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COLEGAO PAULO BONAVIDES Dirctores: José Antonio Dias Toffoli ¢ Otavio Luiz Rodrigues Junior Obras da Colegio: |, Autobiografia de Hans Kelsen ~ Hans Kelsen (Traducao de Hans Kelsen im Selbstzeugnis, por Gabriel Nogueira Dias ¢ José Ignacio Coelho Mendes Neto) 2.A Firma, 0 Mercado eo Direito ~ Ronald H. Coase (Tadugio de The Firm, the Market and the Law, por Heloisa Gongalves Barbosa) 3. Direito Constitucional e Direito Privado ~ Konrad Hesse (a sair) (Tradugio de Verfassungsrecht und Privatrecht, por Otavio Luiz Rodrigues Junior) COLEGAO PAULO BONAVIDES A FIRMA, 0 MERCADO E 0 DIREITO RONALD H. COASE Tradugio: Heloisa Gongahes Barbosa Reviso da tradugéo: Francisco Nils Negro Estudo Introdutério: Antonio Carls Ferera Paticia Candido ANves Ferra 2 ediio , nce O problema do custo social! I. O problema a ser examinado? Este artigo se preocupa com os atos de firmas de negécios (busi- ness firms) que tém efeitos nocivos sobre terceiros. O exemplo classico 0 da fabrica cuja fumaca tem efeitos prejudiciais sobre aqueles que ‘ocupam propriedades vizinhas. A anélise econdmica de tal situagio uusualmente feita em termos de uma divergéncia entre 0 produto pri- vado e 0 produto social da fabrica, na qual os economistas, em grande parte, tém adotado a proposta de Pigou em The Econtomics of Welfare. Esse tipo de andlise parece ter levado a maioria dos economistas a concluir que seria desejavel tornar o proprietério da fabrica responsa- vel pelos prejuizos causados aos prejudicados pela fumaga; ou cobrar dele um tributo que variaria de acordo com a quantidade de fumaca produzida e seria equivalente, em termos financeiros, aos prejuizos {que causasse; ou, ainda remover a fabrica de reas residenciais (e, pre- siMhivelmente, de outras areas em que a emissio de fumaca tivesse efeitos nocivos sobre terceiros). Minha opiniao é de que os cursos de 1 Reimpresso de The Journal of Law and Economics 3, p. 1-44, October 1960,01960 por The University of Chicago Pres. Todos os direitos reservados. 2. Este artigo, embora se preocupe com um problema técnico da andlise econdmica, ‘tem origem no estudo da Politica Econémica da Transmissio (Poitical Economy ‘of Broadcasting). © argumento para o presente artigo estava implicito em outro anterior que tatava do problema da alocacio de frequéncias de ridio e televistio (The Federal Communications Commission. The Journal of Law and Economics 2, October 1959), mas alguns comentirios que recebi pareciam sugerir que seria infcio a suas atividades na propriedade vizinha e que o valor das plantagdes danificadas seja de $ 1. Neste caso, o agricultor recebe $ 11 pela venda no mercado e recebe $1 do pecuarista pelo dano sofrido, sendo que o ganhe liquido permanece igual a $ 2. Agora, suponha que o pecuarista considere lucrative aumentar o tamanho de seu rebanho, embora o montante dos danos aumente para § 3; 0 que significa que o valor da producao, adicional de carne é maior do que os custos adicionais por ela gerados, incluindo-se o pagamento adicional de $ 2 pelos danos causados. Mas, © pagamento total pelos danos € agora iguala $ 3. O ganho liquido do agricultor pelo cultivo da terra permanece $ 2. Seria mais proveitoso para o pecuarista se o agricultor concordasse em nao cultivar sua terra por qualquer pagamento inferior a $ 3. O agricultor concordaria em nao cultivar a terra em troca de qualquer pagamento superior a $ 2. Fica claro que hi espaco para um acordo mutuamente satisfatério que levaria a0 abandono do cultivo da terra.’ Mas © mesmo argumento 5 Neste texto, desenvolvi a argumentacio a partir do pressuposto de que a alterna: tiva para o cultivo do produto agricola fosse o abandono total da atvidade. Mas nd precisa ser assim. Pode haver produtos agricslas menos susctives a danos 109. ‘A Firma, 0 Mercado ¢ 0 Direto « Ronald H. Coase se aplica nao apenas a todo o terreno cultivado pelo agricultor, como tambéma qualquer parte dele. Suponha, por exemplo, que o gado tem uum percurso bem definido, digamos, em diregio a um riacho ou a uma area sombreada. Nestas circunstancias, podem ser significativos 0s danosa safra ao longo desse percurso; e, se assim for, pode