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Artigo especial Pan American Journal

of Public Health

Contribuições das equipes de Consultório


na Rua para o cuidado e a gestão da
atenção básica
Everson Rach Vargas1 e Iacã Macerata1

Como citar Vargas ER, Macerata I. Contribuições das equipes de Consultório na Rua para o cuidado e a gestão da
atenção básica. Rev Panam Salud Publica. 2018;42:e170. https://doi.org/10.26633/RPSP.2018.170

RESUMO Como parte do Sistema Único de Saúde (SUS) no Brasil, os Consultórios na Rua e suas
equipes foram criados tendo como função prioritária o desenvolvimento de cuidados pri-
mários e a garantia de acesso às ações e serviços de saúde para populações em situação de rua
no próprio ambiente da rua, criando vínculos dessa população com outros serviços que não
sejam somente de urgência e emergência. Seu escopo de atividades envolve, além da atenção,
a proteção contra os riscos a que essa população está exposta, combinada com a busca da
garantia de seus direitos. Nesse sentido, os Consultórios na Rua buscam efetivar a equidade
e o acesso a ações e serviços de saúde para uma população sem domicílio fixo dentro de um
sistema baseado essencialmente na adscrição territorial da população. Assim, a criação do
Consultório na Rua inaugura novos modos de cuidar em saúde e, consequentemente, novos
modos de fazer a gestão do processo de trabalho. A partir dessa articulação entre cuidado e
gestão, o presente artigo discute três planos de intervenção onde se dá a prática das equipes
de Consultório na Rua – a própria rua, a sede/unidade de referência e as redes i­ nstitucionais –,
sua relação com os demais serviços de atenção primária à saúde (APS) e a sua contribuição
para reconciliar a APS com os seus atributos fundamentais, para além da adscrição do
­território geográfico.

Palavras-chave Gestão em saúde; acesso universal aos serviços de saúde; atenção primária à saúde;
pessoas em situação de rua; Brasil.

