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Fragmentos da tradução em inglês das “Regras Puras de Dogen para a

Comunidade Zen” – Eihei Shingi

I – fragmentos da Introdução por Taigen Daniel Leighton

“...Ocidentais às vezes consideram todos os regulamentos e regras como


inerentemente restritivos e rígidos. A atitude de Dogen, entretanto, não é de forçar
regulamentações. Todos esses procedimentos são ao invés disso planejados para
sustentar a disciplina interna e o aprofundamento da auto-consciência baseadas
na intenção mais profunda dos praticantes. [...]
Durante meu primeiro angô, imerso em uma vida continuamente governada por
uma programação monástica prescrita, senti que nunca anteriormente tinha
experimentado tão completamente meu próprio tempo. Era livre para participar de
forma integral em qualquer atividade que vinha a seguir, sem necessidade de
gastar energia mental em meus próprios arranjos e agendas. A sensação de
espaço e abertura que eu tinha sentido algumas vezes durante o zazen, que tinha
me atraído para um compromisso mais forte com a prática, se estendia
palpavelmente para cada parte da rotina diária.
É claro que mais tarde, enquanto me aprofundava numa série de períodos de
prática, as sutilezas das preferências e agendas pessoais se reafirmavam,
fazendo-me ter que lutar com a necessidade de confrontar mais integralmente os
obstáculos representados por hábitos e tendências inconscientes, o que requeria
um refinamento de minhas próprias intenções. Este aspecto da prática – atritar-se
com as sutis resistências às formas e aos companheiros de prática – foi talvez
mais benéfico, apesar de menos divertido, do que meu entusiasmo prévio. [...]
Mais adiante, Shinkai Tanaka Roshi me disse: “Entender não é importante;
entender é fácil. A questão é simplesmente continuar.” Um valor importante da
prática monástica é simplesmente que ela fornece um contexto no qual continuar,
no qual sustentar a atenção para os detalhes de sua própria consciência e
conduta. Esta atenção sustentada para si mesmo e para o mundo que está
constantemente surgindo diante de nós é essencial para a experiência da
libertação budista.”

II – fragmentos do Shuryô Shingi (Regulamentos para o Salão de Estudos)

