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9222005, 0008 aa Antonio A. Arantes A GueRRA Dos LUGARES Sobre Fronteiras Simbdlicas e Liminaridades no Espago Urbano ' PARA VioLera A margem dos territérios que tém sido interpretados como expresso de identidades claramente contrastadas e bom definidas, a experiéncia social contemporinea tem Propiciado a formagio de lugares sociais efémeros, particularmente no bojo dos confitos # das sociabildades que se constituem nas pragas ‘eruas das chamnadas “megacidades”. A seguinte afirmagio feita numa entrevista para um programa de video por Hans, com 25 anos de idade, que se apresentou como pintor de carros, desempregado, ganhando efetivamente a vida em Sio Paulo como miché, oferece um Ponto de partida para estas rellexdes, Situando- se frente 4 reporter de televisio, em sua identidade hibrida, diz ele: “Somos partes de um ‘mundo s6. Estamos tos juntos, mas no estamos no mesmo mundo. Veet, se entrar no meu mundo, é estranho; eu, se entrar ne set sou estranho. Vocd nio fa me aceitar se soubesse ‘que tenho passagens na policia, ¢ eu nlo ia te accitar sabendo que voc® nunca roubou, Voc? tem um mundo e eu tenho outro mundo, ‘Os nossos dois mundos estio em guerra, isso!” Como se estrutura 6 espago social onde essa “guerra” ocorre? Qual & a natureza dessas fronceiras contraditérias que, a um s6 tempo, separam priticas soca e visBes de mundo antagénicas e as pde em contato, tornande possivel tal didlogo? Minha hipétese de trabalho é que a experincia urbana contemporines Propicia 2 formagio de uma complexa arquitetara de territérios, lugares ¢ nio-lugares, {que resulta na formagio de contextos espago- temporais flexiveis, mais efémeros ¢ hibridos do que 0s territérios socials identtérost. Os habitantes da cidade deslocam-se ¢ situam.se no espaco urbano, Nesse espago comum, cotidianamente trilhado, vio sendo cconstruidas coletivamente as fronteiras simbélicas que separam, aproximam, nivelam, hierarquizam ou, em uma palavra, ordenam as ‘categorias ¢ 0s grupos sociais em suas mituas relagdes', Por esse processo, ruas, pragas € a ‘monumentos transformam-se em suportes fisicos de significacdes compartithadas. Penso {que os lugares sociais assim construidos no estio simplesmente justapostes uns aos outros como se formassem um grande mosaico, A meu vor, eles se superpoem e, entrecruzando-se de modo complexo, formam zonas simbélicas de transigio®, onde 08 sujeitos e os eenérios de sua interagio desenvolvem atributos anilogos aos que Vietor Turner? conceituos como Jiminares, Em sua ambivaléncia, eles sto basicamente inter-estruturais: nio se classficam inteiramente em nenhuma das posigSes atribuidas ¢ escalonadas pelo direito, pelo uyares A guerra A guerea dos leg. costume ¢ pelas convengdes: e, assim sendo, tornam-se culturalmente ambiguos, simbolicamente invis cis ¢ poluidores. Mais do que territérios bem delimitados, ‘esses “contextos” ou “ambientes” podem ser entendides como zonas de contato, onde se centrccruvam moralidades contraditarias, como ilustra 0 trecho de didlogo transcrito acima: aproximam-se mundos que sio parte de um ‘mesmo modo mas que, assim mesmo, encontram-se irremediavelmente apartados. Algumas dreas nas grandes cidedes sio particularmente densas do ponto de vista desse entrejogo de territorialidades interrelacionadas'. Na Praca da Sé, por exemplo, inimeras ‘categorias sociais yanham expressio espacial, dando assim visibilidade piblica ds suas identidades contrastadas. Embleme oficial de So Paulo, sendo este tum dos marcos mais utilizados na construgio da imagem institucional da cidade, aquela praga freqiientemente abriga manifestagées politicas de vulto (al como comicios ¢ grandes concentragdes populares), Mas longe de cconfigurar-se como um cenario préprio para as solenidades do Estado, (como em Brasilia, por ‘exemplo, & 0 caso da Praga dos Trés Poderes) cla se apresenta, social e espacialmente, como ‘um esparo residual. Ai se evidencia, por um lado, a tendéncia de iniimeros segmentos sociais, afetados pela sindrome da “agorafobia” de que falou Camillo Site, retirarem-se continuamente para lugares privados*: Em contrapartida a0 scu esvaviamento ‘enquanto dimenséo espacial do que se poderia conceituar como esfera publica burguesa!, convergem para locais esse tipo e neles ganham, Visibilidade alguras das principais tensbes ¢ cconflites sociais. Ai se expe publicamente a falta de direitos de