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Autores Convidados Rastros - Revista do Núcleo de Estudos de Comunicação

Nilson L. Lage e Samuel P. Lima*

Possibilidade de aplicação da teoria dos


jogos para descrição de padrões do crime
organizado
Resumo

A Teoria dos Jogos é um ramo da Mate- de regras que implica o uso de estratégias óti-

mática que, através de modelos, estuda a mas para assegurar o máximo lucro e o maior

interação de estruturas formalizadas. Entre suas nível de segurança para o gerenciamento dos

muitas aplicações, figuram a definição de estra- negócios ilegais, que usualmente incluem tráfi-

tégias em economia, ciência política, operações co de drogas, de armas, de pedras preciosas,

militares e decisões em negócios. Os teóricos pessoas, apoio a rebeldes e mercenários no Ter-

de jogos estudam o comportamento atual e o ceiro Mundo. Este texto consiste em um estudo

previsível de indivíduos e organizações, pressu- preliminar sobre a aplicação da Teoria dos Jo-

pondo geralmente que escolherão as estratégias gos na pesquisa do comportamento dessas no-

melhores e mais racionais. