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ROSVITA DE GANDERSHEIM

Apontamentos sobre sua vida, obra,


e possíveis paralelos com o pensamento de Georges Bataille

Wilson Avilla1

Resumo: Neste artigo são apresentados apontamentos sobre a vida e obra de


Rosvita de Gandersheim, mística medieval, considerada como precursora da escrita
mística medieval feminina. O estabelecimento de prováveis paralelos literários e
conceituais entre dois autores tão distintos – Rosvita de Gandersheim e George
Bataille - no tempo e nos propósitos de seus escritos, é buscado preliminarmente pela
aproximação de trechos de inspiração erótica na obra da primeira, com os conceitos
de erotismo como coesão do espírito humano do segundo.

Abstract: This article presents notes on the life and work of Rosvita de Gandersheim,
medieval mystic, considered as a precursor of medieval female mystical writing. The
establishment of probable literary and conceptual parallels between two such distinct
authors - Rosvita de Gandersheim and George Bataille - in the time and purpose of
their writings, is sought preliminarily by the approximation of excerpts of erotic
inspiration in the work of the former, with the concepts of eroticism as cohesion of the
human spirit of the second.

Palavras-chave: Mística – Feminino – Rosvita - Bataille

Introdução

Ser alma feminina em uma época em que não lhe cabia o dom de pregar,
ensinar ou escrever, é algo que hoje causa espanto, não só pelas diferenças culturais,
mas pelo caráter de rompimento com o contexto de seu tempo, e ainda,
principalmente, pela enfática paixão pelo divino. Assim, as vozes e escritas dessa
alma, ou dessas almas, pensando na pluralidade de figuras que a compõem, soam
como uma espécie de transgressão, afirma Nogueira. Aliás, diz ela, uma tripla
transgressão: uma transgressão de gênero (mesmo que não deva ter o peso do
sentido moderno do termo); uma transgressão contra a ortodoxia da Igreja (quando
criticam explicitamente ou veladamente alguns dos seus hábitos) e uma transgressão

1Bacharel em Música, Bacharel em Direito, Mestre em Educação, Arte e História da Cultura. Doutorando em
Ciências da Religião.
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dos limites da relação entre o humano e o divino (quando a alma e Deus se tornam
um só). (NOGUEIRA, 2015, p. 91)
O que a Igreja disse sobre as mulheres rapidamente se tornou o modo
como eram vistas pelas pessoas comuns, que por sua vez moldaram as expectativas
que a sociedade medieval tinha para as mulheres. (JUST, 2014, p. 3) Nisso estava
incluído o conceito de sexo como pecado, que foi solidificado no final do século XV,
lembra Just, com a publicação de todo um sistema de literatura penitencial que
abordava pecados sexuais. O Sínodo da Grã-Bretanha do Norte e o Prefácio de St.
Gildas em Penitência estavam focados principalmente em lidar com os pecados dos
monges e do clero, outros sínodos e publicações, no entanto, eram mais gerais,
aplicando-se às pessoas comuns tanto quanto para líderes religiosos. A Igreja
Medieval geralmente via as mulheres como inerentemente mais fracas que os
homens. Como o filósofo Philo ensinou, “o homem era superior à fêmea porque
representava as partes mais racionais da alma, enquanto a fêmea representava as
menos racionais” (BULLOUGH, 188 apud JUST, 2014, p. 3). Assim, embora homens
e mulheres experimentassem luxúria, eram as mulheres que geralmente eram
rotuladas como incapazes de se controlar. Em sua fraqueza, na visão daquele tempo,
elas levaram os homens ao pecado, prejudicando não apenas sua própria salvação,
mas também a da sociedade masculina. (JUST, 2014, p. 3)
Duby já decretou a Idade Média como uma “Idade dos homens”, segundo
Dabat. Ela aponta outros autores, de várias correntes historiográficas, como Régine
Pernoud, Caroline Walker Bynum, e Eileen Power, para citar apenas essas, que
insistem, no entanto, nas posições diversas, múltiplas e de destaque ocupadas por
mulheres em variados âmbitos sociais no período medieval. (DABAT, p. 21) Ela
também pontua que

não é por ser dominada socialmente, e cada vez mais acuada à invisibilidade
dos oprimidos, que nosso ofício de historiador/ra possa prescindir de atribuir,
na grande paisagem histórica, o devido espaço que cabe à metade feminina
da população: quando certas mulheres atingem níveis de reconhecimento
social e capacidade de atuar que lhes garantem presença, mesmo tímida,
nas fontes, que sejam resgatadas todas as facetas descritíveis dessa
participação à vida da sociedade medieval; quando não é o caso – as
camponesas, por exemplo - que o vazio correspondente inscrito na tapeçaria
da historiografia esteja na dimensão exata de sua presença efetiva no
passado. (DABAT, p. 52)
3

