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Um amigo siciliano me disse um dia que, ha muitos anos, na ilha de Lipari, um velho senhor se transformou em rochedo, O fate nado me espantou muito, considerando-se o aspecto da- queles penhascos marinhos. Em poucas palavras, a historia que meu amigo me hayia con- tado, em terceira ou quarta mao, era esta: No século passado vi em Messina, um senhor que possuia uma pequena frota de barcos de pesca. Seu tinico filho, ainda jo- venzinho, tomou-se de amores pelo mar e freqiientemente saia com os pesqueiros do pai, o qual se sentia ao mesmo tempo orgu- Ihoso e preocupado. Mas uma noite, atras da ilha de Lipari, a al- gumas dezenas de metros da costa ocidental, uma onda violenta arrastoul © rapaz, que nao mais foi encontrado. A partir daquele dia, o pai, louco de dor, transferiu-se para Lipari ¢ todos os dias, quando o mar permitia, ia num barquinho ao lugar onde o filho encontrara a morte, la permanecendo durante horas. E chamava o rapaz em voz alta e lhe falava longamente. Varios anos se passaram assim. O pai, que ficara vitivo, ja es- tava velho.e somente nos dias de grande calmaria podia satisfazer seu vicio desvairado. Até que, uma noite, ficaram esperando em yao sua volta. Foram até o local e s6 encontraram o barquinho va- zio que oscilava no placido movimento das aguas. Porém, exatamente naquele lugar, os pescadores, que conhe- ciam aquele litoral melhor do que suas proprias casas, notaram es- tupefatos que das aguas surgira um rochedo que antes nao existia. Pensavam entao que a dor sem remeédio tinha enfim petrifi- cado o velho. E desde entao — contava meu amigo — A noite, nem mesmo os jovens mais intrépidos ousam aventurar-se nas 39 imediagdes ¢ se afastam, Porém, de longe, especialmente wl aie de lua cheia, ouvem-se os chamados, os solugos, os gritos ¢ eS gemidos do pai desesperado, ; Dizia-me também meu amigo que, no lado sul, aquele Tochedo tem as feigdes de um homem velho ¢ descarnado. E que, juste. mente na alta noite, a boca se abre e fecha, falando, ¢ também os olhos se abrem para chorar, Mas ai daquele que ousasse viola; com olhares indiscretos a afligao solitaria, Um pescador que se ar. riscou a fazé-lo perdeu, em poucos meses, os quatro filhos, Num certo sentido, a histéria era muito bonita. E este ano, ao voltar As ilhas Edlias em viagem de férias, pedi informagées maix precisas. No entanto, as lendas florescem e quanto mais viajam pelo mundo mais se desenvolvem. Se formos procurar o ponto de par- tida no local de origem, encontraremos geralmente apenas frag- mentos enevoados. Em Lipari, entre os numerosos picos, pequenos e grandes, que emergem do mar, alguns pescadores conheciam o rochedo chamado “*O yelho senhor'*, mas nada mais sabiam dizer. Nio- guém conhecia a infeliz historia do armador enlouquecido a morte do filho. Exceto um senhor idoso, de extraordindria digni> dade exterior, do qual procurei me aproximar num café. Teria uns sessenta anos, era robusto, perfeitamente escanho ado, usava uma camisa imaculada de mangas curtas ¢ era parecido com © ator que interpretou o chefe da “honrada sociedade" 9° filme O Mafioso, com Alberto Sordi. — Desculpe — disse-the — 0 senhor & daqui de Lipari? _— Sou, sim — respondeu lentamente. — Mas ndo moro no inverno. Poderia saber...? fob oe ey qveria pedir-lhe uma informagdo de caniter, digam™> — Diga... “ Em italiano, na forma diaietal, 1’ Vecchia signore (N. da T.). 40 — O senhor ja ouviu a historia de um senhor de Messina que, ha muitissimos anos, se transformou em rochedo? — Quando éramos pequenos, ouvimos, ouvimos — foram suas palavras textuais — tanta coisa esquisita... — deu um sorriso 40 mesmo tempo diplomatico e desconfiado. — Mas os anos pas- Sam... OS anos passam... — Por acaso o senhor sabe como se chamava? E quando aconteceu o fato? — O fato, se podemos chamé-lo de fato, remonta pelo menos a 1870, mas poderia também ser anterior ou mesmo nunca ter acontecido.., — Por qué? O senhor nao acredita? — Por favor, nao me faga dizer coisas que eu nao... — olhou 0 relégio de pulso. — Mas é tarde, com licenga... Foi-se embora, saudado com respeito por todos os fregueses do café. No dia seguinte, no cais do pequeno porto, perguntei a dois rapazinhos onde poderia encontrar uma lancha a motor para fazer a volta da ilha. O mar estava imével sem a agitagao das ondas, nao era preciso um grande barco para tal expedicao. Os meninos sairam correndo € em menos de cinco minutos es- tavam de volta com o barqueiro mais esquisito que ja vi. Era alto, esquelético, intensamente pdlido ¢ daria a impressao de ter noventa anos se o rosto, magérrimo, tivesse uma tinica ru- ga. Além disso, com o estranho chapéu de palha de abas horizon- tais e larguissimas, lembrava certas aparigGes meridianas dos tré- picos, carregadas de fatalidade, saidas das paginas de Conrad. Mas o que mais impressionava era sua total *‘auséncia’’, como a dos fantasmas que ignoram tudo o que acontece ao seu redor. Notei que nas extremidades dos bragos descarnados as maos doentiamente nodosas mexiam-se com dificuldade, revelando lon- gos tormentos devidos a artrose. Mesmo seu caminhar era penoso e um tanto tremulo. Se o mar nao estivesse tao tranqiilo nunca teria aceitado um acompanhante tao problematico. — Vocé sabe — perguntei logo — onde fica 0 rochedo do Ve- iho Senhor? 