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DIMA AS an OCIA OE mo a rata motes, a Caps ‘gy A. Notmanta Dingramacio ¢ ate-fnal Any A. Nomanta ukiko Ssito ISBN 85 08 03298 2 1990 ‘Todos os direitos reservados pela Editora Atica S.A. R. Barao de Iguape, 110 — Tel.: PABX 278.9322 C. Postal 8656 — End. Telegrafico “Bomlivro” — S. Paulo EM CADA LIVRO EU RENASCO Como voce definiria a mu- Iher Clerice Lispector? Sou um sor humano, Nao sou uma intelectual; sou mais saudvel do que muita gente pensa. Sou uma intuitive, uma sentidora. E, também,’ uma amadora. Sé escrevo quando impulsionada pela vontade. E por que vocé escreve? E seers tie agente entende 0 mundo, mais tim pouguinho do que nao es creven. Como é para voce esse misterioso ato de escrever? E un acide mei nebuo- sa porque a gente néo tem ai- reito consciéncia dela. Assim, eu sempre comeco tudo come se fosse pelo mero. Deus me ii- vre de comegar a escrever um livro desde a primeira linha. Eu vou juntando as notas. E de- pois vejo que umas tm cone- xd0 com as outras, e af descu- bro que 0 livro j8 esté pelo meio. Fale um pouco do seu mé- todo de trabalho. Tem gente que cose pra fora, eu coso pra dentro. Vou tomando noias. As vezes, acordo no meio da noite, ano- to uma frase e volto para a ca- ms. Sou capaz de escrever no ‘escuro num cinema, meu ca- desninho sempre na bolsa Para mir, fundo e forma 80 uma coisa sé. A frase sol ta jé me vem feita, mas néo gosio da fase posterior, do tra- Baiho que consiste em reunir esses pensamentos e idéias nascidos aos pedacos. Vocé se interessa pela rea- 0 que os seus livros provo. cam nos leitores? Depois de pubticedd o i wo, eu fico muito contente, quando as pessoas chegam Berto de mim e dizem que me entenderam. Ainda que seja uma compreensdo que néo ossa ser expressa por pala vras, Mas que seja aquilo que eu chamo de compreensao por cosmose, que passa de pele pa- ra pele. 3 Em cada livro meu, eu con- 10 tremendamente com a par- ticipagao do leitor. Algumas pessoas conside- ram que a literatura deva ser ‘comprometida com a realida- de. O que vocé acha disso? Eu omit a tteratura oo- ramente participante. Sendo faco isso & porque néo é do meu temperamento. A gente ‘85 pode fazer bem as coisas que sente realmente. Os meus livros no se preocuparn com as fatos em si, mas com a repercussdo deles nos indivi- duos. Isso tem muita importén- ofa para mim. E 0 que taco. Acho que, sob esse ponto dé vista, eu também faco livros compromeridos com 0 homem 0a realidade do homem, por- que realidade néo é fendmeno puramente externo. Durante muito tempo vocé escraveu crénicas para jornal. Fale um pouco desta ati dade. Nao se tazererénicas 0 que fiz, no jornal, foram textos de impress6es. Mas, como o tom era Jeve, ganhel uma popular~ dace, que considero falsa, pois ‘muitos dos leitores das minhas pseudosrinicas néo entende- vam meus tivros. Alguns nem chegaram a Ié-los, sob a alega- 50 de que eu era hermética, ‘Mas, agora, parece que as pe: Soas jd entendem esses me ‘mos livros. Pelo menos, é 0 que posso deduzir pelos ind- ‘meros telefonemas que rece- bo. Ea imprensa querendo me entrevistar, leitores /oucos pa- ra me comhecer, estudantes me cumprimentando. O que houve? Nao sei. Eu nfo mudes; 86 posse conoluir que as tem: pos mudaram. A literatura pode, de algu- ma forma, ajudar as pessoas? Toces 02 artis vvem no suo dooce, Tater a iherature Fosed fave o Worse entandar fmoinor 9 mesmo: Mes 100 E qual o papel da sua obra dentro da literatura brasileira? Neo sei cassitcer a minna obra, Em cada fivro eu renas- 0. E experimento 0 gosto do novo. Néo, eu nunca soube que era responsdvel pela reno- vagao. da literatura brasilel- 1a, sobretudo no