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Novos Paradigmas e Satide ANDRE MARTINS * RESUMO Este artigo procura situar os estudos epistemolégicos do campo da Satide dentro de uma hist6ria da filosofia e da racionalidade experimental. Através da apresentagao de um novo paradigma cientifico, ontolégico e epistemoligico — paradigmas quaintico e espinosiano, paradigmas da ndo-separabilidade, da continuidade do descontinuo —, isto é, de uma nova relagio entre natureza cultura, ¢ por conseguinte de uma nova concepgo do ser humano, da ciéncia e da razo, procura propor uma redefinigao dos conceitos de vida © de morte, de satide e de doenga. Palavras-chave: Saide; vida; epistemologia; Espinosa; quantica. ABSTRACT New Paradigms and Health ‘This work aims at placing the health epistemology studies on the philosophy and experimental rationality history. Since the presentation of a new scientific, ontological and epistemological paradigm of quantum and Spinozistic paradigms, paradigms of non-separability and continuity of the discontinuous, i.e. a new relation between nature and culture, and hence a new conception of the human being, of science and reason, this work suggesis a new definition for the concepts of life and death, health and illness. Keywords: Health; life; epistemology; Spinoza; quantum. * Professor adjunto do Nucleo de Estudos em Satide Coletiva (NESC), do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da UFRJ. Doutor em Filosofia pela Universidade de Nice, Franga, PHYSIS: Rev. Satide Coletiva, Rio de Janeiro, (1): 83-112, 1999 83 André Martins RESUME Nouveaux Paradigmes et Santé Cet article cherche & sitver Jes études épistémologiques du champs de Ja santé dans une histoire de la philosophie et de la rationalité expérimentale. A partir de la présentation d’un nouveau paradigme scientifique, ontologique et épistémologique, paradigmes quantique et spinozien, paradigmes de la non- séparabilité, de la continuité du discontinu, soit, & partir d’une nouvelle relation entre nature et culture, ou ainsi d'une nouvelle conception de ’étre humain, de la science et de la raison, cet article se propose de redéfinir les concepts de vie et de mort, de santé et de maladie. Mots-clé: Santé; vie; épistémologie; Spinoza; quantique. Recebido em 28/4/99. Aprovado em 2/6/99. oy PHYSIS: Rev. Satide Coletiva, Rio de Janeiro, 9(1): 83-112, 1999 Novos Paradigmas ¢ Satide Pequena Genealogia da Racionalidade Experimental A ciéncia classico-moderna tem uma dupla origem. Do final do século XIL, quando a obra de Arist6teles chegou ao Ocidente, via filésofos érabes interpretados pelos escoldsticos, até Copérnico, a ciéncia se baseava nos escritos de Aristételes. Este propunha uma ciéncia do universal, e nao do particular e, para isso, um método légico de demonstragio de verdades universais e necessérias, enfatizando no entanto a importéncia da pesquisa experimental ¢ da investigacéo da natureza. Isso porque, para Aristételes, as esséncias, que sao as formas, e que definem a universalidade das coisas, se encontram t4o-somente incorporadas ou encarnadas na matéria; elas nao se encontram portanto, como para Platao, em um mundo a parte, servindo apenas de modelo exterior para as coisas. Logo, se as esséncias s6 existem nas préprias coisas, entio apenas a obser- vagdo da natureza poderé informar sobre elas. Ou ainda: enquanto que para Plato a esséncia do homem era a idéia de homem preexistente no mundo das idéias, da qual os homens particulares participam, por dela serem cépias — de modo que nao seria necessdrio sequer a existéncia de homens parti- culares para a existéncia da idéia de homem — para Aristételes, a idéia (chamada forma inteligivel, pois, justamente, é passivel de apreensdo pelo intelecto), idéia de homem, no caso, nao existe previamente & coisa, aos homens particulares, mas sim 6, da observagdo destes, apreendida intelectu- almente. Ou seja, para Aristételes, o intelecto somente apreende o universal a partir dos particulares. O raciocinio l6gico serve portanto somente como garantia de que os universais foram apreendidos corretamente, isto é, que a matéria e os sentidos no nos enganaram nesta operacao intelectual. Mas a histéria modificou a importancia dada por Aristételes a observa- gio: a escoldstica, sobretudo a escoldstica dita tardia, tomou os escritos de Aristételes no como resultados da pratica de seu pensamento e de sua observagio, mas como verdades incontestaveis em si; enfim, tomou-os como dogmas, e tomou 0 raciocinio segundo a l6gica aristotélica como uma prova da veracidade de suas afirmacdes especfficas, independentemente do que se observa na naturezal. 