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Sobre os dilemas de expor o nosso tempo Maria Ignez Mantovani Franco* A segunda metade do século XX trouxe-nos a aceleracdo da organizacao de expo sigdes em todo o mundo. Este frenesi intensificou-se na década de 1980, a partir das demandas de museus europeus e americanos de encontrar formas alternativas de ob- tengo de recursos, utilizando-se da cessio remunerada de seus acervos para garantir as despesas de custeio, que passaram a nao ser mais atendidas por seus patrocinadores histéricos, fossem eles puiblicos ou privados. Foi necessdrio, a partir de entio, acionar 0s acervos que repousavam em reservas seculares nos museus, definir e apurar novas normas de circulacdo de bens patrimoniais e empreender logisticas de deslocamen- to de obras, sem precedentes, para garantir a circulagio segura desses acervos pelo mundo, em busca de remuneracao pelos empréstimos de conjuntos de obras a diferen- tes paises. Esta natureza de aco trouxe aos museus emprestadores, simultaneamente, dois beneficios conjugados: de um lado, dividendos polpudos capazes de financiar processos de requalificagio em suas jd desgastadas sedes, planos de aquisigao de acer- vos, ou até mesmo atendimento a necessidades institucionais de sobrevivéncia ainda mais prementes; de outro, os museus propagaram aos quatro cantos do mundo a exce- Iéncia de seus acervos, acirrando o fluxo turistico a seus respectivos paises; por via de consequéncia, constatov-se o exponencial aumento da visitago aos museus, da venda de ingressos e de larga gama de produtos licenciados a partir de suas colegSes. S60 Museu do Louvre, o museu mais visitado do mundo, atingiu, em 2008, um total de 8,5 milhées de visitantes'. 1 Cf. Acesso em: 04 de dea, 2009. [MUSEU HISTORICO NACIONAL 273 274 MARA \GNEZ MANTOVANI FRANCO Astiltimas décadas do século XK eo inicio do XXItém sido marcados por grandes em- preendimentos na drea de museus, tanto pela implantacZo de novos museus, quanto pela requalificagao dos ja existentes, em diferentes paises. Este movimento, em todo o mundo, transformou o museu na “Catedral do Século XXI”, tal a centralidade que ele assumiu na cena das cidades mundiais e na economia da cultura de cada pais. Os novos museus, capi- taneados muito mais pela acirrada concorréncia globalmente instaurada entre os grandes arquitetos internacionais, do que pela exceléncia do planejamento museoldgico que os embasa, foram em sua grande maioria concebidos como templos para a arte, muitas vezes projetados de forma dissociada do contexto histérico-social a que se destinaram. Esta légica, internacionalmente disseminada em larga escala, favoreceu a nocao de entesouramento, de valorizagdo dos grandes mestres e de suas grandes obras, a despeito de se saber se as exposigées circulantes eram ou nao resultantes de selegdes curatoriais apuradas ou se estariam adequadas a compreensao de diferentes piblicos em distintos paises. Por conta da itinerancia crescente das exposigdes em todo o mundo e a necessi- dade de viabilizar economicamente tais projetos, as decisdes institucionais passaram a privilegiar multiplos pontos expositivos em diferentes paises, a expor as obras a condi- bes de seguranca e conservagdo nem sempre recomendiveis ¢ a exercitar novas estra~ tégias mercadolégicas que revolucionaram varios segmentos da economia da cultura, ‘ou seja, o mercado da arte, a formacdo de grandes colegdes € o mundo dos museus, de forma mais abrangente. Constata-se, portanto, que o modelo que estruturou a ldgica das exposigdes inter- nacionais e itinerantes esteve em grande parte centrado na arte, seguido mais recente- mente por mostras de impacto sobre grandes temas de divulgacio cientifica. No Brasil, esta ldgica foi assimilada, passando nossos museus a replicar esse mo- delo internacional de forma intensa. Nao se pode negar o valor inquestiondvel da am- pliacdo do publico visitante aos museus no Brasil, trazida por seu ingresso no circuito internacional de exposicées, nos tiltimos vinte anos, € muito menos o papel inclusivo que as leis de incentivo a cultura vieram a representar, como plataforma de acesso mais estendido de diferentes publicos aos museus ¢ as exposigdes no Brasil. [MUSEU HISTORICO NACIONAL, SSORRE 05 DIENMAS DE EXPOR © NOSSO TEMPO Hé, no entanto, uma lacuna, ou seja, um hiato digno de nota. Talvez s6 num semi- nério desta magnitude, no Museu Histérico Nacional, institui¢do que corajosamente tem refletido sobre a espinhosa e complexa tarefa museoldgica de empreender a sis- temdtica coleta contemporanea de acervos, haja lugar para esta reflexdo. Por outro lado, a composigao desta mesa encoraja-me a tocar nesta questo, na medida em que constato, entre meus pares, profissionais que ndo tém vacilado, no cotidiano de suas reflexes ¢ realizagdes, em exercitar esta nova dimensio expositiva que proponho. Acreditamos que, na medida em que foi adotado e difundido o modelo de re- alizagao de exposigdes preponderantemente de arte, deixamos de exercitar, simulta- neamente € com a mesma énfase, a tarefa de expor o nosso tempo. Dialogar com a sociedade contemporanea, a