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Certamente, entre as muitas certezas esté a de que a doenga tem um baréter social) Ha diversas formas de constatar essa afirmacio, tanto do ponto‘de vista macro (que englobaria as dimensdes histérica ¢ estrutural), como da perspectiva do in juando julgada pelo proprio doente ou por parentes, amigos e ). Como veremos, os dois aspectos compl deseja compréender esse processo, Além disso, a reco permite situar como emergiram os diversos modelos se retomarmos as origens ¢ o desenvolvimento da medici publica, vamos encontrar que, de diferentes manei porar-se as questdes da satide e da doenga: no est dentincia das condigées de trabalho ou da si desorganizagdio do espago urban. Quando, no comego do século XVII, se desenvolveram na Alemanha as tendéncias centralizadoras em administragio e economia, sentit-se a necessidacle de um conhecimento pormenorizado da populagao. Ha trabe- Thos mareantes desse periodo, como o de John Peter Frank (1748-1821), que assinalam as relagoes entre fatores sociais e a doenca. Representante do despotismo est Frank 6 autor de vasto trabalho © estudo da politica populacional, materna, satide da crianga, higiene, recreagio, acidentes, ambi 218 NUNES gas venéreas, epidémicas e comunicaveis, medicina militar, hospita: seu Medizinische Polizei exerceu influéncia e ajudou a difundir a idéia da Policia Médica (Rosen, 1979:135, 136). A Policia Médiea aparece “como parte do esquema da organizagio do Estado cujo objetivo supremo era colocar a vida econdmica e social a servigo da politica do poder do Estado” ¢, para isso, era fundamental um conhecimento completo da vida da populagéi, a fim de controlé-la por meio de uma legislagao que cobrisse todos 08 aspectos da sua vida, incluindo o controle da profissao médica, ‘Também estudos realizados durante a primeira metade do século XIX ‘yao mostrar inter-relagdes entre a satide e as condigées de vida criadas pela .¢ho industrial. Situa-se nessa vertente, nao especificamente epide- ica, mas que se tornaria referencia para essa drea de pesq sempre citado trabalho de Engels (1975), eserito em, 1844, Ao dis condigSes de vida ¢ trabalho dos operérios ingleses,”oférece um quadro detalhado das conseaiiéncias a que estiveram expostos os trabalhadores na primeira fase da Revolucdo Industrial, assim como da vida urbana das cidades que se tornaram loeais de produgao industrial. Esse serd um tema importante abordado por Foucault (1977), ao estudar como as cidades se tornaram sede de problemas sociais e de satide, Foi também na segunda metade do séeulo XIX que autores como Virchow e Neumann, na Alema- nha e Guérin, na Franea, lancam as idéias que se tornaram basicas para se entender a emergéncia da Medicina Social. Para Virchow, por exemplo, doenga é um processo organico de etiologia multifatorial, tendo as condi- ges materiais de vida como uma das causas mais relevantes ¢ cijo tratamentoniodependia de cuidar apenas dos aspectos fisiopatalégicos de pacientes individualmente, Com 0 fracasso das Revolugdes dé 1848 © 0 fvento da bacterialogi na soguna meta do sela EX, tos Pasteur, @ outros, houve um deslocamento das” preocupagdes dos iais da doenea para os aspectos individuais. Como é assinalado por Breilh (1981:47), “Irrompe a preocupagao pelo expressa em uma nova concepsao do corpo (até entéo a «méquina huma: na»), na adogéio de novas bases para a investigagio médica (patclogia, anatomia patolégica e fisiologia) ¢ na implementagao de agées curativas consistentes na reparacdo instrumental de sogmentos isolados dessa «md quina corporaly. A doenca passa. ser vista como variagées qualitativas dos fenémenos fisiol6gicos correspondentes. A doenca como variagiio quantita- tiva don rd, como aponta Cordeiro (6.d.:78), um dos pilares da, ‘medicina do século