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Aristételes POETICA Tracugao, Prefacio, introcdugao, Comentario e Apénaices de EUDORO DE SOUSA te ast Olsen @ NO eld y Estudos Gerais Série Universitaria + Cidssicos de Filosofia Aristoteles POETICA Tradu¢ao, Prefacio, Introdu¢do, Comentario e Apéndices de EUDORO DE SOUSA 4° edicao ra) foje . ”r ey. a OG f i \ rele! IMPRENSA NACIONAL - CASA DA MOEDA Estudos Gerals Sérle Universitaria + Cldssicos de Filosofia DO PREFACIO A PRIMEIRA EDICAO o original grego da Poética—eis a obra que quiséramos realizar. A obscuridade da verséo mais préxima do texto auténtico e a distancia deste a versd@o mais clara hdo-de assinalar por vezes a deficiéncia do trabalho e a faléncia do esforgo. Mas, quem se proponha vencer esta disténcia e dissipar aquela obscuridade, bem avaliardé a grandeza dos obstdculos que se nos depararam num caminho™ tanto tempo percorrido, embora t@o curto fosse. Vertido o tratado de Aristételes no idioma pdtrio, dir-se-ia, pois, que cumprida estava a tarefa de reatar, pelo menos neste ponto, o fio da tradigdéo cldssica, em Portugal entrecortado pelas inumerdveis insténcias de uma cultura demasiadamente pragmatista. E, na realidade, bom ou mau que seja o resultado obtido, a segunda inten¢éo que nos moveu foi esta: que a Arte Poética, outrora lida e relida entre nds, no texto grego original e nas famosas pardfrases latinas e italianas do Renascimento, como cédice da mais perfeita técnica da epopeia e da tragédia, voltasse agora a ser lida e relida, em texto portugués, como a grande obra de ciéncia e de erudi- ¢do que na verdade é. Que a grandeza da Poética deixou de medir-se pela vali- dez e rigor dos canones que impusera a dramaturgia humanista—eis 0 que ficou demonstrado pela “hambur- guesa dramaturgia" de Lessing e pela actividade poética de a todas as escolas romanticas. Mostrar, porém, que nas pou- cas pdginas deste livro temos de fundamentar o enunciado, e das mesmas pdginas teremos de extrair a solugaéo de alguns dos mais importantes problemas da poesia antiga — tal foi o inestimdvel contributo da filologia novecentista para a definitiva reabilitag@o de Aristételes como “fonte” da histéria da literatura grega. Pelas precedentes consideragdes se explica, de certo modo, a paradoxal estrutura deste volume. Dizemos “para- doxal”, pois que o leitor menos familiarizado com a imensa bibliografia da especialidade talvez encontre bem com- preensivel motivo de estranheza, no facto de a prdpria ver- sdo ndo ocupar metade sequer das pdginas que 4 “Introdu- ¢Go” e aos “Indices” foram destinadas; enquanto, pelo contrdrio, talvez se dé o caso de que algum mestre de filo- logia cldssica logo de inicio se detenha perplexo ante a auséncia de minucioso comentario apenso ao texto vertido. Como prévia adverténcia acerca da estrutura deste livro, a uns e outros nos permitimos dizer que, embora a leitura da Poética exija um minimo de anotagdes que esclaregam os lugares obscuros e completem as ligdes truncadas, nem todos os leitores carecem dos mesmos esclarecimentos e dos mesmos complementos. Preferimos, por conseguinte, usar de indices, a que algum leitor recorrerd, chegado ao limite da sua capacidade de esclarecer ou de completar, mediante o prdprio esforgo e os préprios conhecimentos, o sentido da ligéo aristotélica, ao emprego de “notas”, decerto utilis- simas, mas que desviam a atengdo e incitam @ divagagdo para dominios estranhos aquele em que se desenvolve o pensamento do Estagirita. Alids, a inteligencia daquela parte, por assim dizer, nuclear, e que consiste na exposigao de uma teoria de efa- bulagdo trdgica (cf. Introdugao, caps. 1 e UL), resulta sem grande dificuldade da simples leitura, atenta e meditada. Trata-se, designadamente, dos capitulos em que o Fildsofo estabelece as regras a que deverd obedecer a composicdo dos argumentos, “se quisermos que a poesia resulte per- feita”. Essas regras, se hem que jd ndo exercam a “perene ¢ 8 universal” fungdo normativa, que o Humanismo renascente Jhes atribuiu, mantém ainda, e apesar de toda a insatisfa- do e insubordinagdo das escolas romanticas e subsequen- tes, o alto valor indicativo das caracteristicas de uma época, na historia da poesia, e das determinagées do res- pectivo conceito, no sistema de Aristdteles. Através dessas regras, podemos e devemos procurar, ainda e sempre, res- Ponder as seguintes interrogagées: “Que era a tragédia no tempo de Aristdteles?” e “como via Aristételes a tragédia, no seu tempo?”. O leitor dard a sua resposta, sem que para tal necessite de mais palavras que nao sejam as do mesmo Filésofo. Por outro lado, de modo mais ou menos explicito, tam- bém se encontram entretecidos nas malhas da argumenta- ¢Go estética os resultados de uma investigagao histdrica. E néio sé entretecidos; como que anotados & margem da ligdo principal da Arte Poética, a que acima nos referimos, esses resultados sGo hoje, talvez, os que mais importa con- siderar, entre todas as fugazes indicagées que a Antigui- dade nos legou, acerca da origem e desenvolvimento da tragédia grega. Téo importante e ido considerdvel é essa ligdo “marginal”, que nenhum teorizador da literatura poderd dispensar-se de regressar ao ponto em que Aristdte- les a deixou inscrita, para tentar, depois, reconstituir os diversos momentos da sua propria problemdtica. Pode-se dizer que a data da publicagdo do Héracles de Wilamowitz, sendo a da Origem da Tragédia de Nietzche, assinala o ini- cio de uma época, que ainda nao terminou, em que todos os problemas da origem e do desenvolvimento do género dramdtico foram enunciados e resolvidos, e teréo de conti- nuar a sé-lo, em rela¢éo a Aristételes, préd ou contra o enunciado e a solugéo que o Fildsofo mal deixa enirever nas paginas da sua Poética. Eis por que dedicamos a maior parte da Introdugio ao dificil mister de apontar e sublinhar as mais viventes articu- Jag6es deste didlogo da moderna filologia com a parte do ensino de Aristételes e da sua escola, que a historia da tra- édia se refere. Decida-se 0 estudioso pela credibilidade ou 9 pela incredibilidade dos resultados da investigagao histérica inaugurada no Liceu—ndo importa; importa sim, relevar aqui outro testemunho da perene actualidade de Aristételes e outro sinal da profunda originalidade da Poética, como fonte da histéria da literatura grega. * A presente versdéo baseia-se principalmente no texto grego editado por Augusto Rostagni: Aristotele Poetica, Turim (Chiantore), 2.° ed., igualmente distante da sobreva- lorizagdo do Parisinus (Bywater) e da Versio Arabe (Gudeman). Para a tradugdéo dos passos mais dificeis e interpretagGo das ligdes dibias ou truncadas, consultdmos os trabalhos de J. Hardy, A, Gudeman, I. Bywater, M. Valgimigli e F. Albeggiani. Sempre que foi possivel utili- zdmos a andnima versdo portuguesa do século XVII. 10. POETICA INTRODUCGAO CAPITULO I MANUSCRITOS MEDIEVAIS. PRIMEIRAS EDICGES IMPRESSAS. Num ramo greco-semitico tradicao, eee = Avi- cenas e de Averréis compendiam uma versio drabe, con- servada na Biblioteca Nacional de Paris (cod. ar. 882a), de Abu Bishr Matta (século XI), baseada no texto siriaco do século VII, de que resta apenas um fragmento, e num ramo greco-latino, situam-se as versdes latinas de Hermann (Hermanus Alemanus) de Toledo, feita sobre uma pard- frase de tradigéo drabe, e de Guilherme de Moerbeke, sobre um apdgrafo (perdido) daquele mesmo cédice, do qual também deriva o famoso Parisinus 1741. Jorge Valla (1498) e Aldo Manuzio (1508) serviram-se de alguns manuscritos que ainda existiam nas bibliotecas € arquivos de Paris, Florenca e Roma. As sucessivas edigdes, até principios do século XIX, pouco alteraram a A/dina. Quem se proponha confrontar com as actuais esta edicao, protétipo de todas quantas se produziram nos séculos humanistas, nem precisa recorrer ao original grego; com- 13 pare, por exemplo, a andénima versdo portuguesa, editada em Lisboa, em 1779, e a espanhola, impressa em Madrid, em 1798, da autoria de Joseph Goya y Muniain, com a inglesa de Bywater, a alema de Gudeman, a italiana de Albeggiani ou de Valgimigli, ou a francesa de Hardy, e bem avaliard as mutilagdes e as deformagées que sofrera o texto da Poética, s6 verificadas depois da descoberta do Parisinus. Colacionado por Bekker para a edigdo da Academia de Berlim, o altissimo