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Copitulo 1 Como toleraro intolerdvel? Indubitavelmente ea avelmente, quem perdeu o emprego, quem nao consegue empregar “ vempregado primdrio) ou reempregar-se (desempregado + passa pelo processo de dessociali E r 5 socializa rogressi E i . oes progressivo, sofre. E sa- ps na Es “i Processo leva 4 doenca mental ou fisica, pois ataca os alicer- “ ' identi Jade. Hoje, todos partilham um sentimento de medo — por i, pelos préximos, pelos amigos ou pelos filhos — diante da ameaca de ere ay piel etre ce eee i s iscos de exclusdo, e ninguém pode em sa consciéncia esconder-se atrés do véu demasiado transparente da igno- rancia que serve de desculpa. Por outro lado, nem todos partilham hoje do ponto de vista se- gundo 0 qual as vitimas do desemprego, da pobreza e da exclusio social seriam também vitimas de uma injusti¢a, Em outras palavras, para mui- tos cidadéios, hé aqui uma clivagem entre sofrimento e injustiga. Essa cli- rave. Para os que nela incorrem, o sofrimento é uma adversi- ssa adversidade nao reclama necessariamente reacao piedade ou caridade. Néo provoca vagem é ¢) dade, é claro, mas politica. Pode justificar compaixao, necessariamente indignagao, célera ou apelo a acao coletiva. O sofrimen- to somente suscita um movimento de solidariedade e de protesto quando se estabelece uma associacao entre a percepcao do sofrimento alheio e a conviccao de que esse sofrimento resulta de uma injustiga. Evidentemen- te, quando nao se percebe ofrimento alheio, nao se levanta a questéo da mobilizagéo numa a¢4o justica e in- justiga. nder o drama que represent: Para compree! e n mobilizagéo contra 0 desemprego ea exclusao, seria Pp) o si politica, tampouco a questao de a a precariedade da reciso analisar pre- Digitalizado com CamScanner he Dejours Para responder a essa pergunta, creio que a psicodinamica do trabalho, que tem implicagdes nos campos psicolégico ¢ sociolégico, pode nos trazer algumas luzes. Em suma, a psicodinamica do trabalho sugere que a ade- so ao discurso economicista seria uma manifestacio do processo de “ba- naliza¢ado do mal”. Minha anilise parte da “banalidade do mal” no sentido em que Hannah Arendt emprega essa expressiio com referéncia a Eichmann. Nao, como fez ela, no caso do sistema nazista, mas no caso da sociedade contemporanea, na Franga, em fins do século XX. A exclusao e a adversi- dade infligidas a outrem em nossas sociedades, sem mobilizagao politica contra a injustica, derivam de uma dissociacao estabelecida entre adversi- dade e injustiga, sob o efeito da banalizagao do mal no exercicio de atos civis comuns por parte dos que nao sao vitimas da exclusiio (ou nao 0 sao ainda) e que contribuem para excluir parcelas cada vez maiores da popu- lacéo, agravando-lhes a adversidade. Em outras palavras, a adesdo a causa economicista, que separa a adversidade da injustiga, nao resultaria, como se costuma crer, da mera resignacdo ou da constatacao de impoténcia diante de um processo que nos transcende, mas funcionaria também como uma defesa contra a cons- ciéncia dolorosa da prépria cumplicidade, da propria colaboraco e da propria responsabilidade no agravamento da adversidade social. Vale acrescentar que aquilo que tentarei analisar aqui nada tem de excepcio- nal. Ea propria banalidade! Nao sé a banalidade do mal, mas a banalidade de um processo que é subjacente A eficdcia do sistema liberal econémico. Ento, nao é uma novidade? Nao! Somente é nova a identificagao de um proceso. Processo que se torna mais visivel, na época atual, em virtude das mudangas politicas verificadas nas ultimas décadas. Algum tempo atrds, quando as lutas politicas e a mobilizagao coletiva eram mais inten- 2 Essa disciplina — inicialmente denominada psicopatologia do trabalho — tem por objeto 0 estudo clinico e teérico da patologia mental decorrente do trabalho. Fundada ao final da IL Guerra por um grupo de médicos-pesquisadores liderados por L. Le Guillant, ela ganhou ha uns 15 anos um novo impulso que a levou recentemente a adotar a denominacao de “andlise psico- dinamica das situagées de trabalho”, ou simplesmente “psicodinamica do trabalho”. Nessa evo- lugdo da disciplina, a questo do sofrimento passou a ocupar uma posicao central. O trabalho tem efeitos poderosos sobre o sofrimento ps{quico. Ou bem contribui para agravé-lo, levando progressivamente 0 individuo & loucura, ou bem contribui para transformé-lo, ou mesmo sub- verté-lo, em prazer, a tal ponto que, em certas situagdes, 0 individuo que trabalha preserva melhor a sua satide do que aquele que ndo trabalha. Por que o trabalho ora é patogénico, ora estruturante? O resultado jamais é dado de antemo. Depende de uma dindmica complexa cujas principais etapas sao identificadas e analisadas pela psicodinémica do trabalho. 