Você está na página 1de 34
Cinema utoppia Ramon Griffero Personagens Na platéia OLANTERNINHA: nasceu na sala do cinema ¢ nunca saiu dela, sua gestualidade é tinada dos filmes a que jd assistiu, poderia ter 40 anas, mas 6 timido como uma crianga. Eleé a utopia. A SENHORA: classe média alta empobrecida, 60 anos, atriz de radionovela. E a romantica do Jornal das Mogas. MARIANA: a sobrinha da Senhora, retardada mental, & beira do mongolismo. Ela é 4 pureza. ARTUR: 0 incrédulo, o decepcionado com a vida, mas desafiando-a. Despreza a sociedade, Alcoélatra, porém liicido. OSENHOR DO COELHO: por ter sido trafdo no amor alguma vez, concentrou tudo em seu coelho. Paranbico por ser novamente usado. ESTELA: a solitéria. Adora pipoca (Popcorn), acredita que tudo jé acabou, 38 anos. MARINHEIRO: marinheivo das forgas navais, aborrecido num dia de folga. 105 Scanned with CamScanner ‘Antologiateatal da latnidade Na tela SEBASTIAO: jovem exilado, 26 anos, existencialista, desiludido depois da quebra de seus ideais, ESTEVAO: amigo ¢ admirador de Sebastiao, estudante de cinema. O PROPRIETARIO: 45 anos, dono do apartamento de Sebastiao. ELA: amiga de Sebastido, “presa-desaparecida”, 6 um fantasma de sua lembranga. Espectadores, policiais, ciclistas, pessoas da rua. Lugar da agao Uma antiga sala de cinema, anos 1930-1940, a fabula se desenrola tanto na platéia quanto no interior da tela cinematogréfica, Ep joca NA PLATEIA: Santiago, fins dos anos 1940. NA TELA: wm ambiente marginal, juvenil (Europa), de meados dos anos 1980. Lugar Santiago — Paris Jogo de perspectivas do espago cénico A SALA DE CINEMA: tem uma entrada do lado esquerdo da tela, de onde estendem cortinas de veludo vermelho, outra entrada falsa do lado direito com um relégio em mau estado pendurado sobre ela, e, sobre ambas, letreiros luminosos “exit”. As poltronas ficam no centro da sala, corredores de ambos os lados e um atras da iltima Jileira, se encontrando como pitblico. No chao, umas almofadas gastas, o piso é de madeira. Em cima dos murinhos, pequenos lustves de cristal iluminam a sala. 106 Scanned with CamScanner Cinema uteppia No interior da tela Representacdo de um quarto, as paredes so de cimento, no centro uma persiana metdlica, do lado esquerdo o banheiro, e do direito a porta de entrada de vido. De mobilia, um banco de carro, um armdrio metdlico, um criado-mudo de hospital com uma lamparina de escritirio. Ao levantar a persiana, atrds da janela, nos deparamos com outro lugar teatral, que encena um beco com outdoor de neon luminoso, e um orelbao. Atuagao, mitsica, tempos, plastica, luzes, “enquadramentos”. Devem se referir a uma estbtica cinematogréfica. Jogo paralelo com estes trés planos de profundidade a) Sala do cinema. b) Fundo da tela, quarto de Sebastiao. ©) Rua transitdvel, atras da janela do quarto de Sebastiao. Primeiro dia Na tela projeta-se o final de um filme ou de uma propaganda. Ha espectadores saindo da sala, 0 lanterninha abre as cortinas, a sala vai sendo iluminada, mitsica, na platéia esti todas as personagens. A primeira a sair, timidamente comendo pipoca, é Estela. A senbora enxuga as lagrimas de Mariana. ASENHORA Ih, Mariana, borrou a pincura... MARIANA Nninnni... Ghhhasd. ASENHORA : : i Sim, sim. Acontecem coisas terriveis! Nao é verdade, Mariana? Nao devia ter trazido voce ao cinema... mostram cada coisa. O senhor vai saindo, conversando com seu coelbo, Scanned with CamScanner Antologiateatral da latnidade ODO COELHO eae Vai falar que no gostou, para com essa manha, senao, é a tiltima vez que vocé ver... Péra, isso é tudo mentira. Para o lanserninha. Uma alegria quando vi a cena de Paris, “Rue de la Fontaine”... Vai fazer vinte anos que estive l4, que meméria, hein? ASENHORA Para o lanterninha. Com licenga, o filme de amanhi... Mostrando a menina. Da pra ela assistir? Ah, t4. ODO COELHO Eu também venho, é bom esse cinema. Mariana se aproxima e comeca a acariciar 0 coelbo. £0 Pompénio, adora cinema. Nao é verdade, Pompénio? ASENHORA Perplexa. Interessante, Vamos Mariana. Puxa-a. ODO COELHO Coitadinha, a gente tem mais é que agradecer. Até logo. Na platéia, na segunda fila, ficou um homem que olba fixamente a tela. O lanterninha limpa a sala, levanta as poltronas. Estd inquieto porque o espectador néio vat embora. OLANTERNINHA O filme mexeu com vocé? ARTUR Nio, inclusive acho que nem o vi. Tira uma pequena garrafa de dlcool. Pega, toma. OLANTERNINHA Nao bebo, obrigado.... ARTUR Vocé acha que todos vém aqui para assistir filmes? A gente ver por causa da tranqiilidade, pra pensar, igual que ir a uma igreja vazia. Entende? Toma outro trago. E continuam fechando cinemas. O LANTERNINHA E, j4 nao é como antes, enchia, fazia barulho, gente correndo. E até intervalo para um cafezinho, 108 Scanned with CamScanner Cinema utoppia ARTUR | ‘Nunca gostei de intervalo, era como acordar de um sonho, nao agiientava. Outro twago. OLANTERNINHA Verdade... Mas tinha um qué de alegria. Limpa as poltronas com um pano. ARTUR Procurar alegria num intervalo, a que ponto chegamos.... Outro