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PRIMEIRA PARTE NATUREZA DO DIREITO ECLESIAL | Digitalizado com CamScanner Capitulo I FUNDAMENTOS ANTROPOLOGICOS 1. FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA FILOSOFICA A. Elementos de fenomenologia do direito 1. O homem como sujeito em relagao 1. Ea pessoa que baseia a vida social:' para compreender 0 fendmeno do direito deve-se partir da pergunta: “que é 0 homem?”. O homem aparece como um ser em relago: 0 sujeito esta sem- pre em relagdo com o mundo que 0 cerca, e com outros sujeitos. O estar em relagdo com 0 outro é uma necessidade estrutural do sujeito (“ubi homo ibi societas”), da qual brotam as varias possibilidades de atuac4o da relagao: o sujeito, em sua liberdade, encontra-se diante da responsabilidade das escolhas morais que deve fazer entre as varias possibilidades que se lhe oferecem. Com os bens, valores, direitos, que lhes so inerentes, 0 sujeito entra em relag4o com outros sujeitos, os quais por sua vez sao porta- dores de outros bens, valores e direitos pessoais. Estabelece-se 0 relacionamento positivo de associabilidade entre dois sujeitos quan- do eles se reconhecem reciprocamente como tais e, portanto, ha o respeito mituo desses bens, valores e direitos pessoais. No entanto, no exercicio de sua liberdade, um sujeito pode estabelecer um relacio- namento negativo com o outro, na falta de respeito dos direitos pes- soais dos quais este é portador. Daqui a necessidade da intervengao da autoridade, que, através de uma lei positiva, impe¢a o estabelecer- se de um relacionamento negativo entre os sujeitos e indique quais so as obrigagdes a cumprir para que os direitos sejam reciprocamen- te respeitados. A necessidade da relacao e a liberdade na atuacio requerem a intervencao da autoridade e a formulagdo de uma lei positiva que indique a atuagao da associabilidade, que torna os sujei- tos da relaciio verdadeiros sujeitos, e previna o relacionamento nega- tivo de dominio de um sujeito sobre o outro. * Cf. Paulo VI, Aloc. ao Il Congr. Int. Dir. Can., 17 set. 1973, in Comm. 5 (1973) 125. oN m Digitalizado com CamScanner 18 © DIREITO NA IGREJA - MISTERIO DE COMUNHAO Dado que as raizes do fenémeno do direito estdo na associabilidade do homem enquanto homem (“ubi societas ibi ius”), ele deve ser considerado, antes de tudo, como realidade ontoldgica, isto é, inerente ao homem enquanto homem, portan- to, universal (“ubi homo ibi ius”). Qualquer homem deve ser aco- Ihido como “sécio”, do qual se requer s6 a regularidade e a previsibilidade de um comportamento estabelecido por uma lei positiva, que se configure como realidade intencional, enquanto atua¢ao concreta e histérica do direito como realidade ontolégica. Sobre isto se funda a certeza do direito: ao “sécio” se requer um empenho de verdade e de lealdade. A lei positiva compreen- de em si a eliminagao do erro, mediante a coordenagio estavel e regular das agdes. 2. Justiga — direito natural — direito positivo 2. Ulpiano (séc. II-III d.C.) define a justica como “constans et perpetua voluntas ius suum cuique tribuendi’.? O “ius suum”, como contetdo da justi¢a distributiva e da justiga equiparadora ou sinalagmatica (comutativa ou judiciaria) é 0 principio basico do direito natural, que se radica na exigéncia moral de associabilidade do homem, de ser reconhecido como sujeito € 1 de reconhecer como tal também qualquer outro homem, com todos os bens, valores e direitos préprios. O direito positivo, como conjunto de leis positivas, é a atuagdo hist6rica dessa exi- géncia moral, enquanto determinacdo concreta das possibilida- des nas quais cada um possa agir como pessoa no relacionamen- to com os outros. Preceito de justica é fazer aquilo que por ou- tros pode ser fundadamente pretendido, e nao fazer aquilo que constituiria uma lesdo dos direitos de outros. No entrecruzar-se das exigibilidades reciprocas, os sujeitos im- i plicados no relacionamento devem ser considerados entidades fungiveis, no sentido que cada um de seus atos é considerado em sua objetividade, em relacao a qual cada homem € igual ao outro. ‘Assim realiza-se a certeza do direito, que se baseia na previsibilidade de um comportamento estabelecido por uma lei. * Cf. Dig. 1 1. Digitalizado com CamScanner 1. FUNDAMENTOS ANTROPOLOGICOS 19 3. Instituigaéo — ordenamento juridico — bem comum — direitos subjetivos 3. Um conjunto de relagées intersubjetivas reguladas por normas de conduta nos dé uma institui¢ao; 0 conjunto das instituigdes juri- dicas, reguladas por leis positivas, nos d4 o ordenamento juridico, que em seu conjunto é a determina¢ao hist6rica e objetiva das possi- bilidades e das exigibilidades reciprocas legitimas intercorrentes en- tre os sujeitos das varias relages juridicas. A finalidade de um ordenamento juridico primario (aut6nomo, independente e soberano) é 0 bem comum, como complexo de cir- cunstancias e de condig6es objetivas nas quais os individuos e os gru- Pos estéo em condicdes de conseguir as finalidades essenciais da pré- pria natureza (GS 26a). Desse modo, o ordenamento juridico, concreta € objetivamente, reconhece e tutela os direitos subjetivos da pessoa, considerada seja como individuo, seja como fazendo parte de um gru- po. Os direitos subjetivos indicam a esfera da autonomia inviolavel de cada pessoa no uso dos bens e dos meios necessarios para satisfa- zer suas exigéncias vitais, isto 6, para se realizar como pessoa. 4. Lei— obrigagdo — responsabilidade 4. A lei positiva, colocando ordem no arbitrio, impedindo a redugdo do sujeito ao objeto, realizando a estrutura ontolégica do sujeito no relacionamento de associabilidade, historicizando o direito natural, induz a vontade subjetiva voltivel — que tende a deter-se no particular, perdendo de vista a unidade da totalidade — a fazer-se vontade objetiva e universal. ‘A obrigacao e a responsabilidade exprimem a conexdo necess4- ria entre vontade subjetiva e vontade objetiva. A lei positiva faz 0 sujeito sair do solipsismo pratico no qual ele tende a se fechar, e o abre as obrigacdes responsaveis de um esforgo de associabilidade. 5. Controvérsia — sentenga — justiga 5. A controvérsia tem origem na transgress4o de uma lei ou de um conflito de interesses entre sujeitos. O “ius suum” nao se realiza espontaneamente, por isso a resolugao da controvérsia por meio de uma sentenga é a afirmagdo da certeza do direito. A senten¢a con- figura-se semelhantemente a uma lei positiva, enquanto, superior as vontades subjetivas particulares em conflito, estabelece objetivamen- te o “ius suum” em concreto, isto é, aquilo que pode ser legitima- mente pretendido. Desse modo tem-se a realizagao da justica, Digitalizado com CamScanner 20 O DIREITO NA IGREJA - MISTERIO DE COMUNHAO ; Na controvérsia a lei positiva, Por si abstrata e geral, é aplicada a vida e é interpretada. Por a que nado se pode identificar com o direito como realidade ontolégica, nenhum ordenamento juridico deve ser considerado definitivo e exaustivo, mas sim fragmentdrio, nao po- dendo prever todas as situag6es concretas que se podem verificar, nem exprimir adequadamente a exigéncia moral de justiga que sus- tenta toda a experiéncia juridica. 6. Coaga@o— pena 6. Violada uma lei, para restabelecer 0 equilibrio na vida social, através de uma sentenga, é imposta uma pena. Nisso aparece a coatividade da lei, que revela seu cardter de exterioridade. No caso de cominagao de uma pena, a exigéncia de justiga se exprime no fato que cada um em suas relagdes com os outros seja tido como respon- savel pelos préprios atos e suporte as conseqtiéncias no reparar 0 dano causado. A essa responsabilidade obrigante corresponde o di- reito de pretender essa reparacio. A aplicacao da coatividade da lei esta voltada para que 0 sujeito tome consciéncia de que sua vontade subjetiva se deve objetivar na vontade geral e universal. A pena deve ter uma fungao educativa e no s6 punitiva e expiatoria, de modo que coopere na aquisicao de uma consciéncia social por parte do sujeito. Se a pena alcanga esse fim, a lei heterénoma é externa e o sujeito aceita voluntariamente aquilo que antes era para ele s6 coacdo, e se abre a obediéncia, aderindo aos valores sociais dos quais a lei € portadora. A coacdo nfo é uma nota essencial da experiéncia juridica, en- ' quanto o fim que se quer conseguir com a cominagio de uma pena pode ser alcangado também de outros modos. Também o perdao, judicial ou nao, ndo nega a exigéncia de justica, pois ndo nega nem o direito como realidade ontolégica nem a lei positiva como realidade intencional que o exprime, porque o perdio tem sentido enquanto pressupée a afirmacao da violacao de um direito. B. Elementos de filosofia do direito 1. Ordenamento juridico e tutela da dignidade do bomem 7. £ necessirio verificar qual é a relag4o entre ordem moral e ordenamento juridico como conjunto de instrugées € leis positivas. Digitalizado com CamScanner Tarefa do regulador é tornar possivel a convivéncia, tendo Presente ° pluralismo de opinides existentes em uma sociedade; todavia um ordenamento juridico nao pode ser somente efeito de um compro- misso para que essa convivéncia seja possivel sob 0 aspecto pratico, mas sobretudo expressio do fundamento moral do agir humano. _ Um ordenamento juridico € um sistema légico, coerente em si mesmo, que se baseia em alguns principios ou valores fundamentais. No entanto, é um sistema que evolui, por meio da atividade legislativa, sob o impulso da evolucao histérica da sociedade, que muda pro- gressivamente a consciéncia de si mesma. Todo ordenamento juridico, para ser assim considerado, baseia- se em uma compreensao preconceitual da necessidade de tutelar a dignidade do homem. A fungao prépria do direito positivo é a de proteger a dignidade da pessoa humana, estabelecendo uma igualda- de fundamental entre todos os membros de uma sociedade, de modo tal que se possa estabelecer entre eles aquele minimo de confianca que é 0 fundamento de todo tipo de relacionamento humano. Sobre essa base se estabelece a conexdo entre a autonomia da pessoa hu- mana, que é reconhecida e protegida pelo direito positivo, e a interdependéncia das diversas pessoas aut6nomas, enquanto a auto- nomia de cada pessoa se afirma em relagao a outras pessoas igual- mente auténomas. 2. Direitos subjetivos e direito positive ou objetivo 8. O direito positivo ou objetivo é 0 conjunto de normas positi- vas, que tutela os direitos subjetivos da pessoa humana, entre os quais © primeiro e fundamentalissimo é 0 direito 4 existéncia e a uma exis- téncia digna do homem. Em relac4o a isso a fun¢ao do direito positivo € representar objetivamente aquilo que € a pessoa humana, a qual sempre tem e conserva esse direito subjetivo fundamental, mesmo se nao tivesse a capacidade de atuar autonomamente. Assim o direito positivo protege o fraco diante do forte, enquanto a autoridade expri- me, através de uma lei ou de uma sentenga, um juizo concreto sobre a necessidade e ao mesmo tempo os limites de sua intervencdo para proteger o fraco esmagado pelo mais forte. No entanto, esse juizo da autoridade nao pode ser considerado s6 um juizo pragmitico, j4 que aquilo que impulsiona o legislador ou 0 juiz a intervir de certo modo, deve ser o valor da tutela da dignidade humana do fraco. O direito positivo nao pode ser somente produto de uma arte pritica ou técnica, mas deve ser portador dos valores materiais fundamentais. Digitalizado com CamScanner 22 © DIREITO NA IGREJA - MISTERIO DE COMUNHAO, . ° valor da dignidade da pessoa humana é compreendido em ambito Preconceitual, formulado em um conceito moral ou juridico, Portanto, expresso na lei. O direito positivo, entao, nao pode ade- quadamente expressar essa compreensao preconceitual da dignidade da pessoa humana e dos direitos subjetivos nela inerentes; todavia, enquanto meio de comunicag¢ao o menos ambiguo possivel, 0 direito Positivo tutela o minimo de confianga nas relagées sociais. E fun¢ao constante do legislador aperfeicoar sempre mais o ordenamento juri- dico, de modo que se tenha uma maior certeza e confianga nas rela- Ges sociais e Seja evitada o mais possivel a compreensao subjetiva e viciada do direito tanto na execu¢ao quanto nos juizos. 9. Além disso, o direito positivo é expressao da cultura de um gtupo social particular, mas ao mesmo tempo traz em si a nota da universalidade, enquanto nasce em geral justamente das exigéncias fundamentais do homem, e em particular da exigéncia universalissima de que cada homem seja respeitado em sua dignidade e portanto seja reconhecido e acolhido como “sécio”, O direito Positivo depende das condig6es culturais nas quais é formulado, mas ao mesmo tempo transcende a cultura da qual nasce. Uma vez que 0 direito positivo no consegue exprimir a com- preensio preconceitual da dignidade da pessoa humana e dos direi- tos a ela inerentes, ele é fragmentario e portanto nio pode prever todas as possibilidades e os contetdos das relacdes sociais que ela estabelece. Isso esta em estreita relagio com 0 fato de que o homem nao é plenamente socializavel, enquanto, transcendendo sempre to- das as suas relagdes piblicas, nele permanece intacta certa esfera privada: o direito positivo nao pode regulamentar todas as dimen- ses da pessoa humana, mas somente as que nela so socializaveis. A autoridade deve estar consciente, em sua atividade legislativa, execu- tiva e judiciaria, dessa fragmentariedade do direito. A consciéncia moral, entdo, exerce uma funcio positiva e critica a respeito do ordenamento juridico, enquanto o direito positivo ou objetivo — tendo seus fundamentos na compreensio preconceitual da dignidade do homem — baseia-se na compreensio moral do ho- mem, e portanto no direito como realidade ontolégica, e objetiva aquilo que do homem e de suas relagdes pode ser socializado. Embora seja verdade que o ordenamento juridico mais se inte- ressa pela observancia externa das normas, todavia, pelo préprio fato de que estas brotam da exigéncia moral interna dos membros da sociedade de que nas relagées seja respeitada a dignidade de cada homem, deve-se dizer que a pessoa humana em suas relages exter- Digitalizado com CamScanner 1, FUNDAMENTOS ANTROPOLOGICOS 23 nas € sempre interpelada na esfera interna de sua consciéncia. Se houver unicamente um assentimento exterior a lei, esta alcanga sé parcialmente sua finalidade, enquanto sua verdadeira e mais profun- da finalidade € que os valores morais sociais sejam reforgados na consciéncia moral dos membros de uma sociedade. Funcao do direi- to positivo € também a promogio dos valores morais sociais, 3. Natureza e pessoa — Direito natural e direito positivo 10. O homem é social por natureza, porque é pessoa; todavia seu ser social nao pode ser plenamente socializado no plano externo, € as normas juridicas nado o podem plenamente regulamentar. A di- mensio moral ¢ a dimensio juridica no s4o iguais: a primeira € mais extensa que a segunda, mas a segunda tem de basear-se na primeira. Visto que na base da experiéncia do direito esta o homem, o problema da natureza do direito abrange o problema da natureza do homem, e de modo particular o problema da relacdo entre a nature- za humana e a hist6ria. De fato, a natureza humana com suas estru- turas proprias, se por um lado transcende o espaco-temporalidade, por outro lado vive e € compreendida sempre no espaco e no tempo, isto é, na hist6ria. As estruturas intrinsecas da natureza humana tam- bém sao compreendidas historicamente e sdo expressas pelo direito positivo, que tutela as exigéncias fundamentais do homem enquanto homem, isto é, da pessoa humana. Conceitualmente, a natureza humana é uma abstrag4o, enquanto hist6rica e concretamente vive em cada pessoa humana, a qual esto inerentes os direitos subjetivos naturais. A pessoa humana transcende a pura factualidade, enquanto pelo préprio fato de que existe, tem e afirma o direito primeiro e fundamentalissimo a existéncia e a uma existéncia digna, 4 qual corresponde a obrigacéo moral fundamentalissima de reconhecimento e de respeito desse direito, e portanto sua protegao. A obrigacao moral brota do mesmo direito subjetivo natural, enquanto a pessoa humana, pelo préprio fato de existir, requer uma normatividade. Aqui esto as raizes do “juridi- co”, isto é, da juridicidade das relacdes intersubjetivas, como legiti- mas exigibilidades, Cada pessoa em particular vive dentro da comum natureza hu- mana, portanto a singularidade da pessoa humana existente, nao pode ser interpretada sendo a luz do elemento comum dado pela comum pertenga a natureza humana. Cada pessoa humana é a particulariza- ¢4o hist6rica da natureza humana, e 0 direito positivo é a expresso Digitalizado com CamScanner 24 (© DIREITO NA IGREJA - MISTERIO DE COMUNHAO da socializa¢io historicamente possivel da pessoa humana. Desse modo a pessoa humana é historicamente expressa por meio do direito po- sitivo, mas a0 mesmo tempo transcende esse direito, enquanto traz consigo a natureza nao plenamente socializ4vel, embora em si mes- ma plenamente social. Por isso, 0 direito positivo é a expressao pt- blica na sociedade do processo hist6rico de auto-compreensao da pessoa humana, que leva consigo a natureza, que por si mesma per- manece sempre normativa. O direito positivo é envolvido no dina- mismo desse processo histérico de auto-compreensdo do homem e da interpretac3o normativa da natureza humana, cuja concreta ex- Pressdo se tem em cada pessoa humana. A pessoa humana expressa-se na liberdade a respeito de sua propria auto-compreensdo, pelo que o ordenamento juridico é a ex- Pressdo do livre uso que o homem quer fazer de seus direitos. O ordenamento juridico é a expresso da verdade social 4 qual um grupo chega por meio de sua auto-compreensio hist6rica. No entan- to, visto que a pessoa humana, enquanto portadora da natureza hu- mana que transcende a particulariza¢ao histérica, transcende ela mesma © ordenamento juridico, que historicamente a expressa no plano so- cial, sempre que este Ultimo € sempre submetido ao julgamento criti- co da consciéncia moral do homem, a fim de que o ordenamento juridico reconhega e expresse a normatividade contida na propria natureza humana. Se isso no fosse admitido, cair-se-ia em uma for- i ma de totalitarismo juridico e nao seria mais possivel uma convivén- cia verdadeiramente humana, isto é, baseada na transcendéncia do homem com respeito a sua propria expressao histérica. 