cidadania da grande maioria dda populagio da cidade, que se identifica na incidéncia de assaltos, no comércio ¢ ostensivo consumo de drogas, na construcio de moraclias “invisiveis”, no sub-emprego, na mendicancia & na oferta de uma vida melhor através das loterias, das pogiies milagrosas c das progagSes religiosas. Ao mesmo tempo, diversas instituigdes politicas € assistenciais trazem para ‘este cendrio a sua palavra ¢ as suas priticas salvadoras. E.ai, também, o controle social assume a forma ritualizada de policiamento ‘ostensivo: retérica que em principio criminaliza ohabitante das ruas, clasifcando-o socialmente como “coisa fora de lugar”, portanto simbolicamente suja ¢ perigosa'! Como ocorre em todo espago liminar, crurando as fronteiras entre o pablico 0 privado, entre os géneros, entre a necessidade € € propriedade privada, nesse ambiente as pessoas “jogam com o que ¢ familiar, desfamiliarizando-o™ Povoa esse espago, onde quase tude pode acontecer, a sensagio de risco; e ai, a simples suspeita de transgressio tem justficado prises, ceaté, por veves, a execugio sumiria!'. A contra pelo dessa ordem publica ritualizada, outras contratualidades e racionalidades se constituem, Este parece ser o “lugar puiblico” por cexceléncia nas grandes cidades brasileiras contemporaneas; particularmente a ele refere-se este ensaio. Proponho agora que o leitor fasa ‘comigo uma caminheda pela cidade de Sto Paulo; iremos a0 centro de metré. © metré de Sio Paulo & um dos poucos cespacos limpos ¢ silenciosos da cidade, Numa linguagem eficiente, uma vor que se ditige ao mesmo tempo a todos e a ninguém em particular adverte: “nao ultrapasse a faixa amarela”, “nao apdie nas portas do trem em movimento”, “ndo force as portas para abrir”, “use os corrimaos das escadas rolantes”. Como ‘num manual de instrugdes © em tom persuasivo, mas inflexivel, informa-se o piblico sobre como usar o equipamento € como comportar-se. Sinais coloridos indicam os caminhos do subterrineo paulistano, Essas mensagens dirigidas ao homem médio, a0 passageiro indeterminado, estabelecem entre que transitam no metré uma certa “contratualidade” ou cumplicidade solitaria de homens, mulheres e criangas que af se sentem. seguros, sob a vigilincia eletrénica da autoridade invisivel e conflantes na rapidez ¢ previsibilidade dos servigos. (Os pregos das tarifas no sie muito diversos dos cobrados pelos énibus urbanos-e a conjugagio dos dois fatores, prego e eficiéncia, fazem conviver nesse ambiente higienizado, onde prevalece o tempo pulsante, linear ¢ uniforme dos religios, uma gama de usuarios sensivelmente mais diversificada do que a dos ‘que utilizam outras formas de transporte de massa. De fato, embora evitem andar de énibus, as classes média e alta freqiientemente usam 0 metrd, ao lado de passageiros mais pobres, Nos subterrineos de Sio Paulo, as marcas paulistanas evidentemente nio desaparccem. A denominagio das estagies (Trianon-Masp, Liberdade, Paraiso, Tieté e Sé, entre outros) sinaliza atividadls, etnias, relagdes socials (e de ‘spago) presentes e passadas que participam da formacao da vida social nesta cidade. Esses topbnimos nomeiam marcos histories ¢ culturais, ‘que véo sendo constituidos (Arménia), roforgados (Republica) ou apagados (Praga das Banderas) pelo uso rotineiro do transporte publico, Lugar por exceléncia da faceta letrada e ordeira da cultura de classe média paulistana, O contexto asséptico das estagdes abriga, ver por outra, pequenos grupos que ai infiltram a suas sociabilidades barulhentas. Mesmo assim, ‘o-espaco do metrd constitui predominantemente uum todo referenciado a si mesmo, um sé lugar ‘ou, na conceituagio de Marc Augé, um “nio- lugar", Das escadas da estagio que dio acesso a rua véem-se as lanternas e postes vermelhos que fazem parte da cenografia orientalizante do bairro da Liberdade, Penetra-se o barulho das ‘ras onde se concentram lojas importadoras, casas de presentes ¢ de miudezas, armazéns de secos e molhados, delicatessens nikkey. Nas vitrines, oferecem-se roupas, utensilios e alimentos vindos do Japiio ou simplesmente de _Zosto (€ aspecto) oriental. Placas anunciam shiat-su, acupuntura, artes mareiais. Integram a paisagem templos budistas, um pequeno jardim conde carpas nadam num tanque entre pinheiros miniaturizados, restaurantes e sushi-bares. Este um dos ambientes onde se tematiza a matriz cultura japonesa, oferecendo alguns produtos expetacularizados, outros