conto. E, se isso aconteceu, foi involunte- rlamente, sem programacao. FELIZ ANIVERSARIO aA ilia foi pouco a pouco chegando. Os que vieram de Olaria estavam muito bem vestidos porque a vi- sita significava ao mesmo tempo um passeio a Copacaba- na. A nora de Olaria apareceu de azul-marinho, com en- feites de paetés e um drapejado disfarcando a barriga sem cinta. O marido nao veio por razGes dbvias: nfo queria ver 605 irmaos. Mas mandara sua mulher para que nem todos os lagos fossem cortados — e esta vinha com o seu melhor vestido para mostrar que nao precisava de nenhum deles, acompanhada dos trés filhos: duas meninas ja de peito nas cendo, infantilizadas em babados cor-de-rosa e anaguas en- gomadas, ¢ 0 menino acovardado pelo terno novo e pela gravata. Tendo Zilda — a filha com quem a aniversariante mo- tava — disposto cadeiras unidas ao longo das paredes, co- mo numa festa em que se vai dancar, a nora de Olaria, de- 28 pois de cumprimentar com cara fechada aos de casa, aboletou-se numa das cadeiras ¢ emudeceu, a boca em bi 0, mantendo sua posigdo de ultrajada. “Vim para nao dei- xar de vir", dissera ela a Zila, e em seguida sentara-se ofen- dida, As duas mocinhas de cor-de-rosa e o menino, amare los e de cabelo penteado, nao sabiam bem que atitude to- mar ¢ ficaram de pé ao lado da mae, impressionados com seu vestido azul-marinho e com os paetés. Depois veio a nora de Ipanema com dois netos ¢ a ba- ba. O marido viria depois. E como Zilda — a tnica mulher entre os seis irméos homens ¢ a tinica que, estava decidido J4 havia anos, tinha espaco e tempo para alojar a aniversa- tiante —, ¢ como Zilda estava na cozinha a ultimar com a empregada os croquetes ¢ sanduiches, ficaram: a nora de Olaria empertigada com seus filhos de coragio inquieto ao lado; a nora de Ipanema na fila oposta das cadeiras fingin- do ocupar-se com o bebé para ndo encarar a concunhada de Olaria; a baba ociosa e uniformizada, com a boca aberta. EA cabeceira da mesa grande a aniversariante que fa- zia hoje oitenta € nove anos. Zilda, a dona da casa, arrumara a mesa cedo, enchera-a de guardanapos de papel colorido e copos de papel alu- sivos a data, espalhara bal6es sugados pelo teto; em alguns estava escrito “Happy Birthday!”’, em outros “Feliz Ani- versario!”” No centro havia disposto o enorme bolo aguca- rado. Para adiantar o expediente, enfeitara a mesa logo de- pois do almogo, encostara as cadeiras & parede, mandara os meninos brincarem no vizinho para que nao desarrumas- sem a mesa. E, para adiantar 0 expediente, vestira a aniversarian- te logo depois do almoco. Pusera-lIhe desde entdo a presi- Iha em torno do pescogo ¢ o broche, borrifara-lhe um pou- co de dgua-de-colénia para disfarcar aquele seu cheiro de guardado — sentara-a a mesa. E desde as duas horas a ani- versariante estava sentada a cabeceira da longa mesa vazia, tesa na sala silenciosa. De vez em quando consciente dos guardanapos colo- ridos. Olhando curiosa um ou outro balio estremecer aos carros que passavam. E de vez em quando aquela anguistia muda: quando acompanhava, fascinada e impotente, 0 vo da mosca em torno do bolo. 29 Até que as quatro horas entrara a nora de Olaria e de- pois a de Ipanema. Quando a nora de Ipanema pensou que nao suporta- ria nem um segundo mais a situagdo de estar sentada de- fronte da concunhada de Olaria — que cheia das ofensas passadas no via um motivo para desfitar desafiadora a nora de Ipanema — entraram enfim José ¢ a familia. E mal cles se beijavam, a sala comecou a ficar cheia de gente, que rui- dosa se cumprimentava como se todos tivessem esperaco embaixo 0 momento de, em afobacdo de atraso, subir os trés lances de escada, falando, arrastando