21 Digitalizado com CamScanner Christophe Dejours Para responder a essa pergunta, creio que a psicodinamica do trabalho, que tem implicagées nos campos psicoldgico e sociolégico, pode nos trazer algumas luzes, Em suma, a psicodindmica do trabalho sugere que a ade- sao ao discurso economicista seria uma manifestagado do processo de “ba- naliza¢ao do mal”. Minha analise parte da “banalidade do mal” no sentido em que Hannah Arendt emprega essa expresso com referéncia a Eichmann. Nao, como fez ela, no caso do sistema nazista, mas no caso da sociedade contemporanea, na Franga, em fins do século XX. A exclusdo e a adversi- dade infligidas a outrem em nossas sociedades, sem mobilizagao politica contra a injustica, derivam de uma dissociaco estabelecida entre adversi- dade e injustica, sob 0 efeito da banalizacéo do mal no exercicio de atos civis comuns por parte dos que nao sao vitimas da exclusao (ou nao 0 sao ainda) e que contribuem para excluir parcelas cada vez maiores da popu- lagdio, agravando-lhes a adversidade. Em outras palavras, a adesdo d causa economicista, que separa a adversidade da injustica, nao resultaria, como se costuma crer, da mera resignacao ou da constatacao de impoténcia diante de um processo que nos transcende, mas funcionaria também como uma defesa contra a cons- ciéncia dolorosa da prépria cumplicidade, da prépria colaboracio e da prépria responsabilidade no agravamento da adversidade social. Vale acrescentar que aquilo que tentarei analisar aqui nada tem de excepcio- nal. Ea prépria banalidade! Nao sé a banalidade do mal, mas a banalidade de um processo que é subjacente @ eficdcia do sistema liberal econémico. Entao, nao é uma novidade? Nao! Somente é nova a identificagao de um processo. Processo que se torna mais visivel, na época atual, em virtude das mudangas politicas verificadas nas tltimas décadas. Algum tempo atrds, quando as lutas politicas e a mobilizaco coletiva eram mais inten- ? Essa disciplina — inicialmente denominada psicopatologia do trabalho — tem por objeto 0 estudo clinico e tedrico da patologia mental decorrente do trabalho, Fundada ao final da Tl Guerra por um grupo de médicos-pesquisadores liderados por L. Le Guillant, ela ganhou ha uns 15 anos um novo impulso que a levou recentemente a adotar a denominagio de “andilise psico- dindmica das situagées de trabalho”, ou simplesmente “psicodinémica do trabalho”. Nessa evo- lugdo da disciplina, a questo do sofrimento passou a ocupar uma posigao central. O trabalho tem efeitos poderosos sobre o sofrimento psiquico. Ou bem contribui para agravé-lo, levando progressivamente 0 individuo a loucura, ou bem contribui para transformé-lo, ou mesmo sub- verté-lo, em prazer, a tal ponto que, em certas situagées, 0 individuo que trabalha preserva melhor a sua satide do que aquele que nao trabalha. Por que o trabalho ora é patogenico, ora estruturante? O resultado jamais ¢ dado de antemao. Depende de uma dinamica complexa cujas principais etapas séo identificadas e analisadas pela psicodinamica do trabalho. 21 Digitalizado com CamScanner A bonatizagdo da injustica soclol desfaze ss relagdes ou os vinetlos qute se estabelecem ow s cist coe stint alee injustga (ow justiga, us que dissociam sua pereepgao do sofrimento alheio ¢, LiUstig, Aspe centimento de indignago eausado pelo reconhecimento de uma . Resignagao diante q, ovat frequentemente uma postura de resigna unum fendmeno”: a crise do emprego, considerada uma fatalidade, com, ravela uma epidemia, & peste, a0 célera e até & Aids. Segundo essa con cep. no haveria inustiga, mas apenas um fenémeno sistémico, econs rico, sobre o qual nao se poderia exercer nenhuma influéncia, (No entanto, snesmonocaso de wma epidemia como a Aids, constata-se que as reagdes