4. Abertura ao transcendente 11. Préprio do direito positivo é a objetivagdo na esfera das rela- ges sociais da auto-compreensio subjetiva, que na esfera moral a ' pessoa humana tem. Por isso a fungao da lei positiva é colocar exis- tencialmente a consciéncia pessoal em sua abertura universal e na objetividade, isto é, estabelecer as relacdes entre os homens em ter- mos de associabilidade, para que os direitos naturais fundamentais de cada um, sem discriminagées, sejam reconhecidos e protegidos. O conceito de lei leva necessariamente 4 autoridade que a for- mula, a qual seja capaz de fazer nao s6 que a lei seja objetiva em si mesma, mas que a consciéncia subjetiva tenha também uma forca objetivante. A propria estrutura da consciéncia, que atua na experién- : cia juridica, nos conduz para a Gnica autoridade capaz de obrigar de Digitalizado com CamScanner I. FUNDAMENTOS ANTROPOLOGICOs SS dentro a consciéncia a manter-se aberta a acolhida dos outros no respeito de seus direitos fundamentais, na superacdo de seu subjetivismo pratico. Essa autoridade ndo pode ser outra sendo o proprio autor da estrutura da consciéncia do homem, isto é, o Deus Criador e Salvador, que no plano ontoldégico tornou irmaos todos os homens e no plano do dever moral, que se realiza historicamente no Ambito juridico, tornou possivel a realizagdo disso no reconhecimen- to de cada homem em sua intrinseca dignidade. No problema do direito o homem é colocado diante da alterna- tiva entre a imanéncia e a Transcendéncia: a voz da consciéncia é 0 interiorizar-se do Transcendente na imanéncia. A subsisténcia de um dever que obrigue e transcenda o homem em sua factualidade é a primeira condi¢ao para uma existéncia digna do homem, que de ou- tro modo seria exposto ao arbitrio e 4 prepoténcia do mais forte. De fato a correlagio do dever vinculante na consciéncia é a pessoa res- ponsavel: enquanto a coagdo faz do homem um mero objeto do po- der, a obrigac4o transcendente torna o homem responsavel de dar uma ordem sempre mais sensata 4 sua existéncia. Como conclusio de todas as consideragées até aqui feitas, deve- mos dizer que a investigacao fenomenolégica e a investigacao filos6- fica se manifestam insuficientes para explicar a realidade juridica, como experiéncia humana, e nos conduzem a uma mais profunda investigacdo teolégica sobre a natureza humana, a fonte dos direitos humanos fundamentais, e a normatividade da natureza humana na atuacao historica. De fato nos encontramos diante de um dos proble- mas fundamentais da teologia, o problema da relagao entre natureza € graca, enquanto se faz a pergunta se a experiéncia juridica faz parte da ordem da natureza ou da graca; se portanto deva ser compreendi- da na economia da salvacdo ou ndo; qual, portanto, é a relacdo que ocorre entre a justica divina e a justica humana, entre o direito divino € 0 direito positivo humano. II. FUNDAMENTOS DE ANTROPOLOGIA TEOLOGICA A. Perspectivas Biblicas 1. Dignidade do homem e seus direitos fundamentais 12. Na Escritura o homem € definido em relacdo a Deus e nao em relagao a realidade criada: € criado a imagem e semelhanca de Digitalizado com CamScanner 26 O DIREITO NA IGREJA - MISTERIO DE COMUNHAO, Deus (Gn 1,26). Essa é a primeira e fundamental afirmacao da digni- dade do homem. Essa relacdo com Deus define a relac4o do ho- mem com a realidade criada (Gn 1,28; 2,15) e portanto com seus semelhantes (Gn 1,26b.27; 2,18-23), A comunhao que o homem deve estabelecer com seus semelhantes €ncontra sua razao Ultima e a defi- nicao de suas estruturas fundamentais no fato que na dimensao de relacdo com 0 outro é imagem e semelhanca de Deus. Visto que o homem é imagem de Deus, é pessoa, uma criatura racional e livre, como Deus, capaz de conhecé-lo e améa-lo, de ser, portanto, pelo Proprio fato de que é Pessoa, em relagdo com 0 outro e de realizar-se mediante o dom de si. Por isso o homem é a tinica criatura que Deus quis, por si mesma (GS 24c).3Dai vem a primeira lei que Deus deu ao homem, contida na proibigo de comer da arvore do conhecimento do bem e do mal, isto é, que se pode realizar plenamente s6 se aceita 0 fato de que sua existéncia é definida em relacao a Deus € se aceita as estruturas que Deus escreveu em sua natureza ao crid-lo a sua imagem e semelhanga. Na propria dignidade do homem encontra-se seu limite. E dessa dignidade do homem que se origina a sacralidade de cada vida humana, ou seja, 0 direito primario e fundamentalissimo de cada homem a existéncia, em todo o seu absoluto, que ninguém, sem exce¢ao, pode ofender, porque brota imediatamente de Deus e de seu projeto sobre o homem. A ofensa a esse direito € 0 primeiro 1 efeito do pecado (Gn 4,7). Precisamente na condenacio do pecado, Deus estabelece a lei segundo a qual ninguém pode lesar esse direito (Gn 9,3-6), nem mesmo por culpa grave (Gn 4,14-15). Deus, estabe- lecendo a dignidade do homem, determina também a primdria estru- tura da convivéncia humana: sem o respeito desse direito fundamentalissimo, ela se torna impossivel. Aqui se encontra a raiz de todos os direitos fundamentais da pessoa humana e de todas as obrigagdes correspondentes que pode- rao plenamente ser determinadas e atuadas na nova humanidade redimida em Cristo, que forma o novo povo de Deus. 13. Cristo exalta em modo pleno a dignidade de cada homem, até o menor deles, como centro da criagdo, amado sobre todas as coisas pelo Pai (Mt 18,10-14; 6,25-30; 10,29-31); mas ao mesmo tempo vé o homem em sua condi¢4o de pecador, de mau, de morto, de fraco e de doente, de escravizado pela ganéincia (Le 15,11-32; 13,1-5; Mt 7,9-11; 1 3 Jodo Paulo I, Carta ap. Mulieris dignitatem (= MD), 15 ago. 1988, n. 7, in AAS80 (1988) 1653-1729. Digitalizado com CamScanner I, FUNDAMENTOS ANTROPOLOGICOS 27 8,21-22; 26,41; 6,24.25-34; 18,23-34; 20,1-16). Devido 4 condicao do homem, somente Deus o pode restaurar na comunhio com ele e com seus semelhantes; portanto, Jesus restitui ao homem sua originaria ima- gem, enquanto 0 advento do Reino de Deus comporta a plena realiza- ¢40 do homem, isto é, a plena e radical tealizacdo das faculdades humanas, segundo 0 projeto originario do Criador (Mc 5,1-17). Com o pecado o homem destruiu as estruturas da convivén- cia humana imanente a sua natureza e portanto torna-se incapaz de atuar o projeto de Deus e entrega-se a si mesmo 4 destruicao (Gn 3,6-7.16-19; 11,1-9), mas nele permanece a capacidade de re- ceber a restauracdo da parte de Deus, de sua natureza e da comu- nhio com Deus e com os homens. A Antiga Alianga e a Lei mosaica, a redengao de Cristo, a Nova Alianga e a Lei do Espirito, inserem- se nessa capacidade do homem. A ado salutar de Deus restitui o homem a si mesmo a partir de dentro e portanto podemos dizer que o direito humano positivo € uma manifestacdo dessa reinte- gracao do homem e da vit6ria sobre 0 pecado, porque faz com que seja superada a desconfianca nas relagdes entre os homens, seja vencida a divisdo e sejam atuadas as possibilidades de convi- véncia, sobre a base do respeito da dignidade de cada homem e de seus direitos inalienaveis. 2. Justiga e direito 14. No Antigo Testamento ndo encontramos uma nogio de direi- to, mas sim a nocao de justiga, que nao é principalmente uma nogio. judicial ou forense, porque em sua esséncia indica uma relag3o do homem com Deus (Ex 20; Lv 19; Dt 5). A justica (‘sedeq/sedaqa”), enquanto indica as agdes salvadoras de Javé, € 0 espago divino no qual o homem é€ colocado por graga de Deus. A justica humana (‘m'spat”) nao se pode separar da justica divina: por graga, enquanto a justica divina esta unida a misericrdia (SI 33,5; 36,11; 40,11; 143,11), o homem é colocado no espago da justia de Deus, é salvo, e pode agir segundo a justica, porque foi feito participante da justiga e da misericOrdia de Deus (Pr 20,28; Is 16,5). Visto que na justiga humana se encarna a justica divina (Dt 1,16-17), 0 direito humano depende estreitamente do direito divino: se o homem nao recebesse a justica de Deus — que é justificacdo, graca, miseric6rdia, caridade —, nao poderia ser justo, seja no sentido de justificado, seja no sentido da- quele que realiza agdes justas nas relagdes com os outros, faz leis justas e da juizos justos. Digitalizado com CamScanner A revelagao biblica leva experiéncia humana do direito. na associabilidade que est homem. Ela s indicam o m concreto, afi 4 uma compreensdo mais profunda da . Como vimos, essa experiéncia se baseia Tuturalmente faz parte da natureza do € expressa seja na formulagao de leis positivas, que iodo no qual essa associabilidade deve realizar-se em irmando os direitos que devem ser respeitados e os deve- Tes que devem ser atuados, seja nos julgamentos que sio emitidos quando a relagaio de associabilidade nao se estabelece espontanea- mente, porque nao sido respeitados os direitos em questéo com ou sem a violagao de uma lei. Segundo a Escritura o homem pode co- nhecer a vontade de Deus, que se manifesta por meio da justica, hic et nunc, atuando-se nas leis ou nos juizos humanos, somente gracas a agdo de Deus. A justica biblica, embora se diferencie da nogao de justica elaborada pela filosofia grega e recebida pela jurisprudéncia tomana (“suum cuique tribuere”), todavia nao a exclui. De fato, em- bora a Escritura, em seu referir-se constante a vontade transcendente € onipotente de Deus — no qual a justiga se une estreitamente com a sabedoria, a benignidade e a misericérdia — dé a justica uma dimen- sdo metafisica diferente, todavia nao exclui que a atuacdo histérica da justica de Deus ocorra segundo a regra do “suum cuique tribuere”, a fim de que cada um seja acolhido como “sécio”, ou melhor, como proximo de todos os outros (Ex 23,9). Fonte da dignidade da pessoa humana e de seus direitos, ja vi mos, € Deus criador e salvador. A Aliana, enquanto ato de graca, restaura no homem a imagem de Deus € 0 reintegra em seus direitos primordiais: a lei dada por Deus é a expressao, na esfera da vida social e juridica, da relag4o pessoal de comunhdo entre Deus e o Povo e entre os membros desse povo. Essa relacdo € compreendida dentro do ambito da justia de Deus comunicada aos homens (Ex 19,3-8; 24,1-12; Dt 5, 1-21; 7,6-11). 