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Volume, 16, Número 1, Jan/Jun 2012, p. 160-172.

O BRINCAR COMO ATIVIDADE E SUAS CONTRIBUIÇÕES À


EDUCAÇÃO INFANTIL
Jorge Luiz da Silva
Programa de Pós-Graduação Enfermagem em Saúde Pública. Escola de Enfermagem de
Ribeirão Preto (EERP). Universidade de São Paulo (USP).
Wanderlei Abadio de Oliveira.
(Programa de Pós-Graduação Enfermagem em Saúde Pública. Escola de Enfermagem de
Ribeirão Preto (EERP). Universidade de São Paulo (USP).

Resumo

Trata-se de um ensaio teórico acerca das contribuições oferecidas pelas brincadeiras e jogos
ao desenvolvimento e à educação infantil, na perspectiva da Teoria da Atividade de Leontiev.
Para Leontiev o brincar é a atividade principal da criança na idade pré-escolar, sendo
responsável pelas principais mudanças no seu desenvolvimento, pois ao brincar ou participar
de jogos que envolvam outros sujeitos, a criança se vê frente a situações que exigem dela o
uso da imaginação, de conhecimentos prévios, da elaboração de estratégias de solução de
problemas, melhores formas de interação etc. Ao longo deste processo vão sendo
desenvolvidas suas habilidades, capacidades cognitivas, emocionais e sociais. Deste modo, as
aprendizagens escolares podem ser favorecidas e impulsionadas pela incorporação do brincar
na educação infantil.

Palavras-chave: Brincar; Teoria da Atividade; Leontiev.

Abstract

Playing as an activity and its contributions to child education

This is a theoretical paper about the contributions offered by plays and games to development
and early childhood education on Leontiev’s Activity Theory. For Leontiev playing is the
main activity of the child at preschool age, being responsible for major changes in its
development, because the play or participate in games involving other subjects, the child is
faced with situations that require the use of her imagination, prior knowledge, the
development of strategies for solving problems, better ways of interaction and so on.
Throughout this process are being developed skills, cognitive, emotional and social skills.
Thus, school learning can be favored and driven by the incorporation of play in early
childhood education.

Keywords: Playing; Activity Theory; Leontiev.

Introdução nas produções acerca do desenvolvimento


infantil, constituindo objeto de análise de
No âmbito da psicologia o brincar várias correntes teóricas: psicanálise,
sempre ocupou uma posição de destaque psicologia cognitiva, psicologia histórico-

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cultural, entre outras. Cada uma dessas pois como essa não constitui uma atividade
perspectivas apresenta uma visão própria produtiva, se isenta dos aspectos
acerca da temática, apontando as principais obrigatórios das ações condizentes com as
contribuições do lúdico ao condições materiais concretas
desenvolvimento físico, cognitivo e apresentadas. As brincadeiras passam
emocional das crianças pautadas nas então a serem concebidas como atividade
singularidades dos seus respectivos principal da criança na idade pré-escolar,
referenciais. sendo responsável pelo desenvolvimento
No que se refere à utilização de dos seus processos psicológicos.
brincadeiras e jogos na educação infantil, Assim sendo, não se pode
também podem ser identificados vários minimizar o papel desempenhado pelo
trabalhos que os concebem como lúdico na educação, já que ele também
elementos fundamentais no processo de promove a aquisição de aprendizagens que
ensino-aprendizagem. Tendo em vista o geram desenvolvimento. A concepção de
campo teórico-conceitual construído em aprendizagem subjacente a esse
torno do brincar e de suas implicações ao posicionamento conceitual é aquela que
desenvolvimento e aos processos de defende o ensino ocorrendo na interação
aprendizagem, assumiremos uma posição e do aluno com outros sujeitos,
desenvolveremos este presente trabalho especialmente com o professor, o qual é
dentro de uma perspectiva particular: a da “responsável pela organização dessa
psicologia histórico-cultural, relação para desenvolver, simultaneamente
particularmente, a Teoria da Atividade de com o intelectual, aptidões sociais. O aluno
Leontiev (1983), uma vez que o conceito é um ser ativo, capaz de assimilar a
de atividade ressalta a autenticidade das realidade externa de acordo com suas
brincadeiras e jogos na educação. estruturas mentais” (Pedroza, 2005, p. 62).
Para Leontiev (2001) a origem do A assimilação da realidade ocorre através
brincar se localiza na contradição que a da realização de atividades com os objetos
criança experimenta entre querer agir como que compõem o mundo humano, neste
os adultos, mas não poder porque ainda movimento ocorrem aprendizagens porque
não dominou e não pode dominar as a criança internaliza os conteúdos culturais
operações exigidas pelas condições presentes nos objetos. Portanto,
objetivas reais da ação dada. Esta
[...] a imitação através do jogo, a busca
contradição é solucionada na brincadeira, da compreensão de regras, a tentativa de
aproximação das ações adultas vividas
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no jogo [...] asseguram ser necessário a estabelecimento de relações assinaladas


