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® & COLEGAO ESTRELAS DA LITERATURA JUVENIL a LITERATURA JUVENIL 3 Livros quete surpreendem pela historia, queteatraem pela imagem, ‘queteconguistam pela mensagem, que se distinguem como estrelasbrilhantes, LIVROS QUE FICAM PARA SEMPRE CONTIGO Pee es eee De Te ae Co ooo Tie ee eo eae ‘que nos prende e questiona: «Como vais mudar o mundo?» ee See eee Aa rene ee ey nD res Se ee 3 ditios. Ur Este livro aborda com humor e sensbilidade uma série de questies que afetam os adolescentes: bullying, insucesso ee eee er Sire eed eet core ete Sree tn JASON autor american, hascide a 6 de98, Encontrau inspiragao no ray paca ‘comesara escrever poesia a9s g anos de idade e€ hoje um conceltuado autor de ficgao e poesia para jovens e adults. Durante 0 ano de 2020 fol o Embairador Nacional para a Literatura Juventl (0s seus tos receberam varias nomeacoes fe prémios,ineluindo o Coretta Scot King Honor, o Newbery Honor 0 Printz Honor, fo john Steptoe New Talent ANard eo Kirkus vec he finalists do {ed Fibula, 2019) National 8aok Award e deu inicio a série bestoeller Track «que se sepuiram Patina (ed. Fabuls, 2020}, Sunny Lu. Olha ara 0s Dois Lados fa} tambér Finalists do ‘National Book Award © desejo de Reynolds 6 nunea eserever livros hatos Como ele declara no seu sit! «lsto 60 que eu sels hd multos = MUITOS —javens que odelar ler Eu sel que muitos desses Inimigos de lvtos si0 rapazes, Eu sei que muitos desses rapazes que odelam livros, na vetdade, nso odeiar livros eles odelam odio» PARA OS DOIS LADOS ido original “Talo: Lac Bah Ways Astor: aon Reyols Testo: © 3019 fson Reyne Pubieado po Ans, uma chances d Son nd Sct Ine, Now Tague. Publado por acon com Pippin Propet, Ln tend de Rigs Poole, Lond. Todos order resend. gto em portagués "Tuo: Che pros Di Lads Tada Susan Cindowo Festa Reso: Joa E, Oe Musragao da caps: © 2019 Aka Nabst ‘lpg ds aps Wonder Studio Pinos Rage Sika ISON: g78-9895643806 eps lea: 478 368/20 1 fits fest de aoa lnmpreso pela Tousenense i Lous (© 200 Fiala uma chancel lao Elton, “Todor oe dios reserves, Proibide a epost ou pul det ire sem pia atorizao da editors. Be tee ‘us Alf d Sia, 14 2610006 Amara «Portugal “e135 21838000 «GPS 38.42, 92504 contactable pt maul t= @ abla pt arent incondicional de sisi e qualia: se no far sass coma guaidade dest fiz, pert derltedretamente Fibula Jjumtando tur, tert emBolsado sm ris penguin Esta garni ( aiconal ae seus dito de consunidor ccm nado lint Para a Bloise Greenfield Invice aa Marton Macacos do Navi Ursos-D'Agua Raa Plcer (0s Maquina Zero Votam a Atacar Fan Bain Un State Chamade Skier vend Petal Come Olharparaos (Dis) DoisLados ua Barman Em Pé de Gueera Fa Chestnut Cinco Cosas Mais Simples do Que o Passou-Bem Secreto do Simeon e do Kenzi faa nesle (© Grande Plano do Setchmo reid Soutien © Pale do Use Bugs Pua Rogers Come Deixar un Rapaz em Brasa (Csi a via Pot (© Giowassoura pradecinentos Fa ” 6 % ™ 7 155 195 a RUA MARSTON MACACOS DO NARIZ~URSOS-D’AGUA sta histéria devia comegar como comesam as me: Ihores histras, Com um autocatro escolar a cair do eéu, Mas ninguém viu tal coisa. Ninguém ouviu nada, Por isso, esta histéria vai antes comegar como comegam as... boas histérias, Com macacos do nariz, — Se nfo tirares esses macacos nojentos do nariz, juro que nio vou contigo a pé para casa, Nio estou a brineae! {A Jasmine Jordan disse isto como dizia quase tudo: ‘com 0 corpo inteiro, Como se as palavras Ihe saltassem da boca ¢ a percorressem da cabesa aos pés. Dizia-o com intengio, Dizia-o no mesmo tom com que a mle Ihe dizi: «Nao bringues comigol», de cada ver que ten- tava conversar com ela sobre assuntos importantes para sua evida real» ea Jasmine punta a miisica aos berros nos ouvidos para abafar 0s «berros» da mie, com os ollos no ecrd e 0 dedo a deslizar, a deslizar. «Se nko tirares a porcaria dos fons... ou lé como se chamam, dessa cabega de allo chocho, vais fcar com as orelhas a zunir,e ola que nito da misica» ‘Aquele tom. 0 comentirio da Jasmine dirigirase ao seu melhor amigo, o sempre ranhoso Terrence Jumper. O 7. Na verdade, Jasmine dizia que ele era o seu «melhor ami- {go rapaz», mas como nao tinha nenhuuma melhor amiga rapariga, 0 T] era 0 seu methor amigo de todos os me- Thores amigos e ponto final. E ela, a dele. Ja hé muito tempo. Desde que ele se mudara para a Rua Marston, trés casas depois da dela. Desde que as suas maes s6 0s deixavam ira pé para a escola se fossem juntos, porque cram as tinicas duas criancas que viviam naquele quar- tei 10. Hi seis anos, ou seja, desde sempre. Ja dera 0 toque, e a Jasmine e 0 T] estayama sair da ‘ltima aula do dia, a tnica que tinham juntos: Ciéncias da Natureza, com o professor Fantana. — S6 voltaste para a escola ha dois dia e jd comecas- tea chatear-me? (© Ty girou o disco preto da fechadura do cacifo com a confianga de quem sabe exatamente que reentrincia corresponde a cada mimero. — Que € que queres? Otha para essas nojices. A sé- rio, T], nem sei como que consegues respirar — con- tinuou a Jasmine, Ao contrario do’ a Jasmine marcava acombinagao da sua fechadura com toda a concentragio do mundo, como se, de um momento para outro, os ntimeros pudessem mudar ou