de snailizagio oetva so possves, e que nao se ¢ obrigado a aceitar o fatun, uaaderiratese da “causaidade do destino”, a qual seria antes consequén cio de uma paralsia das capacidades analiticas (Flynn, 1985].) Acreditay que desemprego e a excusio resutam de uma injustica ou concluir, ag contro, que Siofruto de uma crise pela qual ninguém tem responsabili. dade nio é algo que dependa de uma percepcao, de um sentimento ou de uma intuigGo, como 0 é no caso do softimento. A questao da justiga ou da in. jusiga implica antes de tudo a questio da responsabilidade pessoal: a responsabilidade de certosdirgentes e nossa responsabilidade pessoal es tio undo implicadas nessa adversidade? As nogies de responsabilidade e de justica concernem a ética ¢ nav & pscologia.O juzo de atribuigao, por sua vez, passa principalmente pele adesio a um discurso ou a uma demonstracao cientifica, ou ainda a uma crenga coletiva, que seja inconteste para o sujeito que julga. Ammeu ver, a attibuigéo da adversidade do desemprego e da ex- clusio a causalidade do destino, 4 causalidade econémica ou a causalida- de sistémica nfo advém de uma inferéncia psico-cognitiva individual. A tese da causalidade do destino nao é resultado de uma invencao pessoal, deuma especulacéo intelectual ou uma investigacdo cientifica individuais. Ela dada ao sueito, exteriormente. Por que o discurso economicista que atribui o inforttinio cau- salidade do destino, néo vendo responsabilidade nem injustiga na origem ese infortinio, implica a adesio macica de nossos concidadaos, com seu corolri, a resignagio ou a falta de indignaco e de mobilizagao coletiva? 20 Digitalizado com CamScanner Christophe Dejo 2 P: ponder a essa pergunta, creio que a psicodinamica do trabalho que tem implicagées nos campos psicoldgico e socioldgico, pode nos trazet algumas luzes. Em suma, a psicodindmica do trabalho sugere que a ade sfo ao discurso economicista seria uma manifestagdo do processo de “ba- nalizagdo do mal”. Minha andlise parte da “banalidade do mal” no sentido em que Hannah Arendt emprega essa expressao com referéncia a Eichmann. Nao, como fez ela, no caso do sistema nazista, mas no caso da sociedade contemporanea, na Franca, em fins do século XX. A exclusao e a adversi- dade infligidas a outrem em nossas sociedades, sem mobilizagao politica contra a injustiga, derivam de uma dissociacao estabelecida entre adversi- dade ¢ injustiga, sob 0 efeito da banalizacio do mal no exercicio de atos civis comuns por parte dos que nao sao vitimas da exclusio (ou nao 0 sao ainda) e que contribuem para excluir parcelas cada vez maiores da popu- lagiio, agravando-lhes a adversidade. Em outras palavras, a adesdo a causa economicista, que separa a adversidade da injustiga, nao resultaria, como se costuma crer, da mera resignacao ou da constatacdo de impoténcia diante de um processo que nos transcende, mas funcionaria também como uma defesa contra a cons- ciéncia dolorosa da prépria cumplicidade, da prépria colaboracao e da prépria responsabilidade no agravamento da adversidade social. Vale acrescentar que aquilo que tentarei analisar aqui nada tem de excepcio- nal. E.a propria banalidade! Nao s6 a banalidade do mal, mas a banalidade de um processo que é subjacente a eficdcia do sistema liberal econémico. Entéo, nao é uma novidade? Nao! Somente é nova a identificagio de um processo. Processo que se torna mais visivel, na época atual, em virtude das mudangas politicas verificadas nas tiltimas décadas. Algum tempo atrds, quando as lutas politicas e a mobilizag4o coletiva eram mais inten- 2 Essa disciplina — inicialmente denominada psicopatologia do trabalho — tem por objeto o estudo clinico ¢ teérico da patologia mental decorrente do trabalho. Fundada ao final da 1 Guerra por um grupo de médicos-pesquisadores liderados por L. Le Guillant, ela ganhou ha uns 15 anos um novo impulso que a levou recentemente a adotar a denominagio de “andilise psico- dindmica das situacées de trabalho”, ou simplesmente “psicodindmica do trabalho”. Nessa evo- lucdo da disciplina, a questao do sofrimento passou a ocupar uma posicao central. O trabalhe tem efeitos poderosos sobre o sofrimento psiquico. Ou bem contribui para agravé-lo, levand progressivamente o individuo a loucura, ou bem contribui para transforma-lo, ou mesmo sut verté-lo, em prazer, a tal ponto que, em certas situagGes, 0 individuo que trabalha presery melhor a sua satide do que aquele que nao trabalha. Por que 0 trabalho ora é patogénico, o estruturante? O resultado jamais ¢ dado de antemio. Depende de uma dinamica comple cujas principais etapas sao identificadas ¢ analisadas pela psicodinamica do trabalho. 