Nos últimos 40 anos há uma publicação ampla sobre o período de 330-


1500, especialmente por mulheres cientistas, a partir de uma perspectiva feminista.
Elas mostraram que a influência das mulheres na vida social, política, religiosa e
econômica nesse período foi bastante forte. Desde o século XI mulheres se
distinguiram pela auto-definição, auto-representação e auto-autorização, incluindo a
esfera. (TROCH, 2013, p. 2)
Ainda citando Martins, o desenvolvimento dos estudos medievalistas no
século XX jogou luz alentadora sobre uma época histórica acerca da qual se formulam
marcadamente juízos equivocados e análises simplistas, pautados em generalizações
descaracterizadoras e apropriações indébitas, tão ao gosto do senso-comum - avesso
à precisão dos conceitos e à multiplicidade do real -, que tende a se apoiar em um
apriorismo homogeneizante, diluidor de contornos e rasurador de diferenças.
(MARTINS, 2011, p. 2)
No escopo dos estudos de literatura através do corpo – religião e erotismo
em escrita feminina, Capelli2 destaca que interessa pensar como e porque essas
mulheres exploram o elemento erótico como motivo poético liberando o desejo e
desestabilizando as representações divinas.3
Por tal razão, a história dessa escrita feminina não deve ser lida apenas
como a história de uma transgressão, nos termos do que se menciona nas primeiras
linhas deste estudo, já que se pode extrair dos seus textos também a reescrita de uma
paixão. Interessa também considerar a importância das contribuições dadas por
mulheres que, com sua tenacidade e perspicácia, e porque não dizer, subversão,
mudaram o curso da humanidade. É pensando em tal domínio que este texto busca
também demonstrar que, em sentido amplo, ao contrário do que se pensa, houve
mulheres pensadoras e escritoras na Idade Média, e que estas desempenharam
papéis importantes num universo dominado por homens.
Capelli ensina também que as visões que se traduziam em escritos
extravagantes e reflexões poéticas com teor erótico, para além da doutrinação e da

2 Márcio Capelli, docente da disciplina Teologia e Cultura, do Curso de Doutorado em Ciências da Religião da
Universidade Metodista de São Paulo.
3 Plano de aula da disciplina Teologia e Cultura, do Curso de Doutorado em Ciências da Religião da Universidade
Metodista de São Paulo – Tema: Literatura através do corpo: religião e erotismo em escrita feminina. Prof. Marcio
Capelli Aló Lopes. Primeiro semester de 2020.
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racionalidade, orientavam-se para um novo modo de vida, diferenciado do


patriarcalismo eclesiástico.4
Um componente interessante, e até peculiar, na análise desse contexto é
que as mulheres liam mais que os homens na Idade Média. Leitura e escrita eram
quase que exclusivamente realizadas por mulheres. Elas ensinaram meninas e
meninos nos mosteiros. Várias dessas mulheres postularam-se como profetisas e
fizeram notáveis afirmações teológicas. Curiosamente, entretanto, o que elas
proclamaram não é geralmente definido como teologia, mas como mística – uma
linguagem alegórica, de visões, poética, um modo de vida e espiritualidade, mas
também uma reformulação teológica da divindade.
Podemos dizer que a mística feminina pode ser definida por um movimento
feito por mulheres que buscavam o divino a partir da união das instâncias
afetivas e intelectivas, às vezes acompanhado de visões (como em Hildegard
von Bingen e Hadewijch d’Anvers), outras vezes seguido apenas por uma
intensa reflexão (como em Marguerite Porete). (NOGUEIRA, 2015, p. 94)

Nesse contexto, é comum que figuras como Marguerite Porete (1250-


1310), Hildegard von Bingen (1098-1179), citadas por Nogueira, principalmente, e
outras, sejam emblemáticas, e tidas como precursoras. Mas, antes delas, uma
personagem quase solitária nessa trajetória, figura no século X como verdadeira
antecessora da ousadia literária atribuída a mulheres medievais e sua escrita
teoerótica: Rosvita de Gandersheim.
Pelo já exposto, Just afirma que era melhor que as mulheres fossem
invisíveis e se concentrassem em controlar seus impulsos sexuais através do celibato.
(JUST, 2014, p. 8) Ainda que Rosvita não tivesse os arroubos de escrita erótica de
suas semelhantes que viveram mais à frente de seu tempo, é possível observar em
sua criação literária o desconforto com a descrição do que lhe parece transgredir seus
códigos morais, na intenção de ensinar os postulados que o constituíam.

1. Dados biográficos

4Plano de aula da disciplina Teologia e Cultura, do Curso de Doutorado em Ciências da Religião da Universidade
Metodista de São Paulo – Tema: Literatura através do corpo: religião e erotismo em escrita feminina. Prof. Marcio
Capelli Aló Lopes. Primeiro semester de 2020.
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Rosvita de Gandersheim foi a primeira mulher poetisa de origem


germânica, e considerada por alguns estudiosos como a primeira dramaturga dos
tempos antigos. Filha do duque Henrique da Baviera e sobrinha do Imperador Otto I.
As várias grafias de seu nome incluem Hroswitha, Hrosvit, Hroswitha e
Roswitha, mas pesquisas recentes indicam que a grafia que ela usou foi Hrotsvit,
derivada das palavras saxônicas que traduziam para o Clamor Validus, em latim
("Forceful Testimony" em inglês), uma referência à sua autoria de histórias sobre o
cristianismo e seus santos.
Nascida por volta de 935, e falecida em data próxima do ano 1000, foi uma
das poucas mulheres que, naquela época, se distinguiram pela cultura e refinamento.
Pouco depois de completar vinte anos, entrou para um convento beneditino
em Gandersheim, que era um importante centro cultural, onde eram copiados livros
antigos, e que tinha a proteção real, só aceitando noviças de ascendência nobre.
Em Gandersheim, foi aluna da abadessa Gerbig, sobrinha de Otto, o
Grande, o patrono do convento. Vale ressaltar o que Dawson registra sobre tais
instituições.
Por todo esse período de trevas, os monastérios salvaram a cultura cristã e
o modo de vida cristão. A abadia era o microcosmo da cultura cristã –
educação e erudição, livros e escrita, música e liturgia, arte e arquitetura. Tal
cultura foi capaz de sobreviver porque não buscou impor-se nas sociedades
guerreiras bárbaras que circundavam as abadias. Necessitavam de nada
mais do que aquilo que São Bento propusera na Regra – um afastamento dos
afazeres seculares e uma vida de contínuo trabalho e oração e também de
estudo, caso fosse possível. (DAWSON, 2014, p. 289)