15. Cristo na nova e eterna Alianga realiza toda justica divina (1Cor 1,30) e coloca o fundamento angular de toda justica humana: quem nele cré é feito justo e pode realizar obras de justica, porque vive na caridade de Deus (Jo 3,18-21; 5,19-30; 1Jo 2,29; 2Cor 6,14- 18; 7,1-2; G1 5,13-15; Ef 2,8-9.19). Na morte e ressurreicao de Cristo Deus restitui ao homem aquilo que o homem perdeu com 0 peca- do, a relacio de comunhio com Deus e com seus semelhantes. Ao mesmo tempo o homem é reintegrado plenamente em sua dignida- de de filho de Deus e em seus originarios e fundamentais direitos, sem distingdo de sexo, raga, condi¢do juridica e social (Le 15,10-24; Gl 3,26-29; Ef 2,11-22; 1Cor 12,12-13; Rm 8,14-17.28-30; 1Jo 3,1-2). Digitalizado com CamScanner na nao est4 mais sob a escravidao do peca- do, nem da estreita justi¢a humana distributiva ou igualitaria, nem sob acontecimentos histéricos, nem sob algum tipo de tirania. Para que o direito positivo humano seja um verdadeiro direito, deve reconhecer a dignidade do homem de ser filho de Deus, com todos os direitos que dai derivam, e definir os deveres correspondentes a serem cumpridos, Um ordenamento juridico que nao reconhecesse isso estaria baseado sobre um ndo-direito, instrumento de tirania. O fundamento do fendmeno do direito, a associabilidade do homem, que jé era iluminada pela revelagdo do Antigo Testamento, alcanca © maximo da compreenso nessas raizes antropologicas mais pro- fundas, que nos sio dadas pela revelagao da obra redentora de Cristo e pela justica por ele realizada e comunicada pelo Espirito Aqueles que nele créem. Por isso a pessoa huma 16. A justic¢a do discipulo de Cristo que deseja entrar no Reino dos céus deve superar a dos escribas e fariseus (Mt 5,20). A auto- compreensio do discipulo deve estar de agora em diante em rela- ao a pessoa de Jesus que realiza toda a justica, isto é, toda vontade do Pai expressa na Alianca (Mt 3,15). A justia instaurada por Cristo, mesmo se em continuidade com a da antiga Alianca, € nova porque atua plenamente o estar com os homens da parte de Deus, e, en- quanto tal, € 0 fundamento de toda possibilidade de realizacao do estar com Deus e com seus irmaos por parte do homem (Mt 1,23; 18,20; 28,20). E essa nova justiga que torna possivel a realizaco plena da verdadeira justica por parte do homem, isto é, de seu colocar-se em uma relagio de comunhio e de amor com Deus e com os irmdos. A exigéncia de radicalidade intrinseca para a nova justiga € reve- lada por Jesus no serm&o da montanha. A justiga evangélica nao exige somente 0 respeito exterior da lei nas relagGes inter-subjetivas, mas algo mais; atitudes interiores positivas de caridade; a superagao da conflitualidade publica na base de um acordo fraterno; a exclusio de qualquer tipo de violéncia ou vinganga, porque no reivindicar 0 proprio direito ofendido deve ser procurada a recuperacao do malva- do e do injusto para a justiga e para o bem por meio da caridade; o exercicio da perfeigaio da caridade no amor aos inimigos (Mt 5,21- 24,25-26.38-42.43-47). Dessa forma a justica evangélica se separa do conceito de justica puramente legal que, segundo os juristas classi- cos, discerne, divide, mas sobretudo é aquela virtude que, plenamen- te praticada, identifica-se com a caridade e edifica a comunidade daqueles que créem, que se reconhecem irmaos enquanto filhos do Digitalizado com CamScanner 30 © DIREITO NA IGREJA - MISTERIO DE COMUNHAO unic it isciy a con, Bae discipulos Serdo perseguidos por causa dessa justica, justin a fa Porque ele € a fonte e a imagem originaria da = as bomen es eeceus devem realizar; mas, justamente por Ps ‘seus (Mt 51 ae ‘0S, porque deles sera ja nesta terra o Reino } | A Justica evangélica se realiza somente se os outros, sem discri- minagao alguma, sido reconhecidos como irmaos, como membros de uma mesma comunidade, da qual Deus é 0 Senhor. Dessa forma a Teivindicacao do proprio direito nado pode estender-se até o tompi- mento da comunhio com os Outros, porque a justica evangélica leva a Superacao da contraposicao dos irmaos. Pelo fato de a nova comu- nidade fundada Por Cristo ser assembléia de pessoas que créem, a reivindicagao dos varios direitos realiza a justiga evangélica somente na medida em que se esteja consciente de que o dom gratuito dado por Deus ao outro é um dom que enriquece também a si mesmo. A justica evangélica, como manifestagao da justica-caridade salvifica de Deus, deve unir em uma comunidade, cuja regra fundamental é a da solidariedade e da comunhio. De fato, em nome da justica legal distributiva, pode ser cometido 0 maximo de injustica (‘sumum ius summa iniuria’), enquanto pode ser violada essa regra fundamental, com © perigo da destruigao da propria comunidade (Mt 20,1-16; Le 18,9-14; 7,36-50). S6 na atuagao da justiga evangélica desaparece toda oposic¢ao entre justica divina e justica humana, enquanto somente assim se tem a instauracao do Reino de Deus anunciado por Cristo e a edificagao da nova comunidade dos discipulos, a Igreja, que tem em sia semen- te daquele Reino anunciado, na medida em que alimenta e atua a solidariedade, a sociabilidade e a comunhio entre os que créem no nico Cristo. Por isso podemos dizer que a caridade é forma da justi- ¢a, e deve ser o elemento fundamental, constitutivo da ordem juri ca que regula a vida da comunidade dos discipulos de Cristo. A justica evangélica nao nega a experiéncia e a sabedoria da justi- ) ¢a humana, mas a completa, superando-a, Assim 0 conceito de justica nao € univoco, mas analégico. A justiga enquanto tal é somente de Deus e foi revelada plenamente por Jesus Cristo: segundo esse modelo divino é atuada pelos homens somente quando é participagio interna imagem externa daquela.’ Visto que na Igreja o Reino de Deus ja esta “Paulo VI, Aloc. a Rota R., 25 jan, 1966, in AAS 58 (1966) 152-153; Aloc. 4 Rota R, 28 jan, 1972, in AAS 64 (1972) 204-205; Aloc. 4 Rota R,, 8 fev. 1973, in AAS 65 (1973) 99-100; 101; Aloc. a Rota R,, v. 1977, in AAS 69 (1977) 148-149; 150-151. 0 aoe coco Int. Dir. Can, 19 fev. 1977, in AAS 69 (1977) 211; Joto Paulo I, Aloc. 3 Rota ’ R,, 17 fev. 1979, in AAS71 (1979) 423; 426, Aloc. a0 VII Curso de at. can, 13 dez. 1979, Ibid 1529-1531. Digitalizado com CamScanner I. FUNDAMENTOS ANTROPOLOGICOS 331 presente misteriosamente (ZG 3), a ordem da justiga atuada nela cons- titui um verdadeiro direito, estabelecido pela vontade de Deus, revela- do por Cristo e historicamente atuado pela agao do Espirito Santo. Ele pertence a histria, enquanto vive e se envolve na dimensao histérica, portanto suas instituig¢des devem ser compreendidas dentro dos limi- tes hist6ricos, mas ao mesmo tempo est4 ordenado 4 instauragdo da- quela ordem de justica definitiva, daquele direito, que se tera quando, no fim dos tempos, sera revelado e instaurado em plenitude o Reino de Deus (ZG'5). No fim dos tempos a atual ordem de justica, a atuacao historica do direito, na medida em que foi uma historicizagdo do direi- to divino, sera reconhecida: a ordem atual de justiga esta voltada para aquela ordem definitiva e eterna (Mt 7,2; 5,6; Rm 1,12-16). B. Sintese Teolégica 1. Natureza e pessoa 17. Ja dissemos que do ponto de vista teol6gico um dos proble- mas fundamentais ao qual nos conduz uma reflexdo sobre a natureza do direito é o da relacao entre natureza e graca, ao qual est estreita- mente ligado o da relacdo entre natureza e pessoa. Natureza é a realidade na qual o homem se encontra pelo fato mesmo de existir. Ela por um lado traz impressa a imagem de Deus, e, portanto, em poténcia a abertura para Deus e para os outros, mas por outro lado traz em si também a concupiscéncia que, como ten- déncia para o pecado, é possibilidade de nao atuagdo da imagem de Deus. A natureza do homem, mesmo se tocada pelo pecado, nao esta totalmente corrompida, e portanto continua a levar em si a imagem e semelhanga de Deus na potencialidade de sua realizagao. Essa ima- gem pode atuar-se somente por obra da graca de Deus que suscita no homem sua resposta pessoal de fé. Na resposta de fé, sob o im- pulso da graca, o homem instaura uma relagéo de comunhdo com Deus e com seus semelhantes, atua as potencialidades préprias de sua natureza e portanto em suas mesmas escolhas hist6ricas se reali- za como pessoa: a pessoa € a particularizagdo hist6rica da natureza. O homem é um ser social justamente porque é criado a imagem e semelhanga de Deus; por isso é constitutiva de sua propria estrutu- ra natural a associabilidade, isto é, o entrar em relagdo com os outros, O maximo de atuagdo da associabilidade por parte do ho- mem se tem no estabelecer uma relagdo de comunhiao com Deus e Digitalizado com CamScanner 32 © DIREITO NA IGREJA - MISTERIO DE COMUNHAO. com : nis “ 10s semelhantes: nisso o homem se exprime como pessoa, atuan- ‘© historicamente sua natureza A atuagio hist6: rica de sua natureza por parte do homem éuma tarefa permanente: als = te: a imagem de Deus inscrita em sua natureza sera Plenamente realizada somente na escatologia enquanto nem todas as suas dimensées podem ser explicadas no tempo presente. O homem sera plenamente pessoa na completa atuagdo de sua natureza, so- mente na visdo beatifica, como totalidade de comunhdao com Deus e com todos os salvos em Cristo. 2. Lei natural — Direito divino — Direito positivo 18. A lei natural, escrita no coragdo do homem (Rm 2,15), esta contida na natureza do homem e mesmo se por este pode ser conhe- cida pela razdo, enquanto participacao da lei eterna divina, sem a graga nao pode ser seguida.