os dedos, paralisar. Felizmente, ‘0s dois cacifosficavam lado a lado e, na estranha even- tualidade de alguma dessas coisas acontecer, a Jasmine sabia que tina ali o T} para a ajudar. (0 TY encolheu os ombros, airando o livro de Cién cas para dentro do armério de metal. Safa de la um fedor a chulé que pairava no ar como uma nuvem de pocira revolta. Revoltante. © fundo estavaatafulha do de pacotes vazios de snacks, que a Jasmine enflara por debaixo da porta, entre uma aula e outra, durante aqueles dois dias. Lixo... sem sombra de dévida. Mas a Jasmine e © T) chamavamdhes «bandeiras de amiza de». O lixo do amor. E como a Jasmine fltare durante algum tempo, funcionavam como uma espécie de bi- Ihetinhos que diziam «tive saudades tuas». Em miga Ihas de Cheetos. Quando, por fim, as pequenas bolas de ranho seco viram a luz do dia, 0 T} pegow na pon ta da tshirt e essoouse. Até ficou com um bocado de rmuco pendurado no bio, enquanto escarafinchava, rrancava e puxava para conseguir tirar os macacos sem que contasse oficialmente como «meter o dedo Depois inclinou a cabega para tris e mostrow a Jas- ‘mine o interior das suas narinas. — Esti melhor? — perguntou, em parte honesta- mente, em parte desejanda que tivesse sobrado pelo menos um macaco do nariz que fizesse uma careta ameagadora a Jasmine, A Jasmine inspecionou o interior do nariz do"T] como se espreitasse por um microseépio castanho de pele, aparentemente indiferente ao facto de ele ter acabado de usar a tshirt — que trazia vestida — como Tengo de papel. Porque havia de ficar incomodada? Nao que niio fosse nojento (porque era), mas conhecia oT) hé muito ‘tempo. Depois das coisas que jo vira fazer, uns macacos colados & bainha da t-shirt nto passavam de umas lante- joulas ranhosas. Um toque de estilo. Vira-o usar os de- dos para arrancar pastilhaelistica da sola dos ténis (dele dela), claro, nada superava a vez em que tinha esborra- cchado no préprio brago um mosquito que tinha acabado deo picar e, a seguir, lambera aquela mistela de inseto cesangue. Desafiado pela Jasmine. Em troca de um délet, Ambos acharam que valew a pena. — Consigo ver o teu cérebro — disse a Jasmine, fin- gindo que continuava a examiné-lo, — B fica a saber que Ihe falta um bocadao. — Apertando o nariz do T}, enou: — Vi, faz forgal Nao saiu nada. Esti limpi- snho, Acho que jf posso ser vista contigo. — Se odizes. —O'T} bateu coma porta do cacifo. — Na verdade, somos todos pedacos de ranho. —Talvez tu sejas, — A Jasmine bateu coma porta do cacifo, — Mas eu nie sou. — Isso é 0 que tu pensas —continuou oT], enquan- to trocavam de mochila um com o outro. A dele era mais lve. A da Jasmine estava a abarrotar de manuais ‘escolates, com todos os cadernos do mundo. Trabalhos de compensagao, A Jasmine conseguia carregé-la so zinha, mas oT] continuava preocupado com as costas dela, cam os misculos dela, porque a Jasmine ainda no recuperara totalmente do ataque. Seguiram pelo corredor & pina, ensurdecedor com o chiar dos ténis e a tresandar com o fedor de fim do dia. — Bu tenho andado a pensar nisto: os macacos so ‘gua misturada com pé e outras particulas do ar... — Como é que sabes? — interrompew a Jasmine. Conhecendo © T}, ele podia ter ouvido aquilo em qual: ‘quer ado, como por exemplo da boca da Cynthia Sower (a Say-So, como toda a gente Ihe chamava}, que 99,9999 por cento das vezes estava no gozo. — Pesquisei na net um dia destes, para tentar des- cobrir porque & que sto tio salgados — explicou o — Espera! — A Jasmine levantou a mio, impedindo TJ de continuar. —"Tu comes os macacos? — Dantes comia, qual € 0 problema? Nao julgues um puto pelo seu passado.— OT] abanou a cabega, em reprovagio. — Agora, se nio te importas, para de me interromper e deixa-me continuar a explicar a minha hi-p6-te-se — pediu, silabando a palavra para dar mais forga. — Como en estava a dizer, os macacos do natiz ‘to 86 gua e pé, — Espetou um dedo noar.— E os se- tes humanos sao basicamente feitos de agua, certo? Foi isso que o Fantana explicou no inicio do ano, nao foi? Fri. — Entao, pensa comigo: aos domingos, na missa, esto sempre a dizer que Deus nos criou do pé, certo? OT ea Jasmine pertenciam a0 coro juvenil da mes- ‘ma igreja, O T] passava a vida a pedir & Sra. Bronson, ‘a maestrina do coro, que o deixasse cantar solos, embo- 1a desafinasse como um conjunto de espanta-espiritos no meio de um furacdo, E a Jasmine nao se sala mi- to melhor. A ‘nica diferenca era que ela sabia disso e jamais se lembraria de pedir para ser solista. Adorava usar a «batina de finalist, harmonizay, balancar-se 20 som da miisica e bater palmas, encaixando a sua voz nas outras, como uma gaveta numa cémoda. A mie sempre Ihe dissera que suster uma nota jé era talento suficiente, (© TT} podia nao conseguir suster uma nota — esse o era definitivamente o seu talento —, mas conse- guia suster uma conversa, Elf continuou. — Deus fez 0 homem do pé e soprou:lhe vida pelo nariz, certo? —sim.. —Seré que Deus tina mau halito? =O que? — Bsquece, Provavelmente no. — OT] retomou 0 fio a meada, — Bem, se Deus fez 0 homem a partir do 1%, por alguma razao, 0 homem. — Ea mulher —acrescentou a jasmine. — Sim, o homem e a mulher... agora slo quase to dos feitos