1 Marcondes Filho (1997: 150), em sua Hisiéria da Filosofia, lembra que “Tomis de Aquino (Suma teoldgica |, q. 32, a. 1), por exemplo, defende Aristételes contra os astronomos de Alexandria, sustentando qne, enquanto estes baseavam suas hipéteses em observacdes © calculos, a teoria aristotélica era deduzida de primeiros princfpios, sendo, portanto, mais verdadeira. Rejeita assim a verificagio de uma hipétese como um argumento para a sua aceitag#o, argumentando que 4 verificacdo, por PHYSIS; Rev, Satide Coletiva, Rio de Janeiro, 9(1): 83-112, 1999 85 André Martins Copémico, em 1543, em seu livro Sobre a revolugdo das orbes celestes, defende o sistema heliocéntrico, baseado em célculos (segundo uma inspi- ragio pitagérico-plat6nica, que considerava a matematica como a linguagem apropriada para se obter a verdade da natureza). Giordano Bruno (1548- 1600), padre dominicano ¢ cosmélogo copernicano, contestou em seus livros os dogmas escolistico-aristotélicos (tendo, por isso, sido queimado nas fo- gueiras da Inquisig&o, em 1600). O astrnomo copernicano Galileu (1564- 1642), por sua vez, comprovou, através da utilizagao do telescépio, a tese de Copérnico (tendo sido por isso julgado pela Inquisigéo e absolvido, em 1633, somente ao negar que tivesse dito que a Terra gira em torno do Sol, acrescentando depois: “mas ela gira”). Em sua obra O ensaésta (1623), Galileu contesta veementemente, em polémica contra 0 aristotélico Sarsi, 0 prinefpio de autoridade, contrapondo a este a verificagdo da experiéncia. Francis Bacon (1561-1626), em seu Novum organum, propde a unido da razo e da experiéncia, inaugurando o método indutivo-experimental, visan- do A “descoberta das formas e dos movimentos ocultos, que esto na origem das propriedades de base ou da natureza das coisas”. E curiosamente através de um neoplatonismo — devido & importancia dada A matemitica na busca da verdade — que a experiéncia, caracteristica nao plat6nica mas aristotélica, volta A cena da ciéncia. No entanto, sempre trazendo consigo o desejo de alcancar idéias vélidas universalmente, leis universais que informem do mundo a sua esséncia. O mecanicismo toma a frente da ciéncia definitivamente com Newton (1642-1727) © seu Philosophioe naturalis principia mathematica (1687), introduzindo a nogdo de forga e a lei de gravitagio universal: planetas e corpos terrestres seguem uma mesma lei, contrariando a cosmologia aristotélica segundo a qual haveria leis distintas para os mundos supra ¢ sublunar. Descartes (1596-1650) enunciou o método que sintetizou os principios do reducionismo, do mecanicismo e do racionalismo: considerar 0 corpo como uma maquina, e a razio como separada deste, € 0 que permite o projeto de objetivagao da natureza-objeto, em oposigao a um ego-sujeito que entio a ordena, domina e manipula, dividindo-a em quantas partes for possivel. definigdo limitada ¢ imperfeita, no pode suplantar os princfpios metafisicos estabclecidos racionalmente, nem tampouco as verdades universais © necessérias deduzidas logicamente, Segundo esta viséo, é mais importante salvar a fisica aristotélica — e portanto seu sistema como um todo, sua unidade e coeréncia interna — do que salvar os fendmenos”. 8 = PHYSTS: ev. Sade Coletiva, Rio de Janeiro, 9(1): 83-112, 1999 Novos Paradigmas e Satide Em 1814, na introdugio de seu Ensaio filosdfico sobre as probabilidades, Laplace enunciaria a tese do determinismo universal, caracterizando a fisica cldssica em seu mecanicismo, determinismo, reducionismo e positivismo (Pomian, 1990): “Uma inteligéncia que por um instante conhecesse todas as forgas pelas quais a natureza € animada e a situagao respectiva dos seres que a compdem, se ela fosse vasta para submeter estes dados & andlise, abragaria na mesma f6rmula os movimentos dos maiores corpos do universo e do mais leve stomo; nada seria incerto para cla, ¢ 0 futuro, como o passado, estaria presente a seus olhos. A mente humana oferece, pela perfeicio que soube dar A Astronomia, tum esboco dessa inteligéncia, Suas descobertas em Mecanica ¢ em Geometria, juntas & da gravitagto universal, o puseram em condigées de compreender, ‘nas mesmas expresses analiticas, os estados passados ¢ futuros do sistema do mundo. Aplicando 0 mesmo método a outros objetos de seu conhecimento, cle conseguiu trazer a leis gerais os fendmenos observados, e a prever aqueles que circunstincias dadas devem fazer eclodir. Todos estes esforgos na busca da verdade tendem a aproximé-lo ininterruptamente da inteligéncia que aca- bamos de conceber, mas da qual ele ficaré sempre infinitamente distante. Essa tendéncia prépria & espécie humana é 0 que a toma superior aos animais, & seus progressos neste género distinguem as nagées ¢ os séculos e fazem sua verdadeira gléria”. Neste célebre texto de Pierre-Simon Laplace, resume-se 0 idedrio da idéia de ciéncia que prevaleceu durante toda a modernidade, que ainda se faz ver em parte do imagindrio de nossos dias, mas que — notadamente a partir da fisica quantica mas também dos fracassos civilizatérios desta razHo dominadora da natureza (bomba atémica, catdstrofes ecolégicas, desenvol- yimento insustentavel, esgotamento progressivo dos recursos do planeta, geragio de botsdes de miséria, “efeitos colaterais” do “progresso” do ho- mem sobre a natureza ¢ de certas nag6es, detentoras dessa racionalidade, sobre outras, que nao a detém) — dé lugar em nossos dias a uma redefini¢ao das idéias de ciéncia e de raz4o, assim como de satide e de doenga, como veremos. 2 As tradugoes de todas as citagdes sto de minha autoria, PHYSIS: Rev. Satide Coletiva, Rio de Janeiro, 9(1): 83-112, 199987

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