° A lei natural, enquanto inscrita na natu- reza, transcende a historia, mas ao mesmo tempo é historicamente conhecida e atuada pelo homem. O ato pessoal de fé, sob o impulso da graca, conduz 4 decisdo que, seguindo a lei natural em um deter- minado comportamento, cumpre a natureza. A lei natural € 0 direito natural, que é parte dela, expressam, como realidades ontol6gicas, a dignidade da pessoa humana no de- terminar os direitos e deveres naturais. Na base da auto-compreensao que o homem tem, s4o historicizados nas leis positivas e no direito positivo, como realidades intencionais, que exprimem assim a von- tade de Deus de que o homem realize sua imagem, na maxima atua- ¢4o possivel de sua associabilidade, e assim seja sempre mais pessoa. Por isso um ordenamento juridico é justo se esta de acordo com o direito divino, seja natural, seja revelado, que é historicamente com- preendido e atuado pelo homem. corp, ad 3; q. 100, a. 3, ad L ) Digitalizado com CamScanner Capitulo II FUNDAMENTOS ECLESIOLOGICOS I. A IGREJA COMO COMUNHAO A. Imagem da Igreja e direito 19. Em varias ocasides Paulo VI insistia sobre 0 fato de que a natureza do direito canénico somente pode ser adequadamente defi- nida na investigacdo do mistério da Igreja.! Cada €poca historica projetou uma imagem de Igreja para expri- mir sua realidade misteriosa. Portanto, por um lado, de forma mais profunda, uma imagem exprime a consciéncia que, em um momento historico, a Igreja tem de si mesma e que como conseqiiéncia mostra aquilo que ela é e deve ser em sua esséncia; Por outro lado, exprime a figura histérica, a forma concreta, que a Igreja oferece de modo externamente perceptivel. © problema da relacao entre a esséncia da Igreja, como realida- de dogmitica, e sua forma histérica, como tealidade contingente, é de fundamental importancia para 0 estudo do direito eclesial, en- quanto com ele est4 relacionado o problema da relacdo entre o direi- to divino, 0 juridico dogmatico como realidade ontolégica eo direito eclesidstico positivo, como realidade intencional. A esséncia da Igreja se atua sempre em uma forma’ histérica, por isso ndo se pode nunca separar a esséncia da forma e vice-versa. Nao obstante tudo o que ha de relativo na forma histérica, ela nao deve ser considerada irrelevante em relac3o ao mistério da Igreja, se nao se quer correr 0 risco de cair na visio de uma Igreja irreal. No entan- to, esséncia e forma nao se podem identificar, e a distingao, que nao é real, mas de razio, deve ser feita; de outra forma, nao se poderia ter algum critério de juizo sobre as formas historicas que a Igreja assume. Além disso, deve-se ter presente que nao existe uma forma histérica que espelhe perfeita e exaustivamente a esséncia da Igreja. O direito \ divino, 0 juridico dogmitico, pertence a esséncia da Igreja, que nos é CA e ISTA - BIBLIOT 1 CE Aloc. a0 I Congr. Int. Dit. Can, 20 jan, 1970, in AAS62, (1970) 108-108; Aloc. a Rota R, 8 fev, 1973, in AAS 65 (1973) 96-98; 102-103; Aloc. ao II Congr. Int. Dit. Can., 19 set. 1973, in Comm. 5 (1973) 123-124, Digitalizado com CamScanner 34 O DIREITO NA IGREJA - MISTERIO DE COMUNHAO dada pela Revelacio, e ex; POsitivo eclesiastico, ao ci tOrica que a Igreja assum« s€ncia d: prime a vontade de seu Fundador; 0 direito ‘ontario, pertence a forma institucional his- e. Visto que ndo podemos considerar a es- la Igreja a nao ser em sua forma institucional historica concre- tae 40 mesmo tempo entender esta ultima a partir e em fungdo da Primeira, assim também n&o podemos considerar 0 direito divino a nao ser em sua expressdo, ainda que fragmentaria e limitada, no direito eclesiastico, e este a partir e em fungao do primeiro. Sinteticamente podemos dar uma primeira descricao da Igreja ©m sua ess€ncia: 0 novo Povo de Deus, constituido por obra do Espiri- to Santo, pela comunbdo entre todos os batizados, hierarquicamente unidos entre si em diversas Categorias, em virtude da variedade dos carismas e dos ministérios, na mesma S6, esperanca e caridade, nos sacramentos e no regime eclesidstico (cc. 204; 205; 208). B. A comunhio no Novo Testamento 20. O termo “koinonia” e os outros termos que tém a mesma raiz, no Novo Testamento assumem duas concep¢6es, uma cristolégica € outra eclesiol6gica. A comunhio com 0 Pai é mediada pela comunhio com o Filho, estabelecida na participagdo em seu Corpo e Sangue como também em seus sofrimentos (1Cor 1,9; 10,16; Fl 3,10: 1Pd 4,13). Essa comu- nh4o com o Pai € o Filho (IJo 1,3) € participagao da gloria divina (Pd 5,1), da natureza divina (2Pd 1,4), do Evangelho (1Cor 9,23). Apoiado nessa comunhao com o Pai e com 0 Filho, o Espirito opera a comunhio espiritual entre os que créem em virtude da ade- so ao ensinamento origindrio, 4 tradi¢ao apost6lica (2Cor 13,13; Fl 2,1; Yo 1,385; At 2,42). Dai é gerada a solidariedade crista (Rm 12,13; 15,16; 2Cor 1,7; 8,4; 9,13; Hb 10,33; 13,16), a colaborac4o concreta no apostolado, na evangelizacao e em outros servicos (Gl 2,9; Fm 6; Gl 6,6; 2Cor 8,23; 9,13; Fl 1,5.7; 4,14 ss; Ap 1,9), a ruptura com a incredu- lidade e com a iniqitidade, e portanto, com os pecadores (2Jo 7-11; 2Cor 6,14; 1Cor 5; Ef 5,11; 1Tm 5,22; Ap 18,4). A comunhio visivel eclesial é a manifestago da comunhio com 0 Pai e com 0 Filho Jesus Cristo (1Jo 1,3-7), enquanto é a comu- nh3o com Deus que funda a comunhio eclesial: onde a comunhio eclesial falha, afastando-se da doutrina transmitida pelos Apéstolos, ou porque o comportamento moral & contririo a caridade € aos cos- tumes evangélicos, quer dizer que nao existe mais nem sequer a Digitalizado com CamScanner Il, FUNDAMENTOS ECLESIOLOGICOS 35 comunhao com Deus. Entéo a dimensdo visivel e contritamente operativa da comunhio eclesial, nos escritos do Novo Testamento, aparece de importancia basica. Se é verdade que nao se pode dizer que dela emerge um centro de comunhao institucionalizado, no sen- tido atual, que garanta o vinculo de comunhao com Deus ou com os outros membros da comunidade, todavia nao se pode negar o papel que desempenha a Igreja de Jerusalém no conflito de Antioquia, com o decreto dado pela assembléia dos Apéstolos e dos anciaos (At 15,1- 15). A preservacdo da mesma comunhio requer uma distingao de papéis, uma diferenciacdo entre os sujeitos na relagao, que, entao, nao se faz em prejuizo da uniao. C. Comunhio e Tradiga0 Apostélica 1. A nogao de Tradigao 21. A realidade da comunhio no Novo Testamento esta em es- treita relagdo com o ensinamento dos Apéstolos (At 2,42), isto €, com a Tradico Apostilica. O direito eclesial deve ter como fundamento a Sagrada Escritura e a Tradi¢io,? porque a Igreja tem clara consciéncia de ser verdadeiramente ela mesma somente se se encontrar em con- tinuidade com sua fundacdo e com as regras e a praxe, que fizeram com que ela seja aquilo que é, na fidelidade 4 vontade de seu Funda- dor. Com relagio a tradiciio judaica a vinda de Cristo traz uma novi- dade intrinseca na natureza mesma da tradigao. No judaismo, por tradi¢dio, se entendia a transmissdo sem interrup¢do da interpretacao da Torah e a autoridade do escriba se baseava na autoridade dos antigos; Cristo, ao invés, é a realizacio completa da Torah e ensina com autoridade propria (Mt 5,17; Rm 10,4; Mc 1,22). Portanto, en- quanto para o judaismo a tradigao consiste na repeticao do passado até sua restauracdo total, para a Igreja a Tradicao se baseia no fato de que, em virtude da ressurreicao de Cristo, lhe veio o Espirito, de modo que os fatos dos quais € constituida a Tradicao ao longo de sua histéria ndo s4o simplesmente a repetico formal da mesma coisa que sempre foi feita, mas uma verdadeira aco livre do Espirito pre- sente na Igreja. 2 Cf. Paulo Vi, Aloc. ao I Congr. Int. Dir. Can., 20 jan. 1970, in AAS 62 (1970) 108-109. Digitalizado com CamScanner 36 © DIREITO NA IGREJA - MISTERIO DE COMUNHAO lerej i aoe ea Tradigag ones eee se tem tanto em relago a Escritura eateiec | Seca ere lo puramente factual, mas sobretudo Satara ica ativa do Espirito, que faz com que a Igreja ‘oridade para confessar a verdadeira fé e Propor o compor- tamento a ser observado. Desse modo é edificada a Igreja como co- munhio dos que créem. Portanto, a Tradi¢ao expressa a fidelidade da Igreja ao Espirito, Porque € por meio da agao do Espirito que a palavra e a aco da Igreja se adequario sempre as necessidades dos tempos, assumindo novas formas, mas em continuidade ininterrupta com os tempos pas- sados. A esséncia da Igreja podera assim viver em formas historicas institucionais sempre renovadas. Enquanto a acao do Espirito se encarna em normas que regulam { a vida da comunhio eclesial na fidelidade ao Evangelho recebido de Cristo e que deve ser anunciado até sua segunda vinda, o direito eclesial, como afirmava Paulo VI, nao pode deixar de ser obra do Espirito, portanto, um direito espiritual.