Acredita-se que Rosvita seja descendente da nobreza germânica, embora


procurasse se retratar como uma mulher de grande humildade, uma “mulher obscura”,
uma “freira pobre”, que “pela graça do Criador adquiriu um pouco de conhecimento
das artes”. No entanto, ela mesma se auto proclamava “a voz forte da abadia de
Gandersheim”. Por isso, embora procurasse se autorretratar como uma mulher
humilde, o que era típico das mulheres místicas medievais, Rosvita era conhecida
como “a voz forte da abadia de Gandersheim”. Foi canonisa, eleita abadessa desse
mesmo mosteiro beneditino.
Alguns entendem que Rosvita não era propriamente uma monja, mas uma
cônega, o que significa dizer que as cônegas da mencionada abadia, diferentemente
das monjas, faziam votos de castidade e obediência, mas não de pobreza, de forma
que podiam dispor e administrar seus bens, fato que as mantinha em uma rotina mais
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dinâmica com o mundo exterior, diferentemente do enclausuramento exigido as outras


religiosas. Isso fazia com que Rosvita, oriunda da classe nobre, mantivesse contato
com a Corte e com os meios intelectuais do seu tempo, com quem dialogava.
No mosteiro de Gandersheim, que tinha uma grande biblioteca, sob a
orientação de Rikkardis, que ela cita como grande mestra, e da
abadessa Gerberga, Rosvita recebeu uma boa educação, tendo lido os clássicos da
Antiguidade.
A esse respeito diz López que os grandes mosteiros da Alemanha, no
século X, inclusive Gandersheim, estavam repletos de obras de autores clássicos,
personalidades literárias e autores culturais reconhecidos, que desempenharam um
papel importante na formação das mulheres nobres e das religiosas que frequentavam
os mosteiros da Alemanha” (BOVOLIM; OLIVEIRA, 2012, p. 1007 apud COSTA, 2017,
p. 2).
“educar-se, atuar como educadora e tornar-se conhecida por sua produção
literária, tanto no campo religioso como secular. E pertencer a um grupo de
mulheres e monjas medievais detentoras do conhecimento, situação pouco
comum na época” (BOVOLIM; OLIVEIRA, 2012, p. 1007 apud COSTA, 2017,
p. 2).

2. Obra

A fonte primária de seus escritos é o Codex Bayerische Staatsbibliothek


(Munique, Alemanha), manuscrito que contém oito lendas métricas dos santos, seis
peças e dois épicos históricos. O documento foi escrito por várias mãos em
Gandersheim no final do século X, e início do XI. Foi descoberto pelo
humanista Conrad Celtis em 1493-1494, na abadia de San Emerano em Ratisbona,
que o editou por ordem do Príncipe eleito de Sajonia, Frederico III.
Suas obras revelam algo de sua personalidade - ela escreveu em total sigilo
até terminar, sem confiar em ninguém - e são evidências de uma educação
surpreendentemente boa no século X.
As obras editadas por Conrad Celtes, em 1501, consistiam em lendas
métricas, dramas, problemas históricos e épicos.
Os trabalhos de Rosvita, principalmente em tom didático e moralista,
mostram pouca compreensão da estrutura dramática. Apesar de toda a promessa de
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mais aulas da antiguidade clássica que exibiam, seus escritos foram aparentemente
negligenciados na Idade Média e sem influência antes do Renascimento. Nos últimos
tempos, seus trabalhos foram traduzidos e as adaptações modernas de suas peças
receberam desempenho limitado.5
Seus poemas históricos fornecem material valioso para o início da história
alemã. Influenciada por Terêncio, escreveu em latim peças teatrais nas quais
apresentava figuradamente questões teológicas, a fim de difundir a doutrina cristã. O
tema do martírio mereceu destaque, sendo o foco central da peça Sabedoria,
ambientada no tempo do imperador romano Adriano.
Em latim, ela escreveu oito lendas, seis peças de teatro e dois épicos.
Rosvita criou as lendas a partir das Escrituras Sagradas, dos Evangelhos
apócrifos ou de histórias de vidas de santos. As peças de teatro foram escritas a partir
do modelo do escritor romano Terêncio, que também escreveu seis peças. Eles tratam
da vitória da fé e da pureza sobre o poder e a sedução. Trata-se de comédias morais:
Gallicanus (Galicano), Dulcitius (Dulcício), Callimachus (Calímaco), Abraham,
(Abraão), Paphnutius (Pafnúcio) e Sapientia (Sabedoria).
Não se sabe se tais esboços dramáticos foram alguma vez representados,
se ela os escreveu apenas como exercício literário, utilizado apenas para a distração
de suas companheiras do convento ou se tiveram um público maior, com uma
encenação propriamente dita.
Os escritos de Rosvita de Gandersheim dão provas de que ela estava
familiarizada com as obras dos Pais da Igreja, como Santo Agostinho, e com a poesia
clássica, ainda em vigor na época dela, incluindo as obras de Virgílio, Horácio, Ovídio,
Terêncio e outros, que são citados em suas obras. Costa registra que na
comédia Sabedoria, por exemplo, que narra o martírio das santas virgens Fé,
Esperança e Caridade, supostamente acontecido no tempo do Imperador romano
Adriano, a personagem principal - a mãe Sabedoria - é apresentada como uma mulher
extremamente sábia que, além de ministrar a educação religiosa cristã, transmite,
também, conceitos importantes para a formação intelectual laica, como, por exemplo,
da matemática. (COSTA, 2017, p. 2)