“ O decoro no salão de estudos deve respeitar os preceitos dos budas e


ancestrais, seguir as instruções para a abordagem do grande e pequeno veículos
e estar de acordo com as Regras Puras de Baizhang. [...]
No salão de estudos, leiam os sutras do Mahayana e também os ditos de nossos
ancestrais, e naturalmente entrem em acordo com as instruções de nossa tradição
para iluminar a mente com os ensinamentos antigos. Meu falecido professor
(Tiantong Rujing) disse em uma palestra, “Vocês já estudaram o Sutra das
Últimas Instruções?” Toda a pura assembléia deve habitar na consciência plena
de que todos no salão de estudos são o pai, mãe, irmão, parente, professor e bom
amigo de cada um. Cuidem cada um do outro com afeição mútua simpática, e se
abrigarem qualquer idéia de que é muito difícil encontrarem uns aos outros dessa
forma, mesmo assim exibam uma expressão de harmonia e acomodação.
Se houver conversa fútil, deve ser repreendida. Se você receber instrução, deve
aceitá-la. Não será essa a grande vantagem das relações íntimas? Associamo-nos
cheios de gratidão a bons amigos com qualidades íntegras e somos afortunados
de tomar refúgio nos Três Tesouros que foram preservados. Não é essa também
uma grande alegria? Mesmo a intensidade das relações entre irmãos mundanos
não é alcançada pela intensidade das relações entre estranhos. Os irmãos na
família do Buda devem ser mais próximos uns dos outros do que de si próprios.
[...]
No salão de estudos não devemos ler sutras em voz alta ou recitar poemas,
perturbando barulhentamente a assembléia pura. Não eleve sua voz
arrogantemente para recitar mantras e é grosseiro ficar usando um rosário de
contas (juzu) diante dos outros. Todas as coisas devem ser feitas calmamente.
Não convide visitantes para conversas e risadas no salão de estudos. Também
não interajam com negociantes, médicos ou adivinhos. Quando discutirem seus
negócios, evitem a área do salão de estudos.
No salão de estudos não se reúnam para conversas nem sejam indulgentes sem
preocupação fazendo piadas. Mesmo se ocorrer uma situação que pudesse
despertar o riso,devemos nos ater aos quatro fundamentos da atenção plena e
nos apoiar nos Três Refúgios. Que prazer pode haver, se somos como peixes em
uma poça d’água que está secando? Em termos gerais, evite falar ou rir com as
pessoas que ficarem próximas a você no salão. Se você puder ser assim, ficar na
assembléia será como ficar nas montanhas serenas.
No salão de estudos não vá até as mesas dos demais nem examine o que
estudam, obstruindo dessa forma a conduta do Caminho de si mesmo e dos
demais. Tal obstrução é o que há de mais doloroso para os monges.
Quando alguma coisa acontece contra as regras no salão de estudos, em casos
menores o monge responsável pelo salão de estudos ou um monge sênior
virtuoso deve fazer as advertências. Assuntos mais graves devem ser relatados ao
inô [responsável pela disciplina] para deliberação. Iniciantes e mais velhos devem
ser corrigidos com respeito harmonioso e sensibilidade. Aceitarem ou não a
correção demonstrará claramente se possuem a mente do Caminho. [...]
No salão de estudos não conversamos sobre assuntos mundanos, questões de
fama ou proveito, intrigas políticas do país ou sobre a qualidade rústica ou fraca
das oferendas feitas à assembléia. Isto é o que chamamos de fala que é sem
sentido, não benéfica, sem vergonha e plena de vexame, e deve ser firmemente
reprimida. Mais ainda, estamos distantes do tempo do sábio Shakyamuni e não
manifestamos ainda a conduta do Caminho. Nosso corpo é impermanente, nosso
tempo difícil de segurar. Portanto, monges que vestem a roupa de retalhos [o
kesa] nas dez direções valorizam seu tempo apenas e precisam ser cuidadosos e
diligentes como se estivessem salvando suas vidas do fogo. Exercitem-se com
afinco e não gastem seu tempo em vão com conversas fúteis [v. Sandokai]
Não perturbem o digno decoro do salão de estudos. Façam gasshô e prostrem-se
de acordo com o Dharma. Não desprezem essas ações. Em termos gerais, em
todos os momentos não negligenciem o Dharma.
Na grande e pura assembléia oceânica do salão de estudos, quem pode ser
avaliado como sábio ou ordinário? Isso seria tão extraordinariamente bobo quanto
avaliar uma pessoa pela sua aparência. Quando o Honrado pelo Mundo estava
neste mundo, havia em sua assembléia um monge cego e um monge que
ruminava como uma vaca.[...] Como poderíamos desprezar nossos companheiros
de prática? Mesmo se suas roupas forem gastas e surradas e seus utensílios
velhos e danificados, não devemos avaliá-los com olhos comuns. Não os
desprezem. Desde os tempos antigos as pessoas do Caminho não tiveram roupas
espalhafatosas e usaram somente acessórios simples. Não devemos dispensar os
de famílias humildes nem rir dos estudantes iniciantes. Mesmo se zombarem de
vocês, não fiquem com raiva nem ressentidos. Além disso, a pessoa mais humilde
pode ter a sabedoria mais elevada, e a pessoa de maior hierarquia pode ter falta
de intenção correta e sabedoria. Simplesmente guardem as palavras do Buda,
“Quando os quatro rios entram no oceano não mantêm seus nomes
originais; quando aqueles das quatro castas deixam seus lares para se
tornarem monges, são todos da mesma forma chamados de pertencentes ao
clã dos Shakyas.”
Não é educado que cada um coloque uma imagem de um Buda ou bodhisattva em
sua própria mesa no salão de estudos. Não se deve também pendurar quadros.
Quando monges companheiros de prática no salão de estudos se visitam em seus
aposentos, devem sempre fazê-lo com decoro, seja vestidos com seus kesas ou
com eles pendurados em seus ombros esquerdos conforme a ocasião. [...]
Quando você estiver em sua mesa no salão de estudos e vir um companheiro de
prática se aproximando, desça primeiro e fique de pé junto à plataforma. Coloque
o kesa ou deixe-o sobre o ombro esquerdo, conforme o estilo de quem estiver
chegando, e faça uma reverência ou prostração completa informal. Encontrar-se
deve acontecer com postura digna de acordo com esta regra.[...]
Em seu lugar no salão de estudo, não ofendam a assembléia ficando jogados no
tatame ou encostados nas paredes, ou expondo suas pernas ou corpo. Vocês
devem pensar no exemplo dos sábios antigos e ancestrais valorosos, que se
sentavam sob as árvores ou no campo aberto.[...]
Qualquer conversação no salão de estudos deve ser em voz baixa. Não façam
barulho com os seus chinelos. Não escarrem nem tussam. [...]
No salão de estudos, mesmo monges seniores de longa experiência não devem
ser grosseiros com os outros monges. Se eles quebrarem o decoro da
assembléia, mesmo eles serão corrigidos claramente pelo inô.[...]
Não levem para o salão de estudos álcool, carne, ou qualquer uma das cinco
comidas estimulantes [alho, alho-poró, cebolinha, cebolas e raiz-forte]. Em termos
gerais, nenhum tipo de carne, alho, cebolas ou vegetais com cheiro forte deve ser
levado para o mosteiro.
Quando vocês estiverem sentando juntos no salão de estudos, se houver alguma
tarefa menos agradável para ser feita, aqueles em posições de juniores devem
alegremente fazê-la primeiro. Este é o decoro dos monges. Estudantes iniciantes
não devem ficar em seus lugares assistindo seniores realizarem tarefas pesadas
ou mais trabalhosas, pois isso seria grosseiro. Se houver algo agradável a ser
feito, ofereça essa oportunidade para o seu sênior. Esta atitude é o verdadeiro
dharma de Buda.[...]
Este salão de estudos é um espaço público do dojô. Mesmo que pareça um
monge, com cabeça e rosto raspados, se alguém não tiver o comportamento de
um monge ele não deve receber permissão para ficar nem próximo do salão de
estudos. Mesmo se for um monge digno, se apenas estiver de passagem não
deve passar a noite no salão de estudos. Não o deixem vagar pelo salão, porque
isso perturbaria a pura assembléia.
Não se engajem em atividades mundanas no salão de estudos. [...]
(1249)