promoção de situações de ensino que
por tonalidades emocionais, propiciando o
permitam colocar a criança diante de
atividades que lhe possibilitem a desenvolvimento de contatos sociais.
utilização de conhecimentos prévios
Contudo, muitas escolas não
para a construção de outros mais
elaborados (Moura, 2007, p. 85). destinam tempo suficiente para
brincadeiras e jogos porque não os percebe
As atividades lúdicas despertam o como uma experiência que permite aos
interesse dos sujeitos, estimulando sua alunos descobrir, inventar, relacionar-se e,
curiosidade e criatividade. Isto acontece com isso, consolidar seu desenvolvimento
devido ao fato de que a brincadeira sempre psicológico adquirido e impulsionar o
parte da realidade, por isso é criadora e desenvolvimento de novas funções ainda
vivencial. A criança constantemente evoca em estado latente. A esse respeito,
o mundo dos adultos no seu brincar, Carvalho, Alves, e Gomes (2005)
evidenciando que o meio social determina comentam que:
o conteúdo de suas ações, conforme
assevera Leontiev (2001a). É também As instituições de educação infantil têm
restringido as atividades das crianças
através das atividades lúdicas que a criança aos exercícios repetidos de
toma consciência de seu corpo e assimila discriminação visual, motora e auditiva,
através do uso de brinquedos, desenhos
as funções por ele apresentadas. As e músicas. Ao fazerem isso, ao mesmo
brincadeiras e os jogos infantis contribuem tempo em que bloqueiam a organização
independente das crianças para a
ainda para a percepção da criança referente brincadeira, essas práticas infantilizam
ao seu esquema corporal, dos movimentos os alunos, como se suas ações
simbólicas servissem apenas para
que é capaz de realizar, das posturas que explorar e facilitar ao educador a
pode assumir etc. transmissão de determinada visão de
mundo, definida, a princípio, pela
Através do brincar é igualmente instituição infantil (Carvalho, Alves &
exercitada a socialização, mediante a Gomes, 2005, p. 218).

reprodução de papeis e funções sociais,


Tomando como referência as
possibilitando à criança desenvolver a
brincadeiras e jogos como materiais
capacidade de se relacionar com outros
pedagógicos, os autores citados ainda
sujeitos de maneira harmoniosa e
acrescentam que se as instituições fossem
consciente de seu papel nas diferentes
organizadas em torno do brincar infantil,
interações estabelecidas, seja com pares ou
elas poderiam cumprir suas funções
com adultos. O lúdico se apresenta então
pedagógicas, privilegiando a educação da
como favorecedor de organização para o
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criança em uma perspectiva criadora, teórico pautado na abordagem psicológica