> 2. Comunhdo e Tradi¢ao Apostélica no Novo Testamento 22. No Novo Testamento referimo-nos 4 Tradigdo Apostélica, que é considerada como elemento constitutivo da fé crista (At 2,42), quando a unidade da Igreja se encontra em perigo. Portanto, a Tradi- do Apostélica é elemento de unidade da Igreja. Nos At 15,1-35 vemos que a decisio tomada em Jerusalém trata de um ele- ' mento fundamental para a vida da Igreja, enquanto se refere a identidade mesma da Igreja e as relacdes entre as Igrejas. A partir da formula usada no v. 28, vemos que as regras concretas do comportamento cristo, as normas positivas, proce- dem do Espirito Santo, que age através da Assembléia dos Apéstolos e dos anciios. Podemos dizer que 0 juridico dogmatico subjacente as normas positivas contidas i no decreto de Jerusalém, € a necessidade s6 do batismo para entrar a fazer parte da Igreja. Essa norma entra na Tradi¢lo Apostélica e € a norma fundamental da Igreja e do direito eclesial de todos os tempos, enquanto exprime a consciéncia da Igreja de ser 0 novo povo de Deus distinto do povo de Israel. £ essa norma fundamental que Paulo transmitiré nas cidades por onde passa, mesmo fazendo F circuncidar Timéteo por consideracao aos judeus (At 16,3-4). ‘Sao Paulo em suas cartas se refere a Cristo como fonte do Evangelho que prega e da doutrina que transmite; portanto, nilo considera que sua pregagio € 7 > GE. Paulo V1, Aloc. a Rota R., 8 fev. 1973, In AAS 65 (1973) 98; Aloc. a0 II Congr. Int. Dir. Can., i 19 set. 1973, in Comm. 5 (1973) 128-131. Digitalizado com CamScanner Il. FUNDAMENTOS ECLESIOLOGICOS x sua disciplina sejam diferentes da pregacto dos outros Apéstolos. Isso, Paulo o afirma seja nos confrontos com os judaizantes que queriam rejeitar sua autorida- de (GI 1,9.11-12; 2,9; F1 4,9), seja nos confrontos com os crist4os provenientes do paganismo e que eram tentados a retornar aos antigos costumes (1Cor 11,2.16.23, 15,3.10-11). Portanto, a Tradi¢ao € um corpo doutrinal que deve ser conservado (2Ts 2,15; 3,6). Substancialmente, Paulo quer fundar a unidade e a comunhao entre as Igrejas na base da coeréncia entre aquilo que ele transmitiu as Igrejas que fundou e a Tradigio dos Apéstolos (GI 2,9). Para So Jofio a comunhio com 0 Pai ¢ o Filho, por acdo do Espirito Santo, € © principio fundante da comunidade eclesial, da qual deriva 0 mandamento fundamental de Cristo de crer no nome do Filho de Deus encarnado e de amar- se mutuamente: quem observa esse mandamento permanece em Deus e Deus nele (Jo 14,15; Jo 3,23-24; 4,2.15-16; 2Jo 4), Isso constitui o codigo de santidade da comunidade de Joao, o qual, juntamente com o mandamento fundamental, aos sacramentos (1Jo 5,6-8) e a todas as normas concretas, que derivam do mandamento fundamental e do proprio cédigo de santidade, faz parte da Tradi- g4o Apostélica. Portanto, quem rejeita essa tradig4o nao vem de Deus, nao per- manece no Pai € no Filho, ¢ nao pode permanecer na comunhio eclesial (1Jo 4,2-6; 2Jo 10-11; Ap 18,4). O discernimento das inspiragdes, dos espiritos, € fidelidade a doutrina transmitida desde 0 inicio (1Jo 4,1-6), que elemento cons- tituinte da unidade e da santidade da comunidade eclesial. £ de particular interesse 0 fenémeno da pseudoepigrafia que encontra expres- so em Jo 21, e nas Cartas Pastorais, na 2* Carta de Pedro e na Carta de Judas. O contexto no qual surge o fenémeno é o do perigo das heresias, de falsas doutrinas que geram erros tanto na vida moral quanto no culto, contra os quais devem combater os responsiveis locais das comunidades (Mt 24,4-5; Mc 13,5-6; Le 21,8: At 20,29-31; Cl 2,4-5.8.16-23; 1Tm 1,3-7; 4,1-3. 6-7; 6, 3-4; 2Tm 3, 8.10.14- 15; 4,3-5; Yo 2,18-23; 4,1; 2Jo 7-11). Literariamente a pseudoepigrafia se liga a0 género dos testamentos da pseudonimia do Antigo Testament, que tinha a fina- lidade de instruir os leitores sobre o comportamento a observar para permanecer fiéis 2 wadigao. A pseudoepigrafia neotestamentéria € usada para salientar a autoridade de uma tradicao, que é atribuida a um Apéstolo, de modo que possa ser aplicada aos problemas do tempo no qual o livro escrito. Portanto, nao se trata de criar uma nova doutrina, mas de transmitir sempre a mesma doutrina de Cristo, que é garantida pelo fato da ligagdo com a pessoa dos Apéstolos e com as Igrejas que guardam sua doutrina. O fendmeno aparece no século Il, quando também os heréticos comegam a usar a pseudonimia. £ o mesmo perfodo no qual se fixa 0 c4non dos livros do Novo Testamento. Segundo as Cartas Pastorais o contetido da Tradigao Apostélica € constituido pelo depésito da f, dos preceitos disciplinares e morais, da organizagio das Igrejas nos ministérios do bispo-presbitero € do diécono (1Tm 3,1-12; 5,17-225 6,20; 27m 1,12.14; Tt 1,5-9; 2,1). A tarefa de ensinar do bispo-presbitero consiste ‘em receber 0 contetido da Tradi¢ao Apost6lica, interpreti-lo, aplicé-lo as condi- g6es da Igreja, e transmiti-lo a geragdo seguinte: a continuidade da tradi¢iio no se refere s6 a0 passado, mas também ao futuro. Assim a Tradi¢do Apostélica € 0 meio principal para a preservago da comunhio eclesial. Digitalizado com CamScanner ” 38 © DIREITO NA IGREJA - MISTERIO DE COMUNHKO A Carta de Pedro marca o ponto de convergéncia entre a Tradigao Apos- ‘olica a tradigao eclesiéstica. © contetido da primeira, A qual as Igrejas se devem referir, € a doutrina sobre a cristologia e a escatologia, as regras da vida moral contra os costumes pagios, a disciplina sobre as assembléias De modo geral, podemos dizer que segundo os escritos do novo Testamento a Tradi¢ao Apostélica exprime a transmissao ativa de um depésito doutrinal, de normas, de comportamentos praticos, de estruturas ministeriais, as quais aqueles que créem se devem referir como a algo autoritativo. 3. Comunhdo e Tradigao Apostolica nos Padres 23. Os Padres dos trés primeiros séculos em seus escritos se referem aos Apéstolos para provar a autenticidade da Tradi¢o que relatam. Segundo a Didaqué dos Doze Apéstolos (séc. 1) ha uma triplice forma de \ tradic6es: as das palavras de Jesus que se ligam estreitamente a tradicdo sin6ptica, as judaicas assumidas pela vida crista; as da tradicao viva que estabelece normas para resolver problemas concretos do tempo. Esses trés veios de tradicées, entre 0s quais emerge 0 terceiro, tém a fungo de regular a vida da comunidade eclesial a respeito da doutrina da fé, o comportamento moral, a administrago do t batismo e a celebragio eucaristica. Referindo-se a uma tradicao jé estabelecida, a Didaqué d4 normas sobre a instituigio e elei¢ao dos bispos e dos didconos, fazendo de ponte entre as comunidades judaico-cristas que tinham um colégio de presbiteros para a funcdo de guia da comunidade e as igrejas do século Il do tempo de Incio de Antioquia, onde encontramos o estdio definitivo dos trés ' ministérios de bispo, como chefe da Igreja local, do colégio dos presbiteros, que est4 junto ao bispo, e dos diéconos, como auxiliares do bispo. ‘Sao Clemente I papa (séc. 1) em sua carta a0s Corintios insiste na instituicao apost6lica dos bispos-presbiteros e dos didconos e afirma que com seu compor- tamento os corintios nao s6 colocaram em perigo a paz € a unidade da comuni- t dade, mas algo de essencial para a existéncia e para a vida da Igreja, por ser de instituigao apostélica, De fato os Apéstolos ao instituir os ministérios na comuni- dade realizaram a vontade de Cristo, que € normativa. Clemente atribui aos Apéstolos no somente a instituigdo do ministério do episcopado no lugar do ministério dos eparcas, mas também a instituig3o de modo perpétuo de sua transmissdo por sucesso. Assim a fungdo pastoral na Igreja, sua transmissio, sua perpetuidade, segundo o principio da sucessio, dependem diretamente das nor mas e das leis dadas pelos Apéstolos. A carta exprime a idéia de um ordenamento ou direito positivo que tem sua fonte na praxe seguida e estabelecida pelos Apéstolos: © direito positivo, portanto, regulando a Tradigio Apostélica, a con- serva e a transmite. Digitalizado com CamScanner Il, FUNDAMENTOS ECLESIOLOGICOS 39 Ainda que nao se possa dizer que 0 papa Clemente intervenha com uma autoridade juridicamente sancionada, todavia no podemos dizer que intervenha sem autoridade, enquanto estava consciente de agir legitimamente, sefa em ra- 240 da caridade, seja em razio de sua ligagio com os Apéstolos Pedro e Paulo, que deram seus testemunhos com o martirio em Roma. Além do mais, afirmando a identidade fundamental das estruturas de todas as Igrejas e os lagos de comunhio em um Gnico corpo, que é a Igreja, animada pelo tinico Espirito, a Carta de Clemente mostra que a Igreja € cat6lica néo por uma justaposi¢a0 ou por uma soma de Igrejas particulares, mas pela consciéncia da existéncia de uma comunhio de caridade na propria Tradigao recebida dos Apéstolos. A ligagéo com a Tradigdo faz com que cada Igreja esteja em continui- dade com os Apéstolos e que todas as Igrejas estejam em comunhao entre si. O Jago da caridade, da qual deriva a unidade de cada Igreja e das Igrejas entre si, nasce da fidelidade 4 mesma Tradicao Apostélica. Santo Inacio de Antioquia (séc. I-11) coloca em evidéncia a estreita ligagio entre Eucaristia, estrutura da Igreja particular, episcopado, Tradigo Apostélica e catolicidade da Igreja. A catolicidade nao deve ser entendida em sentido geogra- fico, mas no sentido da integridade da fé e da doutrina, na fidelidade 4 plena tradigdo. A verdadeira catolicidade consiste na unidade dos coragdes € dos ai ‘mos, enquanto unidade orgdnica enriquecida pela diversidade dos que créem. A Igreja local, de fato, estrutura-se em torno da celebracdo eucaristica presidida pelo bispo, circundado pelo colégio dos presbiteros e auxiliado pelos didconos. Onde, pois, esta o bispo, esti a Igreja catélica, porque esta Cristo que se torna presente na assembléia eucaristica. E isto que garante a unidade da Igreja local, enquanto a Igreja de Roma preside a multidao fraterna de todas as Igrejas locais. Por Santo Irineu (séc. 1D) a Igreja € definida como a comunhao espiritual que anuncia e transmite a Tradi¢Zo, que procede dos Apéstolos por sucessio ininterrupta dos bispos. A sucesso apost6lica dos bispos € constitutiva da mes- ma Igreja e exclui qualquer outro modo de autenticidade da Tradico Apostlica, enquanto a perpetuidade apostélica se tem s6 por sucessao. A Igreja de Roma € tomada como exemplar, pois que ela é apostélica de modo eminente, por sua grandeza e antigilidade, como também por ser fundada sobre dois Apéstolos. Roma, embora ndo seja a Igreja mae, € considerada por Irineu a mais excelsa das Igrejas apostélicas, por isso € necessério estar de acordo com ela, que manifesta a apostolicidade de toda