5https://www.encyclopedia.com/religion/encyclopedias-almanacs-transcripts-and-maps/roswitha-gandersheim,
visualizado em 02/06/2020, à 16:25 h.
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Os relatos de Rosvita apontam sempre para o esplendor no novo reino


cristão e seu líder, tendo a poetisa uma profunda compreensão dos problemas do
mundo e da alma humana.
Ela coloca os vilões e espertalhões de Terêncio ao lado de sagradas
virgens, mártires e piedosos eremitas, que contribuem para a sua edificação. Os
protagonistas sempre ganham a disputa contra os bem aparentados pagãos ou a luta
contra os vícios do mundo. Suas tentativas de criar dramas cristãos na Alemanha
ficaram sem continuação até o humanismo.
Rosvita dividiu seus próprios trabalhos em três manuscritos: Livro das
Lendas, Livro do Drama e Epopéias (datas incertas). As lendas e peças ainda
existem, mas os dois trabalhos incluídos em Epics estão perdidos.
Uma outra divisão, demonstrada por Costa, compreende:
a) Poemas (religiosos e épicos)
i. poemas religiosos (em número de oito) em versos leoninos: um
versa sobre a Virgem Maria (a partir do evangelho apócrifo de São
Tiago, o irmão de nosso Senhor), outro sobre a Ascensão do Senhor
e os outros seis sobre as vidas de alguns santos (Gandolph, Pelágio,
Theophilus, Basilius, Denis, Agnes) (Cf. REINHARDT, 1999, p. 602).
Esses poemas parecem ter sido projetados para leitura em voz alta
ou a recitação pelas monjas do mosteiro, ou seja, como instrumento
educacional, o que era uma novidade na época, pois antes, durante
os primeiros séculos da Idade Média, o teatro, nomeadamente
aquele de cunho cômico, foi condenado pela Igreja, o que levou o
comentador Fernando Peixoto a dizer que “a princípio a Igreja proíbe
o teatro e ameaça os atores com o fogo do inferno, mas logo em
seguida passa a utilizá-lo como celebração religiosa ou
ensinamento” (PEIXOTO apud CAETANO, 2011, p. 165 apud
COSTA 2017, p. 2).
ii. os poemas épicos, que são histórias rimadas, um dos quais a vida
do Imperador Otto I, por isso intitulado Gesta Ottonis (As obras de
Otto). É também chamado de Panagyric Ottonum, e foi apresentado
pela autora em 968, ao mesmo tempo ao velho Imperador e ao seu
filho (então já coroado como) Otto II. Segundo Giovanni Isabella,
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“trata-se de um poema épico com cerca de 1500 versos, que se


propõe a recontar as ações políticas e militares (esse o sentido
próprio do termo gesta) de Otto I da Sassonia” (ISABELLA, 2007, p.
34 apud COSTA 2017, P. 2).
iii. as comédias, dramas ou peças (em número de seis), de cunho
moral, que tratam da vitória da fé e da pureza sobre o poder e a
sedução: Gallicanus (Conversão de Galicano, general dos
exércitos); Dulcitius (Dulcício ou Martírio das santas virgens Ágape,
Quiônia e Irene – que simbolizam respectivamente a Caridade,
a Pureza e a Paz); Callimachus (Ressurreição de Drusiana e
Calímaco); Abraham (Caída e conversão de Maria, sobrinha do
eremita Abraão);Paphnutius (Conversão da meretriz Taíde) e
Sapientia (Martírio das virgens santas: Fé, Esperança e
Caridade)[9]. Tais comédias tomam como modelo as comédias de
Terêncio, o dramaturgo romano cujas obras, em tom de irreverência
e humor, foram escritas entre os anos 170-160 aC.
iv. prosas, que são crônicas, como o De primordiis et fundatoribus
coenobii Gandersheimensis (Sobre os primórdios e os fundadores
do mosteiro de Gandersheim), em que narra a história de sua
abadia, desde as origens até o ano 919. (COSTA, 2017, pp. 2-3)

3. Características da obra

Rosvita de Gandersheim, como já mencionado, sofreu influência do


dramaturgo romano Terêncio, considerado o “introdutor dos sentimentos e da análise
psicológica na comédia” (SOEIRO, 2006, p. 41 apud MARTINS, 2011, p. 10), e autor
que se dedicou a “captar o espírito dos originais gregos praticamente sem nenhuma
concessão ao gosto popular” (SOEIRO, 2006, p. 43 apud MARTINS, 2011, p. 10),
sendo considerado, portanto, “um modelo latino de pureza de estilo”, e, também por
isto, “o único dramaturgo tolerável para os clérigos medievais da Europa Ocidental”
(GASSNER, 2002, p. 114-115 apud MARTINS, 2011, p. 10).
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A maioria dos escritos de Rosvita narra a vida dos mártires, louvando


