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1 – APRESENTAÇÃO E JUSTIFICATIVA

Introdução:

O presente projeto de pesquisa é uma proposta de apresentação e investigação do


pensamento artístico de Fernando Pessoa, particularmente por intermédio das escritas de
seu semi-heterônimo Bernardo Soares. Sublinhamos que este pensamento artístico,
como fica evidente a partir do “Livro do desassossego” (2015), tem como característica
a inscrição de ricas e múltiplas interpretações aceca de valiosas noções para o âmbito
artístico, filosófico e teórico, e no caso da obra de Fernando Pessoa para seu
pensamento artístico-filosófico Sobre tais noções sublinhamos a interpretação de
Bernardo Soares – Fernando Pessoa (2015) sobre ilusão e realidade associada com
questões e proposições do “autor” acerca de noções como si mesmo (alma), sonho e
sensação.

Segundo nossa interpretação, o pensamento literário de Pessoa-Soares se


apropriaria de maneira singular das problematizações filosóficas e do pensamento
ocidental para fazer destes, como gostaríamos de desenvolver, uma singularidade
artística por meio de um saber-sabor poético próprio e autônomo. Se a questão da
realidade e da ilusão remonta as origens da tradição filosófica, esta seria particularmente
reinstaurada pelo desassossego do fazer artístico de Pessoa-Soares. Através da
problematização propriamente artística de Soares de” Reconhecer a realidade como
uma forma da ilusão, e a ilusão como uma forma da realidade [...]”1por meio de sua arte
- entendida como uma arte que pensa pois “a literatura [...] é a arte casada com o
pensamento”2 e de “[...]um poeta impulsionado pela filosofia[...]” 3 - ensejamos nos
aproximar do enigma do fazer artístico pessoano enquanto, como pretendemos
desenvolver, um criar “ilusões reais”.

A hipótese principal que pretendemos sustentar é de que ao criar “ilusões reais”


por intermédio da arte literária, Soares-Pessoa inventaria uma prosa poética tão potente
que em sua artisticidade evocaria a criação de “realidades ilusórias” estéticas ou
estetizadas4, assim como o mesmo relata que:

1
Pessoa, 2015, Parágrafo 90, p.120.
2
Pessoa, 2015, Parágrafo 27, p.120.
3
Pessoa,, 1966
4
Não sabendo o que é a vida religiosa, nem podendo sabê-lo,
porque se não tem fé com a razão; não podendo ter fé na
abstração do homem, nem sabendo mesmo que fazer dela
perante nós, ficava-nos, como motivo de ter alma, a
contemplação estética da vida” (Pessoa, 2015, parágrafo1, grifo
nosso,)

De acordo com nossa interpretação, mediante este trecho. fica exposto que há
um singular projeto existencial e artístico de relação, entre a criação de “ilusões reais”,
próprias ao âmbito artístico, como procuramos interpretar, e a vida ou “realidade”
contemplada de um modo estético5. “.Manufaturamos realidades”6, afirma Soares A
contemplação seria, na concepção de Soares, paradoxalmente, uma via de ação, ou
melhor, de criaçãp pois o “sonhador é que é o homem de ação.” 7 Soares, assim como
interpretamos, é um contemplador, mas sobretudo do sonhos8 (mas tambem nos
perguntamos: o que é a vida se não um sonho?) Nesta direção, sonhar é a ação, do
contemplador e o sonhador (Soares) é, por excelência, o homem que contempla.
Tambem gostaríamos de notar que a única ação que se permite Soares é a da criação
pois não é um agir9. Notamos que a estética do paradoxo, que pretendemos analisar, está
presente como uma postura artística nos escritos de Pessoa e de soares.

Não podemos deixar de explicitar que estamos diante de um texto feito de


fragmentos que sequer transcorrem linearmente tanto do ponto de vista formal quanto
em relação ao conteúdo. Desse modo, o texto do semi-heterônimo resguardaria

5
Assinalamos, como pretendemos desenvolver, que este projeto (de Soares)
resguardaria relações de afinidade com a proposta filosófica e, porque não, também
artística de Friedrich Nietzsche que declara que a vida só se justificaria esteticamente.
Nietzsche em diferentes períodos de sua obra afirma que “Só como fenômeno estético, a
existência e o mundo aparecem eternamente justificados" (GT/NT, Ensaio de autocrítica
5, KSA 1.17) e ainda "Como fenômeno estético, a existência é sempre, para
nós, suportável ainda" (FW/GC 107, KSA 3.464).