de égua, isso significa que nés somos basica mente Sgua e p6, certo? — OT] agitava as mies no ar como se estvesse a escrever uma equaga0 complicada xmum quadro invisivel A Jasmine nao disse nada, nem oT} precisava que ela dissesse para concluir a sua teo ria, — Ento.. (A Jasmine quase conseguia ouvir 0 afar dos tambores atvis dos olhos do amigo} Somos todos... macacos do nariz. A satisfacio iluminava o rosto do T] como um born creme hidratante, ea Jasmine mostrava a confusio no seu como se tivesse levado uma estalada de uma mio peganhenta. — Errado — retrucou ela. — Nto és obrigada a acreditar em mim — disse 0 ‘T}, segurando-he a porta, quando finalmente sairam da cso = Eno acredito. — Nem és obrigada a acredtar—repetiu oT]. —S6 que isso nto quer dizer que nao seja verdade. Podes achar que ando na escola s6 a passaro tempo, mas olka ‘que tenho aprendido muito. Até devia comegar a ensi nat, porque, enquanto todos esses cientistase professor res como o Fantana andam ocupados a tentar descobrir se existem extaterrestres, eu descobri soainho que os ‘acacos so tipo. bebés antes de serem bebés! {A Jasmine nao conteve uma gargalhada. B que, ape- sar de 0 T) ser riiculo e inritantee, as vezes, nojento, 4 Jasmine adorava que ele a fizesse sempre rit, quer ela uisesse, quer nao. Quer fosse de propésito, quer nko, © 1} conseguia sempre desarmé-la. Conseguia rachar ‘um bocadinho da armadura que ela erguera A sua volta durante 0 ano escola, TTinha sido um ano dif para a Jasmine. CComesara com a separacio dos pais e com o pai a salr de casa, Sem dramas. Sem discussdes. Nada de es candalos. Nada como nos filmes. Pelo menos, que ela soubesse. Apenas uma conversa verdadeiramente des- confortvel & mesa da cozinha, com os pas a olharem para ela como quem olha para um peixe exético as voltas num saco de plistico, enquanto cla se contorcia na cadeita como se a sua propria pele the estivesse dema- siado juste —Nés gostamos muito de ti, Nao tens culpa nenbuma, — Por vezes, as relagdes mudam, —As vezes, as pessoas vivem melhor separadas. —Nada disto & culpa tua Fue o teu pai amamos-e muito, — Fue tua mie amamos-te muito Na verdade, essa parte tinha sido exatamente como nos filmes. Sobretudo aqueles com protagonistas da sua idade. A reunio A mesa da cozinha. A erianga en- fiada no quarto, Os pais a baterem & porta. A crianga a dizer umn monte de palavrdes 20 pai. A mae a raha: «cTento na Kingualy E as visitas ao fim de semana. E 0 desconforto de tera mie e o pai a perguntarem se est tudo bem, uma eoutra e outta e outra e mais outra vez E isso foi apenas no primeiro trimestre. Antes de ela softer 0 pior ataque de todos. Nao foi um atague por parte de ninguém. A Jasmine mo tina sido assaltada nem nad do género. © corpo dela atacou-se a si pré- pro, A Jasmine nasceu com uma doenga sanguinea — anemia faleiforme — que pode afetar quase todas as partes do corpo. Os drgios, as articulagbes e até a visto. No geral, munca Ihe causou grandes problemas. Umas: dorzinhas de vez em quando, mas nada de insuporté- \quele ano, em que a crise foi tao intensa que 0 ‘corpo dela entrou em ebuligio, Pelo menos, cla sentiu vel. at -se assim. As miios e os pés incharam-he como lavas, de borracha cheias de agua, pesadas e tensas, prestes a cexplodir. Os miisculos pareciam de madeira, ¢ ela tinha ‘a sensagdo de que os ossos se rachavam e que de lé nas- A Jasmine faltou a escola durante um més, © cacifo ficou fechado. O cadeado, trancado. A imae eo pai, juntos e separados, pairavam em volta dda cama dela no hospital como extraterrestees saidos de um filme ainda mais piegas do que os dramas de ado- lescentes. A frieza dos pais era compensada pelo tinico ce incompardvel T], que aparecia Ia, contava umas piado- las, quebrava algumn gelo e deixava mais um pacote de batatas fritas vazio na mesinha de cabeceira da amiga, Para juntar aos 30 que jé Ihe tinha enfiado no cacifo, Bandeiras de amizade, E quando, hé dois dias, regressou finalmented Escola do 2° Ciclo de Latimer, e foi logo bombardeada com perguntas de colegas que quase nunca Ihe haviatn dit sido palavra até ela ficar doente — as mesmas pessoas ‘que olhavam de lado’ conta da sua cumplicidade com © T], porque «os rapazes ¢ as raparigas ndo podem ser 6 amigos» —, a Jasmine (juntamente com a psicéloga da escola, a Sra, Lane} viu-se obrigada a arranjar um_ plano para recuperar a matéria em atraso. Nao tinha conseguido estudar nada enquanto esteve de cama, por- «que mal se mexia, Dofa-Ihe segurar numa caneta. Dots- -Ihe virar as paginas, Por isso 6 que a Jasmine sabia que ‘ndo era —nem munca fora —um macaco do nariz, Ela ndo era assim tio mole —Talver todos os rapazes sejam pedagos de ranho. Gostam de se armar em durbes, mas no passam de uns pinguinhos de agua pocirenta — brincou 2 Jasmi- ne, enquanto atravessavam, no seméforo, a passadeira que cruzava o rio de alcatro como uma ponte entre a escola e o seu bairzo, Viraram para a Avenida Portal, um caminho que ti- sham feito centenas de vores. Um caminho que oT] se viu obrigado a fazer sozinho nese tiltimo més. E ainda {que a Jasmine tivesse voltado para a escola na véspera, 4a mie estava demasiado nervosa para a deixar andar a ‘pélogo no primeiro dia, Por