trago. Pode con- tinuar seu trabalho, s6 vou embora quando fechar. Primeiro preciso recuperar a auto-estima pra depois sair ¢ ver que nada mudou. OLANTERNINHA Recolhendo do cho. Moedas, balas... Toma. ARTUR Obrigado. O que inventaram primeiro? A bala de horteld ou 0 cinema? Mais um mistério... OLANTERNINHA Sempre acho balas, moedas, carteiras, ninguém nunca reclama... ARTUR Perdeu, esté perdido. E mesmo se achar de novo ja néo sera a mesma coisa... OLANTERNINHA Como um amor perdido... ARTUR Levantando-se, Me conta... Bo préximo filme? OLANTERNINHA : Nio sei, mas tenho o pressentimento que vai... ARTUR Dé no mesmo, vou vir de qualquer jeito. OLANTERNINHA Vocé também muda com os filmes? Scanned with CamScanner ‘Antologia teatral da latinidade ARTUR Como assim? O LANTERNINHA Aprendi o que ¢ tristeza, édio, paixao, a tela é minha alma. ARTUR As vezes bem machucada, néo é? O LANTERNINHA UTOPPIA... Essa palavra... Uma sensacio de’ que alguma coisa nos vai acontecer. ARTUR que pode acontecer? Bem, vou indo. O LANTERNINHA Falo o tempo todo com vocés, mesmo sem estar aqui. Continuo vendo a todos nas poltronas, e continuo falando.... ARTUR Ih, ento vocé est4 mais louco do que eu imaginava. Até logo. O Lanterninha pega o folbeto do filme e le. O LANTERNINHA Utoppia... Quem sabe agora a sala volta aencher.... Se escutam gemidas, abraga ofo- Jbeto, Onde esto voces... Venham agora, venham chorar ¢ clamar por justica. O lanterninka fica afundado entre as poltronas, enquanto 0 barulbo de lamentos inunda 4 sala, 110 Scanned with CamScanner Cinema utopia Segundo dia O lanterninha varve a sala com uma vassoura, canta ¢ danga a musica “Tea for two”... Intempestivamente se detém e comeca a atuar uma cena de amor hollywoodiano. Encenagao musical & beira-mar. O LANTERNINHA — Mary... Please don't do this to me... After all. —John, I know John... I know. — Mary, do I have to tell you again? = What John? = Mary, I love you! = Ohhh. John... Acaricia e beija, abraco filmico. A senhora e Mariana tinham entrado na sala enquanto 0 lanterninha atuava. Ele as we se inibe. ASENHORA ‘Viemos um pouquinho mais cedo, estava tio nervosa, no sei, estou intrigada com este filme. O LANTERNINHA Intrigada? ASENHORA Utoppia? Nome estranho, nao? Mariana levanta 0 vestido e faz gestos obscenos. Mariaaana! Calma. Pensar que ela ia ser attiz, falavam que € muito parecida com a Carmem Santos... Choviam pretendentes. Mariana esta se masturbando. A senhora vai lhe bater, Mariana corre, a senbora a persegue pela sala, Aaai, Mariana, pelo amor de Deus... E bem capaz de a sala encher, lembra quando tinha poltronas até l4 no fundo? OLANTERNINHA Claro, eu nasci aqui, minha mae era zeladora, aprendi a andar me segurando nas poltronas, e I, naquele canto, ficava o piano. A SENHORA Entio vocé era o menino que ficava brincando pela sala. O lanterninha. Anda como 4 cavalo sobre a vassoura. Sera que voce se lembra dele? Era alto, bonitéo, com um olhar profundo, a gente sentava l4 no fundo. Ri. Nem me lembro dos filmes. Mm Scanned with CamScanner ‘Antologia teatral da tatnidade ODO COELHO ae Nido somos s tinicos a chegat cedo. Eu e PompOnio ficamos com medo de encher, estamos curiosos com esse filme novo. Tomara que nao seja forte, o Pompénio terd pesadelos terriveis. .. Mariana se aproxima e acaricia 0 coelbo. A SENHORA Bem, como eu ia dizendo, ele era alto, loiro, forte. Emocionada. Depois dele nin- guém mais me beijou... Devo ser uma boba mesmo, mas sempre venho com esperanca de vé-lo af sentado me esperando, a tiltima coisa que me falou foi “amanhi, aqui, na mesma hora”, nfo posso deixar de vir, nfo ficaria tranqiila em casa. ARTUR Boa-tarde. Parece que todo mundo resolveu madrugar, esto cobertos de razio, j& que ld fora no tem mais nada pra fazer, nosso momento j passou, pelo menos meu, e pra ficar andando pelas ruas se lamentando é preferivel vir pra cd. Nao é verdade, senhora? ASENHORA Olha, meu senhor, eu s6 vim porque estou fazendo uma pesquisa cinematogréfica, uma coletdnea de... ARTUR Nio se preocupe, cada um vem por algum motivo. Em todo 0 caso quando esta pesquisa estiver pronta vocé me empresta. A senhora sai para procurar Mariana. O lanterninha olba o relégio da sala. 0 DO COELHO Jé esta na hora, toque o sinal, moco, estou ansioso. O Lanterninka fecha as cortinas, toca 0 sinal, as luzes se apagam, na tela vio aparecendo 0s créditos do filme, na projegéo, igual @ cenografia ocultada atras da tela, Chiga Estela atrasada. O lanterninha, com sua lanterna, a leva até sua poltrona. ESTELA Ui, j& comecou. un Scanned with CamScanner Cinema vioppio Filme utoppia: primeira parte Quarto de Sebastido, noite. Através da persiana entra a luz de uma propaganda, num canto Sebastido dorme, dois agentes levam uma mulber nua (“em camara lenta”), ela luta, desaparecem, escutam um grito. Sebastiao acorda, acende a luz, escuta risadas, gente que passa pela rua, se senta, acende um cigarro, permanece um instante passive. Dorme. Amanhece, batidas na porta, um senhor gordo, baixo, de roupdo, aparece. O