a Igreja. Por essa razio a comunhao com a Igreja de Roma comporta a comunhdo com todas as outras Igrejas. Para Sao Justino (séc. 11) as memérias dos Apéstolos sfo a Tradi¢a0 Apost6- lica, que € a doutrina contida nos escritos do Neve Testamento € regula as instituiges da Igreja, especialmente o batismo e a Eucaristia, Se seas Temutiano se. TEI) a apostolicidade da Igreja, a Tradigdo, a orto- doxia e a ortopréxis ndo podem ser separadas, enquanto a Tradi¢o Apostélica contida no depésito das Igrejas apost6licas, deve inspirar a ortopréxis, portanto a disciplina positiva da Igreja. Santo Pipolto Gee ID sublinha que a ligagdo com os Apéstolos por meio da Tradigdo € condigio de autenticidade ¢ de seguranga seja dos ensinamentos, seja das instituigdes, quando a Igreja € perturbada por heresias ¢ cismas, O Digitalizado com CamScanner 40 © DIREITO NA IGREJA - MISTERIO DE COMUNHAO Contetido dessa Tradi¢ao Apost6lica € constituido pela estrutura da Igreja, com sua hierarquia, seus ministérios, suas instituigdes, sua liturgia, e as observancias exigidas dos cristdos. As prescrigdes normativas sio expressio de tudo isso, Portanto, do proprio mistério da Igreja. Os Padres desenvolvem os varios elementos referentes 4 Tradi- ¢40 Apostélica que j4 se encontram nos escritos do Novo Testamen- to, em relagdo 4 comunhio eclesial, especialmente a sucesso apos- tolica nos Bispos e a fun¢do da Igreja de Roma. 4. A praxe nos primeiros séculos 24. O modo pelo qual a Igreja viveu a realidade da comunhao na praxe de seus primeiros cinco séculos de vida (alguns elementos se encontrarao até o final do século VII) entra na tradi¢ao eclesias- tica, que embora ainda no se possa considerar normativa como a Escritura e a Tradi¢o Apostilica, todavia é igualmente de relevante importancia, porque nos fornece varios elementos de extremo inte- resse. De modo geral podemos dizer que o termo comunhao (“communio-koinonia; pax-eiréne; communicatio, societas, unitas- gape") indica o vinculo de unio entre os bispos e os fiéis, entre os bispos, e entre os fiéis, que é realizado e manifestado pela comunhio eucaristica, pela qual é significada também a propria Igreja, que se diz “communio sanctorum”. A Igreja local forma uma comunhio, ancorada na celebra¢ao eucaristica, entre todos os fiéis e seu bispo, que em certo sentido se identifica com sua Igreja. O termo comunhio exprime sempre a unidade eclesidstica, que € mais do que uma afinidade de pensamento ou um afeto de amiza- de, enquanto encontra seu pressuposto na fé comum. No entanto, a mesma fé comum ndo é suficiente para ter-se o vinculo da plena comunhio, e ao mesmo tempo se pode ter este mesmo com uma diversidade de opinides, como o demonstram as longas controvérsias sobre a data da Pascoa e o batismo dos heréticos. Ela € um vinculo institucional, que se manifesta através de varios aspectos da vida da Igreja, que tém todos uma relag&o direta com a Eucaristia, O sinal da unifo eclesidstica entre os bispos consiste na concelebra¢ao ou também no fazer celebrar um outro bispo diante da prépria presenga. Em Roma se tem também no envio do “fermentum aos orientais, ou também, até o século V, aos presbiteros das varias igrejas titulares. Digitalizado com CamScanner Em caso de cisma, um fiel é considerado membro daquela co- munidade onde recebe a Eucaristia, por isso os cristéos que saem em viagem, até 0 século VII, levam consigo a Eucaristia, para evitar recebé- la em uma comunidade com a qual nao estejam em comunhio. A partir do final do século II desenvolve-se a praxe das cartas de comunbdo, que talvez encontrem sua origem na Carta a Filémon (ainda hoje em circunstancias particulares sdo usadas). Quando um cristéo sai em viagem, recebe de seu bispo uma carta na qual este garante que ele esta em comunhio com seu bispo, de modo que seja admitido a celebragao eucaristica na Igreja 4 qual chega. A averigua- ¢4o de que o bispo que escreveu a carta, e portanto toda a Igreja que ele representa, esta na comunhio catélica, é feita com base em listas que varias Igrejas possuem e que sao continuamente atualizadas. Os proprios heréticos e cismaticos procuram para si uma carta de comu- nhio de qualquer Igreja principal, preferivelmente a de Roma, para serem aceitos nas outras Igrejas: o estar em comunhao com uma dessas Igrejas significa estar em comunhdo com toda a Igreja catélica. Outra praxe que nos revela como nestes séculos é entendida a comunhio € a praxe da excomunbdo que indica a recusa da comu- nhio, isto é, a ruptura das relagdes com alguém, sempre em referén- cia 4 celebracdo eucaristica. Se um fiel, leigo ou clérigo, comete um pecado grave, é exco- mungado pelo bispo, que nao o admite 4 Eucaristia até que nao tenha cumprido a peniténcia que lhe foi imposta. Os bispos rompem a comunhio entre eles, quando se suspeitam de heresia, e portanto nao concelebram mais juntos. No entanto, um bispo para poder excomungar validamente um outro bispo, deve estar em comunhio com toda a Igreja; do contrario, a excomunhao recai sobre ele. Por esta razéo os bispos procuram para si cartas de comunhio da maior ntimero possivel dos bispos, ou dos bispos das Igrejas principais, ou do bispo de Roma. O povo, se suspeita de heresia do bispo, se abstém de receber a Eucaristia de suas maos. © excomungado € considerado de fato fora da Igreja. Para S. Basilio (séc. IV) 0 grau maximo de ruptura da comunhio se da com a heresia; portanto, com o cisma, que acontece por negocios eclesias- ticos e sobre quest6es sobre as quais se pode alcangar facilmente um acordo; enfim, com a assim chamada “para-sinagoga”, que se tem quando sao feitas reunides de presbiteros ou bispos indisciplinados (corresponderia a hodierna “suspensio a divinis”) — os quais tendo feito peniténcia podem ser readmitidos no proprio grau — ou por leigos nao autorizados. eerie Digitalizado com CamScanner 42 © DIREITO NA IGREJA - MISTERIO DE COMUNHAO | De quanto foi exposto podemos dizer que a comunh4o desde os Primeiros séculos € uma instituicao sacramental juridica. £ uma institui¢do porque consiste em um conjunto de rela¢ées inter-subjeti- vas determinadas Por regras exatas de comportamento. Trata-se de uma instituigdo sacramental, enquanto essas rela¢Ges inter-subjetivas tém sua origem e sua obrigatoriedade nos sacramentos do batismo, da ordem sacra e da Eucaristia. Enfim € uma instituicdo sacramental juridica porque as normas que regulam essas relag6es inter-subjetivas sdo dadas e aplicadas pela autoridade e tém forga juridica. ' Outro ponto a ser destacado é que a prépria realidade da comu- nhao, na pritica, postula uma hierarquizacao dentro da Igreja. De fato para verificar se um bispo esté ou ndo em comunhao com a Igreja catélica, recorre-se a trés critérios: antes de tudo a comunhao com o maior nimero de bispos; depois com as Igrejas principais e mais antigas; enfim com a Igreja de Roma. Este tiltimo critério é 0 decisivo, enquanto o bispo de Roma nao deve demonstrar sua comu- nhdo com a Igreja cat6lica, sendo ele o centro dessa comunhao. A lista dos bispos em comunhio, que se encontra junto na Igreja de Roma, da a Ultima garantia. Ento vemos que a Igreja dos primeiros séculos no consta de uma multidao de bispos todos sob 0 mesmo plano, mas essa multidao é mantida unida pelo vinculo juridico-sa- cramental da comunhao, cujo centro é 0 bispo de Roma, ao qual é reconhecida uma verdadeira autoridade sobre outros bispos. i 5. A comunhdio no Vaticano II e no Codigo 25. O Concilio chega a ver a Igreja como comunhio sob o im- ‘ pulso de trés fatores: 0 movimento ecuménico, que encontrou forca apés a primeira guerra mundial; a exigéncia, sentida por mais partes, de uma menor centralizacao e por conseqiiéncia uma maior autono- mia das Igrejas particulares; a renovacio eclesiolégica da primeira metade do século XX, ocorrida tanto na Igreja cat6lica quanto na ortodoxa, ¢ também nas comunidades cristds separadas. Em LG 1 a Igreja é definida como um sacramento ou sinal e instrumento da intima unido com Deus e da unidade de todo o géne- 1 ro humano. Portanto a Igreja € o sacramento da comunhio dos ho- mens com o Deus uno e trino e dos homens entre si. Isto quer dizer que a Igreja significa e realiza essa comunhao. Quem por meio da Igreja entra em comunhido com Deus est4é em comunhio também com seus irmdos; todos aqueles que esto unidos a Deus esto tam- Digitalizado com CamScanner Il. FUNDAMENTOS ECLESIOLOGICOS 43 bém unidos entre si. Deus € a fonte da comunhio, a Igreja é seu instrumento, enquanto o Espirito que atualmente opera na e pela Igreja, realiza a comunhao dos homens com Deus e entre eles. Deste modo a Igreja é constituida em sua plenitude, segundo sua esséncia, justamente enquanto € constituida como comunhio, a imagem da comunhio entre as trés Pessoas divinas. Por isso, a Igreja se apresenta como um povo reunido na unida- de do Pai, do Filho e do Espirito Santo (ZG 4b), enquanto ela € obra das trés Pessoas divinas. O homem, por meio do batismo, em virtude da redengo realizada pelo Filho e pelo dom do Espirito Santo torna- se filho do Pai; e por meio da participagao no tinico pao eucaristico entra em comunhio com o Pai e com os outros fiéis em Cristo, os quais, todos juntos, formam nele um tnico Corpo, a Igreja (LG 2-3). O Espirito, pois, vivifica, santifica e conduz a Igreja, unificando-a na comunhio e no ministério, por meio dos diversos dons hier4rquicos e carismaticos (LG 4a). 