isso, era a primeira vez em, ‘muito tempo que eles iam juntos para casa, — Mas eu no sou nenhum macaco — continuot! la, — Até porque os macacos do nariz so arrancados ¢e levam um piparote. — OK, mas entio és o qué? — perguntou oT. ‘A Jasmine encolheu os ombros. — Hum... uma rapariga? Sou eu prépria, — Va lé, Jasmine, no estis a ajudar — dissethe 0 ‘Tj, abrindo os bragos e gingando como um vigarista de terminado a vender as pessoas a sua banha da cobra. — Seno és um macaco do nariz, mas tvesses de ser outra ‘coisa qualquer, o que serias? A Jasmine matutou no assunto enquanto viravam & ‘esquerda para a Rua Marston, usa rua ladeada de casas que, segundo a mie, jé existiam ha muito tempo. «Um, baitro antigo», dizia ela sempre que passavam de car 10 por bairros mais novos, ¢ aparentemente mais agra diveis, onde cada casa era igualzinha & anterior, como ‘um coro de habitagdes vestidas com as mesmas tinicas, viradas para 0 mesmo lado, a cantar a mesma melodia nna mesma nota, o que resulta numa cancio muito, mui to abortecida, Mas na Rua Marston hevia de tudo um pouco, do tijolo burro ao Iuxuoso vinil. Das janelas pa- norémicas 20 estilo colonial. Das construgdes térreas 20s cedificios de trés andares. Uma vedagao aqui ali,um por- ‘to ali e aqui. Relva. Gravilha. AleatrSo. Cimento, Tudo suficientemente velho para parecer vivido, Para parecer uusado, Tudo suficientemente antigo para ser acolhedor c ter servido uma geragao ou duas. Tlvez mesmo tes, — Sei li — disse ela, por fim. — 0 que era aquilo de {que o professor Fantana falou hoje na aula? Até mostrou ‘uma fotografia... Atéfazia lembrar um pedaco de ran, Its falar daquca coisa horrrosa tip lesma? © uso do espag, om Hi como se chamava Sina —confirmotsa Jasmine. Mas depois paro Quer dizer, eu nto sow uma «coisa hororosa>, para ve Fique claro, mas sou iso: rm wrsod'§gua — con- «luis, com um aceno de cabess ta, um urso-agua — ruse oT]. — Aquela coisa inka umas eto pats e-umas unhacas to compridas como as da minha mie velha. Ema boca esquisita tal como a da minha mae velha, — 0-7} espetou os I bins, depois puxou-s para dentro etornou a espet-ios «a punilos, fingindo que mascava um pacote intro de pastthaselsticas. — Aquela coisa s8 nfo é to assusta- dio como a minha mite velha, porque é bué pequeni- hina, nisso € muito diferente da minha me velha Muito diferente mesmo, —A senhora Macy nao éassustadora, puto =A senhora Macy nfo é « minha mde velba. # a nina mie nova. Ba minha meade, nem a conheco. — Cato | Jastine tentou organizar mentalmente todas as snes: otra equagdo noutro quadroinvisivel — Mas a minha mae veha.. — OT] calouse, es tremecendo como se tvese sido trespasiado, Por uma rmeméria dolorosa, taez. — Bem, ms por que raio queres ser aquela coisa? Um urso-d'gua ou io que é [Nem se consegue ver, Pelo menos, os macacos do nariz vveem-se bem, — Por causa do que o professor Fantana disse sobre 6s cientistas o terem estudado e descoberto que, mes: ‘mo assim pequenininho, talvez seja o ser vivo mais re- sistente do planeta. Ou talvez do Universo, © professor explicou que ele sobrevive a0 calor mais quente e a0 frio mais gelado. F & pressdo mais pressionante, Até o enviaram para o espago. Para o ESPAGO! E, quando vol- tou, andou a rastejar de um lado para o outro como se nada tivesse acontecido, Rastejou, rastejou, rastejou, Tal como eu, o dia inteiro, Sem lasear uma unha, ‘A Jasmine soprou os dedos e fingiu puxar o lustre is pontas pintadas de roxo, i, se acreditares nessas tretas todas, — Se tu podes acreditar que Deus nos fez a partir do , 0 que eu acho perfeitamente possivel, porque és a pessoa mais poeirenta que alguma vez conheci, eu tam- bém posso acreditar no que o professor Fantana disse sobre 0 urso-d"gua, Se calhar até andamos a pisé-los todos os dias e nem sequer sabemos. © TY olhou logo para o chto, perguntando a si mes- ‘mo o que viveria entre as fendas do cimento. Cogow os brasos como se pudesse ter ursosd’igua a rastejar nas gretas da sua pele seca sem saber, por no conseguir vélos. A Jasmine observou-o a contorcer-se, Hum, Era a primeira vez que o via nervoso. OT) io tinha ‘medo de macacos do nariz nem de cocé de cao, nem de comer bichos nem de nada desse género... talvez por serem coisas que ele conseguia ver. Podia esmagi-las, desfazé-las, fazé-las desaparecer. A Jasmine apercebeu se entdo de que ele parecia assustar-se com aquilo que ‘no conseguia esmagar ou desfazer. As coisas invisiveis por natureza que existiam A sua volta — talvez até em si proprio — e contra as quais nada podia fazer, Entretanto, chegaram a casa do TJ. Sem porto nem cerca. Umma parcela de relva seca. Era uma casa pequc- nna, de madeira, que parecia ter sido construida & mao. Sem buldézeres nem nada disso. Apenas maos huma- nas e amor e martelos e pregos ¢ mais amor. Havia um bburaco na porta de rede que If estava hé anos. Obra de ‘ain dos pés do T], Ele dizia que, de vez em quando, os seus pés ficavam furiosos e desatavam a dar pontapés. ou a pateat 0 chdo ou a correr. Tinham muito mau fei- tio, dizia ele, E a Jasmine ria-se, porque as piadas do ‘amigo eram sempre engracadas, embora soubesse que «quase nunca eram piadas. Sentaram-se nos degraus da entrada, ombro com om