Desde a Declaração de Alma-Ata, em cuidados de alta densidade ­tecnológica e pontuais às crônicas, situações essas que
1978 (1), a atenção primária à saúde no tratamento de agravos previamente acabam por demandar um acompanha-
(APS) se consolidou como serviço prefe- instalados. mento longitudinal.
rencial e porta de entrada dos sistemas No Brasil, as equipes de Consultório As eCR têm como função prioritária o
de saúde. A estruturação desse nível de na Rua (eCR) foram instituídas a partir desenvolvimento de cuidados primá-
atenção reforça a importância da atenção da segunda edição da Política Nacional rios, prestando assistência voltada aos
primária em um contexto de saúde his- de Atenção Básica (PNAB), de 2011. agravos mais prevalentes das pessoas
toricamente constituído pela atuação em Tratam-se de equipes itinerantes que
­ em situação de rua, com distribuição de
atuam, privilegiadamente, em pontos de insumos e orientações em saúde, e ga-
maior concentração de pessoas em situa- rantindo o acesso às ações e serviços a
1
Universidade Federal Fluminense (UFF), ção de rua. As ações dessas equipes se partir da própria rua, criando vínculos
Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Rio
de Janeiro (RJ), Brasil. Correspondência: Everson
diversificam de acordo com as necessi- dessa população com outros serviços
Rach Vargas, eversonpsi@gmail.com dades de saúde identificadas, das mais que não sejam somente de urgência e
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emergência (2). Além disso, seu escopo que organizam a APS são colocados divisão e mecanização dos processos de
de atividades envolve a proteção contra em xeque: nem todos os habitantes de trabalho, que deveriam ser centralmente
os risco a que essa população está expos- um território são domiciliados; e os controlados em seus mínimos gestos.
ta, combinada com a busca da garantia ­processos de saúde-doença biológicos, O campo da saúde coletiva tomou como
de seus direitos. subjetivos e sociais estão articulados e problema a gestão taylorista (6), apos-
Os Consultórios na Rua surgiram em mutuamente apoiados. tando que a alteração dos modelos de
um contexto de ampliação dos direitos Foi para aumentar o grau de equida- atenção passava pela alteração dos mo-
sociais no Brasil pela extensão de políti- de do Sistema que o Consultório na Rua delos de gestão: desenvolver outra ra-
cas públicas a populações que antes não se institucionalizou. A vulnerabilidade cionalidade para os processos de gestão,
tinham acesso a direitos básicos garanti- dessa população evidencia as vulnera- diferente da administrativa ou privada.
dos pela Constituição brasileira, de bilidades das práticas de cuidado do Assim, há uma especificidade da ges-
­forma a intervir nos coeficientes de desi- SUS, mas também mostra que o traba- tão no campo da saúde: a gestão do pro-
gualdade social. Também contribuíram lho das eCR traz uma série de inova- cesso de trabalho e as práticas de
para o seu surgimento a aposta, por par- ções para a prática de cuidado na APS, cuidado, embora sejam dimensões dis-
te do Ministério da Saúde, na APS como bem como para a gestão do processo de tintas, são inseparáveis (7). As práticas
ordenadora do sistema e a priorização trabalho. de cuidado são coproduzidas com as
das redes de atenção à saúde (RAS); o A partir disso, o presente texto é uma práticas de gestão. Em toda prática de
controverso e questionável plano de en- reflexão construída com base em uma gestão, há uma dimensão de cuidado, e
frentamento ao crack, surgido no bojo série de experiências, em diferentes em toda prática de cuidado, há uma di-
dos megaeventos realizados nos anos campos, com o Consultório na Rua: mensão de gestão. A especificidade dos
2010 no Rio de Janeiro (Copa do Mundo experiência de trabalho vivida na
­ processos de gestão na área da saúde é
da FIFA e Olimpíadas) (3); e a crescente ­construção inicial de um desses dispo- que eles devem estar integrados com a
organização e participação do Movimen- sitivos, na cidade do Rio de Janeiro; produção do cuidado. Produzir cuidado
to Nacional da População em Situação de ­experiência de pesquisa de doutorado é construir uma prática a partir das espe-