valor deste manuscrito naéo tardou que fosse universalmente reconhecido, e¢ todas as edigées que se seguiram—as de Ritter, Susemihl, Vahlen, Christ, Bywater — baseiam-se neste cddice bizantino, que data de fins do século X, ou principios do XI. Na opiniio do Ultimo dos editores mencionados, todos os outros manus- critos seriam apdgrafos do Parisinus, e as melhores ligdes que apresentam deveriam ser consideradas como emendas ou acréscimos conjecturais dos humanistas. na segunda das mencionadas obras de Margoliouth, pelo minucioso confronto dos manuscritos gregos com o da ver- so arabe, imediatamente se revela a importancia excepcio- nal do Riccardianus 46, por isso que continham, tanto este como aquele, numerosas variantes que os fildlogos do século passado supunham que nado passassem de conjectu- ras dos renascentistas. Além disso, constava do Riccardia- nus um periodo que falta no Parisinus, por erro do copista, que consiste em omitir a {rase ou frases intercorrentes entre palavras iguais (“homoioteleuton”), no caso presente, o 14 vocabulo régov (“arco”). As quatro linhas ausentes do Parisinus e transcritas na vers&o arabe, cuja tradugao latina & a seguinte: “nam arcum quidem dixit, quod non posset quiqquam alius, et dixerat illud poeta, in narratione etiam quae venerat de illo narratum est de re arcus quod certo sciturus erat quod non vidisset”—correspondem aproxi- madamente a um periodo homélogo do Riccardianus, pelo que se demonstrava a independéncia desse cédice, e de alguns outros da mesma familia, em relagdo ao Parisinus, que durante um século gozara do mais incontestavel presti- gio. E este, pois, um dos mais flagrantes exemplos da dou- trina critica, segundo a qual nem sempre “recentiores” sig- nifica' “deteriores”. O Parisinus (sigla A), 0 Riccardianus (sigla B) e a Versdéo Arabe (sigla Ar) constituem, por conseguinte, os elementos fundamentais da tradigaéo manuscrita, no estado actual dos nossos conhecimentos paleograficos, embora no possamos afecta-los do mesmo coeficiente valorativo. O Parisinus é 0 cédice mais completo e menos corrupto; 0 Riccardianus, se bem que mutilado— pois comeca por alturas da pagina 1448 (Bekker), com uma lacuna de 1461 b 3 a 1462 a 17—, representa, todavia, um ramo que se insere na tradigao em data, pelo menos, trés séculos anterior 4 redacg&o do Pari- sinus, €, como dissemos, corrige-o e completa-o em muitos lugares. Quanto 4 Vers@o Arabe, o papel que ela pode desempenhar na critica textual da Poética é considerdvel: quando por mais nao seja, pela “credencial” que outorgou ao Riccardianus, pois a téo diversa indole do pensamento e do idioma, grego e arabe, decerto néo permite prosseguir no imoderado intento de Margoliouth, que pretendia, mediante a poética arabizada, atingir, quase diriamos, a Poética do Liceu. GRAECO-LATINA Se acaenansas TRADITIO| TRADITIO GRAECO-SEMITICA TRADITIO SEMITICO- LATINA POETICA ARISTOTELIS Guiles aX codices gravci deperditi sodex Parisinus graecus 1741 sodex Riccardianus graecus 46 ‘odex Estensis graecus 100 rodex Etonensis latinus 129 vodex Toletanus tatinus 47 10 ‘odex Parisinus arabicus 2340 sodex arabicus deperditus quo usus esse videtur Hermannuy Alemannus Hebraica Trans, Mantini Ante Saec. X See NVI Na primeira, situam-se todas as edig6es a partir de 1508, quando, em Veneza, Aldo Manuzio imprimiu o texto pre- sumivelmente estabelecido por Lascaris, até 1831, data em que foi publicada em Berlim a edigaéo de Bekker. Na segunda, sucedem-se as grandes edigées criticas, baseadas na recensio do Parisinus: além da edigéo de Bekker, contam-se, entre as mais notaveis, as de Ritter (1839), Susemihl (1865) e Vahlen (1868), sendo esta a mais valiosa, mercé do aprofundado estudo critico do cédice fundamen- tal que contém. Embora mais recente, a edig&o de Bywater (1909), por menosprezo da Versdo Arabe ¢ do Riccardianus (é 0 Ultimo testemunho de respeito “supersticioso” defronte a um “codex optimus”), agrupa-se com as precedentes. 2 VIDA DE ARISTOTELES aes Nascido em 384 a.C., na cidade de Estagira, colonia fun- dada pelos calcidenses da Eubeia, Aristételes era filho de Nicémaco, médico que se orgulhava de descender do pré- prio Asclépio, ¢ que ja havia assistido, outrora, a um rei de 7 Macedonia: Amintas II. Por morte do pai (366 a.C.), o jovem veio estabelecer-se em Atenas, e, ao que afirma Dio- nisio de Halicarnasso (ou a sua fonte), “recomendado a Platéo”. Mas também 6 licito acreditar que, aos dezoito . Em todo 0 caso, parece asse- gurado que desde aquela data até 4 morte de Plat&o (348 a.C.), isto é, durante vinte anos, o filésofo escutou as ligdes do mestre iluminado, assim como as do grande matematico que foi Eudoxo de Cnido, e as de Espeusipo, que viria a ser 0 primeiro exiliarca da Academia, por morte do seu fundador. Talvez decepcionado pela eleic¢do de Espeusipo, emigrou Arist6teles para Asso, na costa da Anatolia, onde, anos antes, se haviam estabelecido alguns discipulos de Pla- to, patrocinados por Hermias, tirano de Atarneu. Ai resi- diu trés anos, ao fim dos quais lhe foi dado assistir a um dos lances mais dramaticos da conjura macedénica contra o império persa. Hermias governava um Estado, a cujas Jeis, por sua iniciativa generosa, nado seriam estranhos os ensinamentos da Politéia ut6pica, mas ao qual, por outro lado, o Persa teria consentido em dar bastante liberdade para recensear um corpo de mercenarios relativamente poderoso. Quando o Grande Rei se apercebeu de que ali, nos confins do Império, comecava como que a guarda avancada dos exércitos da Macedonia, conseguiu apoderar-se ardilosamente de Hermias ¢ crucificd-lo em Persépolis. Mas nao obteve, nem pela tortura, que o tirano de Atarneu lhe revelasse o segredo de Filipe e de seus aliados. Nao sabe- mos que parte Aristdteles e a pequena academia de Asso teriam desempenhado na conjura, mas 0 certo é que o fild- sofo, mais uma vez, teve de emigrar, agora para Mitilene, em Lesbo, casado com Pitias, sobrinha de Hermias. Em 343 a.C., responde ao chamado de Filipe, que o elegera para preceptor de seu filho, Alexandre. E de presumir que, ja ent&o, o filésofo ganhara, por seus escritos, a notorie- dade que determinou tao honrosa eleigio. Oito anos per- maneceu na corte de Pela, instruindo o futuro dominador 18 de todo o mundo helenizado, precisamente na leitura do “educador da Hélade”: Homero. Apés a morte de Filipe e no decurso dos acontecimentos que colocaram Alexandre no trono da Macedénia com dezanove anos de idade, Aris- toteles regressou a Atenas (335 a.C.), onde permaneceu a testa do Peripato até ao dia em que o subito falecimento do real discipulo (323 a.C.) deixava o filésofo 4 mercé dos revolucionarios atenienses, que entraram de perseguir todos os acusados ou suspeitos de “colaboracionismo” maced6- MN runnin an Canta Th Eanes oY que, em tltima analise, ascen- dem a Hermipo de Esmirna, discipulo de Calimaco, que, por sua vez, o foi de Praxifanes (1. Diiring, Aristotle in the ancient bibliographical tradition, 1957), ou a Ariston, esco- larca do Liceu a partir de 228 a.C. (P. Moraux, Les listes anciennes des oeuvres d’Aristote, 1951). éxdedouévor), como o Eudemo, o Protréptico, Da Justiga, Dos Poetas, etc., € b) os “Hypomnémata” ou “Compil. g6es", como Vencedores Olimpicos, Vencedores Piticos, Vitérias Dionistacas, Didascdlias, Problemas Homéricos, ete, Constituige 19 B)Por outro lado) com Aspisio, Atico e, sobretudo, Alexandre de Afrodisias, tem inicio no século II da nossa era aquela(intensa actividade exegética) sobre o texto de Aristételes, que transpés os confins da Antiguidade e da Idade Média (Commentaria in Aristotelem Graeca, ed. pela Academia Régia da Prissia, Berlim, 1882 e segs.). Mas, todos estes trabalhos incidem no texto do Corpus Aristote- licum, que ainda hoje possuimos na sua maior parte, e, como é sabido, este nao contém as obras mencionadas na alinea precedente: os comentadores antigos e medievais, mesmo os mais sabios e eruditos, pouco ou nada conhecem dos exotéricos ou hipomnematicos, e 0 pouco, ao que parece, sO por via indirecta de citagdes. Eis-nos, por conseguinte, perante duas épocas do aristo- telismo antigo, ou——o que € mais notavel e surpreendente — defronte a dois Aristételes: um Aristdételes da época hele- nistica (dos séculos II-I a.C.) e um Aristdteles da época romana (do século II d.C. em diante), néo havendo outra inferéncia a extrair do facto, sendo esta: em incerta data, nos trés séculos que medeiam entre Hermipo e Aspasio, veio a lume uma nova edi¢&o de Aristételes que rapida- mente suplantou a antiga. Cicero, cuja produtividade litera- ria se situa a meio caminho entre os dois extremos assina- lados, € a mais eloquente testemunha do acontecimento, pois, sendo certo que, em sua obra, se denunciam vestigios do conhecimento (directo ou indirecto) de escritos do Cor- pus, mais certo € que o Aristételes do grande escritor latino € o “Aristételes Helenistico”, néo aquele que, cinco gera- g6es apos, seria o tinico a dominar a tradigio aristotélica (v. O. Gigon, Cicero und Aristoteles, «Hermes», 87 [1959], pags. 143 e segs.). A Cave de Scé; Sylla, 26; Athen. 5, pag. 214 D) é a “raz&o” lendaria do inexplicavel destino dos livros aristotélicos que compdem o Corpus. Neleu, discipulo de Aristételes e de Teofrasto, que teria herdado do primeiro escolarca do Liceu todos os livros que Ihe pertenciam e, juntamente, os de Aristételes, levou-os para Scépsis (Asia Menor) © confiou-os a seus 20 familiares, gente rude, que ignorou o alto valor do depé- sito, até o dia em que os reis de Pérgamo os cobigaram para sua biblioteca, rival da alexandrina. Nessa altura, quando os livros de Aristételes e de Teofrasto, j4 danifica- dos pela humidade e roidos pelas tragas, mofavam na cava em que os amontoaram, surgiu um tal Apélicon, “mais biblidfilo do que filésofo”, que os comprou aos herdeiros de Neleu, por elevado preco.(Mas, a0 transcrever Os textos, Apélicon téo incorrectamente preencheu as lacunas ¢ emendou as corruptelas, que a sua edigdo, espoliada por Sila (86 a.C.), apés a conquista de Atenas, havia de cele- brizar o nome do gramatico Tiranion (discipulo de Dioni- siogdayTracia e, portanto, o primeiro fildlogo.dasescola.de Aristarco, domiciliado em Roma), que, sendo veridica esta parte da Histéria, decerto teria de devotar o melhor de sua vida a estabelecerum texto fidedigno dos escritos acroama- ticos. Se, efectivamente, foram Sila e Tiranion quem revelaram a Roma (e, por conseguinte, a todo o mundo antigo) os textos da Escola, néo admira que escritores da época, de quando em quando, mostrem conhecer uma ou outra pagina do “novo Aristételes” — nomeadamente Cicero, que €o"primeiro testemunho.da_LticaNicomaqueia. Mas, como dissemos, até_o século II, o Aristételes que predomina € 0 helenistico. Depois da noticia fugaz, inserta no de finibus (V 12), no século II Aulus Gellius (XX 5,1)0sinforma)mais\porme= norizadamente acerca das diferengas inrernas entre o Aris- toteles da época helenistica e o Aristoteles da época romana: “commentationum suarum... artiumque, quae dis- cipulis tradebat, Aristoteles philosophus duas especies habuisse dicitur... dkpoatikad e €€wrepicd...” Ora, na perspectiva pela reedigo de todos os fragmentos do “Aristételes perdido” e, por consequéncia, através do reconhecimento da dicotomia — obras exotéricas ou publi- cadas, € textos ou sumarios de ligdes proferidas no mais testrito Ambito da escola--, tornou-se flagrante certa opo- io entre mestre ¢ discipulo. Com efeito, de Platio res- 21 tam todos ou quase todos os escritos “exotéricos” (0 que talvez no pouco tenha contribuido para eliminar, da tradi- Ns conrennen crmien ds Aaa ae do Estagi- rita, salvo a Constituigdo de Atenas, s6 os “acroamatico al ¢, em poucas palavras, a “Questéo Aristotélica”, vagamente prenunciada por Werner Jager, em 1913, no seu especializadissimo trabalho acerca da composicéo da Meta- fisica, e, dez anos depois, precisamente enunciada e amplamente divulgada, pelo mesmo autor, em um dos mais preciosos livros da inesgotavel bibliografia. do aristotelismo. Das pesquisas histérico-filolégicas de Jager, resultaria para a cronologia dos escritos aristotélicos a articulagdo periddica que passamos a expor. Ce ee Dialogos (perdi- dos), salvo o De philosophia e 0 Protrepticun fe nos livros. ‘inalidade, matéria e forma, poténcia e acto); De caelo |; as partes mais antigas da Poli- tica (livro II cc. 2 € 3) e © livro II] do De anima. os livros mais antigos da Metafisica (1, V, XI e XII, exceptuado o c. 8, cc. 9 e 10 do XIII € todo o XIV); De philosophia (“exoté- rico”), contemporaneo do livro | da Metafisica; Eth. eud.; 22 livros I], Ill, VII e VIII da Politica; De caelo (excepto 0 livro I) e De gen. et corrupt. fica”-em_geral, todas_as_obras_de_caracter_historico e , a frente dos filésofos, histo- riadores e naturalistas do Liceu, Aristoteles estabelece as bases de uma grandiosa suma, que vemos realizar-se nos anos sucessivos, pelo menos no que concerne 4 Historia da Ciéncia (Teofrasto: Histéria da Fisica; Eudemo: Histéria da Matematica; Ménon: Historia da Medicina). E também, neste periodo, que Jager situa a revisto da teoria do pri- meiro motor, que consta do c. 8 do livro XII da Metafi- sica, e, de acordo com as novas tendéncias empiricas da escola, os livros IV, V e VI da Politica (cuja redacgao se basearia nos materiais das Constituigdes), €, por conse- guinte, também a Etica nicomaqueia, que, como “fenome- nologia da vida moral”, corresponderia 4 “fenomenologia da vida politica’, desenvolvida naqueles trés livros da Poli- tica; finalmente, os livros VII, VIII e IX da Metafisica, com o VI, que Ihes serve de introdugéo (doutrina da substancia). A ideia de “desenvolvimento interno”, que presidiu a elaboracdo desta tese renovadora, explica, com um minimo de pressupostos, inimeras contradigdes que a critica nove- centista j4 havia denunciado pela andlise do extenso Cor- pus Aristotelicum, €, em primeiro lugar, os que radicariam nas diversas atitudes do fildsofo— desde a velada oposigio até A ostensiva polémica—defronte a Platéo ou a scus sucessores na Academia. Restrigdes e objecgdes, em espe- cial as dos neo-escolasticos de Louvain, incidem com parti- cular vigor nas tendéncias que, aps Jager, vieram a lume, para demasiado evidenciar o “empirismo” do Liceu (III periodo) e, portanto, para debilitar o valor tradicional do testemunho aristotélico, quanto a perenidade da Metafisica. No entanto, é certo que nao ha pagina em seu Aristoteles, onde Jiger afirme que o filésofo alguma vez. tenha desi tido da especulagio metafisica; quando muito, o que 23 podera dizer é que, do primeiro ao Ultimo periodog Aristé> teles se vai afastando progressivamente daquela concepgao da Metafisica a que poderia ter chegado, se prosseguisse nas pisadas do mestre, tentando simplesmente resolver a seu modo as aporias que Plat&o deixara insolutas. Depois de Jager, apresentou F. Nuyens (Lévolution de la psychologie d’Aristote, 1948) outro critério para deter- minagao da cronologia das obras de Aristoteles. A ideia do filésofo holandés consistia em averiguar que estagios intermediarios se percorrem, através do Corpus Aristoteli- cum, desde o Eudemo, em que a alma é ainda uma subs- tancia separada, até ao De anima, em que ela é ja a entelé- quia do corpo, e, portanto, em que corpo e alma constituem uma unidade substancial, Quest&o seria, pois, a dé Classificaryasyobrasido»Estagirita em trés periodos, que. se distinguiriam, o primeiro, pelo “dualismo antagénico” do Eudemo, o segundo, pela “natural colaboragéo” da alma e do corpo, qual é, por exemplo, a manifesta concep- ¢4o da Historia animalium, e o terceiro, pela doutrina da “alma-enteléquia”, que vemos plenamente desenvolyida no De anima. A aplicagio deste critério permitiu a Nuyens alcangar resultados que, em parte, confirmam a teoria de Jager e, em parte, a contradizem. Assim, 0 De philosophia € 0 Protrepticum transitam do periodo de Asso e Lesbo (II) para o periodo da Academia (1), e, portanto, também o De caelo, a Phys. 1-Vll e o De gen. et corrupt. pertence- riam ao primeiro periodo, ao passo que as obras légicas, 0 De intérpr. e Analiticos, ao segundo. A Historia anima- lium, como se disse, € caracteristica do II periodo de Nuyens (era-o do III de Jiger) e, com este tratado, seme- lhantemente se desloca a maior parte das obras bioldgicas, com excepg¢do do 6.