6
Pessoa, 2015, parágrafo 66, pag.10.
7
Pessoa, 2015, Parágrafo 90, p.120.
8
Assinalamos que mais a frente procuramos refletir sobre o fenômeno do sonhar.
9
Criar “ilusões reais” parece-se com a arte do sonhar que seria para soares uma
manifestação estética. Nota-se que se soares nos relata que o sonhador é o homem de
ação, ele paradoxalmente também considera que “arte de sonhar é difícil porque é
uma arte de passividade, onde o que é de esforço é na concentração da ausência de
esforço” (MANEIRA DE BEM SONHAR)
múltiplas e desassossegadas interpretações, posições e problematizações acerca daquilo
que chamamos ordinariamente de realidade ou vida. Nada em suas considerações é
acomodado, tudo segue um desassossegado pendor para certo espanto diante da
“realidade” que transcende as opiniões e seus lugares comuns sobre os fenômenos.
Para fins teóricos desta apresentação sublinhamos uma de suas considerações acerca da
realidade, mas gostaríamos de observar que pretendemos trabalhar as ricas variantes que
se apresentam nos devaneios inquietos e inquietantes do autor. A questão que
levantamos através do texto de Soares sobre o “real” e a “ilusão” parece aparentemente
se limitar ao campo filosófico, mas gostaríamos de defender que tal problematização é
evidente e fundante ao fazer literário/artístico do “autor”.

Neste sentido, a problematização e a perspectiva acerca da “ilusão” e da


“realidade” sugerida pela escrita de Soares, como ensejamos analisar, é
fundamentalmente artística: criar “ilusões” reais através de sua prosa poética para então
inventar novas “realidades”.

Note-se que estamos diante de uma obra que transbordaria em um encaminhar-se


para além dos limites tradicionais de separação entre filosofia, pensamento e arte. Mas
também e de modo radicalmente precursor, para seu tempo, haveria uma torsão,
inversão ou subversão da presumida separação entre arte e vida ou real. Com Bernardo
Soares a criação de “ilusões” reais, que pensamos ser própria do fazer artístico,
concorreria para a criação de novas sensibilidades que, como queremos aprofundar,
seriam capazes de possibilitar outras “leituras” (e escritas) interpretativas e criativas do
que chamamos comumente de “realidade”. Assinalamos que com a afirmação proposta
por Soares da “realidade” como “ilusão” e da “ilusão” como “realidade” nos vemos
impelidos a colocar ambos os termos, tecidos no paradoxo do “autor”, entre aspas, como
que suspensos pelo véu artístico da potência do ficcional A questão colocada acerca do
valor da “Ilusão” e da “realidade” nos convoca a um labirinto de paradoxos: se a ilusão
é uma realidade o que pode vir-a-ser, através do suposto pendor artístico de trabalhar
com a realidade da ilusão, o real da ilusão do real? Nesta direção percebemos através
do texto de Soares certo projeto existencial e artístico de criar “ilusões” reais, realmente
literárias, sugeridas pelo fazer artístico, através do qual “manufacturamos realidades”
(no plural fica acentuado o fato de não haver a “realidade” num sentido ontológico
propriamente dito). Meta-narrativo, o texto de Soares apresentar-se-ia como uma escrita
potente capaz sensibilizar seu leitor para a realidade da ilusão ficcional através das
escritas de sensações.

