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POSITIVISMO JURÍDICO E

DISCRICIONARIEDADE JUDICIAL
A Filosofia do Direito na encruzilhada do
Constitucionalismo Contemporâneo
www.lumenjuris.com.br

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HENRIQUE ABEL

POSITIVISMO JURÍDICO E
DISCRICIONARIEDADE JUDICIAL
A Filosofia do Direito na encruzilhada do
Constitucionalismo Contemporâneo

EDITORA LUMEN JURIS


RIO DE JANEIRO
2017
Copyright © 2017 by Henrique Abel

Categoria:

PRODUÇÃO EDITORIAL
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Diagramação: Alex Sandro Nunes de Souza

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Livraria e Editora Lumen Juris Ltda.

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Printed in Brazil

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________________________________________
“Each of us burts with love of life and fear of
death: we are alone among animals conscious
of that apparently absurd situation. The only
value we can find in living in the foothills of
death, as we do, is adverbial value.” 1
RONALD DWORKIN

“[…] it is the mark of an educated man to look


for precision in each class of things just so far
as the nature of the subject admits: it is eviden-
tly equally foolish to accept probable reasoning
from a mathematician and to demand from a
rhetorician demonstrative proofs.” 2
ARISTÓTELES

“Caso alguém me convencer, me provar


que penso ou procedo erradamente, tra-
tarei de corrigir-me, já que busco a verda-
de, que nunca fez mal a ninguém. Mas,
quem persiste no erro e na ignorância faz
mal a si mesmo.” 3
MARCO AURÉLIO

“[...] o que torna verdadeira uma convic-


ção não é o prazer nem o conforto que nos
proporciona. [...] As descobertas da inves-

1 DWORKIN, Ronald. Justice for Hedgehogs. Cambridge, Massachusetts: Harvard


University Press, 2011. p.13
2 ARISTOTLE. Nicomachean Ethics. 1094b24.
3 MARCO AURÉLIO. Meditações. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora,
1957. p. 86 (Original: Livro VI, XXI).
tigação às vezes são errôneas, mas isso não
as torna subjetivas. [...] Os que insistem
em que a verdade é algo maleável e subje-
tivo não compreendem que, com tal crité-
rio, a investigação é impossível.” 4
BERTRAND RUSSELL

“Did you see the frightened ones?


Did you hear the falling bombs?
Did you ever wonder
Why we had to run for shelter
When the promise of a brave new world
Unfurled beneath a clear blue sky?”5
ROGER WATERS

4 RUSSELL, Bertrand. História do pensamento ocidental. 6ª edição. Rio de Janeiro:


Ediouro, 2002. p. 452.
5 Trecho da letra de Goodbye Blue Sky, do álbum The Wall, lançado pela banda
britânica Pink Floyd em 1979.
Agradecimentos

À minha orientadora da dissertação de Mestrado que deu origem


a este livro, Profª. Dra. Fernanda Frizzo Bragato, pela sempre aten-
ciosa disponibilidade, pela leitura minuciosa de todos os capítulos e
pelas ótimas sugestões metodológicas e bibliográficas. Ela detectou e
apontou todas as falhas deste trabalho durante a sua elaboração. As
que eventualmente sobraram são de minha inteira responsabilidade.
Ao Prof. Dr. Lenio Luiz Streck, a quem agradeço imensamente
por seu inestimável apoio ao presente trabalho, da elaboração à
publicação. Sua vasta obra permanece sendo um de meus princi-
pais referenciais teóricos e fonte permanente de inspiração.
Aos amigos e pessoas queridas, pelos muitos momentos subtra-
ídos de nosso convívio.
A meus pais, Heron e Maria Regina, por absolutamente tudo.
Sumário