aqueles que levam vidas ascéticas, renunciando a suntuosas refeições, bens
materiais e prazer sexual na busca de objetivos
espirituais. Os épicos perdidos compreendiam uma história sobre a vida de Otto I, o
rei dos alemães e do sagrado imperador romano que viveu de 912 a 973, e uma
história da abadia de Gandersheim, que existia entre os anos de 846 e 919.
As obras de Rosvita são impressionantes em seu escopo expositivo, e
evidenciam alguém a frente de seu tempo. O último trabalho de Rosvita foi concluído
em 973, e apenas duzentos anos após sua morte o drama medieval foi novamente
composto.
A maior parte dos estudos que dá atenção à produção de Rosvita inclui
seus seis dramas ou comédias. São Gallicanus, Dulcitius, Calimachus, Abraão,
Paphnutius e Sapientia. Os enredos dessas peças são retirados de lendas
eclesiásticas. A forma literária das peças pertence ao drama antigo e não ao moderno.
Como uma autoconhecida aluna de Terêncio, ela pertence ao mundo clássico. Ela era
uma imitadora, não uma originadora. Em dois aspectos importantes, no entanto, ela
partiu do precedente clássico. Ela desconsiderou inteiramente a lei das unidades
exemplificada em Terêncio e admitiu em seus dramas uma combinação de trágico e
cômico que não se encontra nas obras de seu protótipo.
E uma das formas didáticas usadas por Rosvita para falar de temas proibidos
ou tabus era exatamente transformá-los em dramas e/ou comédias jocosas ou lúdicas,
enquadrando-se ela, assim, na tradição medieval criada nos tempos do Imperador
Carlos Magno, quando seu mestre, o filósofo e pedagogo Alcuíno de York, que tinha
como orientação pedagógica o ensinar brincando, utilizava-se de anedotas,
brincadeiras, enigmas e charadas. Costa relata que tempos depois, esse método
atingiu os mosteiros, onde o lúdico ou jocoso passou a ter, além do caráter
motivacional, outra função pedagógica: aguçar a inteligência dos jovens. (COSTA,
2017, p. 3)
Para diversos estudiosos, muitas escritoras medievais apresentavam-se como
mulheres humildes como estratégia pedagógica para se fazerem ouvir em meio a uma
sociedade elitista e machista. Mas, por trás dessa aparente humildade, ou nas
entrelinhas de seus escritos, principalmente das personagens femininas por elas
protagonizadas, apresentavam-se como mulheres fortes e sábias, em condições de
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discutir em pé de igualdade com os homens, o que deixava entrever certa


“teologia/filosofia feminina” em defesa da igualdade de gênero. Daí, para Bovolim
(2005, p. 88 apud MARTINS, 2011, p. 11), Rosvita manifestava uma atitude muito
sábia perante o sexo oposto, ela procurava agradar destacando a debilidade da
mulher e, ao mesmo tempo, exaltando toda força, inteligência, coragem e o
conhecimento que ela possuía. Em seus diálogos as mulheres acabavam sempre por
vencer os homens. Em Dulcício, por exemplo, os papéis ridículos e grotescos são
reservados aos homens, enquanto as personagens femininas são as heroínas, cheias
de força e determinação” (LAUAND, 1998, p. 170 apud COSTA, 2017, p. 4) Ou seja,
a clara intenção é mostrar que a mulher medieval podia ser tanto quanto ou mais forte
que o homem, quando se tratava de manter sua fé inabalável.
Kline (BROWN et al., 2004, p. 77-95 apud MARTINS, 2011, afirma que, na
peça, a ameaça de uma potencial guerra cívica é figurada como discórdia doméstica:
a negação da boa convivência e das prerrogativas masculinas de acesso ao corpo
feminino alertariam o Imperador do risco a que se via submetida a linhagem patriarcal
da civitas romana. Aludindo a um texto lendário do cristianismo siríaco, Atos de São
Judas Tomás, Rosvita mostra sua conexão com os embates dos primórdios do
criatianismo, em diversos contextos e sob diversos aspectos.
O prefácio de sua coletânea de comédias cristãs revela inquietação por
aqueles que foram induzidos a “atos criminosos” pela leitura de Terêncio, propondo
anular esse efeito prejudicial com a “celebração da castidade das virgens cristãs, na
mesma forma de composição que os antigos empregavam para pintar as vergonhosas
ações de mulheres imorais”. (CARLSON, 1997, p. 33, apud MARTINS, 2011, p. 11).
A temática de Rosvita é abrangente. Ela tinha conhecimento das
perseguições dos governantes de províncias contra cristãos. Martins lembra que ao
dar, no século X, força dramática aos sofrimentos dos primeiros cristãos em defesa
da Fé e, assim, relacionar os acontecimentos passados com o seu momento histórico,
ela pretendia ensinar que o sacrifício, ou seja, o martírio, garantia o retorno vitorioso
para o seio do Senhor.
Sobre a defesa da virgindade, sob o modelo da virgem Maria, que
inspiraria virtude e pureza, atributos fundamentais para as mulheres do século X,
Rosvita dramatiza na peça Conversão de Galicano, que almejava casar-se com a filha
do imperador Constatino, por se julgar merecedor, tendo em conta seus feitos na
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guerra. A donzela Constanza, no entato, havia feito votos de castidade, já que o