XIX, tendo como expressiio desse pensamento Claude le, como aponta Canguilhem (1978:48), “A satide © a doonga nfio so dois modos diferentes essencialmente, como talvez tenham pensado os antigos médices e como ainda pensam alguns. E preciso nao fazer da doenga e da saide principios distintos, entidades que disputam uma outra o organismo vivo e que dele fazem o teatro de suas lutas. Isso sio velharias médicas, Na realidade, entre essas duas maneiras de ser ha A DOENGA COMO PROGESSO socIAL 219 apenes diferengas de grau. A exageracio, a desproporgio, a desarmonia dos fenémenos normais constituem o estado doentio. N&o hd um tinico caso ‘em que a doenca tenha feito surgir eondigdes novas, uma mudanga comple ta de cona, produtos novos e especiais”. Ha predecessores dessas idéias, como Broussais, apreendidas por Augusto Comte. Com o positivismo, admitindo a analogia entre o biolégico ¢ o social, ocorre um reducionismo, que “nega, ou desconsidera, o conflito e o embate no campo bioldgico entre situagbes fisiol6 ratologicas distinta. [..] no campo do social, ifrentamento de classes so- teresses diversos, caracterizando, ao invés disso, desvios desequilibrios de um organismo social tendente & estabilidade e a harmo- nia” (Cordeiro, s/d:10). , ~_Com base em uma viso positivista, a unicqusalidade estabetece |) __como um paradigma na explicacio da doenca. Este baseou-se no avango das pesquisas e descobertas sobre a etiol ¢as, da intensificagio da imunizaeao, da institueionalizagio do movimen- to cientifico e da reorganizacao do ensino médico. Acrescente-se o enorme otimismo que se seguiu a descoberta dos agentes etiol6gicos especificos, pois parecia possfvel erradicar todas as doencas, ‘Sem negar a importancia desse momento e das investigagdos que se seguiram, cumpre lembrar quo, ja no final do século XIX, e nas primeiras décadas do século XX, as condigoes de satide continuavam extremamente precérias para amplos contingentes da populagao. De outro lado, a impossibilidade de abarear com o paradigma unieausal a complexa tra- ma de problemas levou a que investigadores procurassem um enfoque alternativo, Este seria denominado de multicausal. Sem dtivida, ha outros fatores que mostraram ser o enfoque unicausal limitado para ‘ explicar a doenga, Breilh (1981) assinala que a propria crise do capitalis- ‘mo e a conscientizagio de setores “marginalizados" do sistema conduzi- ‘a interpretagao do processo satide-doenga. Ainda, para tivos de uma “teoria mul seriam buscar fatores, causais fiieeis de atacar, com medidas sustosas ¢ implementar medidas de controle, De um ponto de vista prético, néo busca as causas _tnecessirias”, mas o ebjetive é cortar a cadeia causal mediante a supre ‘80 ou modificacao de uma das varidveis intervenientes, mas sem tot nas causas estruturais, A idéia da multicausalidade, que se desenvolve a partir dos anos 50, iré encontrar no trabalho de Leavell & Clarke (1976) um elaborade ‘modelo que receberia o nome de da Histéria Natural da Doenga. Ao ineorporar no modelo os prineipios da ecologia, tornou o modelo wusal mais dindmico ¢ abrangente. Nessa proposta, as causa ordenam-se em trés possiveis fatores ou categorias: o agente, o héspede ¢ ‘ambiente inter-relacionados e em constante equilibrio. Resumidamente, esses fatores referem-se a: 220 NUNES — agentes: subst&ncias ou elementos cuja presenga ou auséneia pode jar ou perpetuar um proceso patolégico; podem ser nutritivos, fisi- imento de um organismo, érelaciona- do com os aspectos fisicos do meio ambiente, mas também com fatores sociais, econémicos e biolégicos que se opdem & satide fisica e mental do homem; — hospedeiro: entre os fatores ligados ao hospedeiro humano na ocorréncia e distribuigéo de doencas, estiio a idade, o sexo, hébitos ¢ costumes, caracterfsticas e reagées psicobiolégicas, “Y“Ahistéria