A velha discricionariedade e o positivismo:


uma discussão que se impõe ...................................................XI
Introdução .................................................................................1
1. A clássica crítica de Dworkin ao positivismo jurídico ........7
1.1 Dworkin e o direito como integridade ......................................... 7
1.2 A crítica de Dworkin ao positivismo jurídico ............................ 22
1.3 O poder dos juízes na teoria de Dworkin................................... 28
2. A sobrevida do positivismo jurídico no plano teórico
e acadêmico .............................................................................. 31
2.1 Positivismo inclusivo e positivismo exclusivo............................. 34
2.2 O positivismo exclusivo em Joseph Raz e Andrei Marmor
e o positivismo inclusivo de Jules Coleman ..................................... 36
2.3 AS deficiências das teorias positivistas pós-Dworkin ................ 56
3. A discricionariedade judicial positivista como
manifestação do ceticismo filosófico ...................................... 75
3.1 Sócrates e Platão - O nascimento da filosofia clássica e
da crítica ao ceticismo ..................................................................... 76
3.2 A crítica ao ceticismo em Aristóteles – A não-contradição
como um princípio preliminar do método científico ....................... 90
3.3 Implicações da refutação do ceticismo filosófico na refutação
da discricionariedade judicial e na questão da possibilidade de
respostas corretas no direito ............................................................ 96
4. A sobrevida da discricionariedade judicial na práxis
jurídica brasileira e sua incompatibilidade com o
neoconstitucionalismo .......................................................... 123
4.1 Discricionariedade judicial positivista, Estado democrático
de direito e neoconstitucionalismo
(constitucionalismo contemporâneo) ............................................ 124
4.2 A sobrevida do positivismo jurídico no Brasil ..........................146
Conclusão ............................................................................... 163
Pós-escrito para a Segunda edição (2017) ........................... 173
Referências ............................................................................. 179
A velha discricionariedade e o
positivismo: uma discussão que se impõe

Por Lenio Luiz Streck

Nenhuma palavra possui um sentido em si. Os sofistas foram os


primeiros a perceber que entre palavras e coisas não há uma imanên-
cia. Isso pode ser visto no primeiro grande livro sobre filosofia da lin-
guagem, o Crátilo de Platão. O poder da cisão entre palavras e coisas,
entre palavras e o sentido “em si”, pode ser visto na influência que os
sofistas tiveram nas tragédias gregas, valendo citar As Troianas, de
Eurípedes. Ali, o sentido da (palavra) guerra se altera profundamente.
A guerra não é mais algo épico, heróico. A guerra, nas Troianas, é vis-
ta pelo olhar feminino. O extremo sofrimento. As mulheres troianas
(vencidas) feitas prisioneiras-escravas. Veja-se a eloqüência com que
Eurípedes relata a tragédia das mulheres na guerra. A rainha Hécuba,
lamentando a morte de seu neto Astíanax, filho de Heitor, atirado do
alto de um edifício para morrer espatifado. A criança é a ela entregue
sobre o escudo de Heitor: “Pousai no chão o escudo de meu filho,
guardas! Ah! Como seus adornos são agora tristes e sem encantos
para os meus olhos!” lamenta Hécuba, ao receber o corpo do neto.
Hécuba (na cena final, em meio ao incêndio de Tróia): “Membros
meus muito frágeis! Levai-me, conduzi-me na marcha forçada. Come-
cemos a triste jornada até nosso cruel cativeiro”. Definitivamente, o
sentido da palavra guerra mudara...!
Essa relação “palavra-coisa” atravessa os milênios e aterrissa no
“campo jurídico”, causando, ainda, estragos e perplexidades. Todos
os dias é possível ver nos Tribunais e Fóruns da República um ver-
dadeiro mix das diversas teses e teorias jusfilosóficas que sustentam