criangas surpreen- didas, enchendo a sala — e inaugurando a festa. Os muisculos do rosto da aniversariante nao a inter- pretavam mais, de modo que ninguém podia saber se cla estava alegre. Estava era posta a cabeceira. Tratava-se de uma velha grande, magra, imponente e morena. Parecia oca. — Citenta e nove anos, sim senhor! disse José, filho mais velho agora que Jonga tinha morrido. Oitenta ¢ nove anos, sim senhora! disse esfregando as maos em admira- do puiblica e como sinal imperceptivel para todos. Todos se interromperam atentos e olharam a aniver- sariante de um modo mais oficial. Alguns abanaram a ca- beca em admiragéio como a um recorde. Cada ano vencido pela aniversariante era uma vaga etapa da familia toda. Sim senhor! disseram alguns sorrindo timidamente. — Oitenta e nove anos! ecoou Manoel que era sécio de José. E um brotinho!, disse espirituoso e nervoso, e to- dos riram, menos sua esposa. ‘A velha nao se manifestava. Alguns nao Ihe haviam trazido presente nenhum, Ou- tros trouxeram saboneteira, uma combinacao de jérsei, um broche de fantasia, um vasinho de cactus — nada, nada que a dona da casa pudesse aproveitar para si mesma ou para seus filhos, nada que a propria aniversariante pudesse real- mente aproveitar constituindo assim uma economia: a do- na da casa guardava os presentes, amarga, irdnica. — Citenta e nove anos! repetiu Manoel aflito, olhan- do para a esposa. ‘A velha nao se manifestava. Entdo, como se todos tivessem tido a prova final de que ndo adiantava se esforcarem, com um levantar de om- 30 bros de quem estivesse junto de uma surda, continuaram a fazer a festa sozinhos, comendo os primeiros sanduiches de presunto mais como prova de animagao que Por apeti- te, brincando de que todos estavam morrendo de fome. O Ponche foi servido, Zilda suava, nenhuma cunhada ajudou propriamente, a gordura quente dos croquetes dava um chei- ro de piquenique; e de costas para a aniversariante, que nao podia comer frituras, eles riam inquietos. E Cordélia? Cor- délia, a nora mais moga, sentada sorrindo. — Nao senhor! respondeu José com falsa severidade, hoje no se fala em negécios! — Estd certo, esté certo! recuou Manoel depressa, olhando rapidamente para sua mulher, que longe estendia um ouvido atento, — Nada de negécios, gritou José, hoje é 0 dia da mae! Na cabeceira da mesa ja suja, os copos macullados, s6 © bolo inteiro — ela era a mae. A aniversariante piscou os olhos. E quando a mesa estava imunda, as maes enervadas com o barulho que os filhos faziam, enquanto as avés se recostavam complacentes nas cadeiras, entdo fecharam a uitil uz do corredor para acender a vela do bolo, uma ve- Ja grande com um papelzinho colado onde estava escrito “89°. Mas ninguém elogiou a idéia de Zilda, e ela se per- guntou angustiada se eles nao estariam pensando que fora Por economia de velas — ninguém se lembrando de que nin- guém havia contribuido com uma caixa de fésforos sequer para a comida da festa, que ela, Zilda, servia como uma escrava, os pés exaustos e 0 coracdo revoltado, Entao acen- deram a vela. E entdo José, 0 lider, cantou com muita for- a, entusiasmando com um olhar autoritério os mais he tantes ou surpreendidos, “‘Vamos! todos de uma yez!”