voluntária e consciente, uma vez que o de desenvolvimento de Alexis Leontiev
brincar congrega em seu mote (1978, 1983, 2001a, 2001b).
possibilidades de articulação entre o lúdico A seguir será apesentado o
e o ensino, nas quais o aluno desempenha posicionamento conceitual adotado e o
um papel ativo participando e papel desempenhado pelas brincadeiras e
transformando a realidade na qual atua, ao jogos no desenvolvimento psicológico das
mesmo tempo em que desenvolve suas crianças, particularmente na formação das
funções físicas e psicológicas. funções psicológicas superiores. Logo
Necessário acrescentar que nesse após, será exposta uma discussão acerca
movimento a atuação do professor se das vantagens da utilização do brincar
reveste de uma relevância especial, uma como procedimento didático, destacando o
vez que compete a ele: disponibilizar os papel do professor nesse processo. Na
objetos e meios necessários para colocar o parte final do artigo será esboçada uma
pensamento da criança em ação; deixá-las discussão dos conceitos apresentados, com
explorar o espaço; compreender e vistas a clarificar os imbricamentos
estimulando as brincadeiras; entrar no existentes entre eles.
diálogo quando necessário; fazer parte da
brincadeira; estimular a interação com os Brincar como atividade e
pares; não inibir, coagir ou reprovar as desenvolvimento infantil: alguns
ações realizadas; e incentivar pressupostos básicos
comportamentos éticos e morais. Isto
significa que o importante é ter uma Iremos apresentar a partir de agora
atividade intencional do professor, de algumas das principais bases teóricas e
modo a organizar e intervir de forma conceituais que compõem o pensamento e
contingente nas brincadeiras e jogos de a obra do psicólogo russo Alexis Leontiev
seus alunos (Moura, 2007). (1903-1979) no que se refere às suas
Partindo do pressuposto de que o construções acerca das contribuições do
brincar constitui um elemento fundamental brincar ao desenvolvimento psicológico no
para o desenvolvimento infantil, o presente período pré-escolar. Em termos de
trabalho assumiu por objetivo investigar as contextualização histórica, Leontiev fez
contribuições das brincadeiras e jogos à parte de um grupo de jovens pesquisadores
educação infantil. Trata-se de um ensaio russos que se associaram na secunda

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década do século XX com a finalidade de processos culturais contidos nos objetos


construírem uma nova abordagem em humanos, os sujeitos se apropriam dos
psicologia, fundamentada nos referenciais conhecimentos construídos e acumulados
marxistas, que espelhasse os ideais da pelas gerações que os precederam. Isso
sociedade socialista soviética que emergia lhes permite assimilar a consciência social
após a Revolução Russa de 1917 e que transformando-a em individual, pois “é
lograsse apreender a mente de uma forma apropriando-se da realidade que o homem
mais ampla em relação às demais a reflecte através do prisma das
abordagens já existentes na época. Tal significações, dos conhecimentos e das
grupo, conhecido como troika, era significações elaboradas socialmente”
constituído por Lev Semynovitch (Leontiev, 1978, p. 130). Portanto, na
Vygotsky (1896-1934), que era o seu líder construção das funções superiores
intelectual, Alexander Luria (1902-1977) e (pensamento, linguagem, criatividade,
Alexis Leontiev (1903-1979). imaginação), “a brincadeira é muito
De acordo com Arce (2004, p. 17) importante de ser estudada, não só porque
“estes autores viam a infância e seu representa o primeiro momento na
desenvolvimento fortemente conectados construção da imaginação, mas também
com a educação e com a sociedade na qual porque dá origem a vários processos
a criança está inserida”. Nessa perspectiva, psicológicos fundamentais ao
Leontiev (1978, 1983) defende que as desenvolvimento da criança.” (Vieira,
funções psicológicas superiores se Carvalho, & Martins, 2005, p. 40).
desenvolvem através da relação da criança Ao evidenciar a ligação da
com seu meio cultural e com as condições consciência à estrutura da atividade
materiais concretas compartilhadas por ela. humana, Leontiev deixa claro o papel ativo
No decorrer desse processo ocorre a desempenhado pelo sujeito em sua atuação
humanização, que consiste na subjetivação na realidade material e a importância disso
dos fenômenos objetivos, isto é, na na estruturação dos fenômenos
transformação de processos materiais em intrapsíquicos. Nesse sentido, a
produções simbólicas, processo que é apropriação dos recursos materiais ou dos
mediado e regulado pela linguagem. fenômenos culturais, que são produto do
Noutros termos, ao agir e participar desenvolvimento histórico, passa
ativamente da coletividade, realizando obrigatoriamente pela realização de
ações e atividades que reproduzam os atividades que façam a reprodução dos

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aspectos essenciais da atividade acumulada seus três componentes estruturais se unem.