natural da doenga refere-se a dois periodos; 0 pré-patogéni- co & 0 patogénico. No primeiro, os fatores relacionados-com o agente potencial, o hospedeiro e 0 meio ambiente estdo em interagéo. Como eserevem os autores: “A evolugio de um distirbio no homem, desde @ \ primeira interagao com estimulos que provocam a doenga até as mudan- | gas de forma e fungdo que daf resullam, antes que 0 equilibrio seja | aleangado ou restabelecido ou até que se siga um defeito, invalide ou | morte, pode ser denominado curso natural do distarbio ou periodo de patogénese” (Leavell & Clarke, 1976:14), H4 uma primeira fase em que a | interagdo hospedeiro-est{mul a patogénese precoce que po ser diagnosticada cl s0 signifiea encontrar @ horizonte cl co); na segunda fase, hi o comparecimento da doen¢a precoce; na terceira fase — doenga avancada; na quarta fase — eonvalescenga com recupera- o, invalidez, estado erdnieo © morte, itas foram as eriticas feitas & Histéria Natural da Doenga. Dentre las, citam-se, j4 na década do 70, Nunes (1970), Arouca (1970), Garefa 4970), tentando introduzir modificagées, contextualizando a historia natural, envolvendo-a no contexto social, econdmico e cultural. Como 0 préprio Arouca (1975:165) escreveria algum tempo depois, mesmo com essa contextualizagao nao se aleangava um dimensionamento especilico do social, pois “na realidade o que temos é uma nomeagao do social, jé que ele nao aparece como um mecanismo explicativo, mas sim é simplesmen- te referido, ow como um caréter dos individuos ou como envoltdrio do vida, a maior critica ao modelo foi que, ao tornar-se aradigma deixou de ser histérico e,.como acreseenta Arouea (1975:167; De outro lado, as limitacGes a0 modelo nao foram derivadas apenas de uma critica interna. Embora tenha sidd amplamente utilizado a partir dos anos 60 e década de 70, sentia-se que a abordagem dos complexos problemas de satide, resultado das crises econdmicas, politicas e sociais que ocorreram nos paises em desenvolvimento no final dos anos 60, no encontrava maiores possibilidades explicativas no modelo da histéria natural da doenga. ‘A DOENGA COMO PROCESSO SocIAL 221 [DpPeineese momento que muitos extudiosos Intinoamericanos engaja- 1s no projeto da Medicina Social estabeleceram uma eritica radie ‘modelos que, ao enfatizarem os aspectos biolégicos individuais, descuida- vam da causalidade social da doenea. Assim, as discussoes tinham como ponte comum q wusas da doenca deviam ser buscadas nfo somente™ “nos process: nos processos_ sociais, basic - “Alinhaim-se nessa corrente Breilh (1981), Laurell (1983, 1986), Arouca (1970), Vasco Uribe (1986), Barros (1986), Castellanos (1987), que, uti zando: ‘eategorias analiticas distintas, mas nomareo te rico do material: 1mo histérico, traziam para o centro do debaté,a jecessidade de repensar o processo satide-doenga como processo social Para Castellanos (1987:7), “os perfis de satide-doonga de um determinado grupo da populacio estio determinados pelos processos de reprodugiio social de suas condigdes objetivas de existéncia, os quais esto determinados pelos processos que regem a reprodugio geral dessa sociedade e que estabelecem a forma particular de insergao de tal grupo em tais processos gerais”. © estudo mais pormenorizado dos fatores culturais e psicossociais seria preocupagio dos anos 80. Nao se esqueca que nos Estados Unidos muitos foram os trabalhos que, ja nos anos 70, enfatizavam o estresse ‘como um conceito central na eausagio da doenga, relacionado-o 4 anomia € mesmo a slienagio no sentido de falta de participagdo social e tomado num sentido universal e, portanto, sem equacioné-lo com as diversidades estruturais e culturais. Esto nessa linha de pesquisa Cassel (1974) e Mechanic (1968). O estudo das representagies e do papel do simb6lico, mediado pela