? — € todos de repente comegaram a cantar alto como solda- dos. Despertada pelas vozes, Cordélia olhou esbaforida. Co- mo nao haviam combinado, uns cantaram em portugués e outros em inglés. Tentaram entdo corrigir: e 0s que haviam cantado em inglés passaram a portugues, e os que haviam cantado em portugues passaram a cantar bem baixo em inglés 31 Enguanto cantavam, a aniversariante, & luz da vela ace- sa, meditava como junto de uma lareira Escolheram o bisneto menor, que, debrugado no colo da mie encorajadora, apagou a chama com um tinico so- pro cheio de saliva! Por um instante bateram palmas 4 po- téncia inesperada do menino, que, espantado e exultante, olhava para todos encantado. A dona da casa esperava com 0 dedo pronto no comutador do corredor — e acendeu a lampada. — Viva mama! — Viva vovo! — Viva D. Anita, disse a vizinha que tinha aparecido. — Happy birthday! — gritaram os netos do Colégio Bennett. Bateram ainda algumas palmas ralas. A aniversariante olhava o bolo apagado, grande e seco, — Parta o bolo, vov6! disse a mae dos quatro filhos, & cla quem deve partir! Assegurou incerta a todos, com ar intimo e intrigante. E, como todos aprovassem satisfeitos e curiosos, ela se tornou de repente impetuosa: parta o bo- lo, vové! E de stibito a velha pegou na faca. E sem hesitacao, como se hesitando um momento ela toda caisse para a frente, deu a primeira talhada com punho de assassina. — Que forga, segredou a nora de Ipanema, ¢ ndo se sabia se estava escandalizada ou agradavelmente surpreen- dida. Estava um pouco horrorizada. — Um ano atris ela era capaz de subir essas escadas com mais folego do que eu, disse Zilda amarga. Dada a primeira talhada, como se a primeira pa de terra tivesse sido langada, todos se aproximaram de prato na mao, insinuando-se em fingidas acotoveladas de animacao, cada um para a sua pazinha, Em breve as fatias eram distribuidas pelos pratinhos, num siléncio cheio de rebuligo. As criancas pequenas, com a boca escondida pela mesa e os olhios ao nivel desta, acom- panhavam a distribuicdo com muda intensidade. As passas rolavam do bolo entre farelos secos. As criangas angustia- das viam se desperdigarem as passas, acompanhavam atentas a queda 32 E quando foram ver, nao é que a aniversariante jA es- tava devorando o seu iiltimo bocado? E por assim dizer a festa estava terminada. Cordélia olhava ausente para todos, sorria. — Ja lhe disse: hoje nao se fala em negécios! respon- deu José radiante. — Esta certo, esta certo! recolheu-se Manoel concilia- dor sem olhar a esposa que nao o desfitava. Esta certo, ten- tou Manoel sorrir e uma contragao passou-lhe rapido pe- os masculos da cara. — Hoje é dia da mae! disse José. Na cabeceira da mesa, a toalha manchada de coca-cola, © bolo desabado, ela era a me. A aniversariante piscou Eles se mexiam agitados, rindo, a sua familia. E ela era a mae de todos, E se de repente no se ergueu, como um morto se levanta devagar e obriga mudez e terror aos vivos, a aniversariante ficou mais dura na cadeira, e mais alta, Ela era a mae de todos. E como a presilha a sufocas- se, ela era a mae de todos e impotente a cadeira, desprezava- os. E olhava-os piscando. Todos aqueles seus filhos e ne- tos ¢ bisnetos que ndo passavam de carne de seu joelho, pen- sou de repente como se cuspisse. Rodrigo, o neto de sete anos, era 0 tinico a ser a carne de seu corac&o. Rodrigo, com aquela carinha dura, viril e despenteada, cadé Rodri 0? Rodrigo com olhar sonolento ¢ intumescido naquela ca- becinha ardente, confusa. Aquele seria um homem. Mas, piscando, ela olhava os outros, a aniversariante. Oh o des- prezo pela vida que falhava. Como?! como tendo sido tio forte pudera dar a luz aqueles seres opacos, com bragos mo- les e rostos ansiosos? Ela, a forte, que casara em hora e tem- po devido com um bom homem a quem, obediente e inde- pendente, a respeitara; a quem respeitara e que Ihe fizera filhos e Ihe pagara os parios, lhe honrara os resguardos. O tronco fora bom. Mas dera aqueles azedos ¢ infelizes fru- tos, sem capacidade sequer para uma boa alegria, Como pudera ela dar a luz aqueles seres risonhos fracos, sem aus- teridade? O rancor