nos objetos ou modos de interação. Objetos e necessidades isolados não a
Leontiev (2001b, p. 68) designa por produzem, esta somente se realiza quando
atividade, “os processos psicologicamente há o encontro dos dois sob a forma do
caracterizados por aquilo a que o processo, motivo (Asbahr, 2005), pois cabe a ele
como um todo, se dirige (seu objeto), impulsioná-la, atuando como articulador
coincidindo sempre com o objetivo que entre a necessidade e o objeto. Este
estimula o sujeito a executar esta atividade, processo marca o início da transição da
isto é, o motivo”. Ressalta que a atividade atividade do nível material para o nível
somente se constitui como tal se partir de psicológico.
uma necessidade, que inicialmente se É importante destacar que tanto o
caracteriza como uma força interna, ser humano quanto aos animais realizam
subjetiva. Todavia, mesmo a necessidade atividades em relação ao ambiente, com
sendo a condutora, por si mesma não é vistas a alcançarem a satisfação de suas
capaz de provocar a atividade. Para tanto, necessidades. No que tange
ela necessita encontrar um objeto que lhe especificamente ao homem, o trabalho em
seja correspondente para neste encontro suas várias formas e manifestações adquire
ocorrer uma transformação na qual a contornos de uma atividade na qual é
necessidade possa abandonar sua forma possível não apenas satisfazer as suas
ideal, virtual, objetivando-se necessidades, mas também produzir novos
concretamente em algo material. Isto é meios de satisfazê-las através da produção
fundamental porque de instrumentos que passam a mediar a
relação homem/mundo. Este é o papel
[...] em si, a necessidade não pode
determinar a orientação concreta de desempenhado pela atividade de um
uma actividade, pois é apenas no homem adulto.
objecto da actividade que ela encontra
sua determinação: deve, por assim Contudo, como as necessidades
dizer, encontrar-se nele. Uma vez que a vitais (de sobrevivência) das crianças são
necessidade encontra a sua
determinação no objecto (se “objectiva” satisfeitas, geralmente, pelos adultos, as
nele), o dito objecto torna-se motivo da atividades que elas desempenham
actividade, aquilo que a estimula
(Leontiev, 1978, p. 107-108). respondem a necessidades que não
precisam se pautar diretamente no seu
É importante frisar que a atividade resultado objetivo. Assim, muitos tipos de
somente se caracteriza como tal quando os atividade “nesse período do

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desenvolvimento possuem seus motivos impossível andar em seu carro ou atirar


com sua arma (Leontiev, 2001b, p. 59).
(aquilo que estimula a atividade) em si
mesmos [...]. Quando, por exemplo, uma
Em termos de origem, as
criança bate com uma vara [...] o que a
brincadeiras têm o seu surgimento
motiva a agir [...] é o processo real da
demarcado no momento em que a criança
atividade dada” (Leontiev, 2001a, p. 119) e
toma consciência dos inúmeros objetos que
não o seu resultado objetivo. Portanto, para
os adultos manipulam no dia-a-dia. Ela
a Teoria da Atividade, o tipo de atividade
passa então a apresentar um desejo de
no qual o motivo se localiza no próprio
também estabelecer relações com tais
processo e não no produto é a denominada
objetos, manipulá-los da mesma forma
“brincadeira”.
como fazem os adultos, porém como ainda
No tocante às atividades
não dispõe de desenvolvimento suficiente
desenvolvidas pelas crianças, a infância
que lhe possibilite realizar todas as
pré-escolar representa para elas o período
operações requeridas por cada objeto,
no qual mais se abrem ao mundo, à
surge para ela uma contradição entre
realidade circundante. Nesse momento as
querer fazer e não poder em decorrência de
formas de se brincar também passam por
seu desenvolvimento físico e psíquico.
redefinições em sua forma e conteúdo.
Esta contradição pode ser
Vejamos, nos anos iniciais do
solucionada através do brincar. De acordo
desenvolvimento, as atividades realizadas
com Leontiev (2001a, p. 123) como o jogo
com os objetos não passam de rudimentos
não constitui uma atividade produtiva,
de atividades mais elaboradas, que serão
posto que seu alvo não se localiza no seu
realizadas futuramente, embora também
“resultado, mas na ação em si mesma. O
concorram para o conhecimento e
jogo está, pois, livre do aspecto obrigatório
apreensão dos objetos do mundo. Contudo,
da ação dada, a qual é determinada por
no período pré-escolar,
suas condições atuais, isto é, livre dos
[...] em toda sua atividade e, sobretudo, modos obrigatórios de agir ou de
em seus jogos, que ultrapassaram agora operações”. Diante disso, o faz-de-conta
os estreitos limites da manipulação dos
objetos que a cercam, a criança penetra então passa a assumir contornos mais
um mundo mais amplo, assimilando-o definidos no âmbito das brincadeiras e
de forma eficaz. Ela assimila o mundo
objetivo como um mundo de objetos jogos no período pré-escolar.
humanos reproduzindo ações humanas Assim, devido à impossibilidade de
com eles. Ela guia um “carro”, aponta
uma “pistola”, embora seja realmente poder agir como adulto, a criança começa a
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realizar substituições dos objetos Em razão das crianças nas suas