partir de outros eixos tematicos, notadamente de sentido histérico-socioldgico, questionando os dilemas da vida contempor4nea em nosso pais, em nossa sociedade, mergulhando fundo em interlocugées proativas com diferentes segmentos sociais, foi uma estratégia muitas vezes considerada irrelevante ou nao prio- ritéria no desenho de nossas exposigdes. Por outro lado, muitas vezes os patrocinado- res reiteraram a mesma ldgica jd sacramentada, optando por patrocinar exposigées de grandes mestres, de sucesso de ptblico jé garantido, ao invés de inovar, seja no tema, nos contetidos ou nas linguagens expositivas. Talvez possamos ento nos perguntar: a) Por que temos fluidez em expor a arte e no a cultura contempordinea? Por que precisamos de décadas de distanciamento histérico para referendar nos- sas escolhas? Por que nos intimidamos em abordar no plano expositivo a nos- sa propria vida, o nosso cotidiano? b) Seria oreceio de que a selegio de objetos presentes possa indicar auséncias, lacunas irrepardveis que venham a nos causar desconforto? ©) Oque significa entio expor o artefato contemporaneo? Que risco est conti- do nesta nova légica? d) Que ameaga representa para os tomadores de decisio, no plano politico- institucional ¢ empresarial, apoiar um projeto expositivo que explore o que MUSEU HISTORICO NACIONAL 275 276 MARIA KGNEZ MANTOVAN FRANCO e) 8) h) dD é produzido pela sociedade, contemporaneamente? Estaria af contido um risco muito mais ameacador do que a selecdo de obras consagradas pela his- téria da arte ou pela reconhecida datagao dos artefatos? Quo que nos preocupa ¢ a histéria a ser contada, 0 fato de ela se referir a0 aqui e agora, & nossa vida presente? Ou o que nos incomoda é a auséncia do anteparo histérico? As exposigdes que referenciam apenas o passado seriam, portanto, mais seguras? Seria possivel mesclar, confrontar, perpassar dife- Tentes momentos histéricos, com din&micas préprias e muitas vezes mesmo controversas? Os objetos histéricos nos questionariam menos que os contemporaneos? Seria necessdrio permitir ao tempo descartar os objetos que irremedia- velmente cairiam no esquecimento, para entao restar, e por via de conse- quéncia, selecionar, naturalmente, aqueles “vocacionados” a um proces- so expositivo? Ou seriam outros valores e critérios que deveriam ser a base para a selegio? ‘Até onde esses valores que foram grandes referenciais no passado, ao longo de séculos, aplicam-se hoje ao nosso mundo globalizado, transterritorial? Se a nossa sociedade vive uma luta contra o préprio envelhecimento, multi- plicando ldgicas de verossimilhanga e reconstrugio, por que no nos sentir- mos referenciados no presente? Serd que o modelo de exposigo que explore a riqueza da vida em sociedade, aqui e agora, seria mais ameacador pela simples inversio do peso simbélico dos objetos, ou este discurso inverteria outros sentidos sociais mais abrangentes? Que histéria as exposigdes se propdem legitimar? O que se pretende lembrar, © que se permite esquecer? Seria cada exposigao de histéria contemporanea um territério de novos sentidos, de novas expectativas? Por que nao pode- mos considerar que as exposicdes, notadamente as transitérias, tém o poder de refletir, de modificar, de ressignificar o presente e assim desenhar, em tempo real, o préprio futuro? Haveria tempo, no nosso presente, de esperar oenvelhecimento natural dos objetos? MUSEU HISTORICO NACIONAL SOME 05 DILEMAS DE EFORO NOSSO TEMPO k) m) n) Por que nossa sociedade aplaude, consome ¢ musealiza a arte contempors- nea, construindo ‘museus catedrais’ para abrigé-la, em todo o mundo? Seré que a arte fala da vida sem tantas ameacas quanto os objetos o fazem? Por que as exposigdes de ciéncias se multiplicam, evidenciando ao piblico os grandes temas que preocupam a sobrevivéncia do planeta? A extingao da espécie humana nio seria um medo maior do que o imposto pela coleta de objetos contemporaneos? Seria mesmo possivel substituir 0 objeto por seu simulacro? Podemos optar pela tecnologia que pode traduzir sentimentos, gestos, sabores, odores ¢ ima- gens inesqueciveis? O fascinio do movimento seria mais estimulante do que © repouso do objeto? Seria o caso de abdicar dos acervos originais e assumir definitivamente a interagdo virtual? Seguindo as trilhas das redes colabora- tivas, seria possivel criar virtualmente exposicdes? Por que manter originais se seria possivel congeléos em imagens, para o futuro? Poderfamos nés mo- dificd-los, edité-los, recrid-los? Na era da clonagem humana, em que se desa- fiam as ldgicas da ancestralidade e da hereditariedade, poder-se-ia pensar na obsolescéncia do objeto original? Poderd ele um dia ser clonado, reproduzi- do ou até mesmo descartado? Nao seriam as exposig6es um territério instigante de experimentagdo que poderia trazer aos museus, notadamente aos histdricos, um novo félego de experiéncia e inovagao em coleta contempordnea de acervos? Nostiltimos anos, temos experimentado a realizagio de exposigdes ligadas a temé- ticas contempordneas. Certamente esta modalidade de exposicao provoca uma nova mudanga de sentidos no planejamento e