ser que oagriculor ¢ 0 pecuarista considerem vantajoso entrar em um acordo rno qual ¢ agricultor aquiesca ém nao cultivar esta faixa de terra. Mas essa situagao aventa outra hipétese. Suponha que exista um percurso bem definido, Suponha, ainda, que o valor da colheita que obtida pelo cultivo dessa faixa de terra seja de $ 10, mas que 0 custo do cultivo seja de $ 11. Na auséncia do pecuarista, a terra nao seria cultivada. No entanto, dada a presenca do pecuarista, poderia muito bem acontecer que, sea terra for cultivada, a totalidade da plan- tacio seja destrufda pelo gado. Neste caso, o pecuarista seria obrigado ‘pagar $ 10 ao agricultor. f verdade que o agricultor perderia $ 1. Mas © pecuarista perderia $ 10. Evidentemente, esta é uma situagio que ndo duraria para sempre, ja que nenhuma das partes desejaria que isso acontecesse. O objetivo do agricultor seria induzir o pecuarista a fazer ‘um pagamento em troca de um acordo para nao cultivar sua terra. O agricultor nao conseguiria obter um pagamento maior que o custo de cercar este pedaco de terra, nem to elevado que induzisse © pecua- rista a abandonar 0 uso da propriedade vizinha, De fato, o pagamento a ser efetuado dependeria da perspicécia negociadora do agricultor e do pecuarista, No entanto, como o pagamento nio seria tao elevado pelo gad, mas menos lucrativos quando comparados ao que se produz na ausén- cia de estragos. Assim, se 0 cultivo de uma nova plantago rendesse a agricultor lum retomo de $1 em vez de $2, e 0 tamanho de rebanho que causaria danos de 5 3 coma plantagio anterior causasse danos de $ 1 com a nova plantacéo, seria lucratvo para o pecuarista pagar qualquer quantia inferior a $ 2 para induzir © agricultor a cultivar outra coisa (uma vez que assim reduziria a responsabilidade pelos danos de $ 3 para $1), e sera lucrativo para o agricultor agir assim se a quantiarecebida fosse superior a$ 1 (a redugio em sew retorno por cultivar ou- tro produto agricola). Na verdade, haveria espago para barganhas mutuamente satisfatdras em todos 0s casos em que uma modificagio no produto cultivado re Gusse ovalor dos danos mais de que reduzira o valor da colheita(excluindo-se ‘0s danos] ~ em outras palavras, em todos os casos em que uma troca no produto cultivado levasse a um aumento no valor da produgio. Cap. 5+0 Probles 101 a ponto de obrigar o pecuarista a abandonar este local, ¢ tampouco variaria de acordo com o tamanho do rebanho, tal acordo nio afetaria a alocagéo de recursos, mas alteraria somente a distribuigio de renda e de riqueza entre o pecuarista e 0 agricultor, Esti claro, acredito, que, se a legislacdo determinar que o pecu- arista é responsével pelos prejuizos causados e 0 sistema de pregos funcionar sem problemas, a redugdo no valor da produgio em outros lugares sera levada em conta ao ser calculado o custo adicional envol- vido no aumento do tamanho do rebanho. Este custo seri compara do ao valor da produgio adicional de carne e, havendo concorréncia perfeita na pecudria, a alocagio dos recursos nesta indstria serd oti- ‘ma. O que precisa ser enfatizado & que a queda no valor de producéo em outro local que seria considerada nos custos do pecuatiste pode muito bem ser inferior aos danos que o gado venha a causar as plan- tages no decorrer natural das atividades. Essa situacdo ocorre porque € possivel, como resultado de transag6es de mercado, interromper 0 cultivo da terra. Isso é desejavel em todos os casos em que os danos que o gado causaria, e pelos quais 0 pecuarista estaria disposte a pa- gar, excedessem 0 montante que o agricultor estaria disposto a pagar pelo uso da terra. Em condigdes de concorréncia perfeita, o montante {que 0 agricultor pagaria pelo uso da terra é igual & diferenga entre valor total da produgio quando sio empregados fatores de producio nesta terra eo valor do produto adicional obtido da préxima melhor utilidade (que seria igual Aquele que o agricultor teria que pagar pe los fatores de producio). Se os danos excederem 0 montante que 0 agricultor pagaria pelo uso da terra, 0 valor do produto adicional dos fatores empregados em outro local excederia o valor total do uso atu al, apés serem considerados os danos. Conclui-se que