotée par Evelyne Grossman. 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Hannah Arendt chamou varios de seus eactitos de exercicios de pensamento politico, que emergiam de situac6es especiticas e a elas permaneciam ligados. Tratava-se de verdadeiros emba- toy da atividade intelectual com os acontecimentos politicos concretos — swim cla caracterizou © conjunto de ensaios reunidos em Entre 0 passado «0 futuro (ARENDT, 1972). Por esse motivo, nao surpreende que as primeiras referéncias explici- 1» tema do juizo tenham surgido na troca de cartas com a amiga Mary McCarthy, em 1954, em uma ocasiao em que a autora de O grupo men- inava 0 ceticismo quase ritualistico das pessoas & sua volta — um assunto {que ela pretendia abordar em um de seus romances (ARENDT, 1995, P. 50 « sepuintes). Ela pediu, envio, & amiga filésofa uma orientagao para tra- tur de uma matéria para a qual nao se sentia preparada. A resposta de Hlunnah Arendt veio sem tardar. Da cidadezinha onde passava as férias (le verso, cla enviou uma carta cheia de sugestdes, na qual apresentava lun retrato da Era Moderna (0 perfodo histérico inaugurado na virada ‘lo século xvt para o século xvt1), destacando o acentuado subjetivismo (lv mentalidade surgida na época — um t6pico que seria retomado, alguns jnos mais tarde, em A condigéio humana, na caracterizagao do fendmeno \la moderna alienagao do mundo. Na resposta & amiga, Hannah Arendt argumentou que a dificuldade «le julgar do homem contemporaneo se devia ao fato de que cle nao podia 4s fontes a que habitualmente os juizos estavam ligados — Hal recorr nso comum. Ao longo da Era Moderna, cada vez mais, m inacessiveis. Nao s6 a autoridade da tradicao, geral- J tradigio ¢ 0 eran fontes fic: inente de cunho religioso, passou a nao ser mais reconhecida, como ocor- eu também uma espécie de perversio do senso comum. 23 Iradicionalmente, 0 senso comum foi considerado um sexto sentido que controla os possiveis erros dos outros cinco sentidos ¢, também, o senumento que expressa 0 pertencimento a um contexto mundano que os homens partilham entre si.' Isso significa que cle apresenta, a0 mesmo tempo, uma dimensio sensualista ¢ um aspecto plural — este tiltimo asse- gura aos homens a vida em comunidade. Com o advento da Era Moderna, deram-se o descrédito ¢ a desca- racterizagao desse sentimento. O senso comum perdeu o caréter sensua- lista ea referéncia a um contexto plural ¢ adquiriu uma feicéo interiori- zada ¢ individual. Na carta enderegada & amiga, Hannah Arendt indicou © que teria motivado essa situagao: a revolugao cientifica, fundada na des- crenga da capacidade de os sentidos apreenderem a realidade, que cindiu, de forma definitiva, a verdade ¢ a aparéncia. Anos mais tarde, em A condigéo humana, a fildsofa se deteve no exame do processo de alienago do mundo que jd se manifestara nos trés even- tos que marcaram o inicio da Era Moderna — a Reforma, as descober- tas maritimas ¢ a invengao do telescépio por Galileu. O capitulo final do livro argumenta que foram as revolugées cientfficas modernas — nas quais se insere a invengao do telescépio por Galileu — que condicionaram, de forma mais decisiva, o modo de ser da Era Moderna.’ A invengao do novo instrumento ¢ de toda a tecnologia da investigagio das ciéncias experi- mentais acarretou a desconfianga na capacidade de os sentidos apreende- rem a verdade e pés por terra todas as nogées fundadas sobre ela, inclusive a de que 0 Sol girava ao redor da Terra. Nesse novo cenério intelectual, ndo s6 jé nao se reconhecia que os sentidos fossem capazes de atingir a verdadeira realidade escondida por trés das aparéncias, como também se acreditava que eles sempre induziam os homens ao erro. Ao teagir a essa inédita e incdmoda situaggo, 0 homem moderno, em um movimento de acentuada introspecca0, voltou-se para dentro de si mesmo. Jé que nao podia mais confiar nos dados dos sentidos, propés buscar um ponto de apoio nos contetidos subjetivos abrigados na sua mente, Essa atitude animou a maior parte das filosofias modernas ~ a comegar pela de Descartes -, que foram chamadas, mais tarde, por Nietzsche, de “escola da suspeita”. O processo de radical privatizacao e individualizagao do senso comum, considerado