organizagio das exposigdes, até entdo forte- mente influenciadas pelos procedimentos convencionais da dindmica da arte. Assim, tem sido preciso estabelecer novos paradigmas que possam redimensionar as ages. A primeira destas mudancas foi, sem divida, a adocdo da curadoria comparti- Thada, Na maioria das vezes, ao invés de atribuida aum tnico profissional, a curadoria passa a ser tarefa de um comité curatorial, que é formado por diferentes profissionais [MUSEU HISTORICO NACIONAL 277 278 MARA IGNEZ MANTOVANI FRANCO de distintas areas do conhecimento: historiadores, planejadores urbanos, antropdlo- Gos, socidlogos, gedgrafos, psicanalistas, musedlogos, educadores, entre outros. Esta composico interdisciplinar ¢ em geral definida pela temética da exposicao que se pre- tende realizar. Esta opgdo tem-se demonstrado muito rica ¢ colaborativa, quando se tem a facilidade de encontrar consultores e curadores interessados efetivamente no projeto e nao em erigir metedrica carreira curatorial. Como segundo ponto, reforca-se sobremaneira a importancia da pesquisa, capaz de referenciar nao sé 0 conceito gerador da exposicdo, como também os eixos temati- cos, objetivos de comunicagio e demais esferas informacionais. A pesquisa é territério propicio 4 interdisciplinaridade e se torna, cada vez mais, a grande permanéncia na arte de organizar exposig6es; por meio do desenvolvimento das pesquisas, as trocas permanentes ganham forca e dindmica, quando bem conectadas ¢ orientadas. Bancos de dados relacionais so recursos tecnolégicos que hoje jé possibilitam gerenciar os dados obtidos pelas pesquisas, permitindo que toda a gama de profissionais envolvi- dos possa acessar as fontes geradas, em tempo real e concomitante, de forma a expo- nenciar as possibilidades de colaboragdo mituas. A pesquisa pode se favorecer igualmente de recursos e fontes inerentes a0 nosso tempo, alargando fronteiras de contetido, emprestando ferramentas geradas por dife- rentes dreas do conhecimento, como por exemplo: resultados de pesquisas de opiniio sobre comportamento, pesquisas sobre consumo e uso de determinados produtos, mo- dos de vida da populacio, entre outros; questées sociais, debates inclusivos, sustenta- bilidade das cidades, mobilidade urbana, relac3o humana com a tecnologia, situagdes complexas de risco social ¢ ambiental — todos esses podem ser temas combativos e de grande interesse para a sociedade. Alguns museus internacionais, notadamente 0 Museu Etnografico de Neuchatel ¢ o Alimentarium da Nestlé, em Vevey, ambos na Suiga, ji deram indicios, desde a década de 1980, de que seria possivel ousar nas interlocugdes com os objetos contemporaneos, realizando sucessivas exposig6es tematicas que os transformam em elementos de grande reflexao e conscientizaco sobre o modo de vida na sociedade contemporanea. Um dos exemplos contidos na vasta literatura que estas duas instituic jes mantém sobre os objetos MUSEU HISTORICO NACIONAL contemporaneos ¢ sua interlocucdio museolégica, por meio de exposigdes, esta na Figura 1 Neste jogo insondavel de causas ¢ efeitos que o desafio de gerar exposicdes de his- toria contemporanea nos impée, gostaria de acrescentar um outro condimento, nao menos importante, que pode ajudar a balizar 0 nosso olhar para este objeto que nos incomoda, nos subverte, nos instiga. Trata-se inexoravelmente da relacao entre ausén- cia e presenca que 0 objeto encerra (Figura 2) Figuros 1 e 2 Sara Pain? nos lembra que o objeto ndo pode ser considerado de uma maneira ingénua. Nao podemos ver nem perceber um objeto total. Colocado um copo no cen- 2 Extraido de PARENTE, S. M. B.A. (Org) NEIVA, AL, S. & CREUZ. RC, (Col.) Encontros com Sara Pasin. Sio Paulo; Casa do Psicdlogo Livraria e Ealitora Ltda, 2000. Sara Pain ¢ argentina. Doutora em Filosofia pela Universidade de Buenos Aires ¢ em Psicologia pelo Instituto de Epistemologia Genética de Genebra trabalhou para a U Ses de assessoria relacionadas a problemas da inteligéncia aprendizagem, © nos skimos anos foi Diretora do jo de Arte-Terapeutas—CEFAT (Centro de For Paris MUSEU HISTORICO NACIONAL 279 280 [MARIA IGNEZ MANTOVAMI FRANCO tro da mesa, 0 primero interlocutor 0 vé de um lado e 0 outro interlocutor o vé de outro, se sentados em oposigio um ao outro. Cada um de seu lugar tem uma perspec- tiva diferente com relagio ao objeto. Ou seja, quando um deles diz “isto ¢ um copo”, est reconstruindo, porque pensa que a parte que nao vé sem divida existe e tem uma forma que segue uma certa logica de reconstrugao, jé que a forma de um objeto exige uma continuidade tal que 0 objeto se reconstri mentalmente, pela experiéncia ante- rior que jé tivemos com ele. Os estudos que levaram a tais conclusdes, empreendidos por Pain, certamente ligados a identificar problemas de inteligéncia e aprendizagem, podem ser referenciais para a nossa compreensio sobre a relacdo das exposicdes e de seus publicos com os objetos. De uma maneira geral, “cremos no que nao vemos”, ou seja, aceitamos mental- mente que as partes visiveis enunciam as ausentes e mentalmente formamos sentidos de completude. Se levarmos estas andlises para o universo de