° tratado dos Parva naturalia e do De generatione animalium. O mérito incomparavel de Jager reside, todavia, em que todas as descobertas susceptiveis de esclarecer a biografia intelectual de Aristételes se efectuam, nao em oposigaéo a esse principio do “desenvolvimento interno”, que o emi- nente fildlogo © historiador estabeleceu, ¢ ninguém pée em 24 duvida, mas, apenas, de acordo ou em desacordo com um ou outro critério classificatério da bibliografia aristotélica. Jager propunha-se distinguir as varias fases, na evolugdo intelectual_de_Aristoteles, percorrendo_uma_trajectoria_que parte da “Metafisica platénica” para chegar a uma “ciéncia rigorosa, assente em bases empiricas”; Nuyens julga pos- suir, no desenvolvimento da Psicologia, a chave da questao aristotélica; os resultados, por vezes tao diversos e contra- ditérios, reflectem a enorme complexidade do problema que ha mais de quinze séculos foi enunciado pelo primeiro grande comentador do Estagirita, e que, afinal, é o mdbil de todas as pesquisas neste campo da critica e da historia da tradigao. Efectivamente, questo primacial seria a diversidade que se julga apreender pelo confronto das doutrinas do Corpus e dos Fragmentos. Alexandre de Afrodisias (primeira metade do século III d.C.) decidia-se por uma solugaéo externa: a inautenticidade dos “exotéricos”. Jager repre- senta a conciliagfo do extremismo de Alexandre, em que, alids, reincidiu o moderno editor dos fragmentos (v. Rose, Aristoteles Pseudepigraphus, 1863), € 0 extremismo de Ziircher (J. Ziircher, Aristoteles’ Werk und Geist, 1952), que, a bem dizer, mais ndo faz que prosseguir consequen- temente nas pisadas dos criticos mais recentes. De facto, segundo a tese inquietante e escandalosa de Joseph Ziir- cher, 4 obra auténtica de Aristételes pertenceriam, com raras excepgdes, apenas aqueles escritos que naufragaram na tempestuosa corrente da tradig&o, e, entre os livros do Corpus, mal se pode distinguir 0 que pertence a Aristételes © © que pertence a Teofrasto.@Diga=sejde\passagemyqueyas: discordancias dos resultados, na aplicacao de diversos crité- tios de divisdéo cronolégica das obras de Aristételes, apon- tam para uma possivel “contaminagao”, isto é, para uma eventual redacgdo de todos os escritos acroamaticos do Vildsofo, apdés a sua morte, efectuada por algum discipulo tio avido de “coeréncia interna” e “imobilidade sistemé- tica”, que n&io se haja coibido de “corrigir” as mais flagran- 28 @ —O que significa que, seja qual for o sistema de classificagao cronolégica adoptado, a data da composi- g&o desta obra recaira sempre no Ultimo periodo da vida do filésofo. Mas, aqui, a evidéncia interna é bem relevante. Se ha livro que melhor exemplifique o caracter “acroama- tico” de todos os que integram o Corpus Aristotelicum, esse € a Poética, Nenhum outro se nos afigura mais “tortu- rado” por notas marginais, express6es parentéticas e acrés- cimos sucessivos, do que este, que, certamente, foi texto para mais de uma série de prelecgées a discipulos interessa- dos na problematica da literatura e das suas implicacées antropoldgias e politicas. Além disso, quase todas as suas proposi¢des tedricas parecem reclamar os esclarecimentos que 0 filésofo, decerto, nao deixaria de fornecer, por via de referéncia 4 tal base empirica — no caso, os copiosos escri- tos “hipomnematicos” que diziam respeito 4 matéria. Mas, 0 principal “pressuposto” da Arte Poética ainda seria uma daquelas obras exotéricas que os seus ouvintes bem conheciam de memoria: 0 didlogo Dos Poetas. Uma alusio a Empédocles, outras aos mimos de Séfron e Xenarco, possivelmente todas as vezes que o mestre pro- nunciava a palavra “imitagdo” ou se referia 4 “catarse”, seriam ocasiio para relembrar algumas passagens desse livro, em que o assunto fora desenvolvido por todas a: articulagdes ¢: suas 26 O PROBLEMA DOS “EXOTERICOS” A extrema importancia que a consideragao deste didlogo tem assumido na exegese do nosso texto e em todos os tra- balhos que se propdem resolver o problema da formagao e do desenvolvimento das doutrinas estéticas do Estagirita, assim como naqueles que visam o esclarecimento de tantas obscuridades que envolvem a hist6ria da critica literaria, através das geracdes dos gramaticos e fildlogos que sucede- ram a Aristételes —leva-nos forgosamente a retomar, neste ponto, a dificil questao dos “exotéricos”, mas, desta vez, com 0 especial propdsito de descobrir a relacio que existi- ria entre o texto perdido e o texto preservado pela tradigao. Houve tempos em que se julgou observar flagrante dis- crepancia entre os juizos que Aristételes formula acerca de Empédocles, na Poética (47 b 13, v. Indice Onomastico, s.v.) e no De Poetis (frg. 1 Ross, pag. 67); porém, mais atenta leitura basta para dissipar 0 equivoco (v. infra, com. ad locum): em ambos os lugares, o juizo é idéntico; sé as expressdes diferem, em conformidade com os aspectos sob os quais € encarada a obra do poeta-filésofo de Agrigento. Alias, onde quer que se denunciem outros vestigios de alguma referéncia ao didlogo “publicado”, 0 autor da Poé- tica fa-lo de modo que n&o é possivel qualquer hesitagao quanto ao acordo essencial das doutrinas expostas. Em relagio ao tratado acroamatico, o didlogo exotérico nao representa, portanto, uma fase de pensamento, longinqua ¢ superada, 0 que nos permite supor, ou que o sistema de Aristételes se manteve inalterado durante muitos dos seus anos derradeiros, ou que as duas obras nao foram redigidas em datas muito distantes. Mas, se optarmos, como parece mais natural, pelo segundo membro da alternativa, conclu- sfio logica € termos de recusar algumas conclusées da cri- tica hodierna e reconsiderar as opinides dos antigos acerca da diferenga entre os escritos exotéricos e acroamaticos. Segundo Aulus Gellius (XX 5,1), “egwrepixe dicebantur quae (i. ¢. commentationes) quae ad rhetoricas meditatio- nes facultatemque argutiarum civiliumque rerum notitiam 27 conducebant. dxpoazixd autem vocabantur in quibus phi- losophia remotior subtiliorque agitabatur quaeque ad natu- rae contemplationes disceptationesve dialecticas pertine- bant”. A diferenca, por conseguinte, nao se atribuia senio 4 diversidade das matérias tratadas: de modo geral, os exotéricos nao incidiam sobre problemas de ldgica e filoso- fia natural, e os acroamaticos desdenhavam de questées retdricas € politicas. Nao ha divida que, nestes termos, a distingdo proposta pelo gramatico latino anda bem longe da verdade que se depreende dos fragmentos e dos teste- munhos que possuimos acerca dos didlogos perdidos (cf. Aristotelis Fragmenta Selecta, de W. D. Ross, Oxford 1955, 2.4 ed. 1958). No entanto, é bem certo que a referén- cia a uma oposi¢ao entre as “rhetoricas meditationes” e as “disceptationes dialecticas” deve ter guiado o espirito de Bernays, 0 qual, segundo Bonitz (Index Aristotelicum, pag. 104 6), dizia estar abrangido “eo nomine (i. e. é€wrepixol Aéyor) genus quoddam librorum, quod a severa et accurata philosophicae doctrinae alienus sit”. A TESE DE WIELAND O passo mais decidido e mais decisivo, nesta linha de solubilidade do problema, deu-o, recentemente, Wolfgang Wieland, em seu trabalho “Aristdteles como mestre de Reté- Tica, € os escritos exotéricos” (Aristoteles als Rhetoriker und die exoterischen Schriften, “Hermes”, 86 [1958], pags. 323-346). O fildlogo parte da considerago mais atenta de uma passagem da Fisica (IV, pag. 217 b 29 e segs.) para concluir que as palavras “através de (escritos, discursos) exotéricos” se referem a um modo de abordar aqueles mesmos problemas, que, de outro modo, sao tratados nos escritos acroamaticos; ou antes, que os exotéricos referir-se- -iam a problemas de outra espécie, que podem surgir a propésito do mesmo objecto da exposi¢do acroamdtica. O autor cré poder afirmar que tais problemas sio “problemas de existéncia”, ¢ no, “problemas de esstncia”; so proble- 28 mas do drt, e nao problemas do é:ére (pags. 326-27). Ora a existéncia ou inexisténcia nao é susceptivel de prova apo- dictica; 0 mais que se podera fazer ¢ persuadir ou dissuadir a quem negue ou afirme que um objecto existe ou néo existe. Nao admira, portanto, que na aludida passagem da Fisica — argumentagdo exoiérica sobre a existéncia ou inexisténcia do tempo—, ocorram, nao vocabulos tipicamente cientifi- cos, como émtotHyun (ciéncia) e el’Snowg (conhecimento), mas outros termos, que provém da retérica: zlarug (crenga) e wecOm (forga persuasiva). As provas de existéncia, neste passo da Fisica, como nos demais deste e dos outros trata- dos, que incidem sobre semelhante argumento— lembra- mos, por exemplo, no