roncava no seu peito vazio. Uns comu- nistas, era o que eram; uns comunistas. Olhou-os com sua célera de velha. Pareciam ratos se acotovelando, a sua fa- mila, Incoereivel, virou a eabeca e com forca insuspeita cus- piu no chao, 33 — Mamée! gritou mortificada a dona da casa. Que é isso, mame! gritou ela, passada de vergonha, e nao que- ria sequer olhar os outros, sabia que 0s desgracados se en- treolhavam vitoriosos como se coubesse a ela dar educago Avvelha, ¢ ndo faltaria muito para dizerem que ela ja néio dava mais banho na mae, jamais compreenderiam o sacri- ficio que ela fazia. — Mamée, que é isso! disse baixo, an- gustiada, A senhora nunca fez isso! acrescentou alto para que todos ouvissem, queria se agregar ao espanto dos ou- tros, quando o galo cantar pela terceira vez renegaras tua mée, Mas seu enorme vexame suavizou-se quando ela per- cebeu que cles abanayam a cabeca como se estivessem de acordo com a velha, ndo passava agora de uma crianca. — Ultimamente ela deu pra cuspir, terminou entao confessando contrita para todos. ‘Todos olharam a aniversariante, compungidos, respei tosos, em siléncio. Pareciam ratos se acotovelando, a sua familia. Os me- ninos, embora crescidos — provavelmente jé além dos cin qiienta anos, que sei eu! —, 05 meninos ainda conservavam ‘0s tracos bonitinhos. Mas gue mulheres haviam escolhido! E que mulheres os netos — ainda mais fracos ¢ mais aze- dos — haviam escolhido. Todas vaidosas e de pernas finas, com aqueles colares falsificados de mulher que na hora nao agiienta a mo, aquelas mulherzinhas que casavam mal os filhos, que nao sabiam pér uma criada em seu lugar, ¢ to- das elas com as orelhas cheias de brincos — nenhum, ne-~ nhum de ouro! A raiva a sufocava. — Me da um copo de vinho! disse. Osiléncio se fez de siibito, cada um com 0 copo imo- bilizado na mao. — Vovozinha, nao vai lhe fazer mal? insinuou caute- losamente a neta rolica e baixinha. E : — Que vovozinha que nada! explodiu amarga a ani- versariante. Que o diabo vos carregue, corja de maricas, cornos e vagabundas! Me da um copo de vinho, Dorothy!, ordenou, Dorothy nao sabia o que fazer, olhou para todos em pedido cémico de socorro. Mas, como méscaras isentas inapelaveis, de stibito nenhum rosto se manifestava. A fes~ ta interrompida, os sanduiches mordidos na mao, algum pe- 34 daco que estava na boca a sobrar seco, inchando tao fora de hora a bochecha. Todos tinham ficado cegos, surdos e mudos, com croquetes na mao, E olhavam impassiveis. Desamparada, divertida, Dorothy deu 0 vinho: astu- ciosamente apenas dois dedos no copo. Inexpressivos, pre- parados, todos esperaram pela tempestade. Mas nao s6 a aniversariante nao explodiu com a misé- ria de vinho que Dorothy Ihe dera, como nao mexeu no copo. Seu olhar estava fixo, silencioso como se nada tivesse acontecido, Todos se entreolharam polidos, sorrindo cegamente, abstratos como se um cachorro tivesse feito pipi na sala. Com estoicismo, recomecaram as vozes e risadas. A nora de Olaria, que tivera 0 seu primeiro momento unissono com 0 outros quando a tragédia vitoriosamente parecia prestes a se desencadear, teve que retornar sozinha A sua severida- de, sem ao menos 0 apoio dos trés fillhos que agora se mis- turavam traidoramente com os outros. De sua cadeira re- clusa, ela analisava critica aqueles vestidos sem nenhum mo- delo, sem um drapejado, a mania que tinham de usar vesti- do preto com colar de pérolas, 0 que nao era moaa coisa nenhuma, nao passava era de economia, Examinando dis- tante 0s sanduiches que quase nao tinham levado mantei- ga. Ela no se servira de nada, de nada! Sé comera uma coisa de cada, para experimentar. E por assim dizer, de novo a festa estava