por Hannah Arendt uma forma de perversio, fez com que os homens passassem a néo set mais capazes de sentir 0 mundo, mas apenas 4 \ i priprios. A ameaga de um relativismo sem limites foi o fantasma que cultura moderna. Por outro wwombrou as principais manifestagbes ‘do de senso comum completamente nova, que pecto comum a dimensao sensualista ¢ plural, lado, firmou-se uma no ji ao reconhecia no seu ii via nele o fato de que os homens tém em comum certa capacidade jnental ~ 0 poder de raciocinar. O senso comum jé nao era a garantia da eximéncia de um mundo compartilhado por individuos com perspecti- vw diferentes. A nogao de comunidade humana passou a ser a do con- junto de individuos idénticos, dotados do mesmo aparato mental. A esse jeypeito, Hannah Arendt comentou em seu didrio: “Para poderem asse- jar se da realidade em um mundo que nao é mais comum, os homens deve -melhar uns aos outros a ponto de serem indiscerniveis.”? O ji pimento dessa figura do homem sem mundo ganhou relevancia polf- tion no século xxx, quando os movimentos totalitarios lograram mobilizar 4» grandes massas de homens solitdrios. A tellexio de Hannah Arendt sobre 0 jutzo se enrafza nesse diagnés- tio da Lira Moderna, presente no tiltimo capitulo de A condigao humana, | sc destaca a rufna do senso comum. 11926, Hannah Arendt transferiu-se de Marburgo, onde estudava Lia c seguia os cursos de Martin Heidegger, para Heidelberg, onde iria rar sua tese de doutorado sobre O conceito de amor em Agostinho, sob \ orientagao de Karl Jaspers. As primeiras cartas trocadas entre a aluna 0 Hoyo professor deram inicio a uma relagao de amizade ¢ colaborac4o que « eatenderia até 1969, quando Jaspers morreu. A volumosa correspondén- ‘iw entte os dois é uma fonte preciosa de informagoes sobre suas vidas, traz, tivlarecimentos a respeito de pontos centrais de suas obras ¢ constitui um fe qu je vibrante depoimento sobre os acontecimentos politicos da época. © contato foi interrompido com a fuga de Hannah Arendt para a Hanga, cm 1933, tendo sido retomado, com o fim da guerra, em 1945. Na jimeita carta enviada de Nova York, datada de novembro de 1945, Han- til Arendt expressa da seguinte forma seu sentimento naquele momento tle teencontro: “Desde que soube que passaram ilesos por todo esse espetd- iil de horror, comego a me sentir de novo em casa neste mundo.”* Hannah Arendt escreveu sobre o amigo e mestre dois textos, inclu{- ) na coletinca Homens em tempos sombrios, ¢ proferiu seu elogio fiine- hie, na Basileia, em 1969. Laudatio, lida por Hannah Arendt em Frank- fait, em 1958, ¢ 0 clogio fiinebre ressaltam a capacidade de julgar de Karl 25 Jaspers ¢ sua disposigao de expor-se no debate priblico¢ dio menos rele. a obra do filisofo. Nesses textos, a sabedoria de Jaspers ¢ aprovinnada de discernimento do estadista, e sua figura contrasta com a de cients, auc 0 flésofo tem de responder por suas opinides ¢ manterse respon. oe eee P: 70; 1985, P. 719). Karl Jaspers foi consi- nda prépria consciéncia da Alemanha no pds. guerra. A seu ver, ele exemplificava com suas atitudes a fasio de liberd che razo e comunicagio. Hannah Arende reconhecia que 0 pensamente de Jaspers, sempre “relacionado intimamente a0 pensamento dos onto,” estava fadado a ser politico, mesmo quando tratava de colsss que nda cram minimamente polcicas, pois ele sempre confirmava aquela “mente Nidade alargada’ referida por Kant, que éa mentalidade politica por lencia (ARENDT 1987, p. 73). S| ‘A mensio & nocio de “mentalidade alargads" ea identificagio desta com um modo politico de pensar sinalizam a leitura muito parrevlay de Hannah Arendt da Critica da faeuldade do juico, de Kant, especialmente da parte sobre o jufzo estético, na qual s avalia a beleza de alguma coise Em uma carta a Karl Jaspers, da mesma época em que lia o pequene line sobre Kant do antigo mestr, ea sublinhou a relevancia politica de Ton ccira crftica Para ela, aflosofia politica de Kant devia ser buscada aac ng Critica da rasio pritia, que versa sobre questées de moral, mas na “Avelt tica da faculdade de julgar estética”. Os temas do senso comum, do fend. meno do gosto, tomado como base para 0 juizo, do modo de pensar alr sado, proprio de todo