COMENTÁRIO

Hoje em dia praticamos a maior parte do tempo em meio ao mundo dos não
praticantes, raramente em sesshin e mais raramente ainda em mosteiros, e
poucos de nós são ordenados. Entretanto, essas regras ainda são valiosas para a
Sangha. Devem ser adaptadas para nossos locais de prática e circunstâncias
atuais.

Nosso zendô e nossa sala de jantar funcionam como nossos salões de estudos.
Assim, as regras para o salão de estudos servem para o zendô e para a sala de
jantar, quando em refeições formais. Nas refeições informais devemos manter a
tranqüilidade, mas podemos nos permitir um certo relaxamento nas regras, sem
exageros. Servem também para o sesshin e para o dia a dia dos praticantes
ordenados e dos leigos que preservam seus compromissos com a conduta do
Caminho.

Como somos todos iniciantes, devemos nos abster de corrigir os demais,


comentar suas atitudes mundanas ou na prática, ou admoestá-los em público.
Apenas o instrutor da Sangha ou o inô, ou disciplinador indicado pelo instrutor da
Sangha, podem exercer esse papel. Se um amigo quiser discutir um ponto da
prática do outro amigo, poderá fazê-lo em particular, em um encontro privado.
Expressões faciais, gestos ou falas de crítica, elogio ou comentários zombeteiros
ou elogiosos sobre a conduta dos companheiros de prática devem ser evitados
permanentemente. Se alguém se comporta de forma agressiva, intolerante ou
invasiva com os demais praticantes, deve refletir e procurar ajuda do instrutor ou
de um psicoterapeuta.

As regras permitem que observemos a maneira pela qual nossos egos se


manifestam no mundo. A Sangha é o lugar da prática, mas precisamos ser leves e
respeitosos com nossos irmãos praticantes. Não vamos deixar nossas neuroses –
fantasias e projeções mais ou menos conscientes, mais ou menos inconscientes –
se esparramarem e molharem nossos irmãos. E busquemos a simplicidade da
reflexão e do pedido de desculpas quando percebermos o mal feito ou percebido
como mal feito pelo outro. Desculpar-se não é para obter absolvição ou perdão – é
simplesmente reconhecer o erro diante do outro e dizê-lo clara e inequivocamente,
em um exercício que certamente melhora quem pede independentemente da
resposta do outro.

Alcio Soho

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