linguagem, iria estar presente em pesquisas da década de 80, quando hé amplo ressurgimento dos estudos antropoldgicos em satide. basieamente na produgio e reproducao soc A DOENGA COMO PROCESSO HISTORICO-ESTRUTURAL ‘thor forma de camprovar empiricamente 0 esr rico da doonga nao €conferda pelo estudo de suas carac 05 individuos, mas sim eo, mas no modo ca ‘morror nas grupos humane” | Laureer, 1983:137. I Na primeira parte deste trabalho, procurou-se abordar de forma geral aspectos histéricos e mesmo teéricos de como a questo da causalidade da doenga foi sendo estruturada. Nao se trata de uma histéria linear, pois, 20 longo dos perfodos histéricos, podem ser encontrados momentos maior ou menor inflexdo do que se pode chamar de causalidade social convivendo com os avangos das descobertas etiolégicas, Importa acentuar "8 ou nas caracteristicas da triade ecolégica, mas | 222 NUNES que_os perfis patolégicos serao as expressdes das transformagdes da sociedade, como lembrava Laurell (1983) em trabalho que se tornou referéncia para o estudo do cardter social da doenga. Infelizmente, nem sempre é possivel trabalhar com dados sobre a morbidade, ¢ a evidencia- ‘edo empirica do perfil patolégico tem de ser feita com base em dados de mortalidade. Como ja referimos, a possi \dar o processo da doenga uma das duas amplas lingua inglesa utilizam a possibilidades, Nesse sentido, os autores d palavra disease, ou seja, a doenca como um pesquisas que evidenciam que baixo status « do com baixa expectativa de vida, taxas de mor como também mais elevadas taxas de mortalidade infantil e perinat Verificou-se, ainda, que baixo status socioecondmico esté associado a cada uma das catorze principais categorias de causas de morte da Classificagao Internacional de Doencas ¢ Causas de Morte, como também outros problemas de satide, ineluindo desordens mentais, Sabe-se, tam- bém, que os homens tém as taxas de mortalidade mais altas em todas as idades, sendo mais altas nas doeneas coronarianas, crdnico-respiratérias ¢ ileeras. 'Tém sido apontadas pronunciadas difereneas de género Has | taxas de varias formas de eAnceres e doenea mental e variagdes de de- sordens fisicas ¢ mentais de acordo com estado civil e grupos religiosos. Acrescenie-se, ainda, que eventos de cardter estressante tém sido asso- ciados a uma série de dongas, como cardiacas, diabetes, cnceres, morte_- fetal, depressiio grave, baixo peso ao nascer. Embara nao seja objeto desta apresentagao, 0 fato de se descobrirem as associagses entre condi= ‘bes sociais e doenca tem encaminhado a discussdo para tentar esclare- gr a diregio da causacao e os mecanismos que expliquem as associagées, istragao da doenca como processo histérico-estratural pode ser vista quando se analisam alguns dados da mortalidade por eausas no Brasil (Barreto, Carmo, Santos & Ferreira, numa série histéri- a, de 1930 até 1990, que apontam o seguinte: 4) Em 1980, as doencas infecciosas representavam 45,7% das causas de morte, valor que comegou a declinar somente vinte anos depois: em 1960 era de 36% atinge 26% na década de 60; baixa para 16% em 1970; 11,4% em 1980 e decresce para 6,5% em 1990; omeno hiolégico, embora A DOENGA COMO PROCESSO SOCIAL 223 8) Em contraposigao as doengas infecciosas, as doengas do aparelho cireulatério representavam, em 1930, 11,8% e, gradativamente, a por- centagem vai aumentando: 14,5% em 1940; 14,2% em 1950; 21,5% ¢ 24,8% em 1960; ¢ 1970, respectivamente; 81,% em 19 ©) As mortes por causas externas (excetuando homicidios e suicidios) representavam apenas 2,6% em 1930 e os valores nao ultrapassam 5,0% em 1940, 1950 © 1960, mas em 1970 e 1980 jé figuram com 7,5% © 7,8%, respectivamente; «) As neoplasias e as doeneas do aparelho respiratorio apresentam tendéncia de crescimento constante em todo o periodo estudado, Embora