PROPRIETARIO Cof... Cof... Juuurruu,.. Carrta... ficou aberrta. Mostrando a carta. Selo bonito.... Cill... Lihh... Jile... Chile. Porr que non me partece estrranho? Clarro, uma prrima do meu cunhado esteve 14, coitadinha, non agiient6 nem trrés dias, um calorr, cheio de negrros, non é? SEBASTIAO Pode ser, tudo muda. O PROPRIETARIO Sim, erra la, a coitada me contou cada coisa, bom, ja vou... Fecha. Volta a abrir 4 porta, Lembrre que temos de converrsarr... SEBASTIAO Abrea carta comeca a ler. Em off. Sebastiao, cinco anos atras nés estavamos juntos sentados numa mesa, desenhando o futuro, condenando o presente. Como vio as pupilas? Muitos nevoeiros ou ainda permanecem a espera... Aqui continua tudo igual, quem sabe, de repente, o sol aparece. Enquanto Ie, através da janela vemos uma pessoa que conversa no orelhéo, outra que espera inquieta, na frente deles passa Estévdo, que entra no quarto. ESTEVAO Achei jogada e pensei que podia ser til. Taz uma almofada velha. SEBASTIAO Est bem, mas nao fica trazendo tudo que acha na rua. ESTEVAO / Tém coisas étimas. Surpresa! Passei pelo supermercado, comprei uma garrafa de cerveja, e me deram tudo isso de presente tira da sua ropa, presunto, queijo, até, chocolate... 13 Scanned with CamScanner ‘Antologiateatral da latinidade SEBASTIAO A noite sonhei que eles a levavam. Ela estava nua resistia. ESTEVAO Um dia ela vai aparecer rindo, como sempre. Lembra quando se inspirava nos ciganos do sul ou nas ilhas gregas? SEBASTIAO Ebem provavel, ela adora Agua. Acredita que em Chiloé nadava com os pingiiins, € gozava com 0 mar? Seri que ele a engoliu? Ela falava: quis ser sereia ¢ 56 fui mulher. ESTEVAO Mudando de assunto. Chegou carta? Pra mim jé cansaram de escrever, no comego era toda semana, depois de quinze em quinze dias, e agora sé recebo uma por més, se é que... Estévdo estd sentado no chao comendo presunto. Sebastiao foi ao banbeiro, estd escovando os dentes. SEBASTIAO O laco se desata, teria que comecar a explicar muitas coisas, e depois é como se a gente vivesse em duas dimensées diferentes. ESTEVAO Pelo menos ainda resta carinho. Jé faz quanto tempo que vocé esté aqui? SEBASTIAO Anos. ESTEVAO ‘Teve despedida? SEBASTIAO Abarece pela porta do banheiro. Nao sei, era um dia de primavera... O aeroporto estava cheio de gente calada. Atmasféra sonora da narracao. Evitévamos nos olhat, tudo normal, tentando sortir, depois um sussurro sobre o passaporte, e essa louga de cimento como horizonte, cudo normal, os tantos acenos de mios. O aviéo estava cheio, ligaram os motores, tudo ia ficando pequeno enquanto a cordi- Iheira se tornava gigante, olhei pra ela e chorava, quando vimos a neve, todos 6s choramos, a aeromoga tentava sortir enquanto enxugava uma légrima. Era para filmar, nome... “Fuga de um aviéo em prantos”... Ri. 14 Scanned with CamScanner Cinema utoppia Batem a porta, aparece o proprietdrio. O PROPRIETARIO Ah, desculpe. Esté ocupado? SEBASTIAO Para Estévdo, Esse € 0 dono. ESTEVAO Bem, ja vou indo... Fica alhando-o. SEBASTIAO Obrigado por lembrar que eu nao tinha almofada, vou usar. Beija seu rosto. Sebastiao fica sozinho no quarto, caminha, senta no chao, pensa nela (misica). Ela aparece de costas olhando pela janela. Flashback interior dele. ELA Sempre cinza, e essa chuva que ndo acaba nunca e nunca molha, eu gosto. Parece que nos paises cinzas se ocultam menos a alma. Nesta cidade nao existe nada além de ledes de pedra com anjos nus, seré que nenhum anjo pode dominar um leo? SEBASTIAO Eu nfo sou anjo. ELA Fomos ao mat, nés dois estranhos, vocé aborrecido. Vai até ele, acaricia seu cabelo, 0 abraca. Ti voglio tanto, Sebastiao. SEBASTIAO Toma. Dé-lhe uma pluma amarrada num cordéo. Ela puxa o cordéo, que estd amarrado no pescoga de Sebastiao. ELA Voa, Sebastiao... Ela corta o corddo, se afasta. A lembranga de Sebastido é interrompida por batidas na porta. us Scanned with CamScanner ‘Antologia teatra dalatinidade O PROPRIETARIO ; : Turrauuu... Até que em fim voce esté sozinho. Bom, querria dizerr que com este més j4 € 0 terrceiro e eu non posso continuarr esperrando... Mas, podemos fazert um acorrdo. SEBASTIAO Se o senhor puder esperar mais uma semana, eu... O PROPRIETARIO Estou falando de um acorrdo imediato e muito simples. Deixe-me ver como explico, eu sempre gostei de teatrto, 0 palco, serr atorr, digamos... Como nunca pude, eu fico imaginando pequenas cenas, e se vocé estiverr disposto a fazerr, digamos, uma pequena representagon comigo, a gente ficarria em dia, senon, lamentavelmente, vocé vai tert de ir emborra. SEBASTIAO Entéo me passa o script. O PROPRIETARIO Que emogon, semprre sonhei atuatr com vocé. Olha, é muito simples... Eu sou sua esposa, vocé ficou o dia todo no escritérrio, chega e me flagrra com outro, enton seu amorr porr mim faz vocé ficar agrressivo e violento, grrita, me bate, me chama de pirranha imunda, puta nojenta, gorrda fedorrenta, porrca asquerosa me expulsa do quarrto. SEBASTIAO Fécil. Meu texto entio é puta fedorenta, piranha imunda... O PROPRIETARIO Sim, sim, perrfeito, perrfeito, Sai e volta imediatamente com um disfarce, hevas negras ¢ um chicote. Toma, veste isso, teatrro sem disfarrce nao existe. Aaai, fico ton nerrvoso, ton nervoso antes de estrréia. Agora sai... eu te chamo. Sebastiao sai. O proprietdrio entra no banheivo e aparece de salto alto, sutia, calcinka ¢ peruca. O PROPRIETARIO Jaa, entera. O proprietario tem um ataque. Paulooo, nooon, port favort, jurro que non quis... Bata-me, dé-me chicotadas. Paulooo! Agarra seu pescoco. 