Rua na arena política das grandes cida- acerca da prática de cuidado realizada cificidades do objeto de cuidado: pessoas
des brasileiras. por essa mesma equipe, a qual gerou e territórios singulares. Contudo, a pro-
A criação das eCR se justifica pela um documento técnico sobre a prática; dução do cuidado envolve um certo
grande vulnerabilidade das populações e experiência de construção de material modo de produzir gestão, ou seja, o gerir
em situação de rua, juntamente com a didático para um curso de formação o processo de trabalho em saúde é fazer a
baixa capacidade da rede de atenção bá- de profissionais para o Consultório na gestão do cuidado.
sica (como se denomina a APS no Brasil) Rua (5). Essa gestão do trabalho em saúde irá se
existente de acolhê-las. Esse fato reflete A partir de questões suscitadas pela ocupar com a coordenação do trabalho,
uma infinidade de dificuldades relacio- implementação dessas equipes na APS envolvendo os diversos atores i­ mplicados
nadas ao modelo de APS adotado no brasileira, pretende-se traçar um panora- em seu território de p ­ ráticas – trabalha-
­Brasil, que, em linhas gerais, inclui a or- ma de como as eCR contribuem para re- dores, usuários, c­ omunidade. Daí o senti-
ganização a partir de domicílio fixo para conciliar os demais serviços de APS com do reafirmado da cogestão (7). Assim, na
a definição de um território adscrito. suas diretrizes e sua missão. Esta análise diretriz de uma cogestão, gerir não signi-
Esse modelo impede o acompanhamento foca, especificamente, em como o modo fica ­colocar-se sobre o trabalho e o territó-
da dinâmica da rua e impõe uma barreira de realizar a gestão do processo de traba- rio onde ele se d ­ esenvolve – perspectiva
histórica no acesso dessas pessoas aos lho da eCR está extremamente articulado clássica – a fim de regulamentá-​los. Signi-
serviços de saúde. com as práticas de cuidado, não haven- fica, isso sim, posicionar-se com o traba-
O território de vida da população em do, portanto, separação entre gestão e lho e o território, fazendo composição
situação de rua coloca uma série de de- atenção em saúde. Essa articulação pro- com e a partir deles. Nesse sentido de
safios ao SUS no que diz respeito à con- movida pelas eCR pode, enfim, apontar gestão, o cuidado não é pensado como
cretização de seus princípios, entre os alguns problemas que são re-apresenta- uma ação sobre o outro – concepção hie-
quais a construção da integralidade do dos para os demais serviços de APS, rarquizada, ­verticalizada e centralizada,
cuidado, ou seja, o desenvolvimento de como, por exemplo, as equipes de Saúde taylorista. Escapando da função tutelar,
um olhar mais integral e menos “espe- da Família. classicamente atribuída ao cuidar, a efeti-
cialista” nas práticas de cuidado. Isso se vação do cuidado não depende somente
desdobra em duas questões: na maneira GESTÃO E CUIDADO EM da técnica ou da ação central do trabalha-
como geralmente se considera o territó- SAÚDE: O PROCESSO DE dor, mas envolve os vários ­ atores,
rio – apenas como demarcação geográfi- TRABALHO recursos e dinâmicas do território de
­
ca ou matriz do domicílio – de forma ação. Território, aqui, tem o sentido de ca-
que só fariam parte desse território A gestão, originada no campo da ad- tegoria que define relações complexas e
aqueles oficialmente domiciliados nele; ministração, é pensada como atividade situadas entre diversos vetores, e que en-
e na maneira como os diferentes saberes que tem a função de exercer um manda- volve dimensões objetivas e subjetivas
de uma equipe multiprofissional com- to sobre o trabalho e qualificar seus (4). E é nessa relação com, no e a p­ artir do
põem uma prática de atenção, de modo processos. Na modernidade, a gestão
­ território, e não sobre ou contra ele, que o
que as dimensões biopsicossocias não ganhou centralidade na produção in- cuidado se faz como prática coletiva, de-
sejam desmembradas (4). Junto à popu- dustrial, sendo caracterizada, nos exem- mocrática e inclusiva, s­ eguindo a diretriz
lação em situação de rua, os conceitos plos de Taylor e Ford, por racionalização, de uma clínica ­ampliada (4, 6, 7).