seria desejavel abandonar o cultivo das terras ¢ liberar os fatores utilizados para a produgao em outros locais. Um modo de proceder que s6 regolasse © pagamento pelos danos causados pelo gado & colheita, mas que nio permitisse a possibilidade de suspensao do cultivo, teria como resulta- do um emprego muito pequeno dos fatores de produgio na pecuaria e sua utilizagio excessiva no cultivo dos produtos agricolas. Entretanto, ‘com a possibilidade de transagdes de mercado, nao persistiria uma situagao em que os danos as colheitas ultrapassassem o arrendamento da terra, Quer o pecuarista pague ao agricultor para nao cultivar as 102 A Firma, o Mercado ¢ 0 Diteto « Ronald H. Coase terras, ou quer ele proprio arrende a terra, pagando ao proprietério da terra uma quantia um pouco maior do que o agricultor pagaria (se © proprio agricultor estivesse arrendando o terreno), o resultado final seria 0 mesmo e maximizaria o valor da produgio. Mesmo quando o agricultor ¢ induzido a cultivar plantagdes cujo cultivo nao seja rents- vel para venda no mercado, este ¢ um fenémeno estritamente de curto prazo e pode-se esperar que conduza a um acordo em que o cultivo cessasse. O pecuarista permaneceré naquele local, ¢ 0 custo marginal da producdo de carne seré 0 mesmo de antes; sem, portanto, nenhum efeito a longo prazo sobre a alocagao de recursos. FV. O sistema de determinagéo de pregos sem responsabitidade pelos prejufzos Volto-me, agora, para o caso em que, embora se parta do pressu- posto de que o sistema de precificagao funcione adequadamente (isto 6, sem custos), a legislagio determina que a empresa nao pode ser responsabilizada por qualquer dos prejuizos que venha a causar. Esta empresa nfo tem de indenizar aqueles prejudicados por seus atos. Pretendo demonstrar que a alocagao de recursos ser a mesma nes- te caso, tal como ocorreu quando a empresa que produziu os danos podia ser responsabilizada pelos prejuizos causados. Uma vez que jé demonstrei, no caso anterior, que a alocagao de recursos era étima, no sera necessério repetir esta parte do argumento. Retorno ao caso do agricultor e do pecuarista. © agricultor so- freria prejuizos maiores & sua plantagdo & medida que aumentasse seu rebanho, Parta do pressuposto de que o rebanho do pecuarista seja constituido por trés bois (e que este é o tamanho do rebanho que se- ria mantido se ndo fossem levados em conta os estragos as plantagées). Entdo, o agricultor estaria disposto a pagar até $ 3 se o pecuarista re- duzisse seu rebanho a dois bois; até $ 5, se o rebanho fosse reduzido a ‘um animals e até $ 6, se fosse abandonada « criagdo de gado. Assim, 0 pecuarista receberia $ 3 do agricultor se criasse dois bois em ver de trés. Esta perda de $ 3 &, portanto, parte dos custos incorridos ao criar um terceiro animal, Quer os $ 3 sejam uma quantia que 0 pecuarista deve pagar se acrescentar um terceiro animal a seu rebanho (e seria este 0 Cap. 5 +0 Problema do Custo Social wus caso se 0 pecuarista fosse responsavel perante 0 agricultor por estragos causados plantagio), quer sejam uma quantia de dinheiro que recebe- ria se nao criasse um terceiro animal (¢ seria este 0 caso se o pecuaris- ta nao fosse responsivel perante o agricultor pelos estragos causados & plantagio), o resultado final nao seria afetado. Em ambos 0s casos, $ 3 sio parte do custo do acréscimo de um animal, ¢ devem ser somados aos demais custos. Se o aumento no valor da produgao na pecusria de vido ao aumento do tamanho do rebanho de dois a trés bois for maior do que 0s custos adicionais inerentes a essa operagdo (incluindo os $ 3 pelos estragos as plantagdes), o tamanho do rebanho aumentard. Caso contrério, nao aumentaré. O tamanho do rebanho seré 0 mesmo, quer o pecuarista seja responsavel pelos estragos causados & colheita ou nao. Pode-se argumentar que foi arbitrario o ponto de partida esco- Ihido - um rebanho de trés bois. B isto ¢ verdade. Mas 0 agriculto: nao estaria disposto a pagar para evitar a destruigao de plantacées cue 0 pecuarista nao fosse capaz de causar. Por exemplo, a quantia méxima que 0 agricultor poderia ser induzido a pagar anualmente nde po- deria ultrapassar § 9, o custo anual para cercar sua propriedade. E 0 