116 Scanned with CamScanner Cinema utoppia Sebastiao reage, ¢ de raiva, comeca a chicoted-lo expulsando-o do quarto. Sebastido tira a disfarce, fica exausto. Aparece ela com um vaso. Ficam se olbando fixamente enquanto atela desce. Misica. Na platéia Durante o desenvolvimento da aco de Utoppia na tela, na platéia acontecem comentarios, albaves ¢ exclamagoes correspondentes as cenas que estdo observando. Misica ambiente da sala de cinema. A SENHORA Isso € coisa de filme. ODO COELHO Isso é s6 cinema, senhora, cinema, escutou, Pompénio? Nao me venha com pesadelos. Artur, de sua poltrona, contempla Estela que ficou cabishaixa, ASENHORA Eo dono do apartamento? ODO COELHO A senhora acha que essas coisas realmente acontecem? ASENHORA Nio sei, mas em todo caso... Que imaginagio do diretor! 0 DO COELHO E essa moga que aparece e desaparece, nao dé para entender bem. A SENHORA S6 nos resta ver os outros capitulos. MARIANA Corre até a tela ¢ manda beijos. Chebastio, Chebastido... Smack! Oferee a ele sma boneca, "7 Scanned with CamScanner Antologia teatral da latnidade A SENHORA Ai, ai, vai comecar de novo, esta apaixonada pelo ator. O DO COELHO Parece que o Pompénio também. Olhe os olhinhos dele. Riem e saem conversando. Artur se aproxima de Estela. Dé-lhe um lenco, ela recusa. ARTUR Utoppia é conseguir 0 impossivel, o que significa outra utopia. B assim vamos de engano a engano. O LANTERNINHA Mas o impossivel se agarra, eu o tive uma vez. ARTUR E como voce fez? O lanterninha faz alguns gestos, mas nao consegue explicar. Teria que ser total destruicao, acabar com tudo que nos mantém aqui, enterrar aqueles que nos mentiram e no nos deixaram viver, mas para isso temos que vencé-los ¢ isso é impossivel. OLANTERNINHA Euos vi, 56 tinham arcos e flechas, voavam por entre os desfiladeiros, um exército inteiro e conseguiram. ARTUR Bonito filme, mas eu nao tenho vontade de voar, nem forca para atirar uma pedra, Estela, que ficon em sua poltrona, se levanta e se aproxima. ESTELA Como falam bonito. ARTUR Vamos, eu te acompanho, juntos vamos sentir menos fio. Extela olha surpresa, mas se deixa levar. ARTUR, Me chamam de Artur e vocé... 18 pee Scanned with CamScanner Cinema vtoppis ESTELA Estela. 0 lanterninha fica entre as poltronas, melancblico. Surge uma misica de filme francs, OLANTERNINHA — Vous appelez, comment? —Frangoise et vous —Jean Pierre —Je peux m’assoir Frangoise... — Mais... Ouiiii Mariana entrou na sala. Vem se acariciando e mandando beijos para a tela. MARIANA Colada na tela. Chebastiao... Bechinho... Bechinho... Amanha, Chebastiiio. Por néo ter resposta comeca a chorar. O lanterninha pega Mariana e a consola. OLANTERNINHA Vamos, Mariana, vamos, um dia vocé vai ver ele, os filmes nao podem ser s6 de plistico, nao, eles também tém boa alma, a gente também est4 dentro de uma tela. E algum dia todo mundo vai se encontrar. O lanterninba canta para Mariana e danca com ela. Misica: Ouco uma Rapsédia de G. Fragos J. Baker. Cangéo: Aaai minha Mariaaana, no temas por ti um dia ele viré ¢ te abragaré. Aaai minha Marianaaa, que belo dia sera aquele quando tu o vires como eu vejo a ti. : Aaai minha Marianna, nfio temas mais por ti, que tudo se ajeitaré, acredite em mim, ; Aaai minha Marianaaa, que belo dia seré aquele quando tu o vires como eu veo ati. TBermina a misica e surgem da sala uns lamentos. Ela se assusta ¢ s¢ refugia nos braces do lanterninha. 19 Scanned with CamScanner ‘Antologiateatral da atnidade O LANTERNINHA : wo . Nao tenha medo, Mariana, sio meus amigos... Antes brincdévamos juntos, mas faz tempo que eles nao passam de almas penadas, e poderiam ser almas alegres, Escute e reze. E a tinica coisa que podemos fazer... Vamos, Mariana, é sé mais um filme, Jé hora de ir embora. Toma. Abre o carretel metélico¢ corta cartaz. Para vocé. E uma lembranga. MARIANA Pula de alegria ao reconhecer Sebastido. Chebastiao, Chebastiéo... Bechinho, bechinho. Sai. Terceiro dia ‘Misica de Gershwin, 0 lanterninha danga sacudindo as poltronas. Chega Estela, mais arrumada, comendo pipocas. O LANTERNINHA Chegou cedo hoje. Vocé adora pipoca, nao €? ESTELA £ melhor que fumar. O LANTERNINHA Eu nio fumo, nem como pipoca. ESTELA Mas est sempre limpando poltronas. Chega um marinbeiro na sala. Para, observando Estela. MARINHEIRO Eeei, est4 sozinha? O LANTERNINHA Escuta, aqui nao pode fumar, 110 Scanned with CamScanner cinema wtoppia MARINHEIRO ‘Aah, s6 mais uma pitada, E como andam as coisas por aqui? Nos deram uns dias de folga, os outros foram beber, mas eu gosto de cinema, guerra, misica, amores, bem