Constatamos ainda que será necessário desenvolver a relação entre o criar


ilusões reais que supomos como o próprio do fazer artístico e a performance poética do
fingimento de Fernando Pessoa como a verdade que sua obra de arte resguarda. Fingir
como o próprio drama da representação poética: do doar forma, e “ Onde há forma há
alma”, ao que é realmente uma ilusão.10 Dar forma em poesia e prosa seria portanto um
doar alma, ou seja, doar a própria verdade da “vida” do que é realmente ilusório.
Fingimento do fazer poeticamente o ilusório aparecer como real enquanto a verdade
do fazer artístico, como um doar realidade/alma ou seja doar forma artística e por isto
sensível ao ilusório que por tradicionalmente é tratado como aquilo que não é
verdadeiramente o real mas que de certa forma (artisticamente) vem a ser realmente
enquanto obra de arte .Soares afirma que: “fingir é amar.” Em poucas palavras
Bernardo Soares diz muito e diz o próprio do (seu) fazer artístico . Pensamos e
gostaríamos de desenvolver a hipótese de que fingir é amar pois seria o consentir em
doar realidade ou alma através da forma ao que parece (ilusão) aparecendo e
(aparentando-se) como real por isso soares pode afirmar e constatar que “ Há metáforas
que são mais reais do que a gente que anda na rua” . Amar seria então a afirmação do véu
da ilusão que resguarda desvelando e velando a verdade da vida da obra de arte. Amar
como um doar destino velando o que se se vela e desvela no véu da ilusão. Amar
verdadeiramente ou seja fingidamente o que parece (ilusão) aparecendo como próprio
real do fazer artístico. Poderíamos então pensar o artista (ao menos Pessoa/Soares)
como aquele que tece ou para usar uma imagem de sua predileção, que coze
verdadeiramente, fútil e inutilmente a realidade artística do véu da ilusão.

Dentro desse amplo “projeto” ou destino haveria um outro não menor: o de


criação da alma ou do si-mesmo para que possa haver novas sensibilidades, novas
sensações de “realidades”. Pretendemos, assim, investigar como o “autor” semi-
heterônimo em sua prosa reflete uma constante e desassossegada questão acerca do si
mesmo ou da alma. Orientados pela provocação de Soares “a única maneira de teres
sensações novas é construíres-te uma alma nova[...] Muda de alma. Como? Descobre-o
tu”11, apontamos que para o autor somente através da criação da alma nova haveria a

10
Mais adiante nos dedicaremos a questão da (criação) da alma.
11
Pessoa, 2015, parágrafo, p 289.
possibilidade da criação de novas sensações da(s) “realidade(s)”. Não podemos deixar
de sublinhar a centralidade do termo “sensação” no fazer poético de Pessoa e na prosa
de Soares como o elemento que por vezes é considerado o próprio meio do fazer
artístico. Para Soares haveria apenas a realidade da sensação. Recuperar a sensação no
fazer artístico aponta para uma radical inversão, deslocamento e torção em relação ao
problema e “projeto” ocidental e filosófico de (de)negação do sensorial em detrimento
do real e do verdadeiro, do conhecimento puro e da razão de um sujeito puro. Soares
proclama o valor das sensações mesmo que sejam ilusórias (ou justamente por serem
ilusórias elas vem-a-ser em sua realidade), afirma artisticamente a realidade das
sensações que foram (de)negadas ou recalcadas pela tradição ocidental como causa do
erro e do falseamento. Com ele, em nome do fazer artístico, as sensações seriam
evidenciadas e retornariam as mãos do artífice depois de um longo recalcamento em
nome da verdade. Deste modo para o “autor”:

Neste crepúsculo das disciplinas, em que as crenças morrem e os


cultos se cobrem de pó, as nossas sensações são a única
realidade que nos resta. O único escrúpulo que preocupe, a única
ciência que satisfaça são os da sensação (O sensacionista, 2015,
p.)

O artista (ao menos Soares) teria como tarefa trabalhar com a realidade da ilusão
sensorial, das sensações tornando-as ou sentindo-as literariamente através de certa arte
de “tornar puramente literária a receptividade dos sentidos” 12. Parece-nos lendo Soares
que o real e a vida só são possíveis ou dignos mediante uma contemplação estética.
Contudo, nota-se que Soares constantemente reitera a realidade do ficcional (ilusão
real), muitas vezes em detrimento da ilusão da “realidade”, tal qual numa hierarquia de
valores a “vida” do ficcional tivesse mais valor, mais dignidade, do que a “vida real”
que não passa de mera ilusão. Levantamos a hipótese, que apenas contemplada
esteticamente a vida teria valor justo porque esta teria apenas o sentido de ser uma
ilusão, portanto algo vazio de valor em si mesmo; enquanto a arte que é uma “ilusão”
real desde o início teria seu valor por ser uma realidade ficcional. Seria então o
ficcional, o estetizar que doa valor para uma vida que sendo ilusória por si só não tem
valor sendo oca e vazia de sentido em si? Soares avaliando a ilusão como real (no
duplo sentindo de realidade e nobreza) afirmaria o ficcional da arte já que “na arte não

12
Pessoa, 2015,388
há desilusão porque a ilusão foi admitida desde o princípio” 13. A arte seria a única ilusão
que não ocasionaria a desilusão, porque se apresenta como ilusão desde o princípio;
realmente ilusória a arte não desilude enquanto a ilusão da realidade desiludiria porque
pretende-se que seja realmente uma realidade. Neste sentindo, delineamos e esboçamos
certas questões e uma série de hipóteses que apontam para certas direções desde onde
pretendemos desenvolver este projeto.