agricultor s6 estaria disposto a pagar esse montante se nao reduzisse seu rendimento a um nivel que poderia levé-lo a abandonar 0 cultivo dessa extensio de terreno em particular. Além disso, 0 agricultor 6 estaria disposto a pagar esse montante se acreditasse que, na auséncia de qualquer pagamento feito por ele, o tamanho do rebanho man- tido pelo pecuarista seria de quatro ou mais bois. Vamos supor que seja este 0 caso. Entio, o agricultor estaria disposto a pagar até $3 se ‘0 pecuarista reduzisse seu rebanho a trés bois; até $ 6, se o rebanho fosse reduzido a dois bois; até $ 8 se fosse criado apenas um boise até {$9 se fosse abandonada a criagao de gado. Nota-se que a mudanca da suposigao inicial ndo alterou o montante que reverteria para o pect- arista caso reduzisse o tamanho de seu rebanho em qualquer niimero especifico. Continua sendo verdade que o pecuarista poderia receber $ 3 adicionais do agricultor caso concordasse em reduzir seu rebanho de trés para dois bois, e que os $ 3 representam o valor da plantacio (que seria destruida pela adicao de um terceiro boi ao rebanho, Embo- ra uma opiniao diferente por parte do agricultor (justificada ou nio) sobre o tamanho do rebanho que o pecuarista manteria na auséncia de pagamentos de sua parte possa afetar 0 valor total que ele pode a ee————————————————————————————————— tos AA Firma, 0 Mercado ¢0 Direto + Ronald H. Coase ser induzido a pagar, nao € verdade que essa opinido teria qualquer feito sobre o tamanho do rebanho que o pecuarista manteré de fato. © tamanho do rebanho seré idéntico aquele mantido na condigéo em que o pecusrista teria de pagar pelos estragos causados por seus bois, uma vez que a abdicagao do recebimento de um determinado valor é equivalente a um pagamento da mesma quantia, Pode-se pensar que compensaria, para 0 pecuarista, aumentar seu rebanho acima do tamanho que gostaria de manter, uma vez que foi concluido um acordo a fim de induzir 0 agricultor a fazer um pa- gamento total maior. E isso pode ser verdade. A natureza desta situ- agdo é similar aos atos do agricultor (quando o pecuarista podia ser responsabilizado pelos prejuizos causados) ao cultivar terras em que, como resultado de um acordo com o pecuarista, 0 plantio seria poste- riormente abandonado (inclusive terras que no seriam cultivadas de modo algum se nao houvesse criagio de gado). Mas essas manobras sio preliminares a um acordo e nao afetam 0 equilibrio no longo pra- zo, que é © mesmo, quer 0 pecuarista possa ser responsabilizado ou no por estragos causados por seu gado as plantagdes. E necessdrio saber se a empresa que causa 0s danos pode ou ni ser responsebilizada pelos prejuizos que causa, pois, sem o estabele- cimento desta delimitagio inicial dos direitos, ndo pode haver tran- sagoes de mercado para transferi-los ¢ recombind-los. No entanto, 0 resultado final (que maximiza 0 valor de produgao) independe do sis- tema juridico desde que se assuma que o sistema de determinacao de presos funcione sem custos. V. 0 problema ijustrado de uma nova maneira Os efeitos nocivos das atividades de uma empresa podem assu- mir uma grande variedade de formas. Um antigo caso inglés envolvia um edificio que, por obstruir correntes de ar, impedia 0 funciona- mento de um moinho de vento.’ Um caso recente, na Florida, dizia 5 Ver Bowles, M. Gale on easements. 13. ed. London: Sweet & Maxwell, 1959. p 237-239, Cap, 5+ 0 Problema do Cusio Social 105 respeito a um edificio que projetava uma sombra sobre as cabanas, a piscina e as areas de banhos de sol de um hotel vizinho’ O problema do gado desgarrado e dos estragos is plantacGes, que foi objeto de um exame detalhado nas duas segdes anteriores, embora possa ter pare- cido um caso bastante especial, é, na verdade, apenas um exemplo de um problema que se coloca de diferentes maneiras. Para esclarecer a natureza de meu argumento e demonstrar a sua aplicabilidade geral, proponho ilustré-lo de uma nova maneira, citando quatro casos reais. Reconsideremos, primeiramente, o caso de Sturges v. Bridgman? que usei como ilustragéo do problema geral em meu artigo sobre a “Federal Communications Commission”. Neste caso, um confeiteiro (na rua Wigmore) utilizava dois almofarizes e pilbes para realizar seu trabalho (um funcionava na mesma localizagao por mais de 60 anos e, ‘© outro, por mais de 26 anos). Um dia, um médico veio a ocupar ins- talagdes vizinhas (na rua Wimpole). As maquinas do confeiteiro nao causavam qualquer maleficio ao médico até que, oito anos depois de ter se instalado, este construiu um consultério na extremidade de seu jardim, encostado & cozinha do confeiteiro. Foi entio que 0 médico descobriu que 0 ruido eas vibragbes causadas pelas méquinas do con- feiteiro dificultavam o uso de seu novo consultério. “Em particular .. 