bro, ¢ conversaram mais sobre ursos-d'égua e macacos do nariz, e decidiram que talvez pudessem ser ambos. — Ursosdigua-macacos? — sugeriu a Jasmine, a dar sum né nos atacadores, OT] propés um ligeito ajuste, = Que tal. macacos-ursos-<’égua? — Boa! Macacos-ursos-d'igua —animousea Jasmine, —Adoro! A porta de rede abriu-se atris deles com um chio que cra uma imitaglo perfeita da vor do T}. — Bem me pareceu que tina ouvido qualquer coisa ci fora. — Era a Sra. Macy, a (nfo tio) nova mie do T). Mae dele hi seis anos. Estava vestida com 0 uniforme do trabalho: cals azul-marinho, uma camisa da mesma ‘cor com um craché que dizis 0 seu nome e, a destoar do Conjunto, uns chinelos felpudos corde-rosa desbotado. A Sta Macy baixou-se, dando um beljo na cabesa da Jas- mine ¢ do T], ¢ os retalhos do seu dia envolveram-nos ‘como halos de trabalho érduo.— Que tal correua escola? — Bem — respondeu o T], sorrindo, fungando, covandorse, —Bastante bem — confirmou a Jasmine, — Bisso que eu gosto de ouvir — disse a Sra, Macy Ambos sabiam de cor a pergunta que se seguis: — Eo que é que aprenderam hoje? ‘Ainda que a Sra. Macy perguntasse todos os dias a ‘mesma coisa, parecia sempre genuinamente interesse dda na resposta. A Jasmine olhou para o TJ. Ele olhou também para cla, oom um novo macaco 2 espreitar da narina esquerda, 36 Varia ter surgido do nada, como é habitual nos maca «os, He Himpouso com as costas da mao, e responderam ‘ov dois, em tnfssono, tal qual um coro de domingo: Nada. 05 MAQUINA ZERO VOLTAM A ATACAR Ss alguma vez te cruzares com o John John Watson, a Francy Baskin, a Trista Smith e, sobretudo, com 0 Britton Burns (ou «Bits) —os Miquina Zero—, 0 ni co conselho que posso dar-te € que fiques de olho na lua carteira, Aqueles quatro roubam qualquer coisa que tlinte, até as tuas mos, se estiverem enfiadas nos bolsos e fizerem demasiado barulho. Na verdade, eles roubar-te-iam os bolsos de dentro dos bolsos, se con: soguissem. Um dia, entraram num minimercado que linha em cima do balcio um daqueles pratinhos com ‘moedas mitidas, deixadas pelos clientes para facilitar 0s trocos, e levaram-nas todas. Nao sobrou nem uma. Foi pegar e andar. ‘Bem, na realidade, nfo fizeram isso s6 uma vez. Era pho nosso de cada dia. Faziam-no tantas vezes que ” 0s lojistas comecaram a esconder o pratinho ats da mdquina registadora e iam Ié buscar uma moeda sem- pre que precisavam de dar troco a um cliente. Outras vezes,o Bit, Francy, 0 Jon John ea Trista desafiavama as pessoas para uma batalha de moedas. A ideia era os dois adversiios porem, a0 mesmo tempo, uma mocda 4 rodar no tampo de tuma secretiria ou de uma mess, como se fossem pises. Vencia a moeda que derrubasse 2 outa ou que se aguentasse mais tempo a rodar. No que eles respeitassem as regras. Os Méquina Zero fice ‘am sempre com o$ trocos dos adversrios, ou entio os auversirios feavam com um olho negro. E nenhuma ‘moeda valia tum olho negro, ‘Mas 0s Maquina Zero no roubam s6 por roubar. 'Nio roubam para se divertrem, Em abono da verdade, nem gostam de fazer. Fazem-no porque no t&m our sala. Ou, pelo menos, é nsso que aeredtam. Antes de formatem os Miquina Zero, ji exam membros a forga de um outro grupo. Os Senhas Grtis. Até parecia uma coisa fie, mas s6 parece, Hles no almogavam & borla porque eram especiais. Nem porque eram ‘20 popu- lates e adorados que a cantina da escola Thes oferecia douradinhos e batatas fritas por conta da cas, Eles al _mogavam sem pagar porque os pais estavam nas lonas, lisos, sem chela, esos como um carapau. Ngo tinham sequer dinheiro para comprar as senhas de almoso. E isto aplicava-se a todos os Miquina Zero, sem exce- ‘glo, Nao era algo de que se orgulhassem, tao-pouco de {que se envergonhassem, embora alguns dos outros alu- nos gozassem com cles. — Se, todas os dias, eu vos der um bocado da bordéa da mina pizza, no fim do ano letivo tém um pao inteiro Era o estilo de piadinhas que um miédo chamado Andrew Knotts costumava fazer, pelo menos até o Bit © ouvir, porque depois disso... digamos que as piadi nnhas do Andrew mudaram de estilo ara que fique claro, o Bt, o John John, a Francy ea ‘Trista nfo eram os tinicos Senhas Gratis, mas eram os \inicos Senhas Gratis com pais sobreviventes de cancro. Tinham-nos juntado num grupo de apoio, drigido pela psicbloga da escola, a Sra. Lane. Sentados em circulo, com uma caixa de lengos de papel a passar de mao em, ‘mao, falavam do dificil que era verem os pais a emagre- cer, verem o seu cabelo a enfraquecer e 2 cair, verem 08 seus corpos a tra‘-los. Falavam do assustador que era quando perguntavam a si mesmos se a me ou 0 pai iriam sobreviver e, se no sobrevivessem, como vive- ram sem eles Mas naquele citculo nunca sefalava daquilo que Ihes tinha virado a vida, a deles ea dos pais, de pernas para ‘0 ar quanto a finangas. De como tinham sido as mui- tas cirurgias e os incontéveis tratamentos a sugar-ihes todo o dinheiro, Era um assunto que nao fazia parte do trabalho da Sra. Lane, N3o fazia parte das rodas de umbaya em que o Bit fingia ser demasiado durao para participar. E, na verdade, eles nunca teriam sabido nada sobre esse assunto se a male do Bit no Ihe tivesse con: tado o que se passava, Mas ela contou, E 0 Bit