21 Digitalizado com CamScanner Christophe Dejours poder de controle sobre o processo pode pois ser aumentado pelo conheci- mento de seu funcionamento, Na impossibilidade de contribuir para a agdo, a andlise que vamos desenvolver pode ao menos servir & compreensdo, sem que possamos afastar o risco — mas & somente um risco — de uma reconciliacao trégica: “compreender, diz em suma Hannah Arendt, 6 uma atividade sem fim pela qual nos ajustamos ao real, nos reconciliamos com ele ¢ nos esforgamos para estar de acordo ou em harmonia com o mundo” (Revault d’Allones, 1994). Em 1980, ante a crise crescente do emprego, os analistas politicos franceses previam que nao se poderia ter mais de 4% de desempregados na populagio ativa sem que surgisse uma grande crise politica, a qual se mani- festaria por distirbios sociais e movimentos de cardter insurrecional, capazes de desestabilizar o Estado e toda a sociedade. No Japio, os analistas politicos previam que a sociedade japonesa nao poderia assimilar politica e socialmen- te uma taxa de desemprego superior a 4% (De Bandt & Sipek, 1979). E certo que nao sabemos 0 que acontecera com a situacao politica japonesa. Em compensacio, sabemos que na Franga somos agora capazes de tolerar até 13% de desempregados e talvez mais. Estavam errados os analistas 0s futurdlogos? Sim e nao, Sim, na medida em que suas previsées nao foram confirmadas pela realidade. Nao, na medida em que, provavelmente, a socie- dade francesa de 1980 nao teria podido tolerar 4% de desempregados, muito menos 13%, sem reagir mediante graves disttirbios sociais e politicos. Eviden- temente, nao é a progressividade do crescimento do desemprego que pode explicar essa inesperada tolerdncia social. Nao, pois esse crescimento foi rpi- do demais. Trata-se provavelmente de algo bem diferente. Nossa hipotese consiste em que, desde 1980, nao foi somente a taxa de desemprego que mudou, e sim toda a sociedade que se transformou qualita- tivamente, a ponto de nao mais ter as mesmas reacées que antes. Para sermos mais precisos, vemos nisso essencialmente uma evolugio das reacées sociais ao sofrimento, & adversidade e a injustica. Evolugdo que se caracterizaria pela atenuagdo das reacées de indignacdo, de cdlera e de mobilizacao coletiva para a ago em prol da solidariedade e da justica, ao mesmo tempo em que se desenvolveriam reagées de reserva, de hesitacdo e de perplexidade, inclusive de franca indiferenga, bem como de tolerancia coletiva a inagao e de resigna- Ao A injustica e ao sofrimento alheio. Nenhum analista contesta essa evolugaio. A muitos, ela causa desespero. Somente as explicagdes do fendmeno é que divergem. Nao se compreende como uma mutagiio politica dessa amplitude péde produzir-se em tio pouco tempo. Segundo a interpretacao mais corren- 23 Digitalizado com CamScanner A bonalizacdo da injustiso sociol sas € 0 espaco ptiblico mais aberto do que no periodo histérico atual, e., processo de banalizagdo do mal era menos acessivel a investiga¢ao. Ter rei portanto analisar o processo que favorece a tolerdncia social para Cop o mal ea injustica, e através do qual se faz passar por adversidade 0 que n, verdade resulta do exercicio do mal praticado por uns contra outros. Alguns leitores se sentirao tentados a nao prosseguir, por enten derem que este texto ndo se propde somente identificar um punhado d¢ responsaveis condendveis e analisar as estratégias que adotam para co meter seus delitos. Mesmo que haja lideres cujo comportamento merec uma andlise especifica, sua identificacdo nem por isso confere aos outros, em particular aos leitores ou ao autor, o beneficio da inocéncia. O presen te ensaio é um percurso penoso, tanto para o leitor quanto para o autor. Todavia, o esforco de andlise se afigura necessdrio. Creio que permite en- tender por que nao ha solugo a curto prazo para a adversidade social gerada pelo liberalismo econémico