6 ruido 0 impedia de auscultar seus pacientes para diagnosticar do- engas do térax. Também descobriu que era impossivel realizar efe vamente qualquer tarefa que exigisse reflexao ¢ atengao” Desta forma, 0 médico ajuizou uma agio judicial para forgar 0 confeiteiro a cessar 0 uso de suas maquinas. O julgador nao teve dificuldade em conce- der a0 médico a ordem judicial que este buscava. “Casos individuais de adversidade podem ocorrer na execugao rigorosa do principio no qual baseamos nosso julgamento, mas a negacao do principio acarre- {aria adversidades individuais ainda maiores e, concomitantemente, produziria um efeito prejudicial sobre o desenvolvimento de terrenos para fins residenciais” tribunal decidiu que o médico tinha direito de impedir que 0 confeiteiro usasse suas maquinas. Mas, & claro, teria sido possivel mo- 7 Ver Fountaineblests Hotel Corp. » Forty-Five Twenty-Five, Inc, I14 So. 24 237- 591959) {8 Sturges ¥ Bridgman, 1 Ch, D. 8521879), eeeeeEE~eee 106, A Firma, o Mercado ¢0 Direito« Ronald H. Coase dificar a solugéo vislumbrada pela decisio judicial por meio de uma negociacio entre as partes. © médico poderia estar disposto a renunciar a0 seu direito e permitir que as mquinas continuassem funcionando se 0 confeiteiro Ihe pagasse uma quantia superior & perda de receitas acarretada pelo fato de o médico ter de se mudar para um local mais ‘caro ou menos conveniente, ou por ter de reduzir as suas atividades neste local ou (0 que foi sugerido como uma possibilidade) por ter de construir uma outra parede para amortecer 0 ruido e a vibragio. O confeiteiro estaria disposto a fazer isso se 0 montante que teria de pa- {gar ao médico fosse menor que a queda na renda que sofreria se tivesse de mudar seu modo de funcionamento neste local, de encerrar 0s seus negocios, ou de transferir sua confeitaria para outro local. A solucio do problema depende essencialmente do fato de 0 uso continuado das ‘maquinas acrescentar mais 4 renda do confeiteiro do que subtrair da renda do médico.’ Imaginemos, agora, o que ocorreria se 0 confeiteiro tivesse ganhado a aco. O confeiteiro teria, entio, 0 direito de conti- hnuar a usar suas mAquinas geradoras de ruido e vibracéo sem nada ter de pagar ao médico. A situacao estaria invertida: o médico teria de pagar ao confeiteiro para induzi-lo a parar de usar as maquinas. Se a renda do médico tivesse se reduzido mais devido 4 continuidade do uso dessas maquinas do que esse uso acresceria a renda do confeiteiro, haveria, é claro, espaco para uma negociagdo em que o médico pagaria ao confeiteiro para que cessasse 0 uso de suas méquinas. ‘Ou seja, as circunstancias em que nao valeria a pena para o con- feiteiro continuar usando as maquinas e indenizar 0 médico pelos prejuizos que este uso acarretaria (se 0 médico tivesse 0 direito de impedir que 0 confeiteiro usasse suas maquinas) seriam aquelas em que interessaria ao médico efetuar um pagamento ao confeiteiro de forma a persuadi-lo a interromper 0 uso das maquinas (se 0 confeitei 10 tivesse 0 direito de operar as maquina). Neste caso, as condigdes basicas sao idénticas As do exemplo em que o gado destruiu as planta: es. Com transagdes de mercado sem custos, a decisio dos tribunais, em matéria de responsabilizacao por prejuizos nao teria efeito sobre a 9 Observe-se que o que se considera 6 mudanga na renda apés serem permitidas alteragdes em métodos de produco, localizacio, caracteristicas do produto ete. TT EE EEO <<< ap. 5+ 0 Problema do Gusto Social 07 alocagdo de recursos. A opiniao dos juizes, naturalmente, era de que influenciavam o funcionamento do sistema econdmico ~ e numa di- reco desejivel. Qualquer outra decisdo teria “um efeito prejudicial sobre o desenvolvimento da terra para fins residenciais’, argumento este ilustrado por meio da andlise do exemplo de uma fundigéo que funcionava em um pantano improdutivo, cuja érea foi posteriormente desenvolvida para fins residenciais. A opinio dos juizes de que de- terminavam 0 modo como a terra deveria ser usada seria verdadeira somente se os custos da realizagao das transagbes de mercado neces- sérias excedessem o ganho que poderia ser alcangado por um qual- quer arranjo de direitos. E seria desejivel a fim de preservar as reas (a rua Wimpole ou o pantano) para uso residencial ou profissional (dando aos usuarios nao industriais, por ordem judicial, o direito de suspender 0 ruido, as vibragées, a fumaga etc.) somente se o valor das instalagdes residenciais adicionais obtidas fosse superior a0 valor das perdas relativas aos bolos ou ao ferro. Mas os juizes parecem nao se ter dado conta disso. Outro exemplo do mesmo problema ¢ fornecido pelo caso Cooke 1 Forbes. Um dos processos na tecelagem de esteiras de fibra de coco consistia em mergulhar as fibras em Iiquidos branqueadores, ¢ depois pendurar para secar. Os gases emitidos por uma fibrica de sulfato de aménia tinham o efeito de modificar a cor brilhante das esteiras para ‘uma cor opaca e escura. O motivo é que o liquido branqueador con- tinha cloreto de estanho, o qual, quando afetado pelo hidrogenio sul- furoso, adquire uma coloragao mais escura, Foi requerida uma ordem judicial para obrigar o fabricante a cessar a emissio de gases. Os advo- ¢gados do réu alegaram que, se o autor “nao usasse .. um determinado liquido de branqueamento, a fibra nao seria afetadas que seu método de produgio € atipico, nao estando de acordo com as priticas da in- diistria, e sendo até mesmo prejudicial aos seus proprios tecidos” O juiz comentous “.. parece-me bastante claro que um individuo tem 0 direito de realizar, em sua propriedade, um processo de fabricagao no qual utiliza cloreto de estanho, ou qualquer tipo de corante metalico, € que seu vizinho no tem a liberdade de emitir gases que interfiram 10 Cooke v, Forbes, 5 LR-Eg, 166 (1867-1868). 108 com sua fabricagao. Se for possivel determinar que tais gases foram emitidos pelo vizinho, entio, entendo, com nitidez, que este individuo terd o diteito de vir aqui e solicitar reparag6es judiciais” Mas, em vista do fato de que os danos foram acidentais e intermitentes, que cuida- dosas precaugées foram tomadas, e que nio havia risco excepcional, foi indeferida a ordem judicial, tendo o autor a opgdo de intentar uma agio de indenizagao, caso desejasse. Nao sei quais foram os desdobra- mentos subsequentes. Mas resta claro que, em esséncia, a situagio é idéntica & encontrada em Sturges v. Bridgman, exceto que 0 fabricante de esteira de fibra de coco nao conseguiu obter uma ordem judicial, ‘mas teria de tentar obter uma indenizagao do fabricante de sulfato de aménia. A anilise econdmica da situagao é exatamente igual aquela relativa a0 gado que destruiu as plantagdes. Para evitar os danos, o fa~ bricante do sulfato de aménia poderia intensificar suas formas de pre caugio ou se mudar para outro local. Presumivelmente, qualquer uma das opges aumentaria seus custos. Como alternativa, poderia pagar pelos danos. [sso ele faria se o pagamento por danos fosse inferior aos custos adicionais necessérios para evitar os danos. Neste caso, 0s pa- gamentos por danos passariam a ser parte dos custos de produgio do sulfato de aménia, Evidentemente, se, como foi sugerido no processo judicial com fundamento na lei, o montante dos prejuizos pudesse ser climinado pela troca do agente branqueador (0 que, provavelmente, aumentaria os custos do fabricante de esteiras), € se 0 custo adicional fosse menor que os danos que de outra forma ocorreriam, deveria ser possivel para os dois fabricantes chegarem a um acordo mutuamente satisfat6rio por meio do qual fosse utilizado o novo agente branque- ador. Se o tribunal tivesse decidido contra o fabricante de esteiras, tendo por consequéncia 0 fato de que este teria de softer os danos sem indenizagio, a alocagao de recursos nao teria sido