ajuizamento, que faz.com que algudin pose pens do ponto de vista dos outros, foram destacados na carta le agowto de Mais tarde, esses temas foram retomados, de forma sistematica, nos & balhos especialmente dedicados a Kant: “A crise da cultura”, engin incl {do em Entre o passado eo futur, Ligies sobre a floofa polton de Re coligidas postumamente. LL Ao apresentar o perfil de Kael Jaspers, Hannah Arendt tinha uma concepsao da faculdade do jutzo como sabedoria prética, com exretar ticas muito préximas da phréness atistotélica, ¢ isso permitia ses iden, ficagao com o discernimento do estadista. Entretanto, j4 em “A crise da cultura” ede forma mais acentuada, nas conferéncias de 1970 sobrea Cor tica da faculdade do jutzo, que pretendiaim seguit mais de perto ox nein mentos de Kant, a capacidade de julgar foi atrbuila exclusivamene co 26 espectador nao participante ¢ foi vista como uma das atividades do esp(- 1ilo, junto com o pensar ¢ o querer. Os depoimentos de alunos ¢ amigos de Hannah Arendt revelam que ly pretendia chegar a uma compreensao suficiente da natureza do juizo + di sua dimensao politica em uma investigagéo sobre a estética de Kant, 44 porque entendia que nao havia nenhum outro material que pudesse vilsidis-la.® As Ligdes sobre a filosofia politica de Kant indicam que essa lnvestigagao deveria concentrar-se em dois aspectos principais. lim um primeiro momento, seria sublinhado o fato de Kant ter situ- ilo no centro de sua obra sobre estética a figura do espectador ¢ nao a do wiista ou do ator, Esse passo da interpretacio da Terceina critica deveria 1 determinac’o da posicao retirada do espectador relativamente cena ocupada pelos atores e, por conseguinte, chegaria ao reconheci- sento da sua atitude desinteressada. A retirada do espectador do contexto «ly ayo qualifica 0 juizo como uma atividade do espitito. Como todas as \\ividades espirituais, 0 jutzo depende de uma operago de dessensoriali- #0 dos objetos concretos. Por meio dela, os dados objetivos sao supri- iwilos ¢ deixam de afetar diretamente 0 sujeito. Em seguida, a imaginacao ewe dom quase milagroso de tornar presente uma coisa ausente — inter- win para fornecer material para a apreciago do sujeito. Este, agora, jé #10 se encontra envolvido com os objetos ¢ é capaz de julgar com impar- ialidade. O jufzo nunca depende de algum interesse tedrico, o que signi- situag6es particulares a setem avaliadas nao séo consideradas & fea que ly de um conceito geral. Tampouco intervém nele critérios de natureza ioral, bem como ficam suspensas todas as preocupagées utilitdrias. I'm uma passagem de “A crise da cultura”, Hannah Arendt referiu-se ) definigio kantiana da apreciaggo estética como a base para a elabora- io de uma compreensao do jufzo em geral, inclusive com suas implica~ «-\ politicas, e observou que, para julgarmos algo, “cumpre primeiro ser livees para estabelecer certa distincia entre nés mesmos e © objeto, / quanto mais importante é a pura aparéncia de uma coisa, mais distan- “lu exige para sua apreciagao adequada. Tal distancia néo pode surgir a juenos que estejamos em condiges de esquecer a nds mesmos, as preo- \payoes, interesses ¢ anseios de nossas vidas, de tal modo que néo usur- pemos aquilo que admiramos, mas deixamo-lo ser tal como o é, em sua \pardnicia” (AREND'Y, 1979, p- 263). 27 A consideragao desse primeiro aspecto da estética de Kant, ao por em evidéncia as operagées de subtraco do objeto da apreensao imediata pelo sujeito e de sua reapresentagao pela imaginacao, pretendia indicar as condi- ges da imparcialidade do jufzo. Ao mesmo tempo, a definicao desse modo de ser desinteressado dava acesso a abordagem de um segundo aspecto, relativo ao seu cardter intrinsecamente plural. A postura desinteressada do espectador, por sua prépria natureza, apresenta-se como uma superagao do egofsmo e acena para uma capacidade de pensar comunicativa. Ao sublinhar o fato de 0 ajuizamento envolver o ponto de vista de uma pluralidade de espectadores ¢ nao o de um espectador solitario, Han- nah Arendt aproximava-se da Terceira critica no ponto em que esta faz a passagem da definicéo da qualidade desinteressada do jufzo para a abor- dagem da sua dimensao quantitativa.? Kant e, em