inicio da Merafisica, a prova de que “todos os homens, por natureza, desejam conhecer”, e na Poética (c. IV) a prova de que o “imitar é congénito no homem” (cf. coment. ad locum)—, e ja antes em Platéo (Wieland cita as provas da imortalidade da alma, no Fédon),—as provas de existéncia, diziamos, decorrem a modo tipicamente retérico, neste sentido rigoroso de se servirem da técnica do “entimema”, que o proprio Aristéte- les designa por “silogismo retérico”. O processo consiste principalmente no acimulo de “sinais” (onpeia) e “teste- munhos” (rexy#pta)— por onde se revela quanto o racio- cinio exotérico (ou retdrico) difere do raciocinio acroama- tico (ou apodictico). Efectivamente, ao passo que em uma demonstragdo rigorosamente légica nfo tem sentido o que- rer fundamentar melhor uma cousa, pelo facto de Ihe con- ferir fundamento, de muitas e varias maneiras, do mesmo passo se apreende que a demonstragdo retérica tanto mais eficiente sera, quanto mais numerosos e diversos forem os “indicios” (sinais e testemunhos) de prova (pag. 335). E, pois, um feliz acaso, este, de se nos deparar tao cla- ramente definido 0 conceito de discurso “exotérico”, num texto acroamatico. Mas, quanto ao sentido de “exotérico”, nas passagens em que 0 termo se aplica em adjectivar um escrito, provavelmente dos “publicados” (€x6edopévor)? f neste ponto que se apresenta a tinica hipdtese de traba- Iho em causa: “a nossa suposigdo & que atrdés dos 29 éfwrepixot Aéxov se oculta a manifestagao literdria daquele tempo em que Aristételes exerceu o magistério retérico” (pags. 337-38). Nas fontes biograficas comparecem, efectivamente, indi- cios de tal magistério (pelo menos, durante a primeira esta- dia do filésofo em Atenas), actividade que lhe teria gran- jeado a antipatia e animosidade de Isécrates, chegando um discipulo do orador, um tal Cefisédoto (ou Cefisodoro) a escrever e publicar uma refutacio em quatro livros das doutrinas expostas pelo discipulo de Platéo. Wieland, que nao cré na hostilidade entre mestre e discipulo, referida pela tradic&o, interpreta os testemunhos, segundo os quais Aristételes teria aberto uma escola concorrente da Acade- mia, ainda durante a vida do seu fundador, precisamente no sentido daquela hostilidade e concorréncia a Isécrates (pag. 336), e acrescenta a verosimil suposi¢io de que os quatro livros de Cefisédoto nunca poderiam ter saido a lume, se o discipulo de Isécrates nfo houvesse encontrado suficientes referéncias em obras publicadas pelo discipulo de Plat&o. Enfim, sem que se possa dizer que 0 facto cons- titui uma prova, convém lembrar que, dos testemunhos de Cicero acerca dos “exotéricos”, muitos se encontram justa- mente no 4mbito dos estudos retéricos (cf. Ross, Fragm. Selecta, pags. 1-4). Sem divida, toda esta argumentagio mal toca o pro- blema que mais nos interessaria resolver. Com efeito, nao resta qualquer noticia acerca de um magistério retérico de Aristételes em perfodo que nao seja 0 académico, e perma- necemos na ignorancia acerca da existéncia ou inexisténcia de outro, no ultimo periodo ateniense. Ora, como disse- mos, neste ultimo periodo da vida do filésofo é que foi redigido o livro que da Arte Poética nos resta, e, pelos motivos acima indicados, nao longe dessa época, também o didlogo Dos Poetas. Wieland, porém, que escreve nestes dias, em que filélogos e historiadores cada vez mais se inclinam para nao rejeitar qualquer dado da tradicao, senio quando demonstrada a sua absoluta falsidade, ainda nos adverte, a propésito do citado texto de Gellius, que a 30. ultima palavra ainda nao foi pronunciada pela critica, acerca do ensino exotérico matinal e do ensino acroamatico vesperal do Estagirita. VALOR GERAL DOS TESTEMUNHOS FRAGMENTARIOS. Acabamos de verificar, mediante um exemplo imprescin- divel 4 economia do nosso trabalho, que a indagagao filo- ldgica se assemelha por muitos aspectos a pesquisa arqueo- légica. O leigo podera supor que, neste campo, se hajam exercido esforgos que mais bem empregados seriam no ter- reno habitualmente explorado pela historia e critica litera- ias; mas ndo chega a suspeitar de que, sem eles, nem teria historia essa literatura que tanto aprecia e admira nas obras conservadas pela tradigo. Quanto a Hélade, é certo que possuimos os poemas de Homero, didlogos de Plato, comédias de Aristéfanes, historias de Herdédoto, oragdes de Deméstenes, odes de Pindaro, tragédias de Sofocles, se nao integralmente, pelo menos de modo a que possamos discor- rer acerca da Epopeia, da Lirica, da Tragédia, da Comédia, da Retérica, da Historiografia e da Filosofia—em suma, de todos os géneros literarios cultivados pelo génio incom- pardyel da Grécia Antiga. Mas, que seria da historia desses géneros, se nao dispuséssemos também de alguns fragmen- tos de Safo e Alceu, de Arquiloco e de Siménides, de Par- ménides e Herdclito, de Epicarmo, de Hecateu...—isto é, sem a paciéncia, a argicia e 0 engenho de tantos arquedlo- ros da literatura? A cscavadores de ruinas da tradigaéo também devemos rta compensagao das injurias e mutilagdes que sofreram os escritos de Aristételes, pois, como vimos, nio quis a meret do destino repartir-se igualmente pelo mestre e pelo discipulo, Se as obras de Platéo chegaram até nds em estido de satisfatoria integridade, perante as vicissitudes dos escritos aristotélicos, pelo contrario, bem cedo foram s miiltiplos ¢ complicados problemas da épsis™ cnunciados aqui Wradigio manuscrita, Historia ou lenda, a ec de a aponta para uma verdade indiscutida e indiscutivel: depois de Tiranion, a edigéo de Andronico de Rodes ja nao conti- nha sendo a parte das obras de Aristételes que consta do Corpus, designadamente, a dos escritos acroamaticos. Os outros, os “exotéricos”, talvez porque andassem de m&éo em mao, escusavam de ser reeditados pelos antigos gramaticos; mas estes careciam de uma reedig&o que os arrancasse ao olvido, a que teriam sido votados a partir do momento em que a Escola se orientou decididamente no sentido da investigagao erudita e para os problemas mais estritamente naturalisticos e histdrico-literarios. Se o grande desvio teve lugar ainda em vida de Aristételes, ou de Teofrasto, ou s6 depois da morte do fundador do “Peripato” ou do grande escolarca que imediatamente Ihe sucedeu—essa € outra questéo. A “cave de Scépsis” ¢, como escrevemos, a “razao” lendaria, que desoculta uma verdade histérica: os escritos acroamaticos eram simulas de uma doutrinagio viva, oralmente transmitida de mestre a discipulos. Cada um deles supée, por conseguinte, a totalidade de um sis- tema filoséfico e a minuciosidade da investigacfio erudita que caracteriza os doze anos derradeiros do magistério de Aristoteles em Atenas. A Poética é uma dessas stimulas. Queremos dizer: é um livro em que o enunciado e as solu- g6es de certo problema se encontram patente ou latente- mente coordenados com os enunciados e as solugées de outros problemas afins, que iam surgindo na via de forma- cao de uma grandiosa enciclopédia. ESTRUTURA ORIGINAL DA POETICA Originalmente, a Arte Poética compreendia dois livros, e nao s6 aquele que a tradic&o nos legou, que era o primeiro. Com efeito, o catdlogo transmitido por Didgenes Laércio menciona dois livros de uma “pragmatéia” da arte poética; e€ tanto o nosso texto como o de outros tratados de Aristé- teles bem parecem aludir ao segundo livro. Assim, no capi- tulo VI (pag. 1449 b 21), em que diz “da imitagdo em hexa 32 metros e da comédia trataremos depois...”; e na Retdrica, em dois lugares (I, 11, 1372 a 1; HI 18, 1419 b 5), referindo-se ao “ridiculo”, de que jd tratara na Poética. Menos demonstrativo é o argumento sugerido pelas omis- sdes. Nao ha dtvida que o primeiro livro omitiu, entre outras, a definigéo de “catarse”, e quantas centenas, se nado milhares, de paginas nos tem custado essa omisso, sabe-o quem quer que se proponha resolver o problema. Teria Aristételes alguma vez explicado em que consiste aquela “purgagdo das emog6es de terror e piedade” a que visa a tragédia? Na Politica promete fazé-lo év rotg mept romriKns (“nos [livros] acerca da poesia”). Sio os mesmos termos em que a Retérica se refere ao “ridiculo”, mas no texto da Poética, que a tradigio conservou, s6 comparece a palavra; nada mais. Resta, pois, a suposi¢do, alias verosimil, de que © segundo livro desenvolvesse aquele