casamento não era seu desejo. (ROSVITA, 2003, p.61). De clara inspiração nos
escritos neotestamentários paulinos, Rosvita pregava a continência das virgens
cristãs como fundamental para a vida monástica.
No drama em que narra a história do eremita Abraão, ela conta como a
sobrinha Maria, entregue à prostituição, foi reconduzida à virtude novamente, atraída
pelos princípios cristãos, e abrigada por um mosteiro, onde permaneceu durante
muitos anos em vigílias e orações para purgar suas manchas. Pureza, conversão e
perdão são contrapostos à guerra, discórdia e violência da sociedade que arrasta
pessoas para o mal.
Em Paixão do Santo Pelágio Rosvita discute um outro tema relevante: o
homossexualismo. Relatando a história do martírio de seu contemporâneo, quando
em Córdoba, na Espanha, invadida pelos Sarracenos, o povo cristão foi submetido à
cultura mulçumana. Pelágio, um jovem cristão de corpo belo e resplandecente,
oriundo da Galícia, com pouca idade, ainda adolescente, preferiu permanecer preso
em Córdoba em troca da liberdade do seu pai, chefe cristão que se encontrava na
prisão, enfermo e velho. Depois de trancado no calabouço pelas ordens do rei Abd-
al-Rhaman, atraiu a simpatia e o respeito de alguns poderosos, que intercederam por
ele junto ao califa, porque sabiam que o tirano se sentia atraído por sua figura.
(HROTSVITA, 2000, p. 101)
Rosvita destacou, também, a beleza e feminilidade das mulheres,
apresentando-as fortes, belas e inteligentes frente aos homens que exerciam o poder.
É essa a forma como ela procede em Martírio das santas virgens Fé, Esperança e
Caridade. Nela as belas donzelas mostram extrema sabedoria e formação cristã. A
mãe das mártires encarna o ideal da mulher sabia, e surpreende o Imperador com as
demonstrações de intelectualidade (conceitos matemáticos boecianos inclusive).
A teologia nos escritos de Rosvita aborda a fé, como motivação maior para
a perseverança, e a expectativa de retorno da alma para a existência eterna após a
morte, como recompensa pelos sacrifícios suportados na existência terrena. Os
valores cristãos também são enfatizados – humildade, caridade, obediência e
submissão, principalmente, que determinavam o conceito de bondade na Idade
Média.
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Mas, além da temática, da ênfase teológica, e além das estruturas visíveis


de poder da época, há algo mais nessas visões, argumenta Miller. Estudiosos da
história religiosa e da espiritualidade das mulheres concordam prontamente que as
místicas medievais e primitivas modernas utilizavam o vocabulário e as imagens do
amor sexual para descrever seus relacionamentos muitas vezes intensos e
apaixonados com o divino. Embora esse uso de imagens eróticas não seja exclusivo
nem no período medieval, nem nas mulheres, nem nos místicos, o que é único nesse
discurso - ou, mais precisamente, nas interpretações feministas dele - é que não se
pensa que seja meramente alegórico. Miller pondera que, antes, a experiência
religiosa das místicas medievais e das mulheres modernas é freqüentemente vista
como intrinsecamente erótica; além disso, o erótico é frequentemente considerado
como uma categoria ingenuamente positiva, estável e autoexplicativa. Ela afirma que
se acredita que o sexual e o espiritual conspiram em um “emaranhado, emaranhado"
de desejo sexual e desejo por Deus. Assim, pensa-se que eles não podem ser
facilmente distinguidos um do outro. (MILLER, 1999, p. 25)

4. Paralelos com Bataille

Tal constatação acena para a possibilidade de paralelos entre Rosvita e


Bataille.
Apenas a título de comentário, e como uma espécie de ponto de conexão
com a contemporaneidade, Rosvita foi mencionada por Hilda Hilst:
/.../ põe a cabeça aqui, ela diz, aqui, duríssima cabeça na junção dos meus
seios, ela diz, é uma puta de falas finas, ilustrada fala Matias, não, Matias diz
instruída, recônditos
relises,
reinados
reginas
rosvita Von Gandersheim
aquela que escreveu sobre Maria do Egito, a eremita, vinde putanas várias
magdalas madalenas, aquela outra de Siracusa, degolada só porque era
casta, isto é, cristã. (HILST, 1997, p. 76-77)

No prefácio de sua obra Rosvita disse:

Existem muitos católicos, e não podemos nos eximir totalmente da acusação,


que, atraídos pela elegância polida do estilo dos escritores pagãos, preferem
suas obras às sagradas escrituras. Há outros que, embora estejam
profundamente apegados aos escritos sagrados e não gostem da maioria das
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produções pagãs, abrem uma exceção a favor das obras de Terence e,


fascinados pelo encanto da maneira, correm o risco de serem corrompidos
pela maldade. do assunto. Portanto, eu, a voz forte de Gandersheim, não
hesitei em imitar em meus escritos um poeta cujas obras são tão amplamente
lidas, meu objetivo é glorificar, dentro dos limites de meu pobre talento, a
louvável castidade das virgens cristãs naquele ego. mesma forma de
composição usada para descrever os atos desavergonhados de mulheres
licenciosas. Uma coisa sempre me envergonhou e muitas vezes trouxe um
rubor à minha bochecha. É que fui obrigada, pela natureza deste trabalho, a
aplicar minha mente e minha caneta para descrever o terrível frenesi
daqueles possuídos por amor ilegal e a insidiosa doçura da paixão - coisas
que nem deveriam ser nomeadas entre nós. No entanto, se por modéstia eu
me abstivesse de tratar desses assuntos, não seria capaz de atingir meu
objetivo - glorificar os inocentes da melhor maneira possível. Para os mais
sedutores, os prazeres dos amantes, mais maravilhoso é o socorro divino e
maior o mérito daqueles que resistem, especialmente quando é a mulher
frágil que é vitoriosa e o homem forte que é encaminhado com confusão.

E, em sua Carta para os patronos escreveu:

Muitas vezes enrubesci por ter de escrever a respeito da detestável loucura


dos amores ilícitos e de inconvenientes colóquios amorosos, coisas às quais
não devemos prestar atenção. Mas se, envergonhada, eu não tratasse
desses assuntos, não conseguiria atingir meu objetivo, que é o de celebrar o
louvor das almas inocentes. Na verdade, quanto maior parece a sedução dos
amantes, tanto maior a glória do auxílio divino.