sentido museoldgico, percebemos que a selegio de objetos contém em si propria o universo excluido. Ou seja, 0 objeto que est presente na exposicdo carrega o indicio dos similares que foram descartados. No século XX, em que a produgio industrial determinou a fabri- cago em série, cada objeto selecionado muitas vezes carrega ameméria de “vultos” que foram alijados. Temos todos a nogao de que um copo de aguardente de botequim tem milhares de outros similares. Portanto, a presenga de um tinico exemplar numa vitrine nos dé a possibilidade de falar do habito de beber do universo masculino nas zonas rurais brasileiras. Da parte, alinha-se o todo. Ao ver um copo, intuimos milhares fazemos relagdes de sentido de reconstrugio de ideias e ambientes social- mente vivenciados. Deduz-se, portanto, que os museus ¢ as exposigdes referenciam presencas e auséncias, pois 0s objetos que sio selecionados como eixos de ligacao de sentidos referenciam outros idénticos, andlogos, ambientes relacionais a ele, enfim, um universo de auséncias. Isto posto, vemos que a comunicagio museoldgica é uma teia de sentidos que parte da concretude de um objeto e se conecta, 3 medida da capacidade cognitiva, interpretativa, aliada a experiéncia vivida de cada visitante, reconstruindo um universo de presengas ¢ auséncias fascinantes. Nao se pode deixar de citar uma experiéncia desenvolvida pela artista e musedloga Cliucia Amaral, a0 MUSEU HISTORICO NACIONAL ‘SOBRE OS DILEMAS DE EXPOR © NOSSO TEAPO conceber a exposigdo do Museu de Energia de Itu, SP, pertencente 4 Fundagao de Energia e Saneamento do Estado de Sao Paulo. Ao compor uma vitrine de ferros elétricos, desde os movidos a carvao até os modelos eletrénicos contemporaneos, notou a falta, no acervo, de alguns modelos de interesse; a solugdo encontrada foi incluir nas vitrines alguns desenhos relativos a cada modelo faltante, que foram en- to chamados de auséncias. Estas auséncias, segundo ela, indiciavam caminhos que o museu teria que percorrer em busca dos objetos a serem coletados, Sob a dtica de Pain, tais desenhos seriam dispensaveis, pois o visitante conseguiria, mentalmente, promover o acréscimo de modelos, seguindo sua légica propria e o conjunto de in- formages que ele detinha sobre a questo. As reflexes de Pain colocam-nos outra indagacdo nao menos instigante. Se dois interlocutores colocados frente a frente, com um copo no centro, nfo conseguem “ver” de uma mesma maneira este copo, o que dirfamos nés da complexidade de selecionar, legitimar, expor uma série de artefatos para que sejam observados e “completados mentalmente” por diferentes pessoas, numa exposica0? Suspeita-se, portanto, que os acervos contempordneos, por se relacionarem ao universo imediato vivido pelos visi- tantes, possam representar uma gama de sentidos muito desafiante para novos e pro- digiosos exercicios individuais ¢ coletivos de “completude dos objetos”. A presenga de um objeto numa exposicao traria em si a grande missao de indiciar auséncias? Pode estar af certamente o enigma fascinante contido no exercicio profissional que reside em sensibilizar os visitantes por meio dos artefatos, presentes e ausentes. Aqui é preciso assinalar que a “desnaturalizagio do objeto” ¢ a esséncia do ato de consideré-lo como artefato, como ponto de referéncia para as légicas patrimoniais e mu- seais. Trata-se do distanciamento necessdrio do objeto, para que se possa observé-lo e torné-lo operacional, como nos lembra Meneses*, quando trata da cidade como objeto. Temos ainda a refletir sobre as varias possibilidades de comunicacao que os recursos mididticos permitem enquanto linguagens contempor4neas aplicadas as 3 MENESES, U.T. B.O museu de cidade e a consciéncia da cidade. In: SANTOS, A. C. M., CUIMARAENS, C. 8 KESSEL, C. (Orgs. Miuteus € Cidedes ~ Livro do Semindrio Internacionel, Rio de Janeiro: Museu Histérico Nacio- nal, 2003. MUSEU HISTORICO NACIONAL, 281 282 (MARIA IGNEZ MANTOVANI FRANCO exposigdes, além de outras plataformas colaborativas passiveis de serem disponi- bilizadas. Nao se faz necessdrio entrar nas polémicas recentes relativas 4 validade ou nao de se adotar em larga escala recursos mididticos em exposigdes, mas nio poderiamos deixar de registrar que tais linguagens podem ser bastante recomen- daveis, porém com a cautela de nio sacrificar 0 discurso essencial do objeto que a exposigao, por definigao, encerra e, tampouco, banalizar o uso da tecnologia pela tecnologia, esvaziando-a das suas potencialidades de seduzir, comunicar e educar, a partir da sinergia pré-ativa de diferentes recursos e linguagens. Mais do que 0 uso parcimonioso de tais recursos, parece ser imperativo saber adequé-los aos ob- jetivos que se pretende atingir e aos contetidos jé desenvolvidos que so, em pri- meiro plano, a esséncia de uma exposicao. Outro ponto de interesse para andlise é © que chamamos de estratégias de comunicacao de uma exposi¢&o. Como estamos ainda em fase priméria de organi- zagio e planejamento de critérios de coleta contemporanea, no Brasil, raramente nos ocupamos em discutir sobre os novos caminhos comunicacionais que esta nova natureza de