26. A comunhio dos fiéis (“communio fidelium”), baseada no batismo, sob o impulso do Espirito Santo, tem uma relag4o direta com a Eucaristia, cuja participagao conduz 4 comunhao com Cristo e com a Trindade (UR 2b; 15a; AG 39a; LG 3; 7b; c. 897). E desta comu- nhio, em virtude da qual os fiéis so feitos participantes da natureza divina (UR 15a), que brota a comunhdo entre todos os membros da Igreja e a comunhio entre as Igrejas (“communio inter Ecclesias”. LG 7b; UR 7c; 14a; 15a; GS 38b). Aqui se encontra o fundamento constitutivo da comunhio de vida, de fé, de sacramentos e de carida- de entre os fiéis e entre as Igrejas (LG 9b; UR 14a). O Espirito Santo constitui essa comunhio espiritual, enquanto é principio do con- gregar-se (“congregatio fidelium”) e do unir-se dos fiéis no ensinamento dos Apéstolos (a Tradigao Apostdlica) e na comunhio, na fracio do pao e nas orages (LG 13a). A comunidade crista, pois, € constituida por diversos dons hierarquicos e carismaticos e por diversos ministérios, obra do Espirito Santo, pelo qual ha diferentes condig6es juridicas entre os membros da Igreja e pluralidade de rela- Ges juridicas (AG 4; LG 4a; 12b; 13c; GS 32d; cc. 204, § 1; 208). Essa comunhio espiritual, todavia, deve ser entendida como uma realidade organica, que requer uma forma juridica e, ao mesmo tempo, é animada pela caridade (cf. NEP 2; LG 8a). A comunhio eclesial se especifica assim na comunhio eclesiastica e na comunhio hierarquica. “ Cf. Congr. Dout. Fé, Carta Communionis notio (= CN), 28 maio 1992, n. 3-6, in AAS85 (1993) 838-850; £V'13/1774-1807. Digitalizado com CamScanner 44 Q DIREITO NA IGREJA - MISTERIO DE COMUNHAO _ 27. A comunhio eclesiastica (“communio ecclesiastica”), que evidentemente tem sempre Cristo como fonte e centro, vigora entre todos os batizados na Igreja catélica ou aqueles nela recebidos, que sao unidos com Cristo pelos vinculos da profissao de fé, dos sacra- mentos e do regime eclesiastico e da comunhio (LG 13; 14; 15; OE 4; 30; UR 3e; 4d; 17b; 18; GS 92c; cc. 96; 205; 204). Conseqiientemente, a comunhio eclesiastica vigora entre as Igrejas particulares e entre estas e Roma, e por si mesma é manifestada pela concelebragao eucaristica (UR 20; 4c; 15a; LG 13c; AG 22b; c. 897). Esta comunhao eclesiastica constitui a plena comunhio catélica (‘plenitudo communionis catholicae”, OE 4; 30; UR 3a; 4d; 13b; 17b; 18; 19a; GS 92c; CN 7-10). As Igrejas ortodoxas e as outras comunidades cristis separadas nao vivem nessa comunhio, embora estejam em graus diferentes em comunhao com a Igreja cat6lica, conforme o diferente grau de comunhio de vida, de fé, de sacramentos e de caridade, e as diferentes atuacdes da estrutura hierarquica fundamental da Igreja CUR 3a; 13b; LG 15; CN 17-18). De fato com a nogdo de comunhao esta em estreita relacao a de incorporacao a Igreja de cada um dos batizados, a qual se verifica segundo diversos graus. A comunhio catélica ou eclesiastica se realiza em trés niveis: universal, particular e local. Para que se possa falar de Igreja cat6lica deve haver os seguintes elementos essenciais: 1) o batismo que constitui fiéis e povo de Deus (ZG 10a; 11a; AG 6c; c. 204, § 1); 2) uma organica diferenciacio dos fiéis pelos diversos dons hierarquicos e carismaticos dados todos pelo mesmo espirito (LG 4a; 12b; 13c; AG 4; GS 32d; cc. 204, § 1, 208); 3) a aceitacio de todo o ordenamento da Igreja visivel e de todos os meios de salvac4o nela instituidos, entre os quais sobressaem a procla- macdo do Evangelho e a celebracao da Eucaristia (c. 897); 4) a unido com 0 Cristo na Igreja visivel, nos vinculos da profissao da fé, dos sacramentos, do governo eclesidstico e da comunhio; 5) o governo do Sumo Pontifice e dos bispos (LG 9a; 14b; OF 2; AG 6c; c. 204, § 2). Esses elementos essenciais nado mudam se considerarmos a Igre- ja em 4mbito universal, particular ou local, enquanto a universalida- de, a particularidade e a localidade devem ser consideradas com atri- butos do sujeito Igreja, que por outro lado nao existe em abstrato, mas sempre em uma especificacdo, ou universal, ou particular ou local. O sujeito Igreja, de fato, € Gnico ¢ sempre 0 mesmo em seus elementos essenciais, mas diferente naqueles acidentais, que se ex- primem através de atributos referidos ao sujeito. Os atributos “univer- Digitalizado com CamScanner = sal”, “particular”, “local” sao corretamente referidos a Igreja, se se encontram todos os elementos essenciais acima citados (CN 7). A Igreja pode ser considerada em relacao a varios elementos acidentais especificativos, mas sobretudo em rela¢do ao elemento pessoal e ao de governo, tendo presente que com o primeiro em geral é ligado aquele do territ6rio, que implica por sua vez o elemen- to da cultura. Nem no Concilio nem no Cédigo ha uma definigao da Igreja cat6lica universal enquanto tal, mas podemos certamente dizer que ela € a comunhio universal de todo o povo de Deus, que, sob a guia do Romano Pontifice e do Colégio dos Bispos, se estende por toda a terra (LG9; 13; 17; 2b; CD 10a; 23b; OT 2e; PO 11b; AG 26b; cc. 331, 333, 336). Portanto, em relacao as pessoas, Igreja universal indica a rela~ ¢Ao de um tinico sujeito, que é definido Igreja, enquanto une em si os elementos essenciais indicados acima, 4 universalidade, isto é, 4 tota- lidade dos fiéis dispersos por toda a terra. Neste sentido Igreja univer- sal e Igreja catélica se identificam. No entanto, quando se fala de Igreja catélica nao se entende somente a totalidade das pessoas e a universalidade do territério, isto é, todo o mundo, mas sobretudo a diversidade e a distingao das Igrejas, as ortodoxas, e as outras comu- nidades cristés separadas (LG 8b; UR 3a; 4c.d; 19a; OE 26). Esta especificacdo, porém, nao nega o outro sentido de universalidade que emerge da relagdo as pessoas e€ ao espaco, mas nao o afirma diretamente. De fato, a Igreja cat6lica se realizaria em sua universali- dade também no caso em que, por absurdo, fosse reduzida entre confins espaciais limitadissimos, enquanto também nessa pequenissima Igreja subsistiriam todos os elementos essenciais da Igreja de Cristo, una, santa, catdlica e apostolica, sacramento universal de salvacao (SC 26a; LG 8b; LG 1; 9b; 48b; AG 1a; 5a). Ao contrario, as comunida- des cristas e as Igrejas nao catdlicas, mesmo se estivessem dispersas por todo o mundo, nfo realizariam as notas da universalidade e da catolicidade, enquanto nelas nao subsiste em plenitude a Gnica Igreja de Cristo (ZG 8b; c. 204, § 2). ; Sempre sob o aspecto do elemento pessoal, Igreja particular indica a relagio do mesmo e nico sujeito, a Igreja, para um porcao da totalidade dos fiéis. Dando a definigéo de diocese, CD 11a (3b; c. 369) oferece a definicao de Igreja particular, que compreende direta- mente também 0 elemento do governo e indiretamente 0 de espaco. Trata-se, pois, da comunhio dos batizados governados pelo bispo com a coopera¢ao dos presbiteros. Essa comunhio, além disso, en- contra-se entre os confins de um particular territ6rio (c. 372). Digitalizado com CamScanner 8 EESEEIILIDE WIE COMUNHAO Em geral no Concilio e no Cédigo ha a identificagao da Igreja Particular com a diocese ou com Outros organismos a esta assimila- dos (CD 3b; 11a.b; 23e; 28a; 1G 23a.b; 27a; 45b; AG 6c.d; 19; 20a.g; SC 13b; c, 368), mas 0 Concili s i (0 por Igreja particular entende as vezes os Patriarcados, os arcebispados maiores e outros organismos a eles assimilados, que indicam a comunhao daquela porgio do Povo de Deus que, Permanecendo integro o primado do Sumo Pontifice, tem uma disciplina prépria, usos litargicos proprios, e um patriménio te- oldgico, espiritual e cultural proprio (LG 13; OE 2; 3; 4; 16; 17; 19; UR 14a). A variedade de todas estas Igrejas, na unidade que realizam, mostra a catolicidade da una e indivisa Igreja (LG 13c; 23d). As vezes 0 Concilio chama Igreja local o patriarcado e a diocese CUR 14a; LG 23d; 26a; AG 27a), no entanto, é de se notar que o Concilio usa a expressdo Igreja particular, quando fala da porcio do povo de Deus em rela¢io nao tanto ao territ6rio, mas sobretudo ao Tito, a tradicao tedlégica, espiritual, e cultural e ao governo, enquanto usa a expressdo.Igreja local quando se refere 4 mesma realidade de modo especifico ao territorio. Em conclusio, devemos dizer que uma porgio do povo de Deus € uma Igreja particular, quando é formada a imagem da Igreja univer- sal (LG 23a; AG 20a), isto €, quando nela encontram-se todos os elementos essenciais da natureza da Igreja, dos quais falamos no inicio, e além disso algum outro elemento acidental especifico, como 0 Tito, © territério, particulares 6rgios de governo. Desse modo nas Igrejas particulares e pelas Igrejas particulares existe a una e nica Igreja catélica universal, que é a comunhio entre todas as Igrejas LG 23a; CN7-9). O Vaticano II, para indicar a parte de povo de Deus que é guiada por um presbitero, usa varias express6es, como comunida- de local de fiéis (“congregatio localis fidelium”; LG 28b), comuni- dade de fiéis (“congregatio fidelium”; PO 5c; AG 15b.d), comuni- dade local (“communitas localis”; LG 28d, AA 30c), comunidade cristé (“communitas christiana”, PO 6d). Essa comunidade local é a comunhio eclesidstica dos fiéis presidida ‘por um presbitero, que torna presente nela o bispo, especialmente na celebracio eucaristica, que € 0 centro da vida da assembléia crista (SC 42a; LG 28b; PO 5c; 6d; AA 30c). Em cada comunidade local se torna pre- sente a Igreja espalhada por toda a terra, pelo que também ela pode ser chamada com o nome de Igreja de Deus (SC 42a; 1G 28d), enquanto nela se encontram todos os elementos essenciais a natureza da Igreja e os elementos de especificacao, isto é, o érgio proprio de governo e 0 territério. Digitalizado com CamScanner

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