conceito. Mas & ape- nas uma hipétese; e tanto ou téo pouco plausivel, como aqucla que atribui semelhante desenvolvimento ao didlogo Dos Poetas (cf. Rostagni, op. cit.). Ha, por fim, o argu- mento paleografico. A vulgasa (cod. A e apégrafos) ter- mina assim: “falamos, pois, da tragédia e da epopeia... das causas pelas quais resulta boa ou md a poesia, das criticas © respectivas solugdes”. Mas o Riccardianus acrescenta: “dos jambos € da comédia...”, e, depois da palavra “comé- dia”, outra, evanescente, que, sendo ypdyew (“escreverei”), como parece, confirmaria a hipétese, ou a quase certeza, de seguir imediatamente outro livro sobre a comédia e a poe- sit jambica, e que talvez contivesse uma exposigao da pro- blenxitica respeitante a catarse. Problema nao menos interessante e instrutivo é 0 da perda deste livro. Naw ha diivida que ja no século VII, o autor da versio siniaca, da qual dependem as tradugdes e pardfrases dos anisto(clizantes arabes, ignorava a existéncia do segundo livia da Arte Poética. Por consequéncia, a perda deve época bem mais remota, ¢ hd motivos para s nao existia & data em que comegou a tiga do “volumen” para o ascender peitar que o livre teanserigdo de toda a literatu WW “codex” e do papiro para o pergaminho —entenda-se, de toda a literatura entdo existente, ¢, ainda assim, s6 daquela que, nesse tempo, se julgava digna da custosa operagdo de salvamento. Porém, o anterior desaparecimento do II livro, a que infeliz acaso poderemos atribui-lo? Remontemos mais alguns séculos. Pelo que atras deixa- mos dito, acerca dos escritos acroamaticos, nao é provavel, nem sequer verosimil, que os textos da Escola fossem manuseados pelo piblico, mesmo por aquele piblico letrado que, certamente, lia os textos dos dramas, da tragé- dia e da comédia, cuja “edi¢do” em numerosos exemplares teria inaugurado o comércio livreiro na Antiguidade. Por outro lado, os fildlogos de Alexandria, admitindo que j4 nao possuissem o texto integral da Poética—o que nao é provavel, visto que o catdlogo que ascenderia a Hermipo o menciona entre os poucos “acroamaticos” que alistou—, deviam estar bastante familiarizados com a doutrina de Aristételes acerca da poesia e das questées criticas. Dessa familiaridade, testemunham os cédices bizantinos, que nos transmitem numerosos prolegomena A comédia, os escdlios (B) a Iliada com os seus “problemas homéricos”, os grama- ticos com as suas definigdes dos géneros literarios (Diome- des, Evantio, Donato), a Ars Poetica de Horacio modelada na do peripatético Neoptélemo de Parion, os fragmentos de Filodemo e Sueténio, os “argumentos” de tragédias e comédias, que remontam a Aristéfanes de Bizdncio, etc., etc. Mas, com tudo isto, ainda no se resolve o problema da unica perda do II livro. A explicagéo mais provavel consiste em pensar que, desde o tempo de Aristoteles, a comédia ja havia tomado considerdvel ascendéncia sobre a tragédia, no gosto do publico, e no é impossivel — pelo contrario! — que Menandro bem tivesse aproveitado as ligdes de Aristételes, consignadas na Poética. Por isso, ao passo que a teoria da tragédia se ia recolhendo ao gabinete dos eruditos, do mesmo passo a teoria da comédia se ia difundindo e vulgarizando, até que, ao soar a desgragada hora dos epitomes, jé nfo havia quem nio pudesse 4 dispensar-se da leitura de um tratado que punha muito mais problemas do que aqueles que resolvia em termos acessiveis a pessoas n&o afeitas a disciplina escolar. E sabido como, efectivamente, o epitome repele da tradig&o o livro que resumiu. Sobram os exemplos do lamentavel ¢ lamentado desaparecimento de tantas obras, cujo teor mal se adivinha através das mutilagdes a que foram submetidas por individuos que nao tinham a mais palida ideia acerca das melhores qualidades dos textos que se propunham vul- garizar. Que diremos, efectivamente, do Tractatus Coisli- nianus que reduziu a intragavel “pastiche” da defini¢&o de tragédia (Poet. c. VI) provavelmente todo um capitulo do II livro da Poética? E da doxografia, se compararmos 0 que nos resta de antigas histérias da “Fisica” com o longo fragmento de sensu, da autoria de Teofrasto? E dos mitd- grafos ¢ heortdgrafos, se medirmos a distancia que separa a Biblioteca do pseudo-Apolodoro, e algumas noticias de escélios e léxicos, do que se pressente através dos poucos fragmentos do epi de@y do verdadeiro Apolodoro de Atenas? E dos atiddgrafos, se confrontarmos um ou outro artigo de Harpocracion ou do Etymologicum Magnum, que os citam, com a imagem, longinqua e evanescente, da rica messe de informagées que F. Jacoby nos deixou entrever? Eis por que perdemos o segundo livro da Poética, e por que sO nos resta o primeiro. CONTEUDO ORIGINAL DA POETICA ‘Tracemos, agora, um breve escorgo do tratado, tendo em conta, néo sé a doutrina exposta no I livro, mas também o presumivel argumento do segundo. Obedecendo ao plano estabelecido de inicio: “falemos da poesia dela mesma e das suas espécies”, Aristételes desenvolve nos primeiros capitulos © conceito de poesia, pelas suas notas fundamentais; ¢ resultando ser ela Simita- gdo de acgito”, praticada mediante a linguagem, a harmonia is € 0 ritmo, ou sé por dois destes meios, divide as espécies de poesia pelas qualidades dos individuos que praticam a ac¢&o (objecto), do meio por que se imita e do modo como se imita; e essas espécies vém a ser: ditirambo, nomo, comédia, tragédia, epopeia... Mas, quanto ao modo de imitar, todas as espécies se agrupam em duas grandes divisées, conforme a imitagao se realiza mediante narrativa ou mediante actores, isto é, nar- rando 0 poeta os acontecimentos, seja na prépria pessoa, seja por intermédio de outras, ou representando as perso- nagens a acco e agindo elas mesmas. Fica, portanto, determinada a matéria a tratar: por um Jado, a epopeia (narrativa), por outro lado, a tragédia e a comédia (dramaticas). A segunda parte é justamente dedicada ao estudo da tra- gédia e A comparacio dos géneros tragico e épico. Comeca por dar a famosa definigdo: “é, pois, a tragédia imitagio de uma ac¢ao austera...” (c. VI), enumerando depois os diver- sos elementos do drama: espectaculo, melopeia, elocugio, pensamento, mito e cardcter. Estes sfo os elementos quali- tativos, porque as partes, considerado o poema tragico do ponto de vista quantitativo, vém designadas no c. XII; sio © prologo, 0 episddio e o éxito (partes recitadas ou dialo- gadas), e o coral, composto de parodo e estasimo (partes cantadas). De todas, s6 as primeiras merecem a atengdo de Aristoteles neste livro, pois as segundas pertencem a um daqueles elementos—a misica (o outro é 0 espectaculo cénico)—que, diz ele, ndo sao essenciais a tragédia. Dos outros elementos qualitativos, o mito € o mais importante, pois a elocucgdo, o pensamento e o cardcter podem, de certo modo, reduzir-se ao mito. E assim, todas as paginas que vaio desde o principio do c. Vil até ao fim do c. XVIII--apenas com duas interrupgdes, a do c. XII (partes quantitativas) e a do c. XV (caracteres) — sao intei- ramente preenchidas por uma teoria da elabulagao tragica. O problema de Aristételes é determinar 0 procedimento a uir pelo pocta, para obter do mito as emogdes de terror 36 © piedade. E ent&o que introduz o “reconhecimento” e a “peripécia”, 0 “nd” e o “desenlace” da intriga, que devem resultar da trama dos factos, conformemente a verosimi- lhancga e a necessidade. E porque considera a epopeia na perspectiva tedrica da tragédia, sendo-lhe portanto aplicdveis, mutatis mutandis, as regras precedentemente expostas, Aristételes esboca, nos ce. XXII, XXIV e XXV uma breve teoria do poema épico, terminando esta parte pela comparago da epopeia com a tragédia, em termos que, dir-se-ia, preparam as paginas subsequentes, que se propde dedicar 4 comédia e a poesia jimbica. Uma vez definida a comédia em termos andlogos aqueles em que definira a tragédia (c. VI da Poet. e Tract. Coisl., § 3), isto é, posto o ridiculo em lugar do austero, e o pra- very ¢ o riso em lugar do terror e da piedade, procederia depois 4 enumeragao e definigaéo dos elementos da comé- dia, que séo os mesmos da tragédia (Tract. Coisl., § 7)— mito, caracteres, pensamento, elocugaéo, melopeia e espec- ticulo -, dando ainda e em conformidade com o seu conceito de artes miméticas especial relevo a certos meios de obtengio do cémico, designadamente