À primeira vista pode parecer impensável fazer paralelos entre os escritos


de Rosvita e Bataille. Não é somente o lapso de tempo entre ambos que cria um
aparente abismo, mas a visível diferença de propósito literário.
Mas, Nogueira, falando da mística feminina medieval, afirma que, seja em
prosa ou em poesia a escrita feminina vai do mais puro refinamento da linguagem,
passando por uma erótica do conhecimento até a mais apurada reflexão filosófica
sobre as relações do humano com a dimensão do sagrado. Ela estabelece a relação
com Bataille, lembrado por sua afirmação de que a dimensão do sagrado devolve ao
ser humano a ideia de pertencer a um todo, pois, há o erotismo dos corpos, o erotismo
dos corações e o erotismo sagrado. Nos três o que está sempre em questão é a
substituição do isolamento do ser, de sua descontinuidade, por um sentimento de
continuidade profunda (cf. BATAILLE, 2014, p. 39 apud NOGUEIRA, 2015, pp. 95-96).
Algumas imagens utilizadas são muito reconhecíveis nos novos
desenvolvimentos teológicos dos últimos trinta anos: um discurso metafórico no qual
Deus é classificado como uma mulher, como amante, como mãe; uma maneira muito
aberta de falar sobre o corpo sexual para aumentar a relação com o divino. E Nogueira
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lembra que isso é expresso por meio de uma linguagem erótica que é uma mescla de
paixão e transgressão.
Por tal razão, o objetivo destes apontamentos é ousar um estudo que crie
paralelos entre os escritos, havendo, obviamente, a possibilidade de, ao final, como
em toda empreitada de averiguação, mostrarem-se incongruentes.
George Bataille foi influenciado por Marcel Mauss, antropólogo, pelos
escritos do Marquês de Sade, pelo pensamento de Hegel e Nietzsche. E influenciou
uma geração posterior de autores como Jacques Derrida, Michel Foucault, Phillipe
Sollers, Jean Baudrillard, Giorgio Agamben e Jean-Luc Nancy, conforme ensina
Galantin. (GALANTIN, 2008, p. 9) O propósito de Bataille era buscar a coesão do
espírito humano, que uniria desde a santa até o voluptuoso. Só por tal diretriz já é
possível ver algumas convergências entre ele e Roswitha.
O pensamento battailliano é deslumbrado com o corpo, e o coloca em
perspectiva erótica, sob as potências incendiárias da carne. Diz ele: “do erotismo, é
possível dizer que ele é a aprovação da vida até na morte”. Sua explicação para isso
é que do ser em queda, somos levados àquilo que, ao mesmo tempo que é
ultrapassado pelo erotismo, é também a sua chave: a reprodução. A aposta na
imanência é radical, o ser começa quando começa o corpo, entendido como
instaurador do abismo que separa um homem de outro homem, o que nos condena a
uma solidão absoluta cujo império cessa apenas com princípio de outro, o império da
morte: “Cada ser é distinto de todos os outros. Seu nascimento, sua morte e os
acontecimentos de sua vida podem ter para os outros algum interesse, mas ele é o
único interessado diretamente. Ele só nasce. Ele só morre. Entre um ser e outro, há
um abismo”. Esse abismo receberá o nome de descontinuidade – os termos
descontinuidade e continuidade são as chaves para compreensão daquilo que o
erotismo põe em jogo.6
A fim de apresentar a oposição fundamental entre continuidade e
descontinuidade do ser, Bataille incursiona àquilo que, na história da vida, precedeu
a reprodução sexuada. Obviamente, trata-se da reprodução assexuada, na qual o ser
simples, unicelular, divide-se formando dois núcleos: “de um só ser, resultam dois”.
Esses dois seres são descontínuos com relação ao ser único que os originou (existem

6https://revistacult.uol.com.br/home/georges-bataille-o-pensador-do-corpo/, visualizado em 23/07/2020, às 23:40


h. (Wesley Peres)
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como causa da morte do ser originário), e são também descontínuos um com relação
ao outro. Ao contrário dos seres sexuados, nos seres assexuados unicelulares, a
morte do indivíduo coincide com a reprodução. Logo, o ser unicelular não se
decompõe, mas se dissolve no nascimento de dois novos seres.
No caso dos humanos (um dentre outros seres sexuados), apenas no nível das
células reprodutivas, a morte coincide com o nascimento de um novo ser. O embrião
é o resultado da fusão mortal (oposta à divisão mortal dos seres unicelulares) entre o
óvulo e o espermatozóide, esses “dois pequenos seres descontínuos”. Desse modo,
na origem da vida está a origem do abismo, a origem da solidão do ser descontínuo
que somos: o embrião surge a partir dos cadáveres de dois outros seres descontínuos,
o óvulo e o espermatozóide.
É preciso, no entanto, passarmos do espermatozóide ao homem, do óvulo à
mulher, para entender que a radicalidade de nossa solidão coloca e é colocada em
jogo pelo que Bataille chama de erotismo. Fazendo isso, entenderemos porque o
homem é um animal-paradoxo, antônimo de si mesmo “e livre para se assemelhar a
tudo que não é ele no universo”.
Então que há o erotismo dos corpos, que é quando os humanos se “cansam de
ser a cabeça e a razão do universo” e, transgredindo o interdito, o impossível, fazem
do abismo uma possibilidade precária de encontro dos seres, precária porque tal
encontro não destruirá a descontinuidade, seus corpos não serão dissolvidos um no
outro. Do que Bataille está falando?
Esse homem e essa mulher são, cada um, estruturas fechadas, corpos
fechados. Eles se apaixonam e, então, querem violar o corpo um do outro, abri-lo.
Tiram a roupa, eis a primeira violação, a violência erótica se põe em jogo com a
liberação das aberturas e aperturas dos corpos. O ato decisivo é o de tirar a roupa,
ele promove o obsceno, a transgressão do impossível que promoverá o encontro –
ainda que precário.
Retroagindo a partir da leitura de O erotismo, podemos afirmar que, mais do
que qualquer outra coisa, Bataille visava encontrar um campo de articulação de todas
as questões fundamentais da experiência e do espírito humanos. Esse campo é o do
erotismo, o do corpo como dispêndio improdutivo, exuberância, soberania dos
excessos sobre toda forma social de constituição de uma vida moderada, isto é,
lamentável.
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Definitivamente, a advertência de Lacan de que deveríamos nos deslumbrar


mais com o corpo seria descabida se endereçada a Bataille, pois o nervo de sua obra
não faz outra coisa se não nos advertir, ou melhor, senão nos deslumbrar com o
corpo.7