seguida, Hannah Arendt notaram que o espectador nunca se contenta em julgar solitariamente, mas tem sempre a expectativa de obter a adesio de todos os demais. Assim, a atividade de julgar supéc, ini- cialmente, a adogio de uma atitude desinteressada, da qual resulta a supe- ragio do egofsmo. Em seguida, o jutzo faz apclo ao senso comum, que & a capacidade que cada espectador tem de, ao julgar, se colocar na posi- sao de todos os demais. Na definigao de Kant, 0 senso comum permite relacionar o juizo individual & razo humana inteira e, deste modo, pro- move a climina¢ao das ilusdes do homem solitério. Isso ocorre quando 0 espectador faz abstracdo das suas condicées privadas subjetivas e com- para seu jufzo com os possiveis juszos dos outros. A vocacao comunicativa est inscrita na prépria natureza da atividade de julgar. Essa ideia justi- fica o comentério de Hannah Arendt sobre as maximas do entendimento humano comum, mencionadas na Terceira critica. Das trés méximas do entendimento comum — pensar por si (a maxima do Iluminismo), pen- sar no lugar de qualquer outro ¢ pensar de forma consequente —, a mais importante para ela é, com certeza, a segunda: a méxima do modo de pensar alargado. Kant e Hannah Arendt identificaram 0 senso comum a um sentido comunitério, pois ele ajusta o homem a uma comunidade. Esta nao se fundamenta na existéncia de um cardter social do homem inscrito em sua natureza, como afirmou, por exemplo, Aristételes no primeiro livro da Politica, nem na referéncia a nenhum outro dado objetivo. Bem diferente disso, essa é a comunidade dos espectadores que julgam e que, de forma 28 = ho Seherada, partilham seu julgamento uns com os outros. A existencia she comunidade depende exclusivamente do exerctcio da capacidade de Juljoe Assim, acontece frequentemente de uma comunidade desaparecer ‘Peitilo Cows a atividade de julgar, mas isso nao significa que os homens HAham perdido sua humanidade. Aleitura de Hannah Arendt da Critica da faculdade do jutzo, a0 por Hi evldénicia as nogdes de desinteresse e pluralidade e as faculdades cor- Papondentes da imaginacgo e do senso comum, conduziu & afirma slp que ali estd contida a filosofia politica de Kant. Porém, & certo que as fees de Hannah Arendt, mesmo inspiradas em Kant, ultrapassaram as Jewensbes do autor da Critica da faculdade do jutzo. Para Kant, a plurali- thule dos espectadores é representada. Ela é alcangada pela imaginacéo de li expectador que se coloca, idealmente, na posi¢ao dos demais. Jé Han- tuwh Arendt entendeu que os espectadores constituem uma pluralidade wletiva, Bla chega a sugerir, a certa altura de Ligées sobre a filosofia poli tu de Kant, que a auséncia desse passo, em Kant, explica-se pelas lim: wes impostas pelo ambiente politico da época em que o filésofo viveu — we ndculo de Frederico. A comunidade dos espectadores constitui a esfera publica, entendida intangivel que os homens estabelecem entre si na acéo ¢ no fomo a tei iliseurso, em um sentido préximo do que é indicado no capitulo sobre a liylo de A condigito humana. Na experiéncia estética vivida pelos espectado- tes em comunidade definem-se as condigées de possibilidade do apareci- Inento das coisas belas. E 0 que afirma a seguinte passagem de Ligses sobre a filosofia politica de Kant: “A condigao sine qua non da existéncia de objetos hielos éa comunicabilidade; 0 juizo do espectador cria 0 espaco sem o qual enhum desses objetos poderia aparecer” (axeNDT, 1993, p. 81). As coisas que aparecem no contexto aberto pela comunidade dos espec- tudores constituem 0 mundo. Essa tese estd expressa na sepuinte passagem: “Kant estd convencido de que 0 mundo sem o homem seria um deserto e, para cle, um mundo sem 0 homem significa: sem espectadores” (p. 79). A teflexio de Hannah Arendt sobre juizo teve inicio com o diag- ndstico da modernidade, que revelou que a crise dos critérios de ajuiza- mento atravessa toda a sua histéria. A crise se devia a faléncia da tradi © 4 perda do senso comum — as fontes a que os julzos estavam ligados. A tda do ser so comum constituiu o fator decisive do proceso de alie- seu hagio do mundo descrito no prélogo de A condigiio humana: “em 2»

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