XI
o imaginário dos juristas desde o século XIX, época em que, stricto
sensu, iniciam as discussões acerca do positivismo jurídico. Assim
como as coisas não estão nas palavras e nelas não cabem, também o
direito não cabe na lei. Isso já podia ser visto em Antígona, para lem-
brar a primeira objeção de consciência da história da humanidade.
Parece, então, que os juristas chegam tarde nessa discussão.
Por vezes, no âmbito da interpretação-aplicação do direito, a “lei
vale tudo”, isto é, faz-se uma aplicação exegética como se ainda
estivéssemos no século XIX; em outras, encontramos decisões que
desconectam “palavras e coisas”, isto é, desconectam “lei e direi-
to”. Neste último caso, diz-se que esse tipo de “desconexão” é uma
“atitude pós-positivista”...! Mas, pergunto – essa indagação venho
fazendo de há muito em Hermenêutica Jurídica e(m) crise e Verdade
e Consenso – positivismo é, simplesmente, aquilo que entendemos
como o positivismo do século XIX?
Como superar, portanto, essa crise de compreensão – que não
deixa de ser uma crise de paradigmas – que atravessa o direito? A
que devemos debitar esse processo de “coagulação dos sentidos ju-
rídicos”? De há muito tenho buscado a explicação para essa crise.
Nas idas e vindas de minhas investigações, há um ponto que pode
ser considerado como o de “estofo”, onde confluem os diversos cau-
dais doutrinário-jurisprudenciais: trata-se do modo como a teoria
do direito tem compreendido a viragem do fenômeno do positivismo
exegético para as novas formas de ir além do velho formalismo que
dominou as práticas jusfilosóficas desde o século XIX.
Um dos pontos nos quais venho batendo é a diferença entre o
positivismo (ou positivismos) e um adequado posicionamento pós-
-positivista: no(s) positivismo(s), quer-se fornecer respostas antes das
perguntas; já no pós-positivismo, não existem respostas antes das per-
guntas. No conto, está o contado; no conto, também está o contador.
Se a interpretação/aplicação – porque interpretar é aplicar –
fosse uma “questão de sintaxe” (análise sintática), um bom lin-

XII
güista ou professor de português seria o melhor jurista. Seria o
império dos “conceitos” sem coisas. Só que as coisas (fatos, textos,
fenômenos em geral) não existem sem conceitos (ou nomes). 1
Aliás, se não se compreender o direito a partir de uma ade-
quada teoria, pode-se sempre cair em armadilhas, tanto ligadas a
uma perspectiva objetivista, como a uma perspectiva subjetivis-
ta. Há erro nas duas posições, como venho insistindo em dizer
há tantos anos. Um exemplo pode melhorar o nosso entendi-
mento. Trata-se do clássico exemplo de Recaséns Siches, que vou
aqui tornar mais complexo. Se há uma lei que proíbe que se leve
cães na plataforma do trem, a pergunta que se põe é: seria possí-
vel levar um urso? Afinal, apenas os cães estão proibidos... O que
não é proibido está permitido... Ocorre que a palavra “cães” não
esgota o sentido da regra. Neste caso, a partir da reconstrução
da história institucional do direito pelo “método hermenêutico”,2
chega-se à conclusão de que, onde está escrito cães, deve-se ler

1 Lembro, aqui, do romance de Gabriel García Márquez, Cem Anos de Solidão. No


início da obra, ele fala da pequena localidade de Macondo, onde as coisas eram
tão recentes, tão novas, que, para dirigirmo-nos a elas, tínhamos que apontar com
o dedo... porque elas ainda não tinham nome! Na literatura brasileira, bem antes
de García Márquez, Graciliano Ramos, em seu famoso Vidas Secas, já fizera antes
um exercício fenomenológico desse jaez, quando do episódio da ida dos dois filhos
de Fabiano à cidade. Lá, eles se deslumbram com tantas coisas que nunca tinham
visto. E dizem: “Provavelmente aquelas coisas tinham nomes. Sim, com certeza as
preciosidades que se exibiam nos altares da igreja e nas prateleiras das lojas tinham
nomes. Puseram-se a discutir a questão intricada. Como podiam os homens guardar
tantas palavras? Era impossível, ninguém conservaria tão grande soma de conhecimentos.
Livres dos nomes, as coisas ficavam distantes, misteriosas”.
Daí a minha pergunta (metafórica): olhando a ainda frágil teoria do direito de
terrae brasilis e vendo a complexidade do fenômeno jurídico, quantas coisas ainda
permanecem sem nome? Para quantas coisas os juristas ainda apenas apontam o
dedo? Por exemplo: o jurista pode estar “vendo” as práticas positivistas, mas pode não
estar compreendendo o que elas significam... Por outro lado, de que adianta ele saber
a palavra “positivismo”, se não sabe a que essa palavra se refere no mundo das “coisas”?
2 O que é o método hermenenêutico? Para isso, remeto o leitor, mais uma vez, ao
Hermenêutica Jurídica e(m) crise, na Introdução, onde explico essa “metodologia”.