afetada. Com- pensaria ao fabricante de esteiras trocar seu agente branqueador se 0 custo adicional acarretado fosse inferior & redugéo nos danos. E, uma vex que 0 fabricante de esteiras estaria disposto a pagar ao fabricante de sulfato de aménia uma quantia que chegasse a igualar sua perda de renda (0 aumento dos custos ou dos prejuizos sofridos) se ele cessasse suas atividades, esta perda de renda permaneceria como um custo de produgao para o fabricante de sulfato de aménia. Do ponto de vista analitico, este caso é, de fato, igual ao exemplo do gado. Cap.5 + 0 Problema do Custo Social Bryant v. Lefever"trouxe a baila o problema da poluigdo pela fu- maca de forma inusitad. O autor e os réus ocupavam casas contiguas, que tinham mais ou menos a mesma altura. “Antes de 1876, o autor podia acender a lareira em qualquer cémodo de sua casa sem que a chamin jogasse furnaca para dentro da casa as duas ‘casas permaneceram nas mesmas condigdes por cerca de 30 ou 40 anos. Em 1876, os eéus derrubaram sua casa e comegaram a reconstru-la Eri giram uma parede ao lado das chaminés do autor com altura muito supe- Flor original e empilharam madeira sobre o telhado de sua casa, de tal forma que as chaminés do autor enfumagavam sempre que esi acendesse uma larciea”. Eyidentemente, 0 motivo pelo qual as chaminés enfumagavam decorria da construgao da parede e o empilhamento da madeira, que impediam a livre circulagio do ar. Em um julgamento perante um jtiri, o autor recebeu uma indenizagio de £ 40. O processo seguiu, en- to, para a Corte de Apelagoes, onde a decisio foi revertida, Bramwell, L. J. argumentou: “fl dito, €o ji entendew, que os réus fizeram algo que causou uma pperturbacio,* mas que este nao foi causado diretamente pelos réus. les ‘nada fizeram para causar a perturbacio. Sua casa e sua madeira si total 11 Bryan Lefever 4 CRD. 172 (1878-1879) ars Nuisance no original. De forma genérica, nuisance é toda atividade que dert- ‘vadeum uso nio razodvel,desleal ou injustifcivel da propriedade por seu titular, causando algum prejuiza ou obsticulo ao exercicio do direito de outrem ou da coletividede e produrindo tal eborrecimento, desconforto e inconveniéncia que lei o considera como causador de dano (Black Law Dictionary. 5. ed. Boston, ‘West, 1979), A figura juridica de nuisance, praveniente da Common Law, nio tem uma correspondéncia especifica no direito brasileiro, No direito brasileiro & possivel observar o descrito tanto em situagies juridicas que ensejem protesses ppossessérias por esbulho ou turbecio da propriedade como também no émbito do direito de virinhanca a partir de formulacio geral da proibigao de interfe- réncias prejudicais. Ademais, a categoria mais abrangente de responsabilidade civil também pode ser, em determinadas circunstincias,compativel com a figura juridica da nutsance. Sendo assim, e dada a dificuldade de precisioterminoldica cnfrentada, prferiu-seadotar nesta tradugio —fetas as resalvas acima ~ major tariamente of termos perturbacao e incdmodos, e, com menor frequencia, danos €atos nocives, como tradugdo de nuisance A uo A Firma, o Mercado eo Direito + Ronald H. Coase ‘mente inofensivas Bo autor que causa a perturbacio ao queim: ‘em um lugar no qual a chaming esté tho préxima da a famaca no escapa, mas entra na casa, Que o autor pare de acender sua lareira, que mova sua chaminé, que a torne mais alta, © nao haveré nnenhuma perturbacio. Quem, entio, causa o incOmodo? Restaria muito claro que seria o autor, se tivesse construido a sua casa ou chamin ‘0s réus terem posto a madeira sobre a sua, ¢€ de fato a mesma coisa, em- bora ele o tenha feito antes de a madeira estar li. Mas (que na verdade a mesma resposta), se 0s réus causam a perturbagdo, eles tém 0 dieito de faz-1o, Se o autor ndo tem direto & passagem de ar, exceto sob cond «io do dizeto dos réus de construr ou colocar a madeira sobre sua casa, nti 0 seu dizeito esté condicionado ao direto deles e,apesar de um incdmodo decorrer do exercicio do dircito dels, os réus nio podem ser responsabilizados?” EL. J. Cotton afirmou: “Aqui se verifica que a construgio da parede dos réus intereriu deforma perceptivel e material no conforto da existéncia humana na casa do au- tor, e se afirma que este € uma perturbaio pela qual os réus devem ser responsabilizados. Normalmente é assim, mas 0s réus o fizeram no por enviar para a propriedade do autor qualquer fumaga ou vapores nocive, ‘mas por interromper a saiéa de fumaga da casa do autor de uma forma aque (..) 