quentes, nao? OLANTERNINHA Bonito... MARINHEIRO Besse filme é sobre 0 qué? OLANTERNINHA Sobre mim. Bem, olha, nao exaramente sobre mim, mas eu acho que é como se falasse de mim, porque acho que Sebastio pensa como eu penso. MARINHEIRO Nio pense tanto, meu amigo, nao vé que faz mal pensar muito, Seré que tem cenas boas? Tanto tempo no mat, a gente chega quente. Em Callao pegamos uumas pretas feias e fedorentas, mas boas de mexer. O LANTERNINHA De mexer? MARINHEIRO De mexer... Faz 0 gesto. Chega a senbora com Mariana. Trazem um radio ¢ uma mesinha. A SENHORA Nio sabe que sofrimento ontem 4 noite, essa menina sumiu, a procurei por toda parte, pelo prédio, pela praca, nao achava, estava tao nervosa. E adivinhe onde a danadinha estava? Debaixo da cama. ESTELA Da sua poltrona indicando 0 radio. Vai \evar pra consertat? A SENHORA Nao, moga, trouxe para escutar a novela, hoje é sébado. 1m Scanned with CamScanner ‘Antologiateatral da latinidade MARINHEIRO : / ‘A velha esté doida demais. Escuta, s6 entre nés, essas bobinhas assim tinham que ser mortas na hora que nascem, de to feias ¢ desagradaveis que sio.... Chega 0 senbor com 0 coelbo, conversando animadamente com Artur, ARTUR, Ele precisa estar sempre tao agasalhado? ODO COELHO Claro, com esse frio pode pegar uma pneumonia. Que senhora engracada, Como vai? ARTUR Com certeza agora esta fazendo uma pesquisa radiof6nica. ODO COELHO Provavelmente, MARINHEIRO Eeei, desde quando coelho gosta de filmes? Eu achava que gostava sé de ce- noura. ODO COELHO Para seu conhecimento, senhor néutico, 0 Pomp6nio no é um coelho qual- quer. MARINHEIRO Bota ele no forno pra ver, ASENHORA Nao lhe dé ouvidos, venha... ARTUR Lembrei de vocé. Passa um saquinho de pipoca para Estela. oawee coelho ajudou a senbora a conectar 0 radio e a colocé-lo em cima da mesinha. jintoniza, A SENHORA Vai comecar, vai comecar. 2 Scanned with CamScanner Ginama utoppia ‘Todos, exceto 0 marinbeiro, sentam perto do radio para escutar a novela. Gravagio de uma radionovela melodramdtica. ASENHORA ‘Aai, que tristeza. MARINHEIRO Eo filme é pra quando? O lanterninba vé a hora, corre, toca o sinal. As luzes apagam, ilumina a tela. Filme utoppia: segunda parte Em um primeiro plano vemos 0 quarto de Sebastiao vazio, através de sua janela vemos pessoas que falam no orelhéo. Sebastido chega, pede fogo para uma senhora que esta pas- sando, chega Estevdo, se vé que Sebastido lhe explica alguma coisa efusivamente, entram ‘no quarto, SEBASTIAO Vou te mostrar, vé, foi ela que trouxe. ESTEVAO Essa planta, fui eu que trouxe ontem a noite, olha o bilhete aqui. SEBASTIAO Joga 0 vaso contra 0 muro. Desculpa, nao entendo. ESTEVAO Nao tem problema... SEBASTIAO Ela no pode vir, esto segurando ela, sinto tao forte isso. ESTEVAO Vai ter encontro Ié no ginésio de Ixelles hoje, vocé vai? 13 Scanned with CamScanner ‘Antologia teatral da ltinidade SEBASTIAO ; 7 , No comeco ia, mas cansei de ver como se entupiam de feijoada, da pena ver todo mundo af, juntos, escutando as mesmas mtisicas, lembrando das mesmas esquinas, maldizendo o mesmo de sempre e revelando 0 jeitinho para conseguir dez centavos a mais da “Securité Social”. Eles com seu mundo vendendo péster e misica.., Eu com 0 meu. ESTEVAO Verdade, mas é assim. SEBASTIAO Isso porque vocé nunca foi a esses encontros de refugiados espanhéis, nos bairros cinzas de Londres. ESTEVAO Nao, nunca. SEBASTIAO Ver todo mundo af, quarenta anos depois, lembrando da batalha do Ebro, ja de cabelos brancos e com o olhar perdido em algum olival, enquanto Franco regozijava morrendo aos noventa anos, eu vi e disse nfo pertenco... Nem pertencerei. ESTEVAO O qué? De ser um escravo contente. SEBASTIAO Antes eu tinha utopias, ilusdes, o que eu acho ridiculo. Mas se o que existe tam- bém me parece ridiculo, no fundo estao todos bem, sou eu que estou por fora. ESTEVAO Nio seja trégico, Sebastio. SEBASTIAO Nao, realista. Além do mais a tinica coisa que quero € que me déem logo essa licenga de trabalho para ganhar algum dinheiro e nao ter que continuar fazendo teatro com esse gordo. ESTEVAO No hospital vao fazer uma experiéncia nova, pagam bem. 14, Scanned with CamScanner Cinema utoppia SEBASTIAO : Com uma foi suficiente, tiram sangue dez vezes por dia, nos fazem tomar com- primidos... ESTEVAO Voila... Passa a ele um roteiro. Vocé sera protagonista do meu primeiro filme. prostituto bate na janela. Procura o proprietdrio. Sebastiao Ibe abre. PROSTITUTO Iln’est pas la, le petit gros. Je peux enter. SEBASTIAO Mais oui. O PROSTITUTO Vous patlez beacoup. Ah. ESTEVAO Oui, parfois... O PROSTITUTO Oui, parfois... Tien, de la bonne musique. Pie misica, depois tira seringas, eldsticos e injeta heroina. Sebastido lhe pede. Estevdo tenta deté-lo. Discutem. Sebastiao injeta. Enquanto dangam, Sebastigo vé atrds de sua Jjanela dois agentes batendo nela, Sai correndo ¢ quando chega néo tem ninguém. Volta para 0 quarto, O prostituto dorme, Ela aparece num canto. ELA Fomos um, agora voltamos a ser dois. SEBASTIAO O que esta dizendo? ELA Tem que