Uma outra hipótese que levanto acerca da criação de alma(s) é que esta se
vincularia intimamente com o drama da criação heteronômica de Pessoa. Portanto
estaríamos ao refletir em torno do Livro do Desassossego, diante do fenômeno ou proto-
fenômeno da fabulação heteronímica de Fernando Pessoa. Por sua importância no
contexto do drama heteronômico do tornar-se outro, do outramento próprio do fazer
artístico de Fernando Pessoa, pretendemos desdobrar a questão da criação de almas
novas ou mudança de alma como um dos eixos do processo de criar novas “realidades”
(ilusórias) atrás do ficcionalizar ilusões reais (da arte literária). Para tal nos parece que
vida (anímica) e arte se entrelaçariam pois como soares afirma “quero ser uma obra de
arte, de alma pelo menos...”14. Neste sentido seu texto é radicalmente precursor, como
pretendemos avaliar, de uma questão que é fundamental para o âmbito artístico
moderno: a relação entre arte e vida.

Com Soares-Pessoa a questão da relação entre “realidade”, linguagem e homem


seria problematizada e reinstaurada pelo fazer artístico. Assim, criação de ilusões reais
através da linguagem artística, a criação de realidades ilusórias (mundos) através da arte
da criação de si mesmo, estaria perpassada pelo que é sempre, ou melhor,
renovadamente mistério dramatizado na poética de Pessoa: o seu próprio fazer artístico
que convocaria e conjugaria de maneira singular as forças da arte, do pensamento e da
vida. Por tal, investigando com o auxilio das noções de realidade, linguagem e
homem/si mesmo, que se entrelaçariam no ato poético da escritura de ilusões reais,
estaríamos, analisando a questão do fazer literário como criador de
sensibilidades/leituras da “realidade”.

Indicamos, ainda, que a insistência e recorrência performada do sonhar, que


atravessa a escrita de Soares como um fenômeno estético (pois “sei sonhar em prosa”15),

13
Pessoa, 2015, parágrafo 270.
14
Pessoa, 2015, parágrafo 114.
15
Pessoa, 2015 parágrafo 155.
é um importante ponto que desejamos aprofundar. A arte de sonhar como propõe
Soares: “Viver do sonho e para o sonho, desmanchando o Universo e recompondo-o” 16
seria, em um outro plano das diversas camadas das possíveis interpretações de seu texto,
o liame, senão o fio condutor, destes três fenômenos (linguagem, realidade e homem ou
si mesmo) que nos parece apenas conceitualmente e para fins didáticos poderem ser
separados.

A arte de sonhar apareceria como um trabalho ao mesmo tempo de escrita e


leitura (interpretação) de um real que talvez não haja, de um si mesmo que talvez não
haja e arriscaríamos dizer, de uma linguagem que talvez não haja pois “a vida é oca, a
alma é oca, o mundo é oco” 17. Levantamos uma última hipótese de que por não serem
(substancialmente ou ontologicamente) estes precisem ser “inventados” através da
realidade da ilusão como esta ocorre no fenômeno do sonho. Propomos também que no
sonho estaria presente o proto-fenômeno de criação do si mesmo, do real e da
linguagem pelo reconhecimento do paradoxo de que no recôndito de nosso presumido
si mesmo íntimo necessitaríamos do atravessamento e da travessia pela imagem do
outro. Sonhamo-nos outros. Gostaríamos, portanto, de aprofundar a percepção de que
no fenômeno do sonho, tão amplamente e diversamente presente na prosa de Soares,
estaria inscrito paradigmaticamente o mistério pessoano da heteronímia, do tornar-se
outro, do outramento.