inacessíveis a elas por outros que estejam brincadeiras reproduzirem a realidade, o
ao seu alcance, esse movimento é regulado seu contexto social, fica evidente que os
pela imaginação que fornece os elementos conteúdos dos jogos e brincadeiras infantis
necessários para fazer a ligação entre o não se originam da imaginação ou da
objeto original e o substituto. Como não fantasia. Pelo contrário, eles advêm das
pode dirigir um carro de verdade, a criança situações materiais presentes e há uma
alternativamente dirige um carrinho de busca intencional da criança em tentar
brinquedo ou qualquer outro objeto que se adequar a brincadeira à situação real, de tal
aplique a essa finalidade. Do ponto de vista modo que as condições do jogo podem ser
de desenvolvimento psicológico, nas alteradas, porém o conteúdo e a
brincadeiras, ao se reproduzir a forma encadeamento da ação necessitam
como as pessoas se relacionam com os corresponder à situação real.
objetos, elas assimilam não apenas as O conteúdo do processo da
principais características que apresentam, brincadeira apresentado pela análise
como também as suas funções. psicológica, aquilo que chamamos
Com o passar do tempo, a criança ação, é assim a ação real para a
começa a realizar também a substituição de criança, que é tirada da vida real.
pessoas. Por exemplo, “nos jogos de Assim sendo, ela não é nunca
papéis, pode representar a professora enquadrada arbitrariamente; ela não é
ensinando seus alunos, a mãe cuidando de fantástica. O que a distingue de uma
seus filhos, o médico atendendo a seus ação que não constitui uma brincadeira
pacientes. [...]. A representação de papéis, é apenas sua motivação, i.e., a ação
em tais condições, passa a ser altamente lúdica é psicologicamente
motivadora para a criança” (Vieira, independente de seu resultado
Carvalho, & Martins, 2005, p. 41). Estes objetivo, porque sua motivação não
jogos trazem em seu bojo diversas regras reside nesse resultado (Leontiev,
implícitas condizentes com as ações 2001a, p. 126).
desempenhadas, especialmente com Ademais, os jogos de faz-de-conta
relação ao papel social representado, por possibilitam à criança ultrapassar os limites
outro lado, a presença de uma situação de sua atuação cotidiana, possibilitando a
imaginária é bastante evidente. vivência de novos papeis sociais,
experimentação de diferentes situações,