objetos nos impée. Ou seja, nao podemos nos dedicar a discutir crité- ios de selecio e de coleta se no soubermos a que virdo tais objetos, que relagao terdo com outra natureza de acervos eventualmente também préselecionados, que novos didlogos serao propostos entre eles ¢ a sociedade, numa exposigio. Por que ndo pensarmos entdo em incluir representantes da sociedade na reflexio sobre a relagdo publico-museu ¢, por que nao, na discussdo sobre os destinos de objetos contempordneos numa exposicao? A Sociomuseologia pode nos suprir de elemen- tos tedricos fundadores para entabular este novo didlogo entre a sociedade e 0 museu, entre a sociedade e as exposigdes. Torna-se, portanto, imperativo alargar e ampliar tais fronteiras. E por que nao dizer do necessério preparo para o enfrentamento das novas questdes de conservacio que tais objetos nos colocam? Sem duvida, artefatos pro- duzidos no século XX e XXI subvertem a légica dos conservadores ¢ restaurado- res: a pluralidade de materiais, técnicas, ligas metélicas, tintas, vernizes, resinas, produtos téxicos, processos industriais a que sio submetidos, enfim, constitui-se [MUSEU HISTORICO NACIONAL SOBRE OS DILEMAS DE EXPOR O NOSSO TEMPO. num conjunto de desafios d espera de equacdo. Caminha a passos largos, em todo 0, rica e exemplar, sobre a conservacao de objetos, projetos o mundo, a discuss stalacdes artisticas e intervencdes contempordneas. Por que esta preocupagio nao € alastrada para a conservacio de objetos do nosso cotidiano? (Figura 3) Por que tais conceitos ndo podem iluminar também as agdes de conservacio preventi- -des de historia contemporanea? va de exposi Figuro 3 Neste sentido, ¢ importante destacar ainda outra diferenca significativa. A dind- mica de desenvolvimento de uma exposicao de histéria contempordnea pressupoe al- gumas atitudes ousadas no tocante ao didlogo com o piblico. Hoje nio se considera 0 piblico como um mero expectador, mas, sim, um colaborador capaz de gerar e propor indagacdes, contetidos, de selecionar o que the interessa, de contribuir para o aper- feicoamento da exposicdo. Varias estratégias tém sido experimentadas contempora- heamente no sentido de ampliar cada vez mais a participagao ativa da sociedade no MUSEU HISTORICO NACIONAL 283 284 [MARIA IGNEZ MANTOVANI FRANCO desenvolvimento, na operacdo ¢ nos processos de avaliagao dos resultados obtidos por uma exposigdo (Figuras 4 e 5). Para além das estratégias previstas para o lécus onde a exposigao se realiz a, para além das potencialidades educacionais (Figuras 6 e 7) que um substancioso programa de forma- cdo transversal pode encerrar, é pre acreditar também nas novas plataformas de comu- nicagdo e interagdo que se expandem pela ede, conectando usuarios que, on-line, passam a experimentar e vivenciar, no todo ou em parte, alguns programas ligados exposicio. Estas potencialidades abrem igualmente alternativas interessantes para o atendi- mento personalizado a ptblicos com necessidades especi is (Figur dem igualmente se beneficiar de recursos tecnolégicos ou nio, que pi 8 9), que po- am favorecer sua inclusao cultural e social. MUSEU HISTORICO NACIONAL MUSEU HISTORICO NACIONAL 286 [MARIN IGNEZ MANTOVANI FRANCO Da mesma forma, um novo arsenal de potencialidades comunicacionais dialoga para muito além dos tradicionais instrumentos de comunicagéo de uma exposicio, quer sejam os produtos editoriais, ou a assessoria de imprensa, entre outros. Com as novas ¢ desafiantes potencialidades abertas pelas redes sociais, as relagdes de comuni- cacao sio exponenciadas, abandonam suportes tradicionais e assumem novas sinapses colaborativas que podem subverter, em muito, nossos prévios entendimentos sobre como proceder para comunicar e divulgar exposicdes, Nao podemos deixar de citar que tais alteragdes nas ferramentas comunicacionais caminham para uma maior de- mocratizagio do acesso ptiblico as exposigdes, impostas por novas estratégias de ma- rheting, de financiamento a cultura ¢ de inclusio social, jd instauradas € em continua transformagio Neste sentido, é importante considerar que, no planejamento integrado de exposi- ges, € preciso salvaguardar o direito do cidadio ao patrimdnio cultural, ao convivio social, 4 meméria ¢ & cidadania. Na dindmica de se empreender exposigdes, tornase, portanto, forgoso apropriarse incessantemente da metodologia do trabalho interdisciplinar e dar voz, em primeira pessoa, aos cidadaos. Este modelo de exposi¢ao pressupée o didlogo in- tersujeitos ¢ elege com prioridade o discurso includente ¢ pré-ativo, mobilizador, como © eixo de sentido das agdes patrimoniais. Apesar dos multiplos recursos de que se dispée contemporaneamente paraestabelecer o didlogo constante com os seus visitantes, o musen nao pode abdicar da linguagem expositiva como sua grande forca de expressio. Este modelo de exposigio ora preconizado estd, portanto, articulado sobre algu- mas premissas que vém sendo experimentadas tanto no Brasil como no exterior: + abdica conscientemente da distncia do tempo que o pasado outrora lhe ga- rantira, abrindo franca interlocucao com o presente, assumindo os riscos de sua