Neste sentido justificamos a pertinência deste projeto que busca, por meio de
uma leitura criticamente interpretativa do texto de Soares - a partir de noções que fazem
parte de seu arcabouço literário como ilusão, realidade, sensação, sonho e si mesmo -
uma releitura da “poética dramática” de Fernando Pessoa que evocaria todo uma
problemática em relação ao âmbito artístico da modernidade como, por exemplo, a
relação entre vida e arte, o outro como a relação da arte como “ilusão” e a “realidade”
etc.

Por último, o que nos motiva o trabalho de pesquisar e investigar o “drama


artístico” de Fernando Pessoa, por intermédio da obra de Bernardo de Soares, é o nosso
desassossego diante de questões artísticas que nos parecem fundamentais e fundantes
para o pensamento ocidental, para o âmbito artístico, à maneira como essas questões são

16
Pessoa, 2015 parágrafo 413.
17
Pessoa, 2015 parágrafo 196.
elaboradas, avaliadas e deslocadas de seus sentidos ordinários no âmbito artístico da
criação “literária-pensante” de Fernando Pessoa e particularmente de seu semi–
heterônimo.

Problema geral: Determinar, para interpretar a obra poética de Fernando


Pessoa,.os elementos fundamentais do fazer artístico de Fernando Pessoa–Bernardo
Soares, e apresentá-los de uma maneira sistemática através dos dramas conceituais ou
figurativos de noções como realidade, ilusão, si mesmo, alma e sonho, que apontam
paraa realidade da ilusão como o elemento próprio do fazer artístico literário

Como decorrência desse problema geral inventariamos os seguintes problemas


específicos: a) Avaliamos que é possível depreender do texto de Soares um impulso
artístico-especulativo que problematizaria os valores de realidade e ilusão como
elementos de seu fazer artístico.
b) Refletir o sonhar como um fenômeno estético que se torna paradigmático para a
criação literária de Fernando Pessoa-Bernardo Soares
c) Entender o sonho como um fenômeno estético privilegiado por Soares que pode ser
lido como um trabalho de escritura do desejo em uma relação com o desejo do escrever.

d) Apontar a relevância do “projeto extemporâneo”” de Soares de criação de um si


mesmo ou alma que frua o “real” a partir de uma contemplação estética para
pensamento artístico moderno onde haveria uma ruptura ou torção na pretensa
separação tradicional de arte e vida.
e) Investigar as possíveis afinidade eletivas entre o pensamento estético de Bernardo
Soares com a problematização nietzschiana acerca de uma estética da existência e de si
mesmo.

Metodologia -Como leitura referencial para elaborar o nosso tema principal acerca da
ilusão e realidade por meio de noções como si mesmo, sonho e sensação, bem como
esboçar nossa metodologia indicamos que encontramos nos próprios textos de Fernando
Pessoa, em suas variações heteronímicas, um campo privilegiado de diferentes
perspectivas e questionamentos acerca dos problemas levantados neste projeto.
Pretendemos contrastar suas diferentes avaliações acerca do tema e das noções que a
ele associamos para compreender o processo artístico do autor em questão. Fernando
Pessoa nos aparece como um artista que incessantemente reflete sobre o processo
criador que nos interessa, como já colocado, enquanto um enigma que pretendemos não
resolver, mas perscrutar. Neste sentido José Gil (1986,p.9..) afirma que “talvez nunca a
reflexão sobre o processo criador se tenha tanto e tão maciçamente integrado na obra de
um autor”. Realidade, ilusão assim como si mesmo, sonho e sensação concerniriam
reiteradamente por diferentes olhares à reflexão performática do próprio processo
criador de Fernando Pessoa. Como leitores de sua obra não há como ignorar esta
reflexão e tomá-la a sério como fio condutor privilegiado (mas não único) para analisar
o incessante movimento vital que a linguagem e o pensamento poético-questionador
assumem em sua obra18 . Elegemos, por exemplo, a perspectiva de realidade que esposa
Alberto Caeiro (que por sua vez é problematizada pelos outros heterônimos e Pessoa
ortônimo) para contrastá-la com a noção de sensação como única realidade de Bernardo
Soares para chegarmos não há um consenso que seria aniquilar o movimento próprio de
sua obra mas a uma problematização que diz respeito propriamente ao enigma ou
mistério do fazer artístico pessoano que se fundamentaria numa intensa polêmica de
perspectivas. Nesse sentindo, as obras dos diferentes heterônimos aparecem como um
profícuo campo teórico-artístico para desenvolver os questionamentos pertinentes ao
nosso projeto.