na atual fase de nosso desenvolvimento historico. Nao que a aco seja impossivel, mas para inicid-la seria necess4- rio criar condigées de mobilizacao que ndo parecem vidveis sem um pe- tiodo prévio de difusao e debate das andlises sobre a banalizacao do mal. Pois creio poder afirmar que a maioria de nés participa dessa banalizacdo. Devo acrescentar que, se a banalizagio do mal nada tem de excepcional, por ser subjacente ao proprio sistema liberal, ela também esta implicita nas vertentes totalitarias, inclusive no nazismo. Mas quais sao, afinal, as diferencas entre totalitarismo e neoliberalismo? Por onde passa a linha diviséria? A falta de uma resposta clara para essa pergunta, tal banalizacao parece deveras inquietante. Este ensaio visa, além de analisar a referida banalizacao, a identificar as especificidades do funcionamento social ordi- nério no sistema liberal. Deveriamos poder tirar dai algumas consequén- cias para caracterizar as formas de banalizagdo do mal nos sistemas totali- tdrios (que a meu ver nao foram satisfatoriamente elucidadas nem mesmo por H. Arendt). A banalizacao do mal passa por varias fases intermedidrias, cada uma das quais depende de uma construco humana. Em outras palavras, no se trata de uma légica incoercivel, mas de um processo que implica responsabilidades. Portanto esse processo pode ser interrompido, contro- lado, contrabalangado ou dominado por decisbes humanas que, evidente- mente, também implicariam responsabilidades. A aceleracao ou a frea- gem desse processo depende de nossa vontade e de nossa liberdade. Nosso 22 Digitalizado com CamScanner poder de controle sobre o processo pode pois ser aumentado pelo conheci- mento de seu funcionamento. Na impossibilidade de contribuir para a agdo, a andlise que vamos desenvolver pode ao menos servir 4 compreenséo, sem que possamos afastar o risco — mas é somente um risco— de uma reconciliagao trgica: “compreender, diz em suma Hannah Arendt, é uma atividade sem fim pela qual nos ajustamos ao real, nos reconciliamos com ele e nos esforgamos para estar de acordo ou em harmonia com o mundo” (Revault d’Allones, 1994). Em 1980, ante a crise crescente do emprego, os analistas politicos franceses previam que nao se poderia ter mais de 4% de desempregados na populacao ativa sem que surgisse uma grande crise politica, a qual se mani- festaria por disturbios sociais e movimentos de carter insurrecional, capazes de desestabilizar o Estado e toda a sociedade. No Japao, os analistas politicos previam que a sociedade japonesa nao poderia assimilar politica e socialmen- te uma taxa de desemprego superior a 4% (De Bandt & Sipek, 1979). E certo que nao sabemos 0 que aconteceré com a situagao politica japonesa. Em compensaciio, sabemos que na Franga somos agora capazes de tolerar até 13% de desempregados e talvez mais. Estavam errados os analistas € 0s futurélogos? Sim e nao. Sim, na medida em que suas previsées nao foram confirmadas pela realidade. Nao, na medida em que, provavelmente, a socie- dade francesa de 1980 nao teria podido tolerar 4% de desempregados, muito menos 13%, sem reagir mediante graves disturbios sociais e politicos. Eviden- temente, nao é a progressividade do crescimento do desemprego que pode explicar essa inesperada tolerancia social. Nao, pois esse crescimento foi rapi- do demais. Trata-se provavelmente de algo bem diferente. Nossa hipotese consiste em que, desde 1980, nao foi somente a taxa de desemprego que mudou, e sim toda a sociedade que se transformou qualita- tivamente, a ponto de nao mais ter as mesmas reagGes que antes. Para sermos mais precisos, vemos nisso essencialmente uma evolugao das reagoes sociais ao sofrimento, a adversidade e a injustica. Evolucéo que se caracterizaria pela atenuagdo das reacées de indignacfio, de cdlera e de mobilizacao coletiva para a aco em prol da solidariedade e da justiga, ao mesmo tempo em que se desenvolveriam reagées de reserva, de hesitacao e de perplexidade, inclusive de franca indiferenca, bem como de tolerancia coletiva a inagao e de resigna- cdo a injustica e ao sofrimento alheio. Nenhum analista contesta essa evolugao. A muitos, ela causa desespero. Somente as explicacdes do fendmeno é que divergem. Nao se compreende como uma muta¢ao politica dessa amplitude pdde