seguir, nio podemos ficar atracados, tesume no relacionamento a dois. tem que seguit, a vida nio se SEBASTIAO i apa 50. Por favor, niio vamos brincar mais, nos liberte pelo menos dis 1s Scanned with CamScanner ‘Antologiateatral da latinidade ELA Fomos feitos para um jogo constante, vocé é um excelente jogador. O que te assusta agora? SEBASTIAO O que esta acontecendo? Conte-me, por que muda tudo. ELA Vocé parece um animal ferido. SEBASTIAO Até 0 amor é um disfarce. ELA Ponha sua couraca, Sebastio, encontrei o anjo, encontrei o lugar & beira-mar. SEBASTIAO Deixa eu te amar, pela ultima vez. ELA Nao existe despedida, Sebastido, voce jé € parte de mim, s6 existem duas possi- bilidades, ser homem ou ser peixe. SEBASTIAO Depois de ter acreditado tanto, pensar que até vocé foi um sonho, deixa eu te amar. Ele a desnuda. Fazem amor no chao. ELA Se levanta, sai. Nao procure seu destino num orgasmo, Sebastido. SEBASTIAO Idiota, nao entende nada, O PROSTITUTO Joga a roupa para Sebastido. Cai, cai, levanta. O proprietdrio vem passando pela rua. Vé o prostitute. Bate na janela, depois entra ese Joga nos braces dele. Descobre Sebastiao no chao, 126 Scanned with CamScanner Cinema utoppia O PROPRIETARIO Mon petit, mignon, mon petit mignon, ¢a va pas... May, e eu que vinha cantar patra vocés, faz mal pensar, dizem, e com razon tem s6 que viver, deixar os dias passarrem e salté-los como se fossem cercas, claro, de repente, alguém trropeca, e... Olhe parra mim. Abre o roupao. Estd vestido de mulher. Se eu nao tivesse feito alguma vez, nunca terria visto o amanhecer. Vamos, alegrria, talvez nio devia, bon, me desculpe pelo teatrro. Vocé me cai bem, somos partecidos, vivemos em nossos prréprrios mundos, quer que eu cante, se voce visse como me aplaudirram, chérie, la musique... O proprietdrio canta “Rien de rien” de Edith Piaf. Baixa a cortina da tela, ilumina a sala, Misica. Na sala MARIANA Corre pela sala cantando. Nienn de niennn bechinho... ODO COELHO Como é a inocéncia, nao? Igual ao Pompénio, nao é assim, meu benzio? Num canto do teatro, Artur detém Estela. Que vai saindo. ARTUR Dizem que quem ama, artisca tudo. ESTELA Assim dizem... A SENHORA ; Aaai, que cena linda, depois de ver estes filmes tao tragicos. ODO COELHO Eu sabia, eu sabia. ASENHORA Pole Aquela cena que eles injetam, fiquei arrepiada. 1m Scanned with CamScanner ‘Antolagiateatral da latnidade 0 DO COELHO ; Eaccena de amor? Tive que tapar os olhos do Pompénio. MARINHEIRO Chhiii! Dé pra ver que esse nao entende nada de coelho, a cena de amor foi 0 melhor do filme, e a bobinha se fazendo de santa. A SENHORA. Nao liga... MARINHEIRO Escuta, oh seu cinema cheio de pulgas, ¢ a outra parte do filme, € pra quando? OLANTERNINHA $6 amanha. ARTUR que fazer acompanhado num dia de sibado? MARINHEIRO Eu vou contar o que a gente fazia num sébado preso no quartel. Pegavamos um balde ¢ enchia de urina e merda, depois ia pra rua e pegava o primeiro que passava e metia a cabeca dele dentro do balde. A gente dava risada... Siléncie. Bem, melhor ir embora. ASENHORA ‘Vamos, Mariana. ARTUR ‘Vem, toma um golinho. A SENHORA Nio, nao bebo. ARTUR Vamos, s6 um gole... 128 Scanned with CamScanner Cinema utopia ASENHORA Esta bem, s6 para provar, obrigada. Vamos, Mariana. ESTELA : ‘Vamos ficar mais um pouco, pessoal? E nosso lugar. ODO COELHO Th, eu € 0 Pompénio temos que ir. Vao nos buscar pra jantar... Bem, até Jogo... ASENHORA Nio va, fique mais um pouco, é que eu vou recitar. O sembor fica, todos se ale- gram. O poema que vou recitar agora foi escrito por mim em homenagem a este teatro. Poltronas de espuma, refiigio de inverno de tardes inteiras, poltronas vazias, Poltronas amigas, de tempos ja idos, guardem meus segredos, meus prantos, minhas penas, minhas longas esperas Oh ‘Teatro Valencia lugar de esperancas e sonhos proibidos, mostre suas facanhas suas grandes paixdes a estes pequenos olhos que nunca viveram, Todos aplaudem. Congela-se 0 aplauso. O pensamento dos assistentes. ASENHORA Que atrevimento o meu... MARIANA Nhinda,., Nhindaaa. ODO COELHO Sabe, Pompénio, gosto dela, ESTELA Como vocé é boba, Estela, pensar que queria se matar. ARTUR Em que roubada vocé se meteu agora, Artur. 19 Scanned with CamScanner Artologia testa dalatnidade OLANTERNINHA ‘Aplausos e rsadas no Valencia, quem sabe eles param de softer. Termina 0 congelamento. Retomam os aplausos. ‘ASENHORA Estou to contente que me deu vontade de dancar. Coreografia de Dangando na chuva. Comega a misica. Dangam separades entre as poltronas, no fim todos juntos, Termina o bail, se abracam, sefelcitam, Mariana danca com Pompénio. ODO COELHO A senhora danga muito bem... Saem Mariana, o senhor e a senbora cantando. Fita Estela pensativa em frente a sua poltrona. ESTELA Eo nimero vinte e quatro, é inverno, eu que jé tinha me conformado em s6 observar 0 amor de longe, sinto que broto por toda parte, caminho pela rua e me sinto tao radiante, como uma flor de estufa. ARTUR As vezes é bom controlar a paixao. ESTELA Poderia deixar tudo de novo. ARTUR Fala como