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Em um cuidado verticalizado e centra- unidade de referência; e as redes institu- Os aspectos invisíveis da rua apre-
lizado em procedimentos, saúde e usuá- cionais (saúde e intersetoriais). Por esses sentam-se como dinâmicas relacionais
rio se tornam categorias universais e não planos perpassam toda a gestão e a pro- que usuários ou grupos estabelecem
situadas, e o cuidado assume uma peri- dução do cuidado. A noção de planos ul- num determinado território. Essa di-
gosa função de gestão calculada da vida trapassa a ideia de espaço como espaço mensão subjetiva da rua fala das rela-
(8). Cuidado e gestão do processo de cui- físico euclidiano, fixo, imutável, com cla- ções que se estabelecem nela, do lugar
dado se fazem no encontro com sujeitos e ra demarcação, visível, com fronteiras que ela ocupa na vida dos sujeitos (lu-
territórios, sendo esse encontro um dos bem definidas. Compreendemos que tais gares afetivos e simbólicos). Apesar de
momentos mais singulares do processo planos estão presentes uns nos outros, esses aspectos não serem palpáveis,
de trabalho em saúde (9). O modo de tornando possível identificar influências eles existem, e na hora de organizar o
gestão desse trabalho deve se apropriar e modos de atuar que um plano exerce processo de trabalho é preciso conside-
dessa mesma perspectiva: uma gestão sobre os outros. Assim, o plano afirma a rá-los. Isso cria a necessidade de repen-
com; uma cogestão. Cogestão é uma di- dependência entre os diferentes espaços sar e reconsiderar as estratégias e os
retriz. Perpassa os processos no campo do trabalho, já que eles não se estabele- conceitos de saúde e, ainda, o engaja-
da saúde em maior ou menor grau, mas çam como unidades estáveis. mento no território. Deve-se entender o
sempre está, em alguma medida, presen- Na perspectiva transdisciplinar (11), território, senti-lo; enxergá-lo e respirar
te. A gestão não se limita ao ato do gestor, compreendem-se os espaços de trabalho seus ares.
mas está nos atos clínicos e em todos os como porosos à multiplicidade de fluxos A “sede/unidade de referência” é tra-
âmbitos dos serviços e do processo de que os atravessam. Por constituírem-se dicionalmente compreendida como local
trabalho. de aspectos objetivos e subjetivos, esses onde se organizam e se dão as práticas de
Na perspectiva da cogestão, o cuidado planos se interpenetram, se misturam. cuidado. Como plano de intervenção do
e a política também são inseparáveis Há um pouco da rua na sede/unidade Consultório na Rua, a sede se faz presen-
(4, 10): a gestão assume e cria condições de referência e há um pouco da sede/ te também na rua e na rede, indo além
para o cuidado. Ele é necessariamente unidade de referência na rua, por exem- das práticas propriamente realizadas e
político, na medida em que está sempre plo. A rua como plano denota não só o previstas na unidade de saúde. O princi-
inserido em um campo de disputas, de seu sentido objetivo, como demarcação pal fator que define um espaço de cuida-
relações de poder, podendo produzir física, mas também subjetivo - certas do é o aspecto relacional (12): a maneira
práticas tanto de dominação quanto de qualidades da rua em meio à sede/uni- de organizar e operar os processos e os
liberação e produção de autonomia. Há dade de referência. fluxos de trabalho na sua relação com a
sempre o risco de se produzir, como efei- O plano de intervenção “rua” é o terri- realidade do território e do sujeito, com
tos subjetivos, o constrangimento e a pa- tório de vida das pessoas que são cuida- seus modos de viver. Dessa forma, um
dronização dos modos de viver. Essa é das. Esse território é muito diferente dos espaço de cuidado é realizado através de
uma problemática que se coloca especial- territórios de vida mais comuns em uma um modo de entrar em relação, para
mente na APS, cujos serviços atuam de cidade. É território de moradia e de vida além da estrutura e limites do serviço no
maneira muito próxima ao cotidiano da sem ser domiciliar. Entendido não so- qual estão lotados os trabalhadores, ou
vida dos usuários. mente por sua organização física e geo- até mesmo para além dos procedimentos
Assim, a gestão do cuidado na APS gráfica, mas também por sua organização tradicionais, rapidamente classificados
tem especificidades que trazem a neces- combinada a um funcionamento subjeti- como cuidado. Podem ser constituídos
sidade de deslocamentos da gestão vo, caracterizando-se tanto por aspectos espaços de cuidado na rua da mesma for-
advinda da administração privada.
­ visíveis quanto por aspectos invisíveis. ma que podemos ter uma sede ou um
­Especialmente na prática das eCR, tanto Os aspectos visíveis da rua são os que equipamento da rede que, embora tenha
o cuidado como a gestão devem cons- podem ser mapeados e sistematizados: o o mandato do cuidado, efetivamente não
truir e gerir o processo de trabalho tendo número de pessoas, a delimitação territo- cuida.
como principal ponto de apoio a relação rial, os dados epidemiológicos que subsi- O aspecto relacional do espaço de cui-
do serviço/equipe com o território. diam a avaliação e o monitoramento das dado é percebido quando o Consultório
práticas, as situações concretas de violên- na Rua torna-se referência no território,
PLANOS DE INTERVENÇÃO DAS cia, os recursos, o tamanho, a movimen- seja na sua presença na rua, seja na sede
EQUIPES DE CONSULTÓRIO tação, entre muitos outros. O território ou na rede. De uma maneira ou de outra,
NA RUA adscrito de uma equipe é composto, en- a sede se faz presente na rua e a rua se faz
tão, por tipos de população em situação presente na sede. É preciso organizar o
A prática do Consultório na Rua, com de rua (mais fixas, mais itinerantes), ato- espaço da sede como uma espaço de aco-
sua aposta em uma proximidade e atua- res variados que se fazem presentes lhimento para os usuários, onde os flu-
ção no território e a partir de suas singu- (­moradores de rua, comerciantes, polícia, xos do espaço se adequem à rua:
laridades, mostra que o processo de agentes de outras políticas públicas, flexibilização e alteração dos horários de
trabalho se dá através de subdivisões, a transeuntes, traficantes, grupos de exter- funcionamento, dos documentos exigi-
partir de planos de intervenção das mínio, instituições religiosas, etc.), recur- dos para atendimento, dos modos de ou-
eCR. Por sua vez, esses planos exigem sos que o território oferece à população vir, falar e orientar, enfim, acolher. Em
gestão dos processos de trabalho mais em situação de rua (comida, dinheiro, nossa experiência isso exigiu, por exem-
específicos. local para dormir, outros serviços assis- plo, ter sempre um trabalhador do Con-
O Consultório na Rua tem três planos tenciais) e tipos de agravos em saúde sultório na Rua na sede, para facilitar as
fundamentais de atuação: a rua; a sede/ mais prevalentes, entre outros. relações entre os usuários do Consultório