produzir-se em t4o pouco tempo. Segundo a interpretacao mais corren- 23 Digitalizado com CamScanner N bonalizagoo da Injustiga soclol te, essa insblita passividade coletiva estaria ligada a falta de perspectivas (ecr, nomica, social ¢ politica) alternativas. Certamente é dificil negar essa falta cy alternativa mobilizadora, Mas seria cla, como pensam muitos analistas, a car, sa dessa inércia social e politica ou sua consequéncia? Particularmente, nav, creio que os movimentos coletivos de dimensio social sejam habitualmenty mobilizados pela vontade de marchar para uma felicidade prometida, aind; que por uma ideologia estruturada. Entendo que a mobilizagéo tem sua prin cipal fonte de energia nao na esperanca de felicidade (pois sempre duvida mos dos resultados de uma transformagio politica), mas na célera contra softimento ¢ a injustiga considerados intolerdveis. Em outras palavras, a acc, coletiva seria mais reagdo do que agdo, reagao contra o intoleravel, mais que ago voltada para a felicidade.’ Exemplo disso, entre outros, sao os movimen tos grevistas de novembro/dezembro de 1995: 0 que os provocou foi a cdlera contra o desmantelamento do servigo puiblico, e nao a perspectiva de um fu- turo risonho. Voltando a falta de alternativa ideolégica, sou propenso a crer que ela é geneticamente secundaria, e nao primaria, em relacao a falta de mobilizacao coletiva contra a adversidade e a injustica infligidas a outrem. Nessa perspectiva, devemos tentar explicar de outra forma, que nao pela falta de utopia social alternativa, a precariedade da mobilizacao coletiva contra o sofrimento. O problema passa a ser entéo o do de- senvolvimento da tolerdncia d injustiga. E justamente a falta de reagées co- letivas de mobilizacao que possibilita o aumento progressivo do desem- prego e de seus estragos psicoldgicos e sociais, nos niveis que atualmente conhecemos. E indiscutivel que os anos Mitterrand (1981-95) foram marcados por uma reviravolta ideoldgica em rela¢do aos ideais socialistas, sob a for- ma de um “economicismo de esquerda”. Mas essa reviravolta politica, que consiste em colocar a razéo econémica acima da raz4o politica, nado é a causa da desmobilizagao. Seria antes 0 resultado desta, resultado que, por muitos anos, foi ao mesmo tempo incerto e surpreendente. Nessa esfera, portanto, as condutas coletivas se distinguem das condutas particulares cujo rimum movens, em vez. de racional, pode set primariamente induzido pelo desejo (ou pela pulsdo). Tal diferenca me parece atestada pela experiéncia clinica em psicodindmica do traba- Iho, que faz do médico ou do pesquisador uma testemunha privilegiada do surgimento e da extingéo dos movimentos coletivos concernentes a justiga e & injustica nos locais de trabalho. Essa experiéncia, comparada a experiéncia clinica do psicanalista, sugere — voltaremos a esse ponto mais adiante — uma diferenca radical entre processo de mobilizago subjetiva in- dividual e processo de mobilizaao coletiva na agio. Digitalizado com CamScanner Christophe Dejours Esse perfodo de 15 anos também se caracteriza, no universo do trabalho, pela adociio de novos métodos de gestdo e diregdo de empresas, 0 que se traduz pelo questionamento progressivo do direito do trabalho e das con- quistas sociais (Supiot, 1993). Esses novos métodos se fazem acompanhar nao apenas de demissdes, mas também de uma brutalidade nas relagdes trabalhistas que gera muito sofrimento. Decerto que essa brutalidade é de- nunciada. Mas a dentincia permanece absolutamente sem consequéncia po- litica, pois néo ha mobilizagao coletiva concomitante. Ao contrario, essa dentincia parece compativel com uma crescente tolerdncia a injustiga. Acaso devemos ver nisso a prova da fragilidade dos discursos de dentincia no pla- no politico ou o indicio de uma duplicidade que, por tras da dentincia, es- conde uma tolerancia crescente? Sera que a dentincia funciona aqui de uma maneira inusitada, ou seja, que em vez de catalisar a aco politica ela serve para familiarizar a sociedade civil com a adversidade, para domesticar as reacdes de indignacdo e para favorecer a resignacdo, constituindo inclusive uma preparacdio psicolégica para padecer a adversidade? Digitalizado com CamScanner

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