Além desta abordagem utilizamos como referência para a elaboração de nossas


questões e para contribuir em nossa metodologia, a obra “A metafisica das sensações”
de José Gil (1986) que privilegia, assim como nós, o “Livro do Desassossego” como
referente artístico-reflexivo p com vistas a elaborar sua questão da sensação como única
realidade passível de ser tornada em realidade artística, como “unidades primeiras, a
partir das quais o artista constrói a sua linguagem expressiva” p. 11. Tomando o semi-
heterônimo Bernando Soares como “o analisador de sensações” José Gil desdobra
questões como a sensação, o sonho, o problema do si mesmo, que se mostraram
pertinentes no que tange nossa proposta de pesquisa, como já exposta, de pensar o
drama pessoano a partir do “Livro do Desassossego” (2015) Privilegiamos este livro ao
levarmos em consideração a afirmação do autor de que este “[..] é o melhor diário-
testemunho que o experimentador Pessoa nos deixou” (Idem, 1986, p. 13). Por ser esse
livro um testemunho do laboratório da experiência da linguagem de Pessoa
selecionamos como obra privilegiada para pensarmos o drama artístico de Pessoa.

18
Além disso, José Gil investiga em sua obra as diferentes especificidades e
singularidades perspectivas dos heterônimos como forma de enriquecer a problemática
das sensações. Como fonte de nossas pesquisas o livro e pensamento de José Gil
colaborou para o material que apresentamos anteriormente a partir do qual elaboramos
nossa maneira a problemática da “realidade” e da “ilusão” na obra de pessoa,
particularmente a partir do “Livro do Dessassogo”, pois segundo o autor ocorrem ” que
“esclarecem os fundamentos da estética pessoano” (Idem, 1986, p. 11). Embora não
haja referência direta ao problema da realidade e da ilusão, mas sim as noções a ele
vinculadas por nós, pareceu-nos que este ampliaria e redimensionaria o debate proposto
vinculando-o a questionamentos fundamentais do âmbito artístico, da filosofia e do
pensamento ocidental. Neste sentindo nos balizamos tambem em textos como “A
república” de Platão que problematizaria, assim como a tradição muitas vezes o leu, a
questão da “ilusão” ou aparência e da “realidade” , assim como nos diálogos do livro X
refrência???? medita-se em torno da questão da mímesis artística, principalmente da
poesia enquanto arte puramente imitativa como criação de aparências distantes da
verdade. Desse modo, acredita-se que , podemos localizar a proposta de Bernardo
Soares (ainda que de maneira oposta ou própria) em sua afirmação da ilusão como
realidade e da sensação como elemento próprio do saber e fazer artístico. Acrescente-se,
ainda, textos como “Fédon” e Teeteto” que tratam do problema da aísthesis ou da
sensibilidade que nos serviram de base para refletir acerca de como a tradição
ocidental se orientou, tornando-os textos cânones, para tratar o problema das
sensações, do corpo e do conhecimento. Além dessas referências, baseamo-nos em
livros de Nietzsche como “O nascimento da tragédia” (ANO) contribuíram para pensar
a questão do sonho como um fenômeno que concerne ao fazer artístico (apolínio) e “A
Gaia ciência” (2012) que foi fundamental para a reflexão sobre uma série de
importantes questões como os valores da arte, da vida e da ilusão concernentes aos
problemas e hipóteses que desenvolvemos, como também para elaborar a questão que
abordamos em nosso texto da contemplação estética da existência.

Metodologicamente para atingir os objetivos propostos buscaremos fazer um


exame dos textos de Fernando Pessoa considerando que há nos textos de Fernando
Pessoa-Bernardo Soares uma riqueza especulativa que nos daria condição de extrair o
pensamento artístico haja vista que a poética de Pessoa tem a potência de uma
meditação reflexiva e problematizadora do próprio processo da criação. . O que nos
interessa é como essa criação se vincularia as noções que consideramos fundantes de
seu ato criador, tais como as noções de realidade, ilusão e sua relação com o si mesmo,
o sonho e sensação. Neste sentido, queremos praticar e nos arriscar no desafio de fazer
um exame dos pessoanos por intermédio do pensamento artístico-literário do semi-
heterônimo Bernardo Soares, ao mesmo tempo em que procuraremos interpretar os
escritos de Soares por meio do amplo espaço de pensamento artístico aberto pelos
dramas conceituais da obra de Pessoa. A obra de Pessoa se mostra como um arcabouço
poético-especulativo capaz de nos fornecer “instrumentos” conceituais e teóricos
singulares para os analisa-la e interpreta-la segundo o enfoque pretendida. Nesta
direção, assinalamos a problemática do sentido levantada por Soares:“pelo sentindo da
nota, tiramos o sentido do texto. Mas fica sempre uma dúvida e os sentidos possíveis
são muitos”19”