os dados sejam gerais e houvesse necessidade de se verificar 0 tipo, a frequéncia ea distribuigdo das doencas nos diversos grupos sociais, também por sexo les evidenciam, ou pelo menos apontam, que esse perfil epidemi re intensas alteragdes, mantendo coeréncia com as transformagées socioeconémicas, ds quais se associam as conquis- tas quimicas e farmacéuticas, as melhorias ou deterioragio das condigées ambientais ¢ a ampliacdo das priticas médico-assistenciais ocorridas durante o perfodo. Se fssemos ficar no papel exercido pelo desenvolvimento econdmico ¢ social sobre a satide, em especial a partir dos anos 70, verifieamos que alguns processos tém sido decisivos na mediagio das atuais relagies entre a satide e 0 desenvolvimento, Os estudiosos citam: o acelerado movimento de urbanizacao, a expansio de fronteiras, a descentralizagao do processo produtivo, a extrema mobilidade populacional e a difusio de informagoes. Os epidemiélogos apontam que as tendéncias de morbidade apresen- imas diferencas quando comparadas com as tendéncias observa- adores de mortalidade, e isso em particular no que se refere as doencas infecciosas. Como citam Barreto, Carmo, Santos & Ferreira (1997:49), no grupo das infecciosas pode ser citada uma série de doencas ‘com tendéncias crescentes, por exemplo_a maléria e as leishmanioses, Possivelmente associadas a0 processo de ocupagao do espaco urbano. Citam, ainda, a tuberculose associnda a disseminagao da aids; a hanse- nase ¢ a expansao da dengue Outro exemplo cléssico para se mostrar a relacao entre condigdes sacioeconémicas e doenca é 0 caso da tuberculose. Hé estudos detalhados da mortalidade por tuberculose, e um dos mais importantes epidemidlo- 4g0s (McKeown, 1976, apud Breilh, 1986), analisando dados da Inglaterra © do Pais de Gales, desde 1838 até 1970 mostrou a acentuada queda da ide em momentos quando ainda nao havia ocorrido a identifica- lo (1882), antes da preparagao da tuberculina (1890), antes dos tratamentos quimioterapicos (1945) e da vacinaga 1950). Assim, para McKeown, as medidas inédieas tiveram peso relativamente peaue- no, havendo outros determinantes que levaram a redugéio da mortalida- 224 NUNES de, Estas referem-se As mudangas nos processos gerais da estrutura Social, como parte da transformagao produtivo com o aparecimento da maquina, reordenamento das relacaes de produgao, assim como nos processos particulares que iriam afetar 0 nivel de vide das classes sociais. No Brasil, estudo sobre a mortalidade por tuberculose no Rio de Janeiro, no periodo de 1860-1980 (Ruffino Netto & Pereira, 1982), mos- trou que o decréscimo ocorreu de maneira diferente quando se anallisa a curva de velocidade de declinio que se ajusta a trés regressdes distintas, ilendo aos periodos de 1860-1885; 1885-1945 e apés 1945. No primeiro periodo o declinio 6 acentuado; é menor no segundo e aumenta no terceiro/ Os autores estudam a formacao econdmica e social da cidade do Rio de Janciro, da regitio ¢ do Brasil e destacam fatores econimicos, demogrficos, sociais e politico-sanitarios que apresentam como hipéte- ses para as diferentes velocidades de declinio da mortalidade. F inegavel © decréscimo em perfodos em que néo havia ocorrido nenhum avango significativo no tratamento da enfermidade por tuberculostaiticos. Mos- tram que as variagves assinaladas no periodo devem ser att fundamentalmente, as modificacées nas condigdes de vida da popula: carioca. No terceiro periodo, verifica-se a convergéncia de fatores de natureza econdmica e médica: ‘Nao se pode deixar de citar que um dos melhores exemplos que cevidenciam 0 papel dos fatores sociais nos agravos a satide ena d ambiente de trabalho e a segunda tratando da divistio téeniea e social do trabalho. Ressaltamos que os danos que afetam a satide dos trabalhado- res manifestam-se