terminada. As pessoas ficaram sentadas benevolentes, Algumas com a atencio voltada para dentro de si, & espera de algu- ma coisa a dizer. Outras vazias ¢ expectantes com um sor- riso amével, o est6mago cheio daquelas porcarias que néio alimentavam mas tiravam a fome. As criangas, jé incon- trolaveis, gritavam cheias de vigor. Umas ja estavam de cara imunda; as outras, menores, jd molhadas; a tarde caia ra- pidamente. E Cordélia? Cordélia olhava ausente, com um sorriso estonteado, suportando sozinha o seu segredo. Que € que ela tem? alguém perguntou com uma curiosidade ne- gligente, indicando-a de longe com a cabega, mas também no responderam. Acenderam o resto das luzes para preci- pitar a tranqiiilidade da noite, as criancas comecavam a bi gar, Mas as luzes eram mais palidas que a tensao palida da 35 tarde. E 0 crepisculo de Copacabana, sem ceder, no en- tanto se alargava cada vez mais ¢ penetrava pelas janelas como um peso. —Tenho que ir, disse perturbada uma das noras levantando-se e sacudindo os farelos da saia. Varios se er- gueram sorrindo. A aniversariante recebeu um beijo cauteloso de cada um como se sua pele t20 infamiliar fosse uma armadilha. E, impassivel, piscando, recebeu aquelas palavras proposi- tadamente atropeladas que lhe diziam tentando dar um fi- nal arranco de efusdo ao que nao era mais senao pasado: a noite jé viera quase totalmente. A luz da sala parecia en- to mais amarela e mais rica, as pessoas envelhecidas. As criangas j4 estavam histéricas. — Serd que ela pensa que o bolo substitui o jantar, indagava-se a velha nas suas profundezas, ‘Mas ninguém poderia adivinhar o que ela pensava. E para aqueles que junto da porta ainda a olharam uma vez, a aniversariante era apenas o que parecia ser: sentada & ca- beceira da mesa imunda, com a mao fechada sobre a toa- Iha como encerrando um cetro, ¢ com aquela mudez que era a sua ultima palavra. Com um punho fechado sobre a mesa, nunca mais ela seria apenas 0 que ela pensasse. Sua aparéncia afinal a ultrapassara ¢, superando-a, se agigan- tava serena. Cordélia olhou-a espantada. O punho mudo € severo sobre a mesa dizia para a infeliz nora que sem re- médio amava talvez pela tiltima vez: E preciso que se sai- ba. E preciso que se saiba. Que a vida é curta. Que a vida écurta. Porém nenhuma vez mais repetiu. Porque a verdade era um relance. Cordélia olhou-a estarrecida. E, para nun- ca mais, nenhuma vez repetiu — enquanto Rodrigo, o neto da aniversariante, puxava a mao daquela mae culpada, per- plexa e desesperada que mais uma vez olhou para trés im- plorando & velhice ainda um sinal de que uma mulher de- ve, num impeto dilacerante, enfim, agarrar a sua derradei ra chance e viver. Mais uma vez Cordélia quis olhar. Mas a esse novo olhar — a aniversariante era uma ve- tha a cabeceira da mesa. Passara o relance. E arrastada pela mao paciente e in- sistente de Rodrigo, a nora seguiu-o espantada. 36 — Nem todos tém o privilégio e 0 orgulho de se reu- nirem em torno da mie, pigarreou Jos¢ lembrando-se de que Jonga é quem fazia os discursos. — Da mie, virgula! riu baixo a sobrinha, e a prima ‘mais Jenta riu sem achar graca. — Nos temos, disse Manoel acabrunhado sem mais olhar para a esposa. Nés temos esse grande privilégio, dis- se distraido enxugando a palma timida das maos. ‘Mas nao era nada disso, apenas o mal-estar da despe- dida, nunca se sabendo ao certo o que dizer, José esperan- do de si mesmo com perseveranea e confianca a proxima frase do discurso. Que nao vinha, Que nao vinha. Que nao vinha. Os outros aguardavam. Como Jonga fazia falta nes- sas horas — José enxugow a testa com o lengo —, como Jonga fazia falta nessas horas! Também fora o tinico