Nosso método se explicitaria nesse exercício da dúvida que permeia os escritos


pessoanos e que abriria o presumido sentindo do “mesmo” de um texto para seu
outramento, para a multiplicidade de possíveis sentidos. Acreditamos que o exercício de
confrontação dos textos cunhados no processo heteronímico nos possibilitaria uma
multiplicação de sentidos esquivando-nos assim da pretensão da extração de um
sentido único e verdadeiro. A multiplicidade de sentido de um texto é possível desde
que haja no leitor a abertura para sua própria multiplicidade de afetos apropriativos e
interpretativos. Nosso método se confiaria na pluralidade de possíveis perspectivas a
partir da escuta/leitura de diferentes afetos num processo de outramento do
leitor/interprete. Para tal, propomos ainda conjuntamente á tarefa confrontação do
textos pessoanos uma leitura hermenêutica e perspectivista para essa movimentação
múltipla de diferentes posições possíveis de interpretaçâo dos sentido(s) capazes de
nos fornecer instrumentos para uma atividade de re-leitura e re-visitação interpretativa
dos textos pessoanos. O exercício de certa dúvida como método nos parece essencial
para a problematização de textos que não se esgotam em um pretenso sentido único e
verdadeiro, textos eles mesmo como é o caso dos textos de Soares mas tambem de
Pessoa cunhados na hesitação das nuances e movimentos de diferentes perspectivas que
se multiplicam e enriquecem de sentidos seus escritos. Nesta direção o exímio
comentador da obra em questão afirma que: “dúvida e hesitação são os dois absurdos
20
pilares-mestres do mundo segundo Pessoa e do livro do desassossego(...)”. Neste
19
Pessoa, 2015, Parágrafo 148 p. 166
20
Pessoa, 2015, Parágrafo P.11
sentido nosso método confiar-se-ia ao próprio ritmo e deslocamento dos sentidos que se
inscrevem nos próprios escritos do autor. Gostariamos de derivar de seu texto um
saber-sabor capaz de nos instrumentalizar e orientar metodologicamente nossa leitura
enquanto interprete afetado por seus escritos.

Para além disto o perspectivismo tal qual o formula Nietzsche nos parece um
método coerente com este ritmo e deslocamento internos dos textos pois resguardaria
uma afinidade com o próprio processo de outramento de Fernando pessoa. Processo este
que propomos como método de leitura/escuta dos possíveis sentidos do texto aos quais
nos dirigiremos. Seria preciso renovar olhares, permitir-se diferentes afetos para
respeitar e acompanhar a cadência do movimento do sentidos de textos como os de
Fernando Pessoa. Nesta direção levantamos a questão de que o perspectivismo é um
método coerente a partir da derivação da problemática interna que os textos de Pessoa
suscitam. Segundo é enunciado por Nietzsche (Pessoa, 2015, paragrafo 90)

“Existe apenas uma visão perspectiva, apenas um conhecer perspectivo; e quanto mais
afetos permitimos falar sobre uma coisa, quanto mais olhos, diferentes olhos,
soubermos utilizar para essa coisa, tanto mais completo estará nosso “conceito” dela,
nossa “objetividade”

Tal exercício metódico e tarefa de multiplicar os olhares e afetos resguardaria portanto


uma relação com o motivo pessoano do outramento pois a multiplicidade de olhares e
afetos permitiriam a cada vez interpretações singulares 21 capazes de multiplicar os
sentidos a que um texto pode abrir-se. A multiplicidade de olhares e afetos
concorreriam para uma interpretação ativa capaz de acolher a riqueza multifacetada da
criação do(s) textos e universos pessoanos. Olhar e afetar-se a cada vez, a cada re-
leitura concorreria pois para o ouvir/ler a multiplicidade dos sentindos de um texto. Tal