tanto de forma aguda — acidentes ¢ intoxicacses — como de forma insidiosa — as doengas profissionais tipieas e as doengas do trabalho ou a ele relacionadas. Evidencia-se que os fatores sociais 880 basicos para a compreensao desses eventos (Rocha & Nunes, 1993; Dias, 1993), Na América Latina foram muitos os estudos realizados sobre essas relagdes, destacando-se Laurell (1986:13), que assume que “O fundamen- to tebrieo para usar como eatogoria central, o eprocesso de trabalhor na anélise da producto social do proceso biolégico humano, é que ele permite dar conta das formas sociais especifieas sob as quais ocorre a relagdo entre o homem e a natureza”. Para tal, dois conceitos tém sido ‘apontados como fundamentais: 0 “proceso de trabalho" e a “reproducio social”. Para a autora, “A andllise do processo de trabalho nos paises capitalistas se coloca como o estudo do processo de produgéo, ou seja, da dade entre o processo de valoragao do capital e 0 process A DOENCA COMO PROCESSO SOCIAL 225 A DOENGA COMO PROCESSO SIMEOLICO A questo do estudo da doenga niio se esgota em suas dimensdes epidemiolégicas estruturais, Sem diivida, a pesquisa sociolégica e antro- polégica, & qual se associa, em muitos casos, a dimenséo psicolégica ‘onstitui um dos campos mais férteis de pesquisa. Nesse caso, os estudos sobre percepeao, atitudes, conhecimento, erengas ¢ representagdes tém trazido importantes contribuigdes a uma compreensao da doenga, uma vez que ela éestudada com base na experiéncia vivenciada pelas pessoas, ‘Tniimeros trabalhos tém apontado a relevancia em se estudar as representagves sociais de satide-doenga, Dentre elas, Minayo (1991), a0 tratar 0 tema, aponta que essas representagées podem abordar: a) a satide-doenga como expresso social e individual; 8) saide-doenga como ‘expresstio das contradigies sociais; ¢) a saiide como campo de luta politica. Considerando-se que a discussdo que se estabelece refere-se & nogéo de representagio, torna-se importante que se dedique algum espaco a essa idéia, O vocdbulo representacao é de origem medieval e era usado para indicar a im: idéia, ou ambas as coisas. Para Santo tar algo significa conter a semelhanga da coisa”. O fim fcacao das palavras. Para Occam (Abbagnano, 1962:620, 821), po- dem ser distinguidas trés significagses fundamentais: 1) a idéia no a imagem, 3) 0 proprio objeto No campo das aplicagées do’conceito.na srea da satide, invoca-se, geralmente, como modelo, Claudine Herzlich|e sous estudos sobre a doenga. Basicamente, no comentario dé Minayo (1991), as representa- ses servem para revelar 0 movimento intrinseco do'ponhecimento e da experiéncia. Sem divida, conhecimento ¢ experiéncia sio as palavras que comandam os estudes, Acrescente-se, como faz a propria Herzlich (1991), quando diz que nao basta formular um determinado saber, mas deve-se interpreté-lo, dar-Ihe sentido/ Para a autora, "Uma das tarefas do socidlogo pode ser a de indiear de que modo essas representagdes esto enraizadas na realidade social e histérica, ao mesmo tempo que contri- bbuem para construf-la” Com essa observacéo, a socidloga francesa fez ‘uma auto-avaliagao da sua pesquisa sobre as representagdes da docnca, dizendo que “teria sido titil demarcar melhor a articulagao dessas repre. sentagdes com a patologia de uma 6poca, em seguida com uma configura- iio historiea e ideolégiea precisa...". Acrescente-se, ainda, sentacao se efetiva quando o real se constitui como real ‘a Moscovici que, através das representagdes os grupos, identificam-se, pereebem-se, alijam-se, rejeitam-se, Para alguns autores as representagées produzem a: 226 NUNES gio do cotidiano, dos modos de vida, abre novos campos, novas dicotomi- “as, pata outros, como Herlizch (1991:82), a interpenetracao dual ‘edo coletivo seria bésica para as configuragées sociocognitivas; portant