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interações variadas com seus pares etc. A tipo de jogo para o desenvolvimento
partir disso, “podemos dizer que a infantil são enormes, pois o respeito às
brincadeira projeta a criança no vir a ser, regras impulsiona o desenvolvimento da
possibilita-lhe novas maneiras de autodisciplina. De acordo com Leontiev
compreender a teia de relações sociais na (2001a, p. 139) “dominar as regras
qual se insere” (Vieira, Carvalho, & significa dominar seu próprio
Martins, 2005, p. 42), favorecendo comportamento, aprendendo a controlá-lo,
desenvolvimento de suas funções aprendendo a subordiná-lo a um propósito
psíquicas, especialmente a abstração. definido”.
Na perspectiva da Teoria da
Atividade, o brincar de faz-de-conta na Brincar e educação: concepções,
idade pré-escolar constitui a atividade possibilidades e o papel do professor
principal da criança nesse estágio de
desenvolvimento, sendo a atividade A interface entre psicologia e
principal aquela “cujo desenvolvimento educação permite aventar as inúmeras
governa as mudanças mais importantes nos articulações existentes entre o
processos psíquicos e nos traços desenvolvimento e o processo de ensino.
psicológicos da personalidade” (Leontiev, Em decorrência disso, a relação entre os
2001b, p. 65). Assim, compreende-se que o conhecimentos psicológicos e pedagógicos
brincar de faz-de-conta impulsiona vários tem adquirido um destaque cada vez maior,
processos psicológicos, como a abstração, tendo em vista que deste modo fica
o autocontrole etc. Sem o desenvolvimento favorecida uma reflexão mais abrangente
desses processos, a aprendizagem da em torno das possibilidades de se
criança da faixa etária da escolar, que se “promover melhores condições de
segue, seria grandemente prejudicada. desenvolvimento por meio da educação.
No desenvolvimento do brincar, Nesse contexto, a inserção do brincar pode
posteriormente aos jogos de papéis constituir-se em um elemento importante
começam a tomar forma os jogos com para o ensino nas instituições educativas.”
regras. Conforme descrito anteriormente, (Carvalho, Alves, & Gomes, 2005, p. 218).
os jogos de papéis apresentam regras Até porque, conforme já exposto
implícitas e uma situação imaginária anteriormente, o brincar é a atividade
explícita. Já nos jogos com regras a principal da criança em idade pré-escolar
situação se inverte. As contribuições deste sendo responsável pelas principais

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mudanças no seu desenvolvimento e elimina todo hedonismo, resta apenas o


aprendizagem. ensino” (Kishimoto, 2003, p. 19).
Nesta mesma linha de pensamento, Portanto, os jogos e brincadeiras
Moura (2007) pondera que as teorias em necessitam conciliar numa mesma
psicologia de fundamentação histórico- atividade aprendizagem e diversão, pois,
cultural fornecem importantes subsídios embora tenham uma finalidade lúdica não
quando se trata de incorporar o jogo às prescindem de trazer subjacente um ideal
práticas educativas, uma vez que de aprendizagem. Isto é, o “jogo promove
estabelece elos entre as brincadeiras e desenvolvimento porque está impregnado
jogos e a produção de conhecimentos. Tais de aprendizagem. E isto ocorre porque os
perspectivas concebem os jogos carregados sujeitos, ao jogar, passam a lidar com
“de conteúdos culturais e que os sujeitos, regras que lhes permitem a compreensão
ao tomar contato com eles, fazem-no do conjunto de conhecimentos veiculados
através de conhecimentos adquiridos socialmente” (Moura, 2007, p. 79-80).
socialmente. Ao agir assim, estes sujeitos Nesse movimento o aluno brinca, aprende
estão aprendendo conteúdos que lhes e se desenvolve.
permitem entender o conjunto de práticas Segundo Debortoli (2005, p. 67), “a
sociais nas quais se inserem” (Moura, brincadeira é considerada uma das
2007, p. 79). maneiras de fazer as coisas de uma forma
Por outro lado, como os jogos mais agradável e satisfatória”. Assim, ao
educativos apresentam duas faces: uma brincar ou participar de jogos que
lúdica e outra educativa, é comum envolvam outros sujeitos, a criança se vê
aparecerem controvérsias quanto aos frente a situações que exigem dela o uso da
benefícios de sua utilização como recurso imaginação, de conhecimentos prévios, da
didático. O jogo educativo então tem a elaboração de estratégias de solução de
difícil missão de se localizar no vértice problemas, melhores formas de interação
destas duas faces assumindo como meta etc. Ao longo deste processo vão sendo
alcançar um equilíbrio entre as mesmas. desenvolvidas suas habilidades, bem como
Entretanto, o desequilíbrio provoca duas suas capacidades físicas, cognitivas,
situações: “não há mais ensino, há apenas emocionais e sociais.
jogo, quando a função lúdica predomina Portanto, mesmo que os benefícios
ou, o contrário, quando a função educativa do brincar não constituam consenso entre
alguns pesquisadores da área da educação,