a quem a velha sempre aprovara e respeitara, e isso dera a Jonga tanta seguranca. E quando ele morrera, a velha nunca mais falara nele, pondo um muro entre sua morte ¢ os outros. Esquecera-o talvez. Mas ndo esquecera aquele mesmo olhar firme e direto com que desde sempre olhara os outros fi- hos, fazendo-os sempre desviar os olhos. Amor de mae era duro de suportar: José enxugou a testa, herdico, risonho. E de repente veio a frase: — Atéo ano que vem! disse José subitamente com ma- licia, encontrando, assim, sem mais nem menos, a frase cer- ta: uma indireta feliz! Até 0 ano que vem, hein?, repetiu com receio de nao ser compreendido. Othou-a, orgulhoso da artimanha da velha que esper- tamente sempre vivia mais um ano. — No ano que vem nos veremos diante do bolo ace- so! esclareceu melhior o filho Manoel, aperfeigoando 0 es- irito do sécio. Até 0 ano que vem, mamée! e diante do bolo aceso! disse ele bem explicado, perto de seu ouvido, enquanto olhava obsequiador para José. E a velha de stibi- to cacarejou um riso frouxo, compreendendo a alusao. Entdo ela abriu a boca e disse: — Pois Estimulado pela coisa ter dado to inesperadamente certo, José gritou-lhe emocionado, grato, com os olhos imidos. — No ano que vem nos veremos, mamae! 37 — Nao sou surda! disse a aniversariante rude, aca- rinhada. Os filhos se olharam rindo, vexados, felizes. A coisa tinha dado certo. As criancas foram saindo alegres, com 0 apetite estra- gado. A nora de Olaria deu um cascudo de vinganca no fi- Iho alegre demais e ja sem gravata. As escadas eram difi- ceis, escuras, incrivel insistir em morar num prediozinho que seria fatalmente demolido mais dia menos dia, e na aco de despejo Zilda ainda ia dar trabalho e querer empurrar a velha para as noras — pisado o tiltimo degrau, com ali- vio os convidados se encontraram na tranqitilidade fresca da rua. Era noite, sim. Com o seu primeiro arrepio. ‘Adeus, até outro dia, precisamos nos ver. Aparecam, disseram rapidamenté. Alguns conseguiram olhar nos olhos dos outros com uma cordialidade sem receio. Alguns abo- toavam os casacos das criancas, olhando 0 céu & procura de um sinal do tempo. Todos sentindo obscuramente que na despedida se poderia talvez, agora sem perigo de com- promisso, ser bom e dizer aquelapalavra a mais — que pa- lavra? Eles ndo sabiam propriamente, e olhavam-se sorrin- do, mudos. Era um instante que pedia para ser vivo. Mas que era morto. Comecaram a se separar, andando meio de costas, sem saber como se desligar dos parentes sem brus- quidao. — Até o ano que vem! repetiu José a indireta feliz, acenando a mo com vigor efusivo, os cabelos ralos ¢ bran cos esvoacavam, Ele estava era gordo, pensaram, precisa- va tomar cuidado com 0 corago. Até 0 ano que vem! gri- tou José elogiiente e grande, e sua altura parecia desmoro- navel. Mas as pessoas ja afastadas ndo sabiam se deviam rir alto para ele ouvir ou se bastaria sorrir mesmo no escu- ro. Além de alguns pensarem que felizmente havia mais do que uma brincadeira na indireta e que s6 no préximo ano seriam obrigados a se encontrar diante do bolo aceso; en- quanto que outros, j4 mais no escuro da rua, pensavam se a velha resistiria mais um ano ao nervoso a impaciéncia de Zilda, mas eles sinceramente nada podiam fazer a res- peito: “Pelo menos noventa anos”, pensou melancélica a nora de Ipanema. “Para completar uma data bonita’, pen- sou sonhadora. 38 Enquanto isso, 4 em cima, sobre escadas e contingén- cias, estava a aniversariante sentada a cabeceira da mesa, erecta, definitiva, maior do que ela mesma. Sera que hoje no vai ter jantar, meditava ela. A morte era o seu mistério, 39

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