contou tudo aos outros. E 0s outros perguntaram aos pais se era verdade, — Nao precisas de te preocupar com isso — disse a mie do John John. Cancro da mama. —Quem é que te contou isso? — perguntou o pai da Francy, Cancro da préstata — Eu... nés no queremos mentir-te — explicou 0 pai da Trista. Cancro do estémnage. Verdade. Verdade, Verdade, E foi isso — ndo o canero, mas as dificuldades por ‘que ele os fazia passar — que esteve na origem dos Mé- quina Zero, Raparam todos o cabelo, ou quase, em sinal de solidariedade, e comecaram a roubar Havia apenas uma regra: $6 roubavam trocos. Nada de notas. Nada de joias Nada de carteiras. $6 trocos, Geralmente, gastavam-nos em extras, 20 almogo. Naquele dia, eram para outra coisa. O dtimo toque do dia foi como um tiro de partida ou uma buzina de ar comprimido para os Méquina Zero. Foi vélos a debandar! Sairam disparados das alas — ‘Bit ea Trista, de Inglés, o John John, de Matemitica ¢ «a Francy, de Espanhol. Passaram nos cacifos, trocaram de livros, arrumazam as mochilas, voaram para fora da ‘escola ¢ correram até 20 ponto de encontro. Havia tes bancos 8 direita das portas da escola. O pri- ‘meiro foi ocupado por um mitido de farda, que segurava no colo um skate partido, afagando-o como a um cao fe- rido, No segundo estavam 0 Gregory Pitts ¢ 0s amigos, a agitar os bracos no meio de uma nuvem de desodor zante que havia de cheirar a canela se a canela cheirasse aalho. Fo terceiro banco era onde os Maquina Zero se cencontravam sempre. Uma base escolhida pelo Bit. ‘© Bitera omembro mais pequenino do bando. F cla- ramente o lider. Passava a vida a dizer que ia crescer de repente ¢ tornar-se o mais alto do grupo, mas ninguém acreditava nele. Uma coisa era certa: apesar de ter me- tade da altura dos amigos, 0 Bit comiaclhes as papas na ccabeca em confianga. F em mau génio. Era famoso por deixar as pessoas KO, Havia um miico na escola cha- mado Trey que costumava chamar «velhadas» zo John. John, porque o John John tinha uma madeixa de cabelo branco na parte da frente da cabega. Desde bebé, Era uma marca de nascenca. Toda a vida fora gozado & con: ta disso, Curiosamente, quando a cortava 4 méquina zero, a madeixa parecia uma mancha de tinha, 0 que daria para fazer piadas ainda mais hileiantes, como a3 que 0 Bit faria, seo John John no fosse dos Méquina Zero, Mas o Trey no era assim tao perspicaz. —Ei, John John, nasceste na tereeiraidade? — dizia okey. —B, John John, deves estar quase a reformar-te da cescolal —diaia o Trey. —Hi, John John, qualquer dia s6 consegues vir para escola de andarilhol — dizia o Trey —Ei, John John. Aquele foi oitimo John John que o Trey disse antes de © punho punho do Bit Ihe acertar na boca com tal forea fora que o deixou estatelado na passadeira,Feliz- mente, a sinaleir, a Sra. Post, estava If para acordar 0 ‘Trey. E enquanto els 0 socorria, Bit batew em retirada Timha feito o mesmo pela Francy quando os rapa- zes gozavam com ela por ter 0 cabelo custo e a trata: vam por Franky, mas 2 amiga no hes ligava nenurma, [As bocas nto a aqueciam nem arrefeciam. A Francy conseguia sempre ignorar aquele tipo de provocasdes. Ser supetior e isso tudo, Mas o Bit nfo. O Bit resolvia tudo & batatada, sem hesita. E, se nfo estivesse nin- guém por pero, inda «limpava> os bolsos 3s vitimas, depois de as deixar KO. Mas 6 trava os trocos. Claro. ‘A Thista nto precisave dos assanhamentos do Bit Fra o tipo de rapariga com quem ninguém se meta ¥ Ninguém, Ela conseguia estragalhar qualquer um com uma simples frase. Além disso, era a menina dos olhos do paps, ¢ ele tinha-a treinado em artes marciais. [A Trista-Taekwondo, Toda a gente Ihe viu © pontapé ro tative no concurso de talentos da escola, e foi quanto Dastou para que ndo se arriscassem sequer a provocé-la, Incluindo o Bit, (Os Miquina Zero eram o tipo de mites conside- rados «problemiticas», Aqueles de quem se falava mal nna sala dos professores. Os que estavam «em risco Era a eles que a diretora Wockley abanava 0 dedo e a cabega sempre que passavam juntos no cortedor ou fa ziam reunives secretas durante 0 almoso. Aquela mes cla explosiva de brilhantismo e baz6fia preocupava toda agente, — Esto prontos? — perguntou o Bit, com um pé ‘em cima do banco, a tentar por ordem no grupo. [A Trista era atinica que nio estava a prestar atenglo: ficara a conversar com um rapaz que Ihe respondia de ‘uma maneira estranha, como se tivesse medo de algu- ‘ma coisa — nada de novo. — Trista, Bit langowlhe um olhar, — Prontissima. — A Teistajumtou-se & confraria, i= rando 0 telemével do bolso de trés, para ver as horas. — Sio trés e dezasseis — O carrinho chega daqui a uma hora — anunciou a Frangy — Vamos ver quanto € que temos — disse o John John, a abrira mao: alguns céntimos. ‘0s outros meteram as mos nos bolsos e despejaram © contetido na palma da mio em concha do John Job. Mais uns céntimos. Alguns encontrados nas méquinas de venda automatica do refeitério, Outros, no fundo dos bolsos de rapazes magricelas ingénuos que usavam cal- «2s justas demasiado reveladoras. Mais um montinho de moedas que o Sr. Munch, o continuo da escol, tna varrido para os cantos e que tinham sido pescadas no ‘meio de bolas de cotéo, paps de pastlhas eelésticos de ‘abelo, Uns trocaditos fanados das secretérias dos pro: fessores. Apenas do tampo, Nunca das gavetas. Nenhuma moeda de 25 céntimos naquela leva, Infe- lizmente. AA Trista remexen as moedas com 0 dedo, para as contar. — Setenta, oitenta, citenta e cinco, oitenta e seis, oitenta e sete, oitentae oto, oitenta e nove. — Noventa? — perguntou o Bit, 2 olhar ora para a palma da mao do John John, ora para a saide da escola: a diretora Wockley andava sempre a rondar. 