0 autor nao tem direito. © autor cri a fumaga, 2 qual interfere ‘com 0 seu conforta, Ando ser que ele tena. dieito de ivrar-se disso cde uma determinada maneira com a qual os réus interferiram, ele nio pode processar os réus, porque a umaga produzida por ele mesmo, para a qual ele néo apresentow qualquer meio eficaz de escape, Ihe causa in comodo. £ como se um individuo tentasse livrar-se de dejetos liguidos provenientes de seu proprio terreno por um escoadouro para o terreno de seu vizinho, Até que um direto tenha sido adquirido pelo usuitio, Viainho pode interromper o escoamento, sem incorrer em responsabil- dade por fazé-lo. Sem diivida, um grande inconveniente seria causado a0 proprietirio do terreno onde se originam os dejetos liguidos. Mas © ato de seu vizinho seria um ato lcito,¢ ele no seria esponsivel pelas consequéncias atebuivels ao fato de que oindividuo houvesse acumulado dejetos sem providenciar qualquer meio efcaz de se livrar dees: Nao me proponho a mostrar que qualquer alterago posterior da situagéo, como resultado de negociagdes entre as partes (condiciona- das pelo custo de empilhar a madeira em outro lugar, o custo de au- mentar a altura da chaminé etc.) teria exatamente o mesmo resultado, qualquer que fosse a decisio dos tribunais, uma vez que este ponto ja Cap. 5 +0 Problema do Custo Socal im foi adequadamente debatido na discussio do exemplo do gado e nos dois casos anteriores. O que vou discutir 0 argumento dos juizes da Corte de Apelagdes de que os danos pela fumaga nao foram causados pelo individuo que erguen a parede, mas pelo individuo que acen- deu a lareira. A novidade da situagdo é que a perturbagao da fumaga incomodava o individuo que acendeu a lareira, ¢ ndo a uma terceira pessoa. A questo nao é banal, uma ver. que constitui o cerne do pro- blema em discussdo. Quem causow a perturbagio pela fumaca? A res- posta parece bastante clara, O incémodo pela fumaga foi causado tanto por aquele que construiu a parede quanto por aquele que acendew a lareira. Dada a lareira, nao teria havido nenhuma perturbagdo pela fumaga sem parede; dada a parede, nao teria havido nenhuma pertur- bagdo pela fumaga incémoda sem a lareira. Eliminemos a parede ou a lareira e desapareceria a perturbagio pela fumaga. De acordo com © principio marginal, ¢ evidente que ambos sao responsiveis e ambos deveriam ser obrigados a incluir a perda de conforto, devido a fuma- ca, como um custo para decidirem se devem persist na atividade que da origem a fumaga. Dada a possibilidade de transagoes de mercado, isto € 0 que de fato aconteceria. Embora aquele que construiua parede nao fosse legalmente responsavel pelo incomodo, uma vez que, pre- sumivelmente, aquele cujas chaminés enfumagavam estaria disposto a pagar um montante igual ao valor monetério que Ihe representaria a climinagao da fumaga, esta quantia, portanto, passaria a ser, para 0 construtor da parede, o custo relativo de continuar a possuir uma pa rede alta com a madeira empilhada sobre o telhado. A argumentacao dos juizes de que foi o individuo que acendeu as lareiras que causou, por si $6, 0 incbmodo da fumaga s6 é verdadeiro se partirmos do pressuposto de que a parede & um fator dado. Foi que fizeram os juizes ao decidir que o individuo que ergueu a parede mais alta tinha o direito de fazé-lo. O caso seria ainda mais interes- sante se a fumaca das chaminés tivesse prejudicado a madeira, Nesta hipétese, seria 0 construtor da parede que sofreria 0 dano, O caso se- ria, entao, estreitamente paralelo a Sturges v. Bridgman, e nao haveria dvida de que 0 individuo que acendeu a lareira teria sido respon- sabilizado pelos prejuizos causados & madeira, apesar do fato de que nenhum dano tivesse ocorrido até que a parede alta fosse construfda pelo individuo que possuia a madeira. Os juizes tém de decidir a respeito da responsabilidade juridi-

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