representacao interpretacao, em busca de uma nova e prospectiva visio de futuro; © presente mostra-se essencialmente mutavel e provoca as exposiges em recdo ao rompimento de seus limites simbélicos, para se apropriar das multi plas dimensées ¢ relagdes sociais; + acoleta contempordnea manifesta-se como algo jé compulsério e a politica MUSEU HISTORICO NACIONAL, SOBRE 0S DILEMAS DE EXPOR © NOSSO TEMPO de pesquisa e obtengao de acervo se despe da retérica classificatéria do pas- sado e se volta agora para a contundente questao vinculadora com o futuro —o que, no presente, ser significante para as futuras geragdes?; + mais do que um depositdrio de coisas do passado, as exposigdes podem se transformar em plataformas miltiplas para a compreensio da sociedade contemporanea e forum permanente para o debate que capacite o cidadao a contribuir ativamente para a configuracao do futuro. Finalizando, gostaria de recomendar que nao venhamos a subestimar a intera- do de uma exposigao em escala global, ¢ analisar 0 quanto tais forcas as desafiam, referenciam ou mesmo determinam. Castells* aponta que a nova economia mundial, advinda na segunda metade do século XX, é marcada pelo informacionalismo’, glo- balizacdo e funcionamento em rede. Uma vez entronizados 4 escala global primeira- mente pelo rédio, depois pela televisio e mais contemporaneamente pela internet, passaram a vivenciar as grandes questdes globais, nacionais e locais, em tempo real. Se de um lado esta Idgica pasteuriza e iguala conceitos e expressdes socioculturais, por outro tem o poder de libertar, de incluir, de disseminar a ldgica do pertencimen- to, de organizar correntes humanas de cooperacdo. E, portanto, hoje, extremamente relevante, em tais contextos, a conexio em rede, néo apenas como forma possivel de organizaco social, mas principalmente como fator de libertago pessoal e arti- culagao coletiva. Se considerarmos que um grupo de rap da favela do Vidigal (Rio de Janeiro) pode se conectar pela internet, em tempo real, com outros rappers do Bronx, em Nova York, assistir a um evento do Anacostia Museum, em Washington, ou se reconhecer nos sons de tambores africanos de uma tribo de Angola, vemos que mais do que a possibilidade de contato global, o relevante € 0 acesso ao contetido, a informagio, ao predominio da estética, dos valores culturais, dos modelos impreg- 4 CASTELLS, MA Sociedade em Rede. ABra da Informacdo: Foonomia, Sociedade e Cultura, Vol. I, 12*reimpres p. 119). Sio Paulo: Editora Paz e Terra 8/A, 2008. 5 Informacionalismo ~ a produividade e a compeitvidade de unidades ov agentes nessa economia dependem bask ‘eamente de sua capacidade de gear, processar aplicar de forma ecient a informagio basesda em conhecimentos. [MUSEU HISTORICO NACIONAL 287 [MARIAIGNEZ MANTOVANI FRANCO nados de influéncias ¢ analogias que podem ser assimiladas. Sdo assim, de fato, no- vas visdes — locais e globais — passiveis de serem apropriadas e experimentadas pelos cidadaos, também no territério das exposigdes. Nao poderia deixar de registrar que as exposigdes contempordneas so, portanto, palco propicio a inovacdo, ao experimento e & transposicgo entre diferentes culturas e naturezas de conhecimentos. Nao apenas de conhecimentos académicos, principal mente de saberes ¢ ldgicas colaborativas que possam advir da interlocucdo direta com a sociedade; 0 discurso expositivo no abdica do objeto enquanto forca contundente de comunicaciio museolégica, porém dialoga nao s6 com diferentes linguagens e solugdes mididticas, como explora diferentes plataformas e sinapses colaborativas em rede. Assim, as experincias expositivas podem se transformar num espago democriti- co confidvel ¢ ilimitado, que possa ser fisicamente vivenciado como parte integrante do museu, mas também utilizado como forum de debate, de discussao e experimenta- cao sobre temas sociais no contexto do passado, do presente e do futuro. As exposigdes no século XXI nao podem mais abdicar de enfrentar o dilema de expor 0 nosso tempo. ‘* Maria Ignez Mantovani Franco é graduada em Comunicagio Social, com especializago em Museologia, cursou doutorado em Histéria Social na Universidade de Sio Paulo. E doutoranda em Museologia, pela Universidade Laséfona de Humanidades e Tecnologias, de Lisboa, Portugal. Diretora da Expomus ~ ExposigSes, Museus, Proje- tos Culturais, empresa que criou em 1981 para atuar no desenvolvimento de projetos museolégicos, sicio-educa- cionais ¢ ambientais, em colaboracio com instituigdes ¢ museus nacionais. Membro da Diretoria do Icom Brasil, representa este Srgo no Conselho Nacional de Politcas Culturais do Ministério da Cultura. 