aos que sio redu- tiveis ao mito, e excluindo outros, por acessérios (Tract. Coisl., § 8). Como ja dissemos, € de presumir que a exposi- sao terminasse pelo confronto entre a arte dos comedidégra- los c a de Homero, pela parte da poesia jambica que lhe era atribuida, porquanto no I livro (c. IV, pag. 1448 b 33) i atirmara que Homero “tal como foi supremo poeta no penero sério.,. assim também foi o primeiro que tragou as linhas fundamentais da comédia, dramatizando, nfo o vilupério, mas 0 ridiculo”, A esstncia da poesia, considerada como imitagao de nego austera ou ridicula—eis, por conseguinte, 0 pro- hlema que Aristétcles enuncia e resolve nestes dois livros, voordenadamente com os problemas éticos e politicos e, talvez, os fisicos, que enunciara ¢ resolvera noutros trata- dos © subordinadamente a sua teoria geral da ciéncia, Nao esta a oportunidade para tentar prova do que em tio W7 poucas linhas deixamos escrito. Queremos apenas sugerir que, na Poética, a teoria da acco dramatica esta mais proxima do que inadvertidamente se poderia supor, da teo- tia do movimento, exposta na Fisica; aludir 4 dependéncia dos juizos criticos, expressos na Poética, em relagio aos principios estabelecidos na Etica; ¢ lembrar que talvez nao haja outra solucdo do problema da catarse, além da que se infere da Politica. OS ESCRITOS CONGENERES Mas o nosso texto, além das teorias da tragédia e da epopeia, que formam, digamos assim, 0 tronco da obra, apresenta também outras, como que excrescentes e acessd- rios ramos, que sd nao atingiram o completo desenvolvi- mento porque, se o atingissem, excederiam a finalidade proposta ¢ viriam a constituir outros tantos tratados inde- pendentes. Entre essas partes, contamos, na ordem em que se nos deparam: 1) as noticias histéricas acerca da origem da tragédia e da comédia (cc. III-V); 2) as definigdes ¢ a classificagéo dos elementos da linguagem (cc. XIX-XXI]); 3) os problemas criticos e as respectivas solugGes, princi- palmente no que respeita aos poemas homéricos (c. XXV). Por outro lado, também sido notabilissimas as omissdes; ea do lirismo, por exemplo, mais notoria, da lugar a justi- ficada, perplexidade, tratando-se, como se trata, de poesia. E certo que o desenvolvimento do conceito fundamental: poesia=imitagdo de acgao exclui a lirica de entre os géne- tos poéticos. Mas se 0 metro (e, por conseguinte, o ritmo) nao é artificio do escritor, estranho a esséncia da poesia, como se depreende de certas passagens em que Aristdteles nos diz que “o engenho natural encontra o metro adequado ao poema”, que “a epopeia e a tragédia diferem pela métrica”, que “o ritmo jambico melhor sc adapta a lingua- gem corrente”, “o tetrametro trocaico, 4 danga ¢ ao sati- rico”, e “o hexametro A epopeia” (cf. Indice Analitico, METRO) — teremos de concluir que, inscritos A margem da 38 ligdo principal desta arte poética, encontramos os fragmen- tos de outra arte poética mais compreensiva, que teria pro- cedido ao estudo do ritmo e da harmonia, elementos do coro tragico e, em geral, da poesia lirica, de cujo seio, fecundado pelo /dgos, irrompera a tragédia. Ora, precisamente aqui, nas ligdes secunddrias e nas omiss6es voluntarias de Aristoteles, € que, em nossa opiniéo, mais vincado aparece o cardcter acroamatico ou csotérico deste livro. Queremos dizer: quando nos detemos perplexos ante as contradigdes resultantes de lacunas, ou ansiosos perante ensinamentos truncados, devemos lembrar- -nos de que a Poética é apenas um resumo, um aponta- mento escolar; que pressupde, por consequéncia, 0 comen- trio de viva voz, porque é o término de longa meditag’o e de ardua investigagao. A parte um dos dois livros da Poética e os trés da Retd- rica, das outras obras de Aristételes, mais ou menos afins, nao conhecemos sendo os titulos ou, em casos mais favora- veis, alguns fragmentos. Quanto aos similares tratados de tcofrasto, Dicearco, Filéxeno, Praxifanes—isto é, dos mais préximos discipulos, aqueles que também foram os tais diligentes pesquisadores dos elementos e dos funda- mentos da arte poética—, a situagdo é idéntica, quando nao mais precdria. Nao podendo nem devendo atravessar a intrincadissima selva da erudig&éo; omitindo, portanto, os dificilimos e, por . insolaveis problemas da autenticidade das obras e da testituibilidade das doutrinas fragmentariamente represen- tadas por citas dispersas, ainda assim, proveitosos ensina- mentos podemos extrair da simples enumerag&o de todos esses tratados ¢ da mera aluséo a alguns fragmenitos. Considerando, pois, as ligdes “secundarias”, “incomple- tas” ou “marginais” da Poética; cotejando-as com as cita- dus passagens de obras perdidas, é facil verificar quais, de entre clas, representam a respectiva ligio “completa”: Ww POETICA OUTROS ESCRITOS 1. Definigdo © classificagao dos Da elocucdo (n.° 87, no catalogo elementos da linguagem (cc. de Diog. Laert.) XIX-XXID) 2. Problemas critics e respecti- Questées Homéricas (n.° 118) vas solugdes (¢. XXV) 3. Noticias histéricas acerca da Dos poeta (n.° 2) origem da tragédia eda comé- —_-Vitdrias Dionisiacas (n.° 135) dia (cc. IHI-V) Didascdlias (0. 137) Das tragédias (n.° 136) Examinemos de relance cada um dos trés pontos da con- cordancia acima estabelecida. 1. A identificacio da obra acerca da elocugao é duvidosa e discutivel. No entanto, os cc. XIX a XXII da Poética, ¢ a pressuposicéo de que outros capitulos do II livro haveriam tratado da “locugio comum e plebeia” (Tract. Coisl., § 7), permitem, de certo modo, medir o alcance da pesquisa lexicolégica empreendida por Aristételes ou algum de seus discipulos. Sem divida, a definic&o e classificagio de voca- bulos nao satisfazem, nem de longe, as exigéncias da moderna linguistica, mas também nao ha divida de que a gramatica de Dionisio da Tracia, que foi, por assim dizer, o paradigma de toda a gramatologia grega até época nao muito recuada da nossa, talvez mais nao fizesse que desen- volver aquela gramatica in nuce. 2. A noticia de um bidgrafo refere-se a uma “edicdo da Iliada, dedicada a Alexandre”. Lendaria ou histérica, tal referencia assinala, de per si, 0 interesse que a epopcia merecera do filésofo. Quanto as “investigacées homéricas”, a seguir mencionadas pelo mesmo bidgrafo, confundem-sc, pelo titulo, com 0 homénimo livro de Portirio. Mas, sendo este, decerto, uma das fontes principais dos escoliastas de Homero, quando citam Aristételes a propdsito de algum 40 problema critico, podemos supor que, por detras dos (nrihpare de Porfirio, estio os dropijpara de Aristételes. Aqueles escdlios séo relativamente abundantes e, juntos as paginas da Poética (c. XXV) respeitantes aos mesmos pro- blemas, perfazem quanto basta para que possamos avaliar © contetdo e as intengdes dos dois livros que Aristételes dedicara 4 Ilfada e 4 Odisseia. E de notar que, ocupando as «questées criticas um lugar eminente na dialéctica sofistica e académica, as solugées do Liceu se nos afiguram mais pré- ximas de Aristételes e de Aristéfanes de Bizancio, que de Platio e de Gorgias (cf. coment. ao c. XXV). 3. Chegamos, finalmente, aos tratados de Historia Lite- riria propriamente dita. Quanto ao livro Das tragédias, vale o mesmo que dissemos acerca do Da elocugdo, nao se podendo excluir a hipdtese de que este titulo seja “dupli- cata” de um nome que teria designado o primeiro livro da arte poética. Mas quanto aos outros trés, os documentos, ainda que néo muito numerosos, sao todavia suficientes para que tracemos com certo rigor e relativa seguranga as tespectivas linhas estruturais. a) Dos Poetas*. A este didlogo nos temos referido com 4 nsist@ncia que merece, em vista da bem razodvel suspeita de que as duas obras, Poética e Dos Poetas, seriam, de certo modo, complementares. Resta-nos, agora, extrair do belo © penetrante ensaio, em que Rostagni propée a sua ieconstituigio do didlogo, o quanto basta para avivar seus vontornos evanescentes. Em primeiro lugar, digamos, na sequela do eminente fildlogo italiano, que a complementa- tiedade das duas obras se verificaria— mesmo sem percor- tet (odos os meandros da laboriosa investigacio erudita — pela estrutura dos tratados acerca da arte poética que sucederam ao do Estagirita. Segundo Rostagni, a divisio eatiutiral que se nos defronta, por exemplo, mais notdria, * V. ERAGMENTOS (Apendice 1, Seegio X). 