XIII
“animais perigosos”, isto é, os animais que podem colocar em
risco os passageiros. Ainda, assim, a reconstrução institucional
deve continuar. Afinal, que tipo de animal está proibido? O que
seria um animal perigoso? Quem define essas “coisas” (animais)
que devem se compatibilizar com o conceito de “perigosos”? É o
juiz? É ele quem escolhe, de forma discricionária (arbitrária)? Ou
ele consultará um dicionário? Há uma listagem de animais peri-
gosos à disposição na literatura jurídica (ou não jurídica)? E, se
houvesse tal lexicografia, o conceito de “animal perigoso” estaria
condizente com o contexto de aplicação (caso concreto), isto é,
“a plataforma de um trem”? Afinal, um conceito “abstrato” de
“animais perigosos” pode ser aplicado à selva ou ao interior de
uma escola, mas não a uma plataforma de trem, pois não?
E, atenção: nem mesmo a palavra “cães” segura o “seu próprio
sentido”, uma vez que não se poderia aplicar a proibição a um
cego levando o seu cão guia (o que parece óbvio). E assim por
diante. Se a holding está assentada em “animais perigosos”, todo
tipo de cão não perigoso não estaria fora da proibição da regra?
Veja-se, desde já e sempre, a problemática relacionada à diferença
hermenêutica entre “texto” e “norma”. Mais do que isso, está-se
diante da necessidade de uma teoria da decisão. Como se decidem
os casos, eis a questão que procuro responder em Verdade e Con-
senso. Na especificidade do exemplo de Siches, se a resposta fosse
simplesmente “sim, pode levar um urso”, estar-se-ia em face de
uma decisão “raso-positivista-exegética” (positivismo primitivo).
Já se a resposta fosse “não, porque onde está escrito cães, leia-se
animais perigosos”, em tese estar-se-ia em face de uma análise pós-
-positivista, isto é, uma análise que superaria o positivismo exe-
gético. Entretanto, o final da história, isto é, a resposta acerca de
como poderia ser classificada a segunda resposta advirá do tipo de
decisão. Se for discricionária a resposta, sem uma reconstrução da
história institucional do direito, poderemos estar em face de uma

XIV
resposta positivista do tipo pós-exegético-voluntarista. Discricio-
nariedade... Eis o problema...!
Pois é neste contexto que me deparo com a obra Positivismo
Jurídico e Discricionariedade Judicial, de Henrique Abel. Trata-se
de um excelente trabalho reflexivo sobre o positivismo jurídico e o
seu problema fulcral: a discricionariedade. Henrique Abel vai fun-
do na discussão teórica acerca das raízes do positivismo e dos po-
sitivismos. Sabe ele muito bem a dimensão dos problemas acarre-
tados em terrae brasilis por uma vulgata do sentido do positivismo.
Por isso, Abel se debruça sobre esse intrincado tema, tendo
como pano de fundo e matriz teórica a hermenêutica (filosófica).
E fê-lo bem, porque este parece ser o caminho mais adequado
para, primeiro, desconstruir o senso comum teórico que sustenta
a errônea compreensão acerca do que seja “o positivismo jurídico”
e, em um segundo momento, demonstrar a importância da recons-
trução que pode ser feita a partir da hermenêutica.
Trata-se de um livro denso e sofisticado, que recomendo à co-
munidade jurídica. Não pode faltar nas melhores bibliotecas. Boa
leitura a todos.

Da Dacha de São José do Herval, no in-


verno de 2012, quando, ainda pela ma-
nhã, o denso nevoeiro me impede o desve-
lamento do vale que separa as cadeias de
montanhas desta parte da serra gaúcha.