86 temos noventa céntimos — confirmou a ‘Tista, recontando o dinheito, E, voltando-se para o Bit, # que se balougava para a frente e para trés, ansioso, per ‘guntou: — Achas que chega? — Amanjamos maneira de chegar — declarou ele E posse a caminho, com os outros atrés dele, a ser- pentear pelo meio da multidao, até ao semaforo. Atra- vessaram na passadeira e dirigiram-se & rua principal —2 Avenida Portal —, onde carros e motas passavam. ‘a acelerar, € 08 autocarros, piblicos e escolares, ronca- vam e chiavam, a cuspir fumo pelos tubos de escape. Embora estivessem com pouco tempo, conversa nio Ihes faltava. A Francy, por exemplo, falava pelos cotove- los — como sempre que estava nervosa —e perguntava, a0 John Johan se alguma vez tinha ouvido falar de uma, pessoa chamada Satchmo, porque havia um mitido na, sua aula de Espanhol que se chamava Satchmo Jenkins cela gostava bastante do nome. — Nio, Mas também nunca ouvi falar de mais nin- guém chamado Francy — respondeu o John John, com, ‘um encolher de ombros. — Sim, mas Francy ¢ 0 diminutivo de Francis — continuou ela — Bem, talvez Satchmo seja o diminutivo de Satch. Satchmaaa... Stchmooe, — Chega! — resmungou 0 Bit irtitado com a par- voice daquela conversa ¢ com a insisténcia enervante a Trista, — Estou a falar a s6rio, Bit—continuava ela. — Vais cesctever sobre ser 0 qué? ‘A Thista referia-se ao trabalho de casa de Inglés, A professora Broome mandara-os fazer uma composi- ‘fo em que imaginassem ser uma coisa qualquer: Nao Juma pessoa. Uma coisa, — Jé te disse mil vezes que nto sei, ‘Trista — respon dew o Bit, quando se aproximava um autocarro escola —Que tal umn autocarro destes? Esti bem para ti2 — Nem por isso — disse a Trista, © Bit tapou os ouvidos quando o autocarto chegou, com os travées a chiar, — Odeio este barulho! Ia ter de ser umm autocarro es- colar voador, para no precisar de fazer esta chinfrineira a travar — Fitow a Trista e continuou: — Jé gostas mais assim? = Por acaso, consigo perfeitamente imaginarte como um autocarro escolar a cair do céu. A Thista riu-se para si propria, mas alto o suficiente para que o Bit a ouvisse, — Pelo menos, seria um autocarro-foguetio, Seis quarteirtes mais adiante, viraram para 2 Rua Crossman e pararam em frente & primeira casa, A da esquina. Uma casa antiga, com uma batelada de carros estacionados no quintal. © caminho de acesso estava atravancado de churrasqueiras e triciclos. Um verda- deiro caos, mas era a casa da rainha dos doces, a dona, CeeGee. ‘A dona CeeCee era a fornecedora de guloseimas da vizinhanga desde a infincia dos pais dos Maquina ‘Zero. Era conhecida por garantir que toda a gente tinha, acesso a doces, porque sabia que nem todos podiam compré-los no minimercado. Nao havia nenhum mini mercado na Rua Crossman. Aliés, ndo havia nenhum, ‘minimercado num ralo de cinco quarteirdes. Por isso, a dona CeoCee prestava esse servigo. E estava aberta 24 horas por dial Com o Bit a liderar 0 caminho, os Maquina Zero percorreram a pista de obsticulos até a porta da dona CeeCee ¢ tocaram 8 campainha, que soltou um boce- jo melédico, qual velhote a acordar. Os Méquina Zero aguardaram, em pulgas. Mas Bit, sempre impetuoso ce impaciente, tocou outra vez. E mais outra — Vili — resmungou. — Nao temos o dia todo, — Acalma-te — disse-the a Francy. — Sabes muito ‘bem que ela anda devagar. E, de facto, dai a nada chegowlhes o som do chinelar arrastado da dona CeeCee e da sua vor, através da porta de madeira, — Estoua ir. Estou ait. Ndo facam cocé nas calgas. A Trista sorriu a0 ouvir aquilo, porque a dona CeeCee falava sempre em coeé, como se toda a gente ‘que Ihe tocasse & campainha estivesse aflitinha para it acasade banho. A porta abriu.se ¢ ela ki apareceu, Uma senhora pe- quenina, com uma peruca pretoazeviche pousada na cabeca, como um chapéu posto de propésito & banda. O cabelo era demasiado escuro, sobretudo quando com- parado com os poucos pelos prateados que The brotavam, do queixo. Usava um fato de treino azul-turquesa com: ‘mangas ¢ pernas cortadas, deixando no seu lugar uma franja de fios emaranhados que fazia lembrar uma tela Batizara o seu skate de Sitter. F era uma «cla», ‘Talvez, seo Stevie Munson tivesse sabido na véspera que o nome do skate era Skiter,tivesse dito alguma coi- sa, Talvez, se soubesse que o nome da Pia era Pia, Se ele soubesse que ela tinha uma irma mais velha chamada Santi. Talvez, se soubesse tudo isso, tivesse feito algu ‘ma coisa. Algumna coisa diferente. Qualquer coisa. ‘Tocou para a safda na Academia Brookshire para Ra- pazes, © um oceano de testosterinios invadiu o corredor, com gravatas verdes a balangar dos pescogos como cau das de poliéster. Calgas e blazers a condizer, Camisas Drancas com colarinhos encharcados