nlo, 20 consumo e ‘entretenimento de imigrantes japoneses, chineses, coreanos, descendentes e visitantes, (Caminhando pela Rua da Liberdade avista-se «Catedral ¢, a0 chegar 4 Praga Joio Mendes, 0 Forum ¢ 0 Palicio da Justica. Esses edificios, monumentais que celebram a igreja catéliea € 0 judictirio desencadeiam a preparasao do corpo. A gucera dos logares frances A geetes dos lagares para 0 encontro com trombadinhas, drogados, mendigos, policiais e com os “meninos de rua", ‘0s novos anti-herdis do centro da cidade. Um hhomem engravatado, com ares de magistrado, ‘caminha a passos largos em diregdo ao Palécio da Justiga, um metro a frente do guarda-costas que leva desajeitadamente o seu portfdlio de couro importado. Na transigfo da Liberdade para a Sé no hé passagens explicitas, pontes ou portas simbélicas, construidas pelo costume, por onde © possa cruzar com seguranga'®, Olhares ¢ ‘movimentos de corpo, significados sugeridos por gestualidades & primeira vista Incompreensiveis, instalam no forasteiro uma progressiva sensagio de desconfianga ¢ riseo, Maos dissimulam o volume do dinheiro nos bolsos, abragos deferdlem ostensivamente pastas carteiras da mira dos proviveis e supostos trombadinhas, ‘Nessa zona liminar tudo se vende: plantas ‘medicinals ¢ produtos para rituais de umbanda e candomblé, mapas rodovisrios e do corpo hhumano (os caminhos da geografia.e da anatomia), roupas ¢ sapatos, frutas, salgadinhos miudezas. Ao lado da Catedral avisto 0s ambulantes. © pequeno comércio de rua, as baneas formando uma grande aglomerasio e principalmente os raizeiros, que anunciam os seus medicamentos milagrosos, transportam-me para o Mercado de Sio José, na cidade do Recife, talver para lembrar que entre aqui c li pequenas diferencas se explicitam enibora nem tudo seja tio diverse. ‘A Praca da Sé, onde se encontra 6 marco zero da cidade, é algo mais do que um lugar de comércio ¢ de tréfego intenso de pedestres, por ‘onde todos passam e ninguém permanece. A Catedral ¢ 0 seu contomo constituem um importante marco de referéncia e um lugar ‘central para muitos moradores do espago paulistano, como foi possivel constatar em pesquisa recentemente realizada com jovens habitantes das ruas. Essa area, que é suporte de muitos lugares sociais polissémicos, simulténeos © entrecruzados, foi uma das principais referéncias utilizadas por eles em seus desenhos sobre “centro da cidade”™, Policiais militares vigiam. Criangas & adolescentes ai vivem a sua condigio hibrida de seres culturalmente invisiveis, que mimetizam a paisagem urbana como se fizessem parte dela, ¢ 40 mesmo tempo sdo objeto de ages caritativas cede politicos sociais; de jovens entretidos ern suas brincadeiras ingénuas, em seus afetos ¢ dramas pessoais e, ndo obstante, pessoas tidas como violentas e perigosas que, a0 se aproximarem de quem passa, provocam medo ¢ agressividade. Perto do chafariz, logo saida do metrd, meninos ¢ meninas conversam em ‘grupos de cinco ou seis, namoram, brincam e cheiram cola ou esmalte em sacos plisticos reaproveitados, “fazendo a mente”. As torres e a cipula da Catedral, a escadaria, as palmeirasalinhadas, a estelar rosa dos ventos nna base do marco onde a nave esculpida referencia as distincias geogrificas e os pontos cardeais a partir do centro: marco zero, estou em Sio Paulo, © olhar do pesquisador parado identifica diferengas entre passantes ocasionais ¢ ocupantes. A observaciio das atividades que ‘ocorrem num espago delimitado, ao longo do tempo, permite acompanhar come se A gucrre dos legaree fevente de Ave cconfiguram as relagées sociais, os confltes, 03 jogos de poder e a violéncia. Nao em ‘movimento, mas ocupanco um lugar fixo, reconhecem-se tramas, a sucessio das tramas até © inicio do novo enredo. Observo 0 desenrolar das cenas, a proximidade fisica dos corpos ¢ os toques freqiientemente procurados, que materializam a confianga e o aconchego. O homem abragaa companheira maltrapitha ¢ the dium beijo no rosto. A mulher penteia os cabelos do garoto sob marquise de umm prédio ao amanhecer, enquanto outras criangas dormem abrigadas em caixas de cartio. © homem que faz bicos § noite, amarrando pilhas de jomats muma distribuidora para receber o dinheiro da média e do piozinho ‘da manha seguinte, diz é ter sido assaltado varias vezes enquanto dormia, Agora, ele descansa de dia por ser mais seguro. Cacos ¢ restos

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