XV
Introdução

Nas últimas décadas, em grande parte em virtude do constitu-


cionalismo europeu da segunda metade do século XX e das reações
intelectuais aos horrores da Segunda Guerra Mundial, o positivismo
jurídico sofreu robustas e contínuas críticas dentro dos meios acadê-
micos. Provavelmente, nenhum outro autor contribuiu tanto para a
superação do positivismo jurídico normativista quanto o jusfilósofo
norte-americano Ronald Dworkin, principalmente em virtude de
suas três obras mais emblemáticas: Levando os Direitos a Sério (1977),
Uma Questão de Princípio (1985) e O Império do Direito (1986).
As críticas de Dworkin (e as derivadas de seu trabalho) progres-
sivamente se popularizaram entre a comunidade jurídica interna-
cional. Como resultado, elas acabaram por minar as bases teóricas
do positivismo jurídico, que passou a ser comumente visto sob o ró-
tulo de uma doutrina ultrapassada e superada – ao ponto de o termo
pós-positivismo ter se popularizado no jargão jurídico como sinônimo
da realidade contemporânea dos ordenamentos jurídicos ocidentais.
A ideia de “pós-positivismo”, no entanto, abriga um comodis-
mo perigoso. Ela ignora dois fatos fundamentais para a compre-
ensão do status do positivismo jurídico na contemporaneidade. O
primeiro ponto é o fato de que a alardeada “morte” intelectual
do positivismo jurídico é colocada em cheque pela perseverante
sobrevida que esta corrente de pensamento vem recebendo nos
meios acadêmicos, em diferentes versões e concepções, destacada-
mente por meio dos esforços intelectuais de autores como Joseph
Raz, Andrei Marmor e Jules Coleman.
Uma verdadeira superação do positivismo jurídico no plano
teórico, dessa forma, precisará tomar o debate Hart/Dworkin não

1
Henrique Abel

como solução, mas sim como ponto de partida para sedimentação


de uma teoria da decisão verdadeiramente pós-positivista. Pas-
sados mais de vinte e cinco anos desde a publicação das obras
seminais de Dworkin, é necessário que o status acadêmico do po-
sitivismo jurídico seja reavaliado, no sentido de uma renovação do
combate intelectual às ideias positivistas - que prosseguem, de for-
ma perseverante, no objetivo de desconstruir a crítica dworkinia-
na, resgatando (total ou parcialmente) o legado de Hart e Kelsen.
O fato, assim, é que hoje já existe uma nova geração de posi-
tivistas do Direito, que já absorveram a crítica de Dworkin e que,
não obstante, continuam defendendo um projeto de positivismo
jurídico para a contemporaneidade. Dessa forma, é preciso tomar
a crítica de Dworkin a Hart não mais como objeto de novos es-
tudos, mas sim como o pressuposto a partir do qual surgem novos
autores positivistas (e “novos positivismos jurídicos”), que pretendem
ter superado a crítica dworkianiana.
Os trabalhos destes novos autores nos obrigam, assim, a entrar
numa nova fase do debate, analisando a relevância e atualidade dos
postulados destes “novos” positivismos jurídicos, bem como a sua
(in)compatibilidade com os fundamentos das democracias ociden-
tais contemporâneas.
O segundo ponto talvez seja ainda mais importante, e diz res-
peito à práxis da prestação jurisdicional no Brasil. Isso porque a in-
questionável e assentada vitória da crítica ao positivismo jurídico no
campo das ideias não teve o condão de eliminar da prática judiciária
(e nem mesmo da mentalidade dos juristas) a mais grave e criticável
falha do positivismo jurídico, qual seja: a discricionariedade judicial.
Pior do que isso: o acomodamento em relação ao “fato” da
morte do positivismo jurídico consagrou, como sendo “pós-posi-
tivistas”, uma série de mitos, lugares-comuns e chavões que nada
mais são do que novas indumentárias para a velha figura da discricio-
nariedade, dentre os quais se pode citar a concepção de que o juiz