288 MUSEU HISTORICO NACIONAL Exposigées e rupturas comunicacionais: esmaecimento dos objetos ou desaparecimento dos lugares? Céca Guimaraens* Na rua e na poltrona, no avido € no elevador, o mundo visivel e legivel é 0 da ca- deia incessante das imagens, pois o cinema, a televisio e a internet refutaram os siste- mas classicos, as tradigdes € os costumes, insinuando outras condigées ideais para toda agente ver e ero mundo. Antes, os manuscritos e as reliquias foram os espelhos ¢ as representagdes da bus- ca incansdvel e virtuosa da humanidade pelo verdadeiro e correto. Depois, os objetos, encarcerados em formas e cores, passaram a significar (e a deturpar) a beleza das cul- turas nascentes. Grandes ideias ¢ erros, e também virtudes e conflitos, desenvolveram técnicas e esperangas retéricas sobre as quais a humanidade construiu suas crengas inabalaveis. Mas, desde sempre, a contradico foi a esséncia bruta das invengdes ¢ das novas concepgées ¢ visdes do mundo. Nessa perspectiva, os acertos ¢ as incongruéncias da arquitetura — arte e técnica de organizar construir o espago de vida humana — sio incontéveis e nio fogem Tegra na atualidade. Portanto, o prisma de onde se poderia olhar as formas de identi- dade e de comunicagdo em exposigdes museoldgicas indicaria diversos caminhos. MUSEU HISTORICO NACIONAL 289 290 CECA GUMARAENS Hi quese considerar, deinicio, que, hoje, os muscus foram eleitos “produtosglobais”, © que essas instituigdes passaram a fazer parte da industria de entretenimento e consumo cultural. Notase, ainda, que, acima de tudo, no século XX, a velocidade e a mobilidade das transformagées do espago e do tempo, junto com o crescimento populacional, fomenta- ram muitas revolucdes, tornando possiveis as diferencas e as simultaneidades perceptivas. Em consequéncia, as arquiteturas de museus e de exposicées se instituiram sobre territérios polémicos, tornando-se eixos e focos de muitas virtudes, vicios e conflitos. E mais: naquele século, a histéria foi o momento da histéria no presente. Ameméria, ente efémero e fugaz. Aidentidade, coisa fugidia e fragil. O rigor modernista, visio utépica. Acasa, maquina de morar. O faturo, cosmo e infinito. O novo, sim, foi o moderno e nao o verdadeira e radicalmente modernista. Aarte de ser original se tornou valor ainda maior que a vida. Com 0 novo sempre ase fazer, o moderno, dentro do modernismo, foi indefinigao e indeterminagdo simul- taneas. Ento, deduz-se, os sempre novos ideais de forma e cultura geraram paradoxos que se anulavam mutuamente. Derivagées, desvios Além dessas observagdes iniciais, a leitura dos ensaios de E. Buccil'e R. J. Ribei- ro? sobre a tradi¢ao e a complexidade dos padrées de julgamento me induziu a elabo- ragdo de analogias sobre o fazer arquitet6nico e o poder de persuasio que a exposi¢io, espécie singular de ambientag&o comunicativa, detém. Assim, denoto que, no funcionalismo, o império da simplicidade (ou seria 0 impera- 1 BUCCI, E Intolerincia, oa traghia do ndodidlogo. In: Vide wii vitude, A. Novaes org Séo Paulo: Eitora Senac So Paul, 2008, p. 201-243. 2 RIBEIRO, RJ. Intemperanga In: Vida wici vrtude A. Novaes, org So Paulo: Editors Senac So Palo, 2008, 259-283, (MUSEU HISTORICO NACIONAL POSIGOES E RUPTUIAS COMUNICACIONALS: ESMAECIMENTO DOS ORJETOS OU DESAPARECIMENTO DOS LUGARESY tivo da simplificagao?) exacerbou determinados aspectos da linguagem minimalista para agregar valor e poder de atragio a arquitetura. A organizacao funcional das cidades ¢ edifi- cios passou também a supor regulagio e restrigdes; ¢ escolhas e exclusdes. Destas “certezas” resultaram as polarizagdes formais que foram instituidas em detrimento de outros fatos ¢ feitos arquitet6nicos possiveis e igualmente legitimos. E 08 sentidos e repertérios dos objetos diversos que resistiram no tempo do longo mo- dernismo foram confinados ¢ restringidos, pois restaram relegados a irrelevancia. Portanto, muitas digressdes, divagagdes, elucubragées e, em decorréncia, muitas “contemplagées” nao foram permitidas nem toleradas. Mas, hoje, no tempo de /er e ver, cada tempo vive o préprio instante, pois os tem- pos ja vividos nao mais configuram o novo. Aesta altura, pergunto: seriam a intolerancia € 0 insucesso 0s piores dos vicios? O que évicio? Em contrapartida, para definir vicio pergunto: o que é virtude? Ou seja, o que 0 oposto? o que nao é vicio? Ora, a virtude é uma disposi¢go — uma aco e uma vontade — nascida da escolha racional do que é bom. Admite-se, por principio, que virtude € 0 atributo que qualifica a exceléncia de algo. Essa caracteristica, no mundo ocidental-cristio, permitiria a algo ou a alguém ser oque é, isto é, exercer plenamente a prépria natureza. Entio, sea virtude é a exceléncia da coisa em si, ainda persistem muitas perguntas. Para que e para quem seria a exceléncia exercida? E quem “autorizaria” a razdoe ‘o exercicio da exceléncia? E mais, do que esta exceléncia difere? Do vicio? Do conflito? Ora, 0 vicio éa falta de medida, de proporgio, é 0 abuso. Eo que faz mal as coisas, ea si e aos outros. O vicio é 0 que € regido pela natureza, pelo instinto, pela paixéo. Os vicios sao as diferencas. Mas, pergunta-e: as oposigdes e conflitos permitem convivéncias? toleram didlogos? ‘MUSEU HISTORICO NACIONAL, 291 CEA GUMARAENS, Seo conflito é aquilo que contradiz e que diferencia, logo, admite o didlogo. E, nessa condicdo, 0 conflito melhor define e esclarece os vicios eas visdes que lhe do origem. Assim, 0 conflito é aquilo que se opde ao que existe porque “cuida” do que ndo existe e se comunica no plano das divergéncias? Seria conflito 0 acontecimento provocado pela intolerancia