4l na poética horaciana, entre as matérias referentes 4 ars ¢ ao artifex, ascenderia a Heraclides de Ponto, que teria sido o primeiro a fundir em um sé tratado as duas secgdes que, em Aristételes, ainda se encontram separadas: a “ars” na Poética, e 0 “artifex” no De Poetis. Em todo o caso, temos de verificar que a maioria dos comentadores modernos concordam em denunciar a exist¢ncia de semelhante articu- lagho, ja e unicamente, na propria Poética —a “ars”, nos cc. I-XII, e o “artifex” nos cc. XIII-XXV (cf. coment. ao § 1). Sendo certo, todavia, que nas poéticas ou fragmentos de poéticas posteriores a Aristételes ha indicios da artificia- lidade deste processo, que se traduziria em inevitaveis repe- tigdes, e, nfo menos certo, que no texto do tratado aristo- télico ainda nao nos apercebemos de tais inconvenientes ao passarmos de uma a outra das suas presumidas secgdes, além de que, neste livro, os poetas nao figuram sendo como referéncia exemplar ou esclarecimento acessdrio, e ainda, em muitas das suas paginas e sem preferéncia por sector apropriado — tudo nos leva a crer no bom fundamento da exclusao de uma parte intencionalmente dedicada aos poe- tas. Por outro lado—e esta reflexdo ainda nao podia ter influenciado o juizo de Rostagni—, se em conformidade com a hipétese de Wieland (embora este fildlogo se incline a nao incluir os didlogos na classe dos “exotéricos” que teve em mira) o De Poetis se estruturava em regras da “pragmatia” retérica, sumamente plausivel se tornard a inferéncia de que os “sinais” e os “testemunhos”, mediante os quais procede o raciocinio “entimematico”, haviam de conferir ao didlogo certo colorido predominantemente historico-literario, que ndo é 0 da Poética. Alias, do pre- dominio desta qualidade nos advertem, nao sé as ligdes dos fragmentos conhecidos, como todas as demais, que, por hipotese mais ou menos audaciosa, se atribuam ao texto do didlogo. Com efeito, além das citas de Empédocles, dos mimos de Séfron e Xenarco e dos didlogos socraticos, o lirismo também ndo devia faltar na obra, dada a mengdo de Arquiloco, Mimnermo e¢ Sélon, que seria dificil, para nio dizer impossivel, situar em qualquer outro dos 42. escritos aristotélicos. E o mesmo vale, quanto as observa- cocs de Aristételes sobre o estilo de Platéo, a que aludem Cicero, Temisteo e Didgenes Laércio, e as inovagdes dos escritores, no curso do desenvolvimento de cada género poctico, se é certo que, no didlogo em questéo, Temisteo se baseou, ao associar o nome de Téspis 4 invengio da rhésis c do prélogo da tragédia. Voltando, agora, 4 reconstituigéo de Rostagni, e nao csquecendo que ela tem por fundamento a consideracgéo das mais flagrantes omissées verificadas no texto da Poctica (a hipdtese de trabalho é a complementariedade dos dois textos), importa téo-somente aduzir que 0 fildlogo iliano julga poder atribuir ao didlogo o propésito de mais cluramente explicar a atitude polémica de Aristdteles con- (1a um conceito de mimese artistica que redundava na utopica expulsto dos poetas da cidade dos fildsofos, O contronto da Poesia com a Histéria, apenas esbogado no v. IX da Poética, donde se concluia, em detrimento da His- (ria, a maior universalidade da Poesia e, por conseguinte, indole “mais filoséfica”; a novissima aplicagdo dos dados tradicionais, referentes 4 fungao catartica de certas conmaénias religiosas, 4 dramaturgia artistica de tragedié- guilos ¢ comediégrafos — donde, principalmente, resultava a absolvigio da sentenga condenatéria que Platéo havia pronunciado --, eis as ideias nucleares da publicagdo exoté- luca, as quais —acrescentemo-lo nés— viriam comprovadas pelo “silogismo retdrico”, que consistia em coligir “sinais” ¢ “testemunhos” (em grande parte de natureza histdrica, come acontece na: itrodugées” que Aristételes, na Fisica «mm Metafisica, antepde ao tratamento apodictico da maté- im cm causa), de que (re) as coisas séo desta e daquela muncira, na expectativa de provar, com légico rigor, por- que (dei) nado podiam ser sendo como efectivamente vie- 1am a ser, A hip6tese vale, pelo menos enquanto n&o haja oulra que a substitua com vantagem. as h) Vitérias Dionisiacas ¢ Didasedlias. Do primeiro destes livios, so cncontramos na Antiguidade a mengio do titulo. 43 Do segundo, pelo contrario, ha algumas citagdes nominais e numerosos textos donde naturalmente se infere a pre- senga de noticias que, em Ultima analise, proviriam desse escrito; pode dizer-se, de modo geral, que todas as troOjoeg (“argumentos”) atribuidas a Aristéfanes de Bizancio, e que figuram no pré-inicio das nossas edigées de Esquilo, Séfocles, Euripides e Aristéfanes, contém frag- mentos das Didascdlias. Segundo o léxico de Harpocra- cion, dd&éoxahog designa simplesmente o autor de diti- rambos, comédias e tragédias; mas a palavra deve ter significado, antes, o “mestre dos coros”, e “didascalia” que- reria dizer, por fim, “noticia respeitante 4 produgdo e representagao de um drama ou grupo de dramas, conser- vado num arquivo”. Conhecemos por uma inscrigéo de Delfos o decreto que determinou a coroacio e o encédmio de Aristételes e de Calistenes, por haverem levado a cabo a “lista dos vencedores dos jogos pitios”. E claro, todavia, que a “lista dos vencedores dos concursos dionisiacos” e das “representagdes dramaticas atenienses” eram, pelo menos, obra de igual mérito, e foram decerto a ultima ins- tancia a que, mais tarde, recorreram os gramaticos de Ale- xandria para dissipar as duvidas que subsistissem acerca do verdadeiro autor desta ou daquela tragédia, da pertinéncia deste ou daquele drama a uma ou outra trilogia ou tetralo- gia, da data em que se realizara a primeira representag4o, da parte da lenda heréica que constituia o respectivo argumento, etc., etc. E também é claro que obra de tao grande vulto nao poderia ser levada a bom término sem o auxilio de colaboradores que colhessem, nos arquivos dos arcontes, as necessdrias informagées acerca das pecas repre- sentadas nos dois séculos decorridos desde que Téspis, no reinado de Pisistrato, vencera o primeiro concurso tragico. CREDIBILIDADE HISTORICA DA POETICA Dos modernos pesquisadores, os que teorizam contra Aristdteles esforgam-se por relevar, nos documentos ¢ 44 monumentos antigos, os pormenores susceptiveis de demonstrar que, do Estagirita, dependem todos ou a maior parte dos testemunhos acerca da origem da tragédia no ditirambo, e da fase satirica por que haveria passado o drama primordial. Este procedimento afigura-se-nos pres- supor a conviccdo de que, na “Poética”, as ligdes histdricas sobre a origem e o desenvolvimento se encontram entrete- cidas na argumentagao filosdfica sobre a esséncia da tragé- dia (cf. c. II desta “Introdugéo” e o coment. ao § 20 da Poética). N&o queremos dizer que, razoavelmente, nao seja possi- vel mostrar tal dependéncia, quanto As linhas do c. IV que se referem a gradual “protagonizacao do /dgos”. Mas, nesse lugar, surge apenas um caso evidente de n&o-contradigao entre a verdade trans-histérica que 0 filésofo procura ainda ea realidade histérica que o historiador ja encontrou; pois basta analisar a estrutura métrica dos poemas tragicos, de Esquilo a Euripides, para que reconhegamos, sem mais esclarecimentos, que 0 didlogo vem “protagonizar” e, por fim, a ser o tnico actor. Mais ingrata empresa sera demonstrar que nas malhas da argumentacao filosdéfica também ficaram comprometidos os resultados da indagacao histérica tendente a revelar a pas- sagem pela fase satirica, em que predomina a linguagem burlesca. Posto que a elocugdo austera das tragédias conhecidas contradiga a veracidade daquela noticia, compre- ende-se que nasga a suspeita de que, neste ponto, o filésofo prejudicou o historiador. Mas o que nado se compreende téo bem é o encadeamento ldgico e a ligagdo necessdria, dentro do préprio sistema de Aristételes, entre o satirico (burlesco) inicial e a tragédia (austera) final. Como, por outro lado, ninguém, até hoje, conseguiu explicar satisfato- riamente a etimologia de “tragédia”, sem um ultimo recurso A remota “passagem pelo satirico” (cf. infra, c. Il, § 2), ha-de se reconhecer o mal fundado das suspeitas e da des- confianga que pesam sobre a parte histérica deste opusculo. Mas também importa averiguar por onde insinuam as suspeitas ¢ a desconfianga. 45

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