dever-se-ia tomar com cautela “as interpenetracdes da vida cotidiana’. ‘Absorvendo essa recomendagao como oportuna, nao se deve retirar a importdncia da esfera do cotidiano. Em realidade, as mais recentes discussbes sobre a construcao social da doenga enfatizam que a éxperiéncia com a doenca illness) fundamental para se.compreender a causagao social da satide. A distineao entre disease @ illness 6 bésica para se entender que a primeira expressao cireahscreve-se mais ao fendmeno ico, e a segunda, ao fendmeno subjetivo, Nesse sentido, hi o fortalecimento de que o conhecimento leigo central para.a descoberta da doenea e de suas condigées. [ss0 corre nao somente no caso de “doencas conflitivas® (doencas induzidas por t6xicos e efeitos iatrogénicos de tecnologias contraceptivas), mas também em casos de condicies “nao conflitivas”, nos quais o puiblico leigo nao est& tentando convencer a medicina de sua realidade. Brown (1995) cita as tipologias contrastantes sociolégicas e médicas do caso da epilepsia, ou seja: de um lado, considerando o segredo da doenca, a desadaptagio, e de outro, como entidade biomédica conereta (petit mal, grand mai). Consi- dere-se, ainda, o papel dos movimentos sociais para legitimar condigdes lee de doenca, a fim de serem reconhecidas, comono¢aso ‘das LERs — lesdes por esforgos repetitivos (Ribeiro, 1997). ‘Ainda em relagao experiéncia com a doenca, as pessoas podem ter a mesma doenga, mas experiencié-la de forma totalmente diversa, Por exemplo, “a existéncia de uma condieao cardiaca pode levar uma pessoa a restringir totalmente a sua atividade fisica, mesmo que isso nao fosse rio, Uma outra pessoa, entretanto, pode reorientar ativamente itos alimentares ¢ tracar um saudavel regime de exercicios itas diferencas emergem de carat porém os intimeros estudos realizados, como por exemplo 6 de Zola (1973), apontam que as diferencas na experiéncia da doonga tem suas origens na percepgies ¢ interacoes sociais mais amplas. Brawn (2995), a0 revisar este conhecido trabalho de Zola, aponta que ha muitos fatores interagindo, como as crises interpes trabalho, as formas de apoio social, tanto da fami dimenséo temporal na percepgio dos sintomas. Em suas consideragées, aponta que “As pessoas sentem e agem sobre os sintomas de muitas maneiras nao médicas. Por exemplo, 0 que pode parecer uma maneira ilégica de nao-submissio as ordens médieas pode ser um plano muito- bem-tragado de afastar-se dos efeitos laterais médicos ¢ sociais que podem prejudicar a vida de trabalho pessoal” (Brown, 1 Tss0 € muito comum em doengas ers: | A DOENGA COMO PROCESSO SOCIAL 227 ses de cardter médico propriamente ditas. Isso tem levado a que, cada vez mais, os estudos sobre a experiéneia com a doenca sejam sobre doencas em particular, pelas especificidades que apresentam, ou seja: desde as que exigem atencao psicolégica, as doengas de carter estigma- _ tizante (aids, epilepsia, por exemplo). ‘Uma das questdes que atravessa a experiéneia com a doena, como jé apontado, é da prépria terminologia que vem sendo utilizada pelas ciéncias sociais em sous estudos. Se na lingua inglesa distinguem-se disease, illness, sickness, distress, os estudos nacionais apontam para termos‘como “doenca”, “enfermidade”, “sofrimento”, “alligho”, “perturba- $80", “mal-estar’, formando ja um razoavel eonjunto de pesquisas (Duar- te & Leal, 1998:11). Como apontam os autores, a justaposigao da catego- ria doenca as de “sofrimento” e “perturbagao” nas investigagées “tem efeito revitalizador fundamental em face dos pesados reducionismos listas> que cercam essa representagao entre nés, por forga da (Duarte & Leal, Dados os limites deste trabalho, é impo ‘tar detalhada- mente os estudos que sio apresentados nessa recente coletainea (Duarte tar o pereurso importante dos estudo: pode-se