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Artigo especial Vargas e Macerata • Consultórios na Rua e atenção básica

na Rua e os profissionais e usuários de à saúde são igualmente importantes e responde de maneira mais eficaz tanto à
outros programas; exigiu manter uma se relacionam horizontalmente. Devem organização interna do sistema de ­saúde
sala de espera que considerasse as urgên- focar-se no ciclo completo de atenção a quanto aos desafios do cenário socioe-
cias não só do corpo biológico, mas uma condição de saúde e têm responsa- conômico, d­ emográfico, epidemiológico
­também subjetivas e sociais – como por bilidades sanitárias e econômicas inequí- e sanitário dos territórios. A constitui-
exemplo alguém que precisaria ir a uma vocas por sua população (14). Em que ção da rede fundamenta-se na concep-
entrevista de emprego, ou alguém que pese a relevância de organização interna ção de que a APS deve resolver os
estava desaparecido há muito tempo, do seu funcionamento, o Sistema Único problemas mais comuns de saúde, coor-
ou que estava em crise de abstinência de de Saúde (SUS) no Brasil não pode se denando o cuidado dos usuários que
drogas. apresentar como alternativa absoluta estejam em todos os outros pontos de
No contexto de uma política de saúde para atender a complexidade das de- atenção (13). Sendo assim, a construção
voltada para uma população historica- mandas apresentadas pelas populações da rede é uma tarefa inseparável do cui-
mente à margem dos serviços de saúde, em situação de rua. Assim, a rede inter- dado e exige tempo na agenda dos tra-
é importante considerar que as inúmeras setorial também compõe esse plano de balhadores das eCR para construí-la e
situações graves apresentadas por essa intervenção do Consultório na Rua. para mantê-la aquecida.
população, associadas à atual fragmen- A rede se faz presente na dimensão
tação do trabalho em rede e à insuficiên- rua, por exemplo, quando algum comer- CONSIDERAÇÕES FINAIS
cia de retaguarda clínica na atenção ciante ajuda no tratamento de um pa-
secundária e terciária, produzem a ne- ciente, quando o Serviço de Atendimento As problemáticas e aspectos aqui bre-
cessidade de o Consultório na Rua dis- Móvel de Urgência (SAMU) entra em vemente levantados ganham relevo a
por de um espaço para resolutividade de ação, ou quando é necessário dialogar partir de experiências concretas com o
questões específicas: curativos, exame com a polícia, os traficantes ou os mora- Consultório na Rua, e não dizem respeito
citopatológico. Mesmo sendo itinerante, dores da área. No plano sede, um exem- apenas ao trabalho dessas equipes.
a equipe precisa ter uma sede de referên- plo da presença da rede seria a construção Quando confrontamos a realidade mais
cia, que tenha porta aberta à população de um projeto terapêutico integrado com ampla dos serviços de APS, vemos mui-
em situação de rua, que possa ser utiliza- outro serviço. O Consultório na Rua tem tos pontos de comunicação, principal-
da sem restrições, sem necessidade de a função de tecer e aquecer a rede, crian- mente no que diz respeito à relação entre
nenhum tipo de autorização, um espaço do relações, negociando, entendendo a prática de cuidado, gestão do processo
onde a pessoa em situação de rua tenha lógica e a função de cada serviço, aco- de trabalho e território. Cada vez menos
seu direito de acesso garantido. É preci- lhendo suas dificuldades, mas também o Consultório na Rua aparece como um
so que se crie, no plano da rua, o plano tensionando a acolhida da rua e suas es- serviço especializado. Ele figura também
da sede: espaço de encontro e acolhi- pecificidades. Na construção desse pla- como um serviço analisador, ou seja, que
mento itinerante, junto ao local onde no, está intrínseca toda a perspectiva do coloca em análise as práticas em saúde.
pessoa habita. A existência da sede, cuidado e de organização do processo de Para além de se constituir como uma
com seus recursos e fluxos, não ficará trabalho das eCR, que aponta para a ur- estrutura voltada para os cuidados pri-
restrita às paredes do serviço, mas acon- gência em se pensar práticas e políticas mários, para a prevenção e a promoção,
tece e atravessa o plano da rua e da rede que atendam à necessidade da rua. com alta capacidade de capilarizar as
e, consequentemente, o seu modo de ­Sobretudo, pensar sobre como construir ações de saúde, a APS se caracteriza por
funcionamento. uma rede intersetorial. ser um serviço de base territorial. Isso
O plano de intervenção “rede” se refe- Articular uma rede é fazer fluir o servi- não significa apenas “adscrição de terri-
re aos espaços físicos (serviços) e às lógi- ço em suas dinâmicas interna e externa. tório”, o que, em última análise, restrin-
cas organizacionais dos equipamentos A articulação não é responsabilidade ge toda a potencialidade desse nível de
da saúde, de outras políticas públicas e apenas dos gestores, mas se caracteriza atenção. No Brasil, não é raro serviços de
da sociedade civil, na relação com o tra- na função-gestor, ou seja, de todos os tra- APS se tornarem limitados ao espaço de-
balho do Consultório na Rua. O plano balhadores e, inclusive, do usuário. F­ azer limitado da sede/unidade de referência,
rede é composto pelos seus pontos fluir é estabelecer fluxos que ajudem o ficando alheios à dinâmica territorial.
(­serviços e ações específicas de saúde e trabalho a se consolidar, que permitam O que, por sua vez, impele sua práti-
de outros setores) e também pelos modos que o acompanhamento se efetive e que ca a centrar-se no procedimento
como esses serviços, trabalhadores e usu- desfaçam “nós” de comunicação e bar- “­queixa-conduta”, descaracterizando o
ários entram em relação. reiras com o intuito de tornar o trabalho que queremos afirmar como cuidado. O
A recente construção das redes de tanto mais resolutivo quanto mais for modo de relação entre equipe e território
atenção à saúde (RAS) (13) realça o pecu- compartilhado. aqui exposto pode fornecer elementos
liar trabalho realizado pela APS, que tem As redes se constituem em arranjos primordiais para as práticas de cuidado
como prerrogativa a coordenação do cui- entre os diferentes serviços de saúde e também para as práticas de gestão do
dado e a ordenação das diferentes redes nos territórios para desconstruir a frag- cuidado.
em seu território. As RAS devem ter mentação das práticas de saúde susten- A gestão do processo de trabalho
­missão e objetivos comuns, operando de tadas apenas pela lógica de atendimentos aqui proposta é realizada, radicalmente,
forma cooperativa e interdependente,
­ pontuais aos agravos, geralmente cen- a partir das demandas construídas na
trocando recursos. Não devem ser esta- trada na lógica orgânica-biológica. ­relação entre dinâmicas da equipe e di-
belecidas hierarquias entre os diferentes Experiências demonstram que a inte-
­ nâmicas do território. Construir a gestão
componentes. Todos os pontos de atenção gração sistêmica prevista pelas RAS do trabalho nessas bases – a base da