5. Considerações finais

Rosvita faleceu em 05 de setembro de 1002, mas, ao contrário de muitas


escritoras de seu tempo, sua obra tem sido conhecida, divulgada e interpretada
através da história: pouco depois de sua morte, foi copiada num único manuscrito a
totalidade de sua obra; no século XVI, os humanistas alemães se encarregaram de
destacar seu talento [...] refletindo uma euforia nacionalista por sua primeira poetisa
sajonia; posteriormente, em meados do século XIX, apareceria a primeira tradução
para o Francês de seu teatro, enquanto alguns historiadores positivistas da ordem
beneditina se apropriavam dos textos da autora, assumindo suas próprias
interpretações. Na atualidade, seguimos estudando desde distintas disciplinas as
contribuições desta excelente escritora, cuja imagem e palavra parecem inesgotáveis
no tempo, pois suas inquietações e preocupações levantadas naquele tempo têm se
mantido no curso da história e seguem vigentes neste século, manifestando-se
através de diversos discursos (ARAUZ MACEDO, 2005, p. 207).
Em sua arte dramatúrgica, cujas peças são de caráter educativo e
evangelizador, Rosvita dramatiza a vida de santos e mártires da Igreja juntamente
com nomes e elementos da História com o intuito de criar um modelo comportamental
voltado para o público feminino das congregações conventuais e, poderíamos também
dizer, para a sociedade cristã no Império Alemão do século X, em que o martírio é
visto como um exemplo a ser seguido, no sentido de se manter firme e inabalável a fé
cristã. Mais que isso, Rosvita mostra com seu teatro, no qual personagens femininas
são as protagonistas, que a mulher medieval pode ser tão (ou mais) forte que o
homem quando se trata de manter sua fé inviolável. Dois séculos mais tarde, a Voz
feminina de Bingen continuaria a demonstrar o poder determinante do conhecimento
da palavra de Deus e sua aplicação nas lides terrenas. Em suma, a ciência divina e

7https://revistacult.uol.com.br/home/georges-bataille-o-pensador-do-corpo/, visualizado em 02/06/2020, às


16:12 h.
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terrena de Hildegard encontra na palavra literária da monja de Gandersehim uma


antecessora no trato com o Verbo Divino!
Martins conclui seu trabalho apontando para o viés didático de Rosvita – para
ensinar a Verdade, não comenta ou fala sobre Ela; mostra-a, por meio de imagens,
célula do pensamento viviso. E com isso forma, também, um leitor-espectador mais
inquisitivo, que se instrui com o que lê/vê, tanto quanto aprende a ler/ver. Excercendo
seu ofício, Rosvita de Gandersheim esperava, ao fim e ao cabo, como o fazem suas
personagens, ser agraciada “com o troféu de vitória de vida eterna”. Inscrevendo-se
ao escrever, permite, pelo menos, que a releitura renovada de seus textos lhe garanta
tal permanência. Assim seja, deseja ele! (MARTINS, 2011, p. 25) Assim também
podemos desejar.

Referências bibliográficas

DAWSON, C. (2014). A formação da Cristandade. São Paulo: É realizações.

NOGUEIRA, M. S. (2015). Mística feminina - escrita e transgressão. Revista


Graphos, 17, p. 13.

MARTINS, G. F. (Maio de 2011). A Sancta Sapientia Medieval - Enigma e mistério


no teatro cristão de Rosvita de Ganderhseim. Revista Brasileira de História
das Religiões, 10, p. 28.

TROCH, L. (2013). Mística feminina na Idade Média - Historiografia feminista e


descolonização das paisagens medievais. Graphos, 15.

DABAT, C. R. (s.d.). Fonte:


https://periodicos.ufpe.br/revistas/cadernosdehistoriaufpe/article/viewFile/1100
78/22001

MILLER, J. B. (1999). Violência erotizada na literatura mística das mulheres


medievais. Jornal de Estudos Feministas em Religião, p. 25.

Referências webgráficas

http://www.revistasisifo.com/2017/11/roswita-de-gandersheim-e-o-papel-psico.html

https://www.encyclopedia.com/religion/encyclopedias-almanacs-transcripts-and-
maps/roswithagandersheim
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https://rua.ua.es/dspace/bitstream/10045/52867/1/Roswitha-von-Gandersheim.pdf

https://en.wikisource.org/wiki/Plays_of_Roswitha_(1923)/The_Prefaces_of_Roswitha
https://www.britannica.com/biography/Hrosvitha

https://www.jstor.org/stable/10.5149/9781469657325_crosby.7?Search=yes&resultIt
emClick=true&searchText=roswitha&searchText=von&searchText=gandersheim&se
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ents

https://www.jstor.org/stable/4174049?readnow=1&refreqid=excelsior%3A625d0c262
a783af7020f36011fdfe6db&seq=1#page_scantab_contents

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