ler na Introdugao, “A opeao holistica permite que os fenémenos da «doenga> ou «perturbagdo» sejam sistematicamente associados ou cotejados com as perspectivas mais amplas dos estudos de «construgtio social» da Pessoa, do Corpo ou das Emogées, mais tradicionais nos estudos antropologicos” (Duarte & Leal, 1998:12). As teméticas abran- gem estudos que pesquisam: algumas concepedes e préticas acerea da vivencia da gravidez e da maternidade de algumas mulheres de grupos urbanos de baixa renda em Porto Alegre, Rio Grande do Sul; euidados do ‘corpo em vila de classe popular; anticoncepeao entre mulheres de Per- nambuco; relacbes entre as concepedes de doenga e servigos de satide; relagdes entre 0 ethos masculino e doengas relacionadas ao trabalho; percep¢ao corporal da tuberculose; o problema das drogas, tanto sobre as praticas de consumo, como das suas relagies com os saberes préticas meédicas; a categoria sofrimento e suas representagses; a narrativa da doenga; doar e receber no caso de transplante renal; a perspectiva feminina sobre homens portadores do virus da aids, CONSIDERAGOES FINAIS Amplitude do tema jé foi assinalado, mesmo quando se volte para ver ‘a doenga como processo soci Uma perspectiva geral, que sem diivida pode guiar a busea de entendi- ‘mento da questao é posta por Hegenberg (1998:67): a de que “Anopao de doenga depende de uma anterior concepeao de doenga, ou seja, de uma 228 NUNES: idéia a respeito de que ela representa, ou significa para o ser humano. A “noi conduz, apés reflexdes de ordem teorética, a um conceito de doenga. Este se destina, em sintese, a permitir que a pergunta «Quem est doente?» receba respostas de razoavel precisio”. Hi diversas leitu- ras sobre doenga, desde as mais ampliadas, que levam em consid distintos saberes, tanto biolégicos como fisico-quimicos e sociocultural as leituras naturalistas, que véem a doenga como “estado interno que reduz uma habilidade, ou capacidade funcional” eas leituras valorativas, enfatizando as relagdes entre satide e doenga, devendo-se, “inclusive, cogitar da possibilidade de compatibilizar a satide com algum grau de doenga, lesfo ou incapacidade” (Hegenberg, 1998:67-75). Procuramos trabalhar neste texto com duas dimensées —aestrutural ea simbéliea — que podem ser vistas separadas, porém, como tem sido destacado por diversos estudiosos, a experiéncia com 0 sofrimento esta entretecida nas estruturas sociais ¢, em lugar de ser meramente uma experiéncia individual, “as experiéncias leigas sao construgies ¢ produ- ges sociais coletivas da realidade”, e sendo muitas vezes atravessada pelos movimentos sociais sao também “formas sociopoliticas de se rela- cionar com o sofrimento” (Brown, 1995:47). De outro lado, a experiéncia leiga no pode ser completamente separa~ da da propria interagao com o campo médico, por meio da relacao clinica, que reorienta e redefine as percepcdes sobre a doenca, quer mantendo o individuo dentro das formulagies mais ortodoxas de cardter alopatico, quer levando-o a préticas alternativas ou complementares, na busca iar ou afastar o sofrimento. Sem diivida, a questo de entender 0 processo da doenga néo constitui apenas um problema tesrico e zcadémico, mas esse entendimento e interpretagio © ponto de partida para as diversas formas que pode assumir a “earreira A DOENGA COMO PROCESSO SOCIAL 229 ‘Brown, P. (1995) Naming and Framing: the Social Construction of Diagnosis and Mines, ‘Journal of Health and Social Behavior, (Extra Issve)34-52 ‘Canguithem, G. (1978) 0 normal eo patoldgivo. Trad, M.T.R.C. Barrocas, Rio de Janeio: 1995:80-94 ‘or Nemesis, Londres: Nuffield ‘Nunes, E. D. (1970) Aspectos pico séci-eulturais de aplicagdo das da tubereulose. Seminario de Cignciaa da Condata, Caropinas: Universidade Bstadval

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