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relação –, pode permitir reconciliar o e atenção; ampliar a capacidade de con- de bolsa de doutorado (2011-2015) e à
modelo de APS com a sua missão: cuida- siderar e intervir junto aos vários vetores Equipe POP RUA (Consultório na Rua
do de 80% dos agravos em saúde através que compõem uma situação complexa, Rio de Janeiro, Centro, 2010-2013).
de uma lógica territorial: no, através e seja de um indivíduo, grupo ou comuni-
com o território, sendo efetivamente um dade. Uma reconciliação entre APS e ter- Conflitos de interesse. Nada declarado
equipamento de ampliação de acesso. ritório, pela construção de novas práticas pelos autores.
Contudo, esses modos de relação com o de atenção diretamente implicadas em
território permitem não somente um au- novas práticas de gestão do processo de Declaração. As opiniões expressas no
mento da abrangência, mas também um trabalho para o SUS. manuscrito são de responsabilidade ex-
aumento do grau da capacidade de cui- clusiva dos autores e não refletem neces-
dar de situações complexas, onde vários Agradecimentos. À Coordenação de sariamente a opinião ou política da
concorrem. Um duplo sentido de am- Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível RPSP/PAJPH ou da Organização Pan-­
pliação: ampliar a capacidade de acesso Superior (CAPES) pela concessão Americana da Saúde (OPAS).