de todo o suor do fo pescogo © com nédoas vermelhas esbatidas no peito, do ketchup que falhara a boca. Mas a camisa do Stevie estava manchada de muitas coisas: comida, suor, cane tas de feltro.. Marcus. (© Marcus Bradford era um jogador de basebol com a cara quadrada, que escrevia coisas nas costas da ca- risa do Stevie quase todos os dias. Como suava mi to, o Stevie trava sempre o blazer nas aulas, para nao se transformar num farrapo — algo que se espreme. Mas a camisa que usava por baixo do blazer era dois -ntimeros acima do seu, porque a mie no tinha dinhei- ro para comprar uma nova todos os anos. A escola jé era tio cara que tinha de ser ele a encher 0 uniforme. «Mais cedo ou mais tarde, tudo serve>, costumava dizer a mie, Mas a camisa ficavaclhe muito largueirona e © Stevie nfo conseguia sentir as canetas ¢ os marcadores ddo Marcus 2 deslizar pelo algodio. Por isso, 0 Marcus "usava as camisas do Stevie como paredes de balneério, para grafitis grosseiros e palavoes. E talvez, se, na véspera, a Pia tivesse sabido 0 nome dele — Stevie. Se, talvez, Ihe tivesse dado umn passou- -bem ¢ dito «0 meu nome é..0 ¢ ee tvesse respondido ao meu nome é..», ela tivesse conseguido ler-lhe na cexpressd0 0 medo, Tver ele tivesse conseguido ler a dela, Ou talvez niio. De qualquer mancira, a Pia teria tirado a chave de casa que trazia pendurada ao pescoso, entalando-a entre os dedos, com os dentes voltados para fora, Uma arma eficaz. $6 para o caso. ‘Talvez o Stevie nem estivesse Ii no dia anteri com (© Marcus e 0s outros, se no quisesse arranjar maneira de eles o deixarem —a ele e 3 camisa dele — em paz. Fazer queixa nfo era uma opsio, Quem se chibar, vai ‘apanhar, Foi isso que 0 Marcus disse no dia em que ‘0 Stevie descobriu que ele The desenhara um pénis ver- de nas costas da camisa, com a legenda: Vermis. Tlvez ‘ Stevie nao estivesse li com eles, se a mile ni o tivesse apanhado a usar tanta lixivia. Porqué aquele exagero? —Acho muito bem que laves a tua roupa, mas o de- tergente e a lixvia nto sto de grasa — dissera ela E 0 que o Stevie ndo pudera responder-he fora: «Desculpa, mae, mas hé um rapaz-na minha escola que desenha na minha roupa», porque, nesse caso, a mae teria dito: «Endo andoa pagar um colégio privado para ‘um rapaz qualquer te desenhar partes privadas numa farda privada que ainda tens de usar varios anos» e: «E preciso eu telefonar a0 diretor>» O Stevie nem queria ouvir falar nisso. Quem se chibar.., lembras-te? Além_ disso, 0 ditetor Brock jé sabia, Tinha visto os desenhos: ‘eas palavras e limitara-se a dizer: «Coisas de rapazes.» Mas, quer 0 Stevie tivesse ou no contado a mie so- bre o Marcus, a Pia teria feito na mesma aquele cami- ‘nho para casa. Teriarolado pelo corredor a abrit, no seu & skate, furando por entre a multidi, ignorando todas as ocas e caras feias € a diretora Wockley a gritar:«f prot bido andar de skate! sentindo aquela liberdade a que cestava acostumada. O tipo de liberdade que nasce quan- do 05 pés nao tocam no chio. Sair em roda livre pelas portas da escola, a ziguezaguear e a serpentear pelo pas- seio, a surfar a onda de asfalto, a evitar quem esperava, pelo autocarto €os pais que esperavam os filhos. As fa- xas cor de laranja das brigadas de alunos «ajudantes de sinaleiro» e 0 som do apito da sinaleira, Um apito que a Pia nunca ouvia, porque andar de skate eraser livre. ‘As regras eram para a sala de aula, onde os professores diziam coisas como: «A partcipacio conta para a nota.» Mas a Pia nto era uma partcipante, Nao na escola. passava os dias @ sonhar acordada com os fronside 180 enquanto rabiscava o nome da irma na secretiia — fo 5, um truque geométrico que mais parecia um oito pontiagudo, como 2 Santi o desenhava sempre — ea ‘pensar na seca que era torcer um tornozelo, emborator- ‘cet um tomozelo fosse muito melhor do que ter a pro- fessora Broome a chamésla ¢a pedir-lhe para explicar 0 ‘que raio um velho qualquer de quem ela nunca ouvita falar queria dizer com uma histéria que ela nunca lera ‘mas era suposto ter lido 6 porque a professora Broome a mandara ler A Pia estava sempre pronta para bazar. ‘Para cortar o vento ¢ voar a0 longo da Avenida Portal em 8 diregio Rua Bastion. Paragem da praxe no parque de skate, Percortero passeio da Santi. Rolar até casa, © Stevie nunca estava pronto pera bazar, Porque ba- 2zax significava passar pelo Marcus ¢ pelos amiguinhos. ‘Uma vez eles agarraram-no pela gravata e puxaram- -na com tanta forca que 0 Stevie andow uma semana com o pescogo dorido. Chamaram-the «puxar a cauda do burro», O n6 triangular ficou to apertado com o pu xo que desmanché-lo era como tentar esboroar uma rocha. Por isso, o Stevie cortou a gravata eenterrowsa no fundo da mochila, como a uma cobra de tecido morta Disse & mf que a tinha perdido. Fela perdeu a cabesa — Fu nfo ando a pagar um colégio privado para tu perderes gravatas. Mandeite para li para criares lagos, uum dia! — gritou Mas conhecia o filho. Sabia que era 0 tipo de mit do que podia perder o castanho da pee se fechasse os olhos por muito tempo. [Noutra ocasio em que 0 Stevie nfo estava a prestar tengo, o Marcus ¢ os comparheiros foram ards dele e

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