21
É preciso assinalar que no trecho citado de Nietzsche há o uso particular das aspas
em relação às noções clássicas do conhecimento como “conceito” e “objetividade”: o
uso das aspas pelo filósofo geralmente produzem um afastamento da utilização
tradicional e moral dos termos marcados por esse sinal. Nesse sentido, Nietzsche não
estaria propondo meramente uma nova utilização da noção de conceito e objetividade
que não deslocasse fundamentalmente seus valores e sentidos. Cremos que o uso das
aspas apontam mais para a fina ironia do autor em relação as noções de objetividade e
conceito do que uma mera inovação nos seus usos.
afinidade pode-se entrever no “método” de consideração das coisas sugerido por
Soares:

Qualquer coisa, conforme se considera, é um assombro ou um estorvo, um tudo ou um


nada, um caminho ou uma preocupação. Considerá-la cada vez de um modo diferente é
renová-la, multiplicá-la por si mesma (Pessoa, 2015, paragrafo 90)

Renovar os sentidos do texto multiplicando-o por si mesmo é o horizonte da tarefa


metodológica hermenêutica e perspectiva que nos propomos como formas de leitura
interpretativa dos textos que indicamos na bibliografia e particularmente dos textos de
Bernardo Soares os quais daremos prioridade. A cada vez ou seja a cada releitura
desejamos o exercício e a disciplina da escuta da diferença dos sentidos que se
resguardariam no velamento e no desvelamento do texto. Desse modo o perspectivismo
nos parece um método interpretativo exemplar e afino com a tarefa artística pessoana
de outramento, sendo que aqui propormos o outramento como método de leitura do
próprio leitor-interprete dos textos Além disto, para interpretamos uma autobiografia
sem fatos queremos nos esquivar de toda e qualquer leitura que pretenda a explicitação
de um sentido verdadeiro e objetivo de um texto. Neste sentido, o exercício de
deslocamento de perspectivas interpretativas nos possibilitaria entrar em afinidade com
o movimento do texto vir a ser em sua multiplicidade de si mesmo. Ler um texto e seu
sentindo em si mesmo só seria possível se formos capazes de multiplicar os olhares e os
afetos acerca da multiplicidade e diferença de sentidos que desassossegariam qualquer
pretensão de obter a certeza e a verdade dos fatos. O sentido ou os sentidos não são
fatos objetivos mas possibilidades interpretativas. Em torno do fato, ou contra este, e
declarando-se a favor do ato interpretativo Nietzsche coloca que:“Contra o positivismo,
que se detém no fenômeno, ´só existem fatos‟, eu diria: não, justamente não há fatos,
apenas interpretações”22 Os atos interpretativos são portanto possíveis quando não se
pretende a “factualidade” de um sentido, não havendo sentido verdadeiro e objetivo o
texto se abre desde o movimento que lhe é próprio como algo que vem a ser junto a
performance interpretativa do olhares que leem e dos afetos que sentem.. Tomamos a
leitura interpretativa como uma forma, ou meta, da visão e um aconselhamento no
sentido de ser tomado por um pathos, por uma paixão afetiva pela leitura assim como
é atestado pela etimologia da palavra lectura enquanto um ver e aconselhar-se. Neste
22
(7 [60] final de 1886/primavera de 1887 apud Marton, 2000, p. 269-270).
sentido exerceríamos a distância necessária para a visão ver e a proximidade precisa
para ouvir afetivamente o “próprio” de um texto desvelar-se em seu vir a ser.
Encaramos o texto não como algo estável (como um fato) mas como algo que em sua
mobilidade nos convoca a interpretação de seus possíveis sentidos por meio de um
olhar atento e uma escuta sensível.

Por ultimo, julgamos que confrontar os textos de Pessoa com os de Soares e os


de Soares com os de Pessoa e seus heterônimos como pretendemos é adentrar no
espaço aberto de um universo que tem um ethos artístico forjado na polêmica, o que
torna vivo o vigor e a tensão de sua escrita, viva porque móvel e mobilizada por
diferentes perspectivas e sentidos que seu texto pode presentear ou doar. Polemizar
perspectivas é parte intrínseca do drama poético do autor e pretendemos a partir de uma
leitura hermenêutica e perspectiva considerar tais movimentos dramáticos de sua
criação poética

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