4t Fle abaixou um pouce a cabega, talvez em sinal de afirmagig ee olhar mais, dirigiu-se para uma embarcagao miserayey oe ete edago de corda, a alguns metros dali. Foi com airecada bl nana para dentro do barco, 0 que repercutiu em St Fins’ com um espasmo doloroso. Segui-o, 9 ae a hamar-se Crescenzo, com uma inesperada faci. homem, que disse ¢ torzinho desconjuntado do tamanho de i igou logo um mo p 2 d “ins at reagan E partimos os dois, com um murmirio u ritmado. 7 Estava sentado diante dele. Imével, com uma mao no ¢o- mando do motor, olhava-me no rosto mas nao me via, pelo menos era essa a minha desagradavel impressao. JA tinhamos passado do cais € o barquinho se dirigia para a passagem entre Lipari e Vulcano. Saindo do vilarejo, a natureza logo se tornava selvagem e as margens se erguiam em ene eavidades de formas insdlitas ¢ sinistras. Como eram diferentes as arquiteturas das Edlias com os sole- nes, romanticos ¢ téo humanos cendrios da costa amalfiana, por exemplo, de Ischia ou de Capri. Aqui também se véem paredes perpendiculares, pindculos e precipicios. Porém, mais préximos da fantasia do homem: cenarios de melodramas verdianos, antros e despenhadeiros coroados de verde, ao mesmo tempo extrema: mente 4speros e suaves, propicios 4s vertigens amorosas. La, no entanto, as muralhas e os picos se contorcem, nus e queimados, em poses de angustia ¢ delirio, sempre lembrando o inferno que. embaixo, mantém vivo seu fogo. ; Muitos escultores modernos deveriam revigorar sua débil ins- Piragao costeando as Eélias. Onde a natureza multiplicou ines taveis invengoes de monstros, gigantes, aranhas enroscadas, OF = nae tubos tortos, sereias contorcidas, ruinas desm™e — sho les Denice atormentados, altares incendiados. fe ‘ Refandas chagas supuradas, gnomos e arcos east Bados, cidadelas violadas, catedrais im cria, em i, et Profanadas. E assim cra. ee ee soliddes Profundas, con ) uprema beleza: o mistério, 42 —E aquele o Velho Senhor? — perguntei a Crescenzo, quando chegamos mais ou menos A metade da costa ocidental da ilha. Reconhecera-o imediatamente. Virou-se para olhar, depois fez um sinal afirmativo. Recostado numa dramatica muralha, através da qual pode de- saparecer facilmente, o rochedo nao tinha mais de uns quinze me- tros de altura. A forma era atarracada e arredondada, sem actileos nem pontas. No lado sul, do qual nos aproximavamos, apresen- tava uma pequena cavidade atormentada por um emaranhado de horriveis protuberancias amarelas e arroxeadas que se arqueavam para baixo como cera derretida. Como o sol o iluminava quase verticalmente, as sombras desenhavam um rosto vagamente hu- mano, 0 rosto de um déspota encolerizado que se dissolvia na morte. Das duas presumiveis cavidades orbitais desciam, ja crista- lizados, abjetos liquidos purpureos. E na base, onde as ondas sua- ves criavam ao bater uma pequena faixa de espuma, abria-se uma mintscula caverna. Quando chegamos bem perto, embora o mar estivesse parado, ouvi, vindo 14 de dentro, do buraco negro, o rugido das ondas que ressoava como um lamento. Pedi a Crescenzo que desligasse 0 motor. Com dificuldade, arrumou os remos sobre os toletes para evitar 0 sotavento. Agora, no profundo siléncio, sob o sol forte, o solugo da agua, ao bater no barranco, escondia-se mais dolente e cavernosa. — E verdade — perguntei — que este é um velho senhor de Messina transformado em pedra? — Dizem, dizem — murmurou, quase sem voz. _ E verdade que, @ noite, chama 0 filho morto € Ihe fala? — Dizem, dizem — respondeu. _— B verdade que da azar vir aqui A noite? Olhou-me com olhar jnexpressivo, como se nao tivesse com- preendido. Sob a absurda aba do chapéu, 0 rosto sem idade tinha a transparéncia das medusas mortas. Depois disse: ; — Eu também. Eu também sou de pedra, Ha vinte e cinco anos — e me olhava abanando Jentamente a cabe¢ga. — Vocé também, um filho...? O fantasma fez um gesto afirmativo. — Seu nome era Giovanni — disse. — Cabo da Marin Matapan, P

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