uma adolescente. ESTELA Me sinto uma garoca, s6 agora percebo que no soube amar, nao me atrevis, agora quero me entregar... ARTUR Esté louca... ESTELA Sinto que é minha Ultima chance, e quero vivé-la ao maximo. Bo Scanned with CamScanner Cinema utoppia ARTUR ‘Vamos, o clima esté contagiante, a gente parece par de novela de radio. OLANTERNINHA Almas penadas, nao saiam agora... Nao salam... Quarto dia O lanterninha limpa a tela com um espanador gigante, preocupado porque ninguém chegou ainda, deprimido toca o sinal, a sala estd escurecendo, se escutam risadas, vem chegando todos juntos... Filme utoppia: terceira parte Misica. Estévao esté filmando uma cena. Camara, tripé, atuam Sebastiao e 0 proprietdrio, 0 prostituto segura um foco, vemos o final da cena que volta a repetir. ESTEVAO Nio, nao, coupé, coupé. O PROPRIETARIO Ai, cinema non é coisa facil... ESTEVAO Camara, acao... Repete a cena... Ca suffit... © PROSTITUTO Aré que enfim... Ca suffit... O PROPRIETARIO ‘Trouxe vinho pra celebrar 0 final do tournage. O proprietério vai ao banbeiro se rogar com 0 prostituto, Sebastido se senta melancélico a beira da janela. Estevado tenta se aproximar para Lhe dizer uma coisa. BI Scanned with CamScanner ‘Antologiateatra da latinidade SEBASTIAO O qué? ESTEVAO Nada, depois conversamos. Ela aparece atrds da janela. ELA Quantos anos passaram antes de voltarmos, nés mudamos muito. SEBASTIAO Nio sei, tudo parece to distante. ELA JA me canso destes invernos téo longos, é velho por toda parte, e a rua cheia de ‘excrementos. SEBASTIAO Voltar pelo sol, pela fruta, para subir uma colina. ESTEVAO Desgracados, desgracados, ela, s6 porque teve 0 atrevimento de... ELA Volear para calar, para se esconder. O PROPRIETARIO Sai excitadtssimo do banbeiro, Conta, conta... Sabiam que a mulher do terceirro andar dé dinheitto prto mignon chupar a... ESTEVAO Violentamente os expulsa do apartamento, Pra fora... pra fora... Passam pela janela zombando, Sebastiao, as vezes os sonhos so realizados, mas As vezes os pesadelos se tornam realidade... Foi numa noite timida de Buenos Aires, as trés da madru- Bada, eles a levaram nua, ela resistiu e eles a feriram, s6 se sabe 0 que o pessoal do prédio péde ver, A imagem fica estética. lumina a plattia, Os espectadores, em suas poltronas, giram olbando o piblice, e se clocam no papel das testemunbas argentinas. 132 Scanned with CamScanner Cinema utoppia ASENHORA Eu nao dormi aquela noite, fazia um calor tremendo, escutei uns tiros, e falei pro Rafael, levanta que esté acontecendo alguma coisa. ODO COELHO Eu levantei, vi o de sempre, uns homens A paisana com metralhadoras, como a coitada lutava. Vocés sabem, nessas horas nfo se pode fazer nada... A SENHORA Eram tao simpaticos, sempre conversdvamos, pareciam to estudiosos, ela foi levada nua, coitadinha... ESTELA Eu escutei uns tiros e ela gritando, ele foi levado parece j4 morto, o elevador ficou cheio de sangue. ODO COELHO E mais um pra dar volta com cartaz... ASENHORA Nao se meta, depois pode acontecer o mesmo com voce. ARTUR Em todo caso eu ndo vi nada. Ir depor? Pra qué? Apaga a luz da sala. Volta ao filme. Sebastido, em camara lenta, bate contra o muro ¢ cai no chao. SEBASTIAO Em que forno imundo eles transformaram seu sorriso em p6? Debaixo de qual pedra vou encontrar suas mos? Debaixo de qual tijolo vou encontrar sua mente? Devolva-me ela, era minha, devolvam-me ela. Nao terd paz, tirano de utopias, nao terd paz, tirano do Novo Extremo... Devolva-me ela, era minha, me devolvam ela... Estévo se aproxima para consolar Sebastiao. Abracam-se. Estevao 0 beija. Rolam no chao. Amanhece, passa gente pela rua. Sebastido vé 0 prostituto, pecle-the alguma coisa. SEBASTIAO Estévao... ESTEVAO O que? 13 Scanned with CamScanner Antlogi teatral da latnidade SEBASTIAO Preciso ficar sozinho.... ESTEVAO ‘Tem certeza, salut. ‘Ao sair Estévdo cruza com o prostituto. Ele traz um pacote e entrega a Sebastido. O ritual de Sebastiao Sebastido fica sozinbo. Mitsica, Abre 0 armério, jaga roupas no chio, encontra uma jaqueta, este, se ajelha no meio da cena, faz. uma linba vermelba na testa, amarra um bracelete no brago, pega o pacote e esconde dentro de seu casato. Sai. A cena fica vazia, sobe a tela. Na sala ODO COELHO Cada um com seu destino. A SENHORA Que mundo é esse! © DO COELHO Esté encurralado, mas porque ele quer. O amigo dele deveria fazer alguma coisa, no acha? Chamar um médico, é 0 mais légico. A SENHORA Verdade. Mariana esté travada, nao pode vespivar, vagueia pela sala. A SENHORA Aaai!, Mariana, o que esta acontecendo, ai, meu Deus, me ajudem, por favor. Arexina 9 homem ¢ 0 lanterninka, a sacadem, fazem com que ela retome a respiragao, levam-na para fora da sala. 134 Scanned with CamScanner Cinema utoppia ESTELA Sabe, Artur, agora que estou me sentindo bem, nem me importo com o que acontece com 0 Sebastiao. ARTUR Jsso nao tem remédio, nos fizeram assim, pequenos e egoistas. ESTELA Por isso eu teria um filho... ARTUR Vamos. Adeus Utopia, muito bom filme. 