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ABSTRACT As part of the Unified Health System (SUS) in Brazil, a Street Outreach Program was
created with the goals of delivering primary health care (PHC) and guaranteeing ac-
cess to health initiatives for homeless populations on the actual street environment,
Contributions of Street
connecting these populations to other services beyond urgency and emergency facilit-
Outreach teams to primary ies. The Program’s scope of action involves, in addition to health care, protection
health care and management against the risks to which this population is exposed combined with an effort to guar-
antee their rights. In this sense, the Street Outreach Clinics strive to ensure equity and
access for a population without an address within a system that essentially relies on
geographical catchment areas to provide health care. Thus, the establishment of Street
Outreach Clinics has introduced new modes of providing health care, and con-
sequently new modes of managing work processes. Based on this articulation between
care and management, the present article discusses three levels of intervention at
which the work of Street Outreach Clinics and teams takes place – the street itself, the
health care unit, and institutional networks –, as well as the relationship between this
Program and other PHC services and its contribution to reconcile PHC with its essen-
tial attributes, beyond catchment areas.

Keywords Health management; universal access to health care services; primary health care;
homeless persons; Brazil.

RESUMEN Como parte del Sistema Único de Salud en Brasil, los Consultorios en la Calle y sus
equipos fueron creados teniendo como función prioritaria prestar cuidados prima-
rios y garantizar el acceso a las acciones y servicios de salud para poblaciones en si-
Contribuciones de los
tuación de calle, en el propio ambiente de la calle, creando vínculos en esa población
equipos de Consultorio en la con otros servicios que no sean solamente los de urgencia o emergencia. Su alcance
Calle para el cuidado y la involucra, además de la atención, la protección contra los riesgos a que está expuesta
gestión de la atención básica esa población, combinada con la búsqueda de la garantía de sus derechos. En ese
sentido, los Consultorios en la Calle buscan hacer efectiva la equidad y el acceso a las
acciones y servicios de salud para una población sin domicilio fijo dentro de un siste-
ma basado esencialmente en la adscripción territorial de la población. Así, la creación
del Consultorio en la Calle inaugura nuevos modos de cuidados de la salud y, en
consecuencia, nuevos modos de gestionar el proceso de trabajo. A partir de esa arti-
culación entre cuidado y gestión, el presente artículo discute tres planos de interven-
ción donde se da la práctica de los equipos de Consultorio en la Calle (la propia calle,
la sede o unidad de referencia y las redes institucionales), su relación con los demás
servicios de atención primaria de salud y su contribución para reconciliar la atención
primaria de la salud con sus atributos fundamentales, además de la adscripción del
territorio geográfico.

Palabras clave Gestión en salud; acceso universal a los servicios de salud; atención primaria de salud;
personas sin hogar; Brasil.

6 Rev Panam Salud Publica 42, 2018

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