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a sua utilização como um recurso permitem elevar o desenvolvimento dos


pedagógico pode ser favorecida se os seus alunos, buscando identificar e
educadores assumirem que são considerar as diferenças e particularidades
organizadores intencionais das atividades que apresentam, bem como as
de seus alunos. Para tanto, torna-se especificidades dos contextos culturais a
necessário um conjunto de ações a serem que pertencem. Nessa perspectiva, a
executadas com métodos adequados para a importância das brincadeiras e jogos se
organização do espaço para as localiza nas possibilidades de aproximação
brincadeiras, seleção dos brinquedos mais da criança em relação às situações da vida
adequados a cada situação de em sociedade, levando-a a vivenciar
aprendizagem e para a orientar e coordenar “virtualmente” situações de solução de
a interação das crianças, com vistas a problemas que a aproximem daquelas que
beneficiar o trabalho coletivo (Moura, o homem “realmente” enfrenta ou
2007). Assim, a escolha adequada dos enfrentou (Moura, 2007).
brinquedos também é essencial para o
sucesso das brincadeiras e jogos, a esse Considerações Finais
respeito é preciso se considerar:
1. o valor experimental - permitir a Quando parte-se do pressuposto de
exploração e a manipulação; que a criança se desenvolve a partir das
2. o valor da estruturação - dar suporte à múltiplas atividades que realiza em relação
construção da personalidade infantil; aos objetos, com vistas a reproduzir as
3. o valor de relação - colocar a criança em ações humanas engendradas neles e
contato com seus pares e adultos, com mediante isso assimilar a bagagem cultural
objetos e com o ambiente em geral para que trazem em sua constituição, pode-se
propiciar o estabelecimento de relações; concluir que o brincar também é fonte de
4. o valor lúdico - avaliar se os objetos aprendizagem e, consequentemente,
possuem as qualidades que estimulam o desenvolvimento.
aparecimento da ação lúdica (Kishimoto, Portanto, se o desenvolvimento está
2003, p. 20). intrinsecamente ligado à aprendizagem,
Todos estes fatores apontam para a pois essa é um aspecto necessário à
relevância de o professor ter uma atividade estruturação das funções psicológicas
intencional no sentido de criar superiores, na perspectiva da psicologia
possibilidades de intervenção que histórico-cultural e Teoria da Atividade

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(Leontiev, 1978), ele pode ser favorecido educandos nos momentos de ludicidade.
mediante brincadeiras e jogos. Para tanto, Assim, reforçam não apenas o agir
espera-se do educador, em termos de intencional das crianças na apreensão das
desempenho pedagógico, que ele organize formas culturais materializadas nos
e estabeleça os meios favoráveis às brinquedos, brincadeiras e jogos, o que
brincadeiras dos alunos, que têm na escola lhes impulsiona o desenvolvimento, mas
grande parte de suas relações, saberes e também orientando e estimulando a
repertórios comportamentais construídos. manifestação de formas consideradas mais
Como as brincadeiras e jogos adequadas de interação e convívio social,
possuem caráter social, pois ocorrem nas bem favorecendo o desenvolvimento de
interações que são estabelecidas entre as maior autonomia, uma vez que não se pode
crianças e outros sujeitos e com o meio perder de vista que este é um movimento
sociocultural, também constitui uma das que implica ação, interação e construção
atribuições do professor agenciar formas própria.
adequadas de relacionamento entre seus

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Learning.

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Perspectivas em Psicologia, Vol. 16, N. 1, Jan/Jun 2012, p. 160-172.
O BRINCAR COMO ATIVIDADE E SUAS CONTRIBUIÇÕES À EDUCAÇÃO INFANTIL

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Os autores:

Jorge Luiz da Silva. Psicólogo. Mestre em Ciências pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP). Doutorando em Saúde Pública.
Bolsista FAPESP. Programa de Pós-Graduação Enfermagem em Saúde Pública. Escola de Enfermagem de
Ribeirão Preto (EERP). Universidade de São Paulo (USP). E-mail: jorgelsilva@usp.br

Wanderlei Abadio de Oliveira. Psicólogo. Doutorando em Saúde Pública. Bolsista CAPES. Programa de Pós-
Graduação Enfermagem em Saúde Pública. Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto (EERP). Universidade
de São Paulo (USP). E-mail: wanderleioliveira@edu.uniube.br

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