0 lanterninha fica sozinho, pega um spray desinfetante e comeca a jogar nas poltronas, chega @ tiltima fileiva, cai ajoelbado e coloca o spray na cabeca. ARTUR O que esté fazendo agora, sugando? Nao podia deixar de me despedir. OLANTERNINHA Nao vai vir amanhi? O filme ainda nao acabou... ARTUR Pra mim j4, o fim de Utopia é como meu préprio fim, para que repetir o prato. Vamos, nao é pra ficar triste, algum dia desses o Teatro Valencia volta a brilhar ea sala vai encher, eu nao serei mais que uma lembranga, um dos tantos espec- ~ tadores que sentou numa poltrona, o da garrafinha... OLANTERNINHA E Estela? ARTUR Sim... Estela. As vezes a gente pensa que mudou de pele, que as escamas velhas cairam, mas nao é assim, sio sé pequenas mentiras que inventamos para conti- nuar vivendo, tudo est claro agora, nao foi nada mais que uma ferida prestes a secar, como 0 tiltimo suspiro de um agoniado... Entende? OLANTERNINHA Nio, nao entendo... 135 Scanned with CamScanner Aniologia teatal da ltinidade ARTUR Ainda nao viu esse filme. Vai saindo Artur e entra Mariana bistérica, atrés do senbor do coelho com as mas n- sangientadas, Atropelaram Pompénio. MARIANA Achidente.... achiiidente... A SENHORA Foi atropelado, coitadinho, foi atropelado. ODO COELHO Pompénio, vamos, cumprimenta a senhora, néo seja timido, Pompénio... a sesso jé vai comecar. Senta-se. Todos observam, extasiados. Estamos aqui no Teatro Valencia, onde vocé tanto gosta de vir... Vamos, toque o sinal. Crise le choro. ASENHORA Ajuda, moco, ajuda... A senbora se aproxima para consolar, mas 0 senbor do coelbo a empurva, Sai apavorado. Todos vo atrés. OLANTERNINHA Desconsolado encosta, apoiando numa poltrona. Meu Senhor, que sabe tudo, me diz por que sofrem os bons e aqueles que fazem o mal esto cheios de honra, pot que 0 Senhor levou os que tinham tanto a dizer, aqueles que ainda nio conheciam o inverno, Ser que os mais justos vao primeiro e nés somos a larva que permanece condenada a ver nossas vidas apodrecerem, a pele amarelar, 0 sexo enrugar. Senhor, Deus do Céu e da Terra, faca-me compreender, quero compreender.., O sonho do lanterninha See Sere Ao terminar de rezar ¢ en i las de quanto chora, surge do meio da sala um casal de estrelas de Hollywood, ela de vestido branco longo, ele de smoking, se aproximam, pegam cada um 2 se mao e cla danga com ele pela sala, depois desaparecem, fica sozinbo ensre as pol- 136 Scanned with CamScanner Cinema utoppia O drama de Estela — Chega Estela radiante, deixou sua imagem de solteira, com vestido ¢ penteado novo. ESTELA Nao chegou ninguém? Meu relégio deve estar adiantado. OLANTERNINHA Nio, a hora est certa, ESTELA E 0s outros? OLANTERNINHA Talvez nfo venham hoje. ESTELA Que estranho, se ele queria ver o final. Marcamos um encontro, nfo te falou nada? OLANTERNINHA Nio. Bem, vou tocar o sinal, jé est4 na hora... Estela rie sua risada se transforma num grito de angistia. O som do sinal se une ao grito. ESTELA Aaai, Estela, Estela, burra, burra... O lanterninha termina de tocar 0 sinal ¢ vai se sentar sozinho. Sigilosamente aparece Mariana por entre as cortinas ¢ 0 surpreende. Oo LANTERNINHA Ahh. E vocé, aposto que fugiu. Se olbam e se abragam. Diminuem as luzes. Musica. MARIANA Chebastiao... Chebastiao... 137 Scanned with CamScanner ‘Antologiateatral da latinidade Filme utoppia: final a= Se Sobe a tela, & de noite, a luz da propaganda de neon ilumina 0 quarto, chega Sebastido correndo, sejoga no chao, escuta a sivene da, policia que se aproxima, a luz vermelha toma conta da cena, se escutam portas batendo e gente que rodeia 0 quarto, pelo alto-falante {alam para Sehastio se render. POLICIAL Vous étes complement entourreé, n’opposez pas de resistance, on va a conter jusqu’ & dix. Enquanto que pelo alto-falante se escuta a contagem regressiva, Sebastiao tira um revélver edé um tiro na cabeca, cai em camara lenta, se vé os detetives tomarem posigao atrds da janela, depois entram no quarto, constatam que estd morto, revistam tudo, um deles tira ‘foto do cadéver, o proprietério de roupao tenta entrar, é impedido, trazem uma maca ¢ ‘eles 0 levam coberto com um cobertor. Aos poucos vo aparecendo vizinhos curiasos atrds da janela, a senbora, 0 homem do coelho e Estela. Aproximam-se da maca, Esttviio vem chegando olha atinito, todos “em procissao” seguem a maca, que sai da cena. Fica Es- tévio sozinho, entra no quarto com o filme que tinha rodado durante a peca... Projeta na parede do quarto... A tela desce, ilumina a plattia no meio da sala, Mariana ¢ 0 Lanterninba, entristecidas, Mariana levanta chorandb. o lanterninha fica em sua poltrona. Depois segue Mariana. OLANTERNINHA Marianaaa, Se aproxima dela pega sua mio. Véo saindo cabisbaixes. O lanterninba olha a sala varia. Algum dia, talvez, tudo seja diferente. O lanterninha e Mariana desaparecem atrés das cortinas do Teatro Valencia. Tradugio Raquel Franga Abdanur Sara Rojo! Esta tradugéo 6 um dos resultados do projeto de Iniciagao Cientiica de Raquel Franga Abdanur, orientado por Sara Rojo. 138 Scanned with CamScanner

Você também pode gostar