ds virtudes do obje- to? Mas, na exposigao, sob que limites e sob quais permanéncias estariam as diferencas dos objetos ¢ sujeitos verdadeiramente interpretadas? E, quando o foco é pensar a comunicagio a luz da exposigao de distorcSes, fanta- sias ou ilusdes e arengas das imagens de fatos e personagens, o que seria o elo que daria ¢ imprimiria, ou emprestaria, sentidos & exceléncia persuasiva da interpretagio? ‘Onde, no museu, restaria a ideia fundamental do que é proporedo e medida? Em objetos ¢ lembrangas de afetos que representariam as imagens das, sempre novas, visdes, vicios e conflitos? Ou a esséncia identitdria restaria no discurso formal que ¢ 0 elo, a transicio, 0 entendimento e o encontro entre vicios e visdes virtuosas? Portanto, a linguagem expositiva seria o lugar onde o conflito romperia com a integridade dos modelos de originalidade e autenticidade? Verifica-se, dese modo, que, ao articular a reconciliacdo ¢ o sistema original dos objetos e respectivas histérias, as exposigdes consolidaram os processos de musealiza- Gao das coisas, dos coragées e das mentes humanas. Em consequéncia, na atualidade, a democratizago dos museus também trans- corre em desdobramentos reais e virtuais dos espacos de vida que esto a exigir — e permitir — novos recortes patrimoniais ¢ novos didlogos expressivos da diversidade socioldgica mundial. Nesta perspectiva, a exposigio, na condigdo de espetéculo visual ¢ contextual por exceléncia, desvela, imprime racionalidade e valoriza as forcas originais dos objetos e sujeitos da histéria. Mas, antes disso, esses produtos das dindmicas museolégicas também se constitu- iram sobre atos de selegdo, negociagao e avaliagdo que potencializaram, primordial- mente, a génese ¢ os problemas das pedagogias patrimoniais. 292 MUSEU HISTORICO NACIONAL FOSIGOES € RUFTURAS COMUNICACIONAIS:ESMAECIMENTO DOS OBJETOS OU DESAPARECIMENTO DOS LUGAREST Neste sentido, os “verdadeiros” sentidos dos significados e significantes expostos so “dados” por meio dos afetos, olhares e leituras do outro agente, ou seja,a memoria dos espectadores Museus, Museologia Imagem 01 Oobservador eo passante Eseultura de Luiz Alphonsus MAMLRio, 1990 A relacdo nova da Museologia com 0 museu se estabeleceu em proceso definido priorital amente na condicao social dos sujeitos. No entanto, a triade acervo ou cole- 40, exposicao ou cendrio, e publico ou individuos-visitantes — em que se afirmaram ahistéria ea dimensio pratica do musew — foi relevada a plano meramente operativo €, assim, as exposi¢des mobilizaram o piblico para os novos sentidos. Este movimento ocorre' tematicamente, ou seja, em relacdo de interdependéncia, pois esses concei- tos, embora “em continua revisio”, ainda estavam associados na integra. MUSEU HISTORICO NACIONAL 293 294 CEA GuDaraens E, embora 0 edificio, os objetos ¢ o piblico tenham sido, desde os ready made de Marcel Duchamp, transfigurados artistica ¢ tecnologicamente sob amnésias ¢ novas imaterialidades’, as categorias que direcionaram a aco museal passaram a ser o patri ménio, a pesquisa-agio ¢ as comunidades. Na paisagem onde Meméria e Histéria se integraram para exibir amplos cendrios tec- nolégicos, o meusew tornou-se o lugar onde as mentalidades e atirudes museais passariam a ser ages ativas e transformadoras que, em sentido muituo, se encarnariam institucionalmente. Entdo, no muse, em conjunto, teoria e pratica teriam os objetivos comuns de explicitar, denunciar ¢ redimir as fabulas sociais que, historicamente configuradas, foram intencional mente ocultadas dessa mesma condigao. Para consolidar essa “miso” ha pelo menos trés ou quatro décadas, 0 musez, no plano ideal, deveria traduair e concretizar, com exceléncia e por competéncia quase exclusiva, a contemporanea vontade de articular ¢ envolver, de forma igualitéria, todos 08 entes-patriménio da sociedade humana. Enfim, no fazer museolégico da atualidade, teoria e pratica sio complementa- res e esto, portanto, intrinsecamente relacionadas. Até bem pouco tempo, os museus foram equipamentos ideolgicos do poder hegeménico. Porém, hoje se buscaria identificar, reconhecer e promover as diferen- gas e semelhancas de todas as expressdes produzidas e historicamente constituidas na sociedade humana. A hegemonia do sentido irrestrito das diferengas, entretanto, nao se instaurou para obnubilar o viés igualitério fundamental. Dessa maneira, a valorizagio e reinter- pretacZo das expresses de memérias locais, regionais, nacionais e globais passaram a ser, sempre, elaboradas em ago relacional E, mais, ao agregar individualidades em visio coletiva aquelas ressignificagdes idealizadas pelas vanguardas do século XX, a agio museoldgica também problematiza- ria 0 conjunto das categorias especificas da drea. Hi que reconhecer, portanto, que o significado da expresso “arqueologia da 3. SCOFFIER, R. Os quatro concritos fundementais da arquitetura contempordnea. In: Leitwrasem teoriade orgui {etera, vol. 1. Colegio PROARQ. B, Olisira eontros, orgs. Rio de Janeiro: Viana & Morley, 2009, p. 162-236. MUSEU HISTORICO NACIONAL

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