2
Positivismo jurídico e Discricionariedade judicial

deve decidir de acordo com “seus sentimentos”, prestando contas


apenas à “sua consciência”.1
Perceba-se que, ao contrário da outra questão que levantamos
anteriormente, aqui não há uma defesa propriamente dita do posi-
tivismo jurídico. Pelo contrário: hoje, uma parte alarmantemente
significativa da comunidade jurídica brasileira legitima condutas
discricionárias do Judiciário ao mesmo tempo em que imagina que
seu discurso representa a encarnação mesma do “antipositivismo”.
Pelo menos em parte, isso ocorreu em virtude de uma equi-
vocada obsessão com a questão do apego dos juristas à “letra fria
da lei”, questão que foi erroneamente transformada na principal
bandeira antipositivista - deixando livre o caminho para que o
verdadeiro grande problema do positivismo jurídico, a discriciona-
riedade judicial, permanecesse vivo na prática jurídica, legitimado
sob novas justificativas (entre elas, paradoxalmente, o discurso
pretensamente “antipositivista”).
Ocorre que, diante do atual paradigma do Estado Democrático
de Direito, estabelecido por meio do Constitucionalismo Contem-
porâneo, se faz necessária uma teoria da decisão que, superando o
legado do positivismo jurídico, deslegitime atuações judiciais pau-
tadas pela discricionariedade.

1 “É o caso, por exemplo, de Eduardo Cambi, que, a partir de uma mixagem de


matrizes e autores, sustenta que o juiz, nos casos difíceis, possui tanta margem
de discricionariedade quanto o legislador, como se, a um, o legislador tivesse
discricionariedade nesta quadra da história e, a dois, não fosse a discricionariedade,
exatamente, a porta de entrada dos decisionismos e voluntarismos. Mais ainda,
embora sua obra tenha pretensões pós-positivistas (ou antipositivistas), o que, registre-
se, é extremamente louvável, Cambi insiste em teses que são contrárias (ou estão em
contradição) ao que propõe, como, por exemplo, quando sustenta que a sentença é
ato de vontade do juiz – repristinando, consciente ou inconscientemente, o pai do
positivismo normativista (Kelsen) [...]”. STRECK, Lenio Luiz. O que é isto: decido
conforme minha consciência? 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. p. 29.

3
Henrique Abel

Em suas diferentes manifestações (inclusive aquelas que se


apresentam como decorrentes da rejeição ao positivismo jurídico),
a discricionariedade deve ser compreendida como uma prerroga-
tiva simplesmente incompatível com o atual estágio da democracia
brasileira, para que seja reafirmado o compromisso dos juízes e tri-
bunais com a integridade do ordenamento jurídico, compreendido
na forma de um sistema de regras e princípios.
Nos vemos, portanto, diante de um verdadeiro paradoxo: en-
quanto que o desprestígio intelectual do positivismo jurídico no
meio acadêmico brasileiro sugere que o mesmo se trata de uma
“doutrina morta”, ao mesmo tempo se verifica que algumas das
concepções mais problemáticas do positivismo jurídico continu-
am manifestando-se tanto na prática judicial quanto no “senso
comum teórico” dos juristas (inclusive ocultas, muitas vezes, sob o
manto de posturas pretensamente “pós-positivistas”).
Dentro do contexto de um Estado Democrático de Direito
contemporâneo, combater o positivismo significa, essencialmente,
combater a discricionariedade judicial. O que uma postura crítica
(e comprometida com a democracia) deve querer é, precisamente,
que sejam cumpridas as leis, e não o contrário.
No Capítulo 1, faremos uma breve recapitulação dos principais
fundamentos da teoria interpretativa de Dworkin, bem como os
principais pontos da clássica crítica ao positivismo jurídico levada
a cabo pelo autor. No Capítulo 2, damos um salto de trinta anos
para frente para analisar o status acadêmico que o positivismo
jurídico tem hoje e as diferentes formas como ele é apresentado
(examinando a divisão em positivismo inclusivo e exclusivo), por
intermédio do estudo das doutrinas específicas de três autores ex-
tremamente representativos do positivismo jurídico contemporâ-
neo: Joseph Raz, Andrei Marmor e Jules Coleman. Em seguida, no
mesmo capítulo, iremos examinar essas novas construções positi-
vistas à luz do Dworkin do Século XXI, através dos trabalhos mais

4
Positivismo jurídico e Discricionariedade judicial

recentes do autor, bem como de acordo com as novas teorias de


Neil MacCormick, um ex-positivista hoje bastante alinhado com
a teoria dworkiniana.
No Capítulo 3, apresentaremos o argumento de que a discri-
cionariedade judicial positivista é uma postura intrinsecamente
atrelada ao ceticismo filosófico. Faremos um retrospecto desde
Sócrates e Platão, mostrando como se dá o surgimento histórico
desta filosofia (ou “anti-filosofia”), assim como a forma com que
Aristóteles procede com a sua clássica refutação do ceticismo. Por
fim, apresentaremos quais são as implicações dessas considerações,
concernentes à refutação do ceticismo, para a (im)possibilidade de
fundamentação filosófica da discricionariedade judicial e para a
questão da possibilidade de respostas corretas no Direito.
O Capítulo 4, por fim, faz uma análise da discricionariedade
judicial à luz dos princípios e prerrogativas do Estado Democrá-
tico de Direito que se concretiza por meio do Constitucionalismo
Contemporâneo, bem como analisa a forma como o positivismo
jurídico sobrevive hoje na práxis judiciária brasileira.
Em síntese, o presente trabalho pretende fazer uma análise do
status acadêmico do positivismo jurídico contemporâneo, sob a
ótica de um princípio orientador claro e bem delimitado, qual seja,
a democracia – nos moldes do que dela se espera após as vastas
construções teóricas posteriores à Segunda Guerra Mundial.
Uma última observação, mas não menos importante: é funda-
mental ter em mente que as principais matrizes teóricas do presente
trabalho (a teoria interpretativa de Dworkin e a hermenêutica jurí-
dica como sustentada no Brasil por Streck) são teorias preocupadas
com a questão da democracia, com a realização dos direitos em sen-
tido amplo e com a eliminação da discricionariedade judicial – mas
isso não as torna teorias que se colocam “contra” os juízes. A crítica
à discricionariedade judicial não é uma crítica aos juízes: é uma crítica
a toda uma cultura jurídica – que forma advogados, promotores, de-

5
Henrique Abel

legados, juízes, etc. – que foi incapaz de superar a discricionariedade


enquanto herança do positivismo normativista de Kelsen e Hart.
O combate ao qual o presente trabalho se filia é um combate
contra uma cultura estabelecida de forma irrefletida, contra um es-
tado de coisas, e não – como se poderia imaginar de maneira equí-
voca – contra esta ou aquela categoria de operadores do Direito. A
prova disso é que, a cada dia que passa, mais magistrados vêm se
filiando a estes estudos críticos, combatendo a discricionariedade
judicial desde dentro da magistratura. A superação destes velhos
postulados positivistas passa, necessariamente, pela conscientização
da importância de uma postura crítica a ser adotada por parte não
apenas dos acadêmicos, mas também dos juristas de todas as áreas.

6
1. A clássica crítica de Dworkin
ao positivismo jurídico

1.1 Dworkin e o direito como integridade


O objetivo deste primeiro capítulo é examinar, de forma resu-
mida, os pontos principais da crítica dworkiniana ao positivismo
jurídico, a fim de melhor nos situarmos em relação aos anteceden-
tes históricos da situação atual do positivismo jurídico no plano
teórico e acadêmico.2
O norte-americano Ronald Dworkin (1931-2013) firmou-se
como um dos maiores jusfilósofos do século XX. Formado pelas
universidades de Harvard e Oxford, Dworkin foi associado a uma
firma de advocacia em Nova Iorque e foi professor na Universi-
dade de Yale entre 1962 e 1969, tendo siso também professor de
jurisprudência em Oxford por várias décadas. Membro da Acade-
mia Americana de Artes e Ciências, ele foi professor em Oxford
tanto da Escola de Direito quanto do Departamento de Filosofia.
O enorme respeito que obteve enquanto acadêmico foi decorrente

2 Embora se possa dizer que o núcleo da obra de Dworkin esteja contido em três de
seus livros (“Levando os Direitos a Sério”, “Uma Questão de Princípios” e “O Império
do Direito”), o breve resumo sobre sua teoria, da forma exposta neste capítulo, é
basicamente centrado em um artigo do autor (“É o Direito um Sistema de Regras?”)
e na obra “O Império do Direito”, que cronologicamente é o último dos três livros
supracitados. Portanto, qualquer ideia atribuída a Dworkin ao longo deste capítulo -
e que eventualmente não tenha sua fonte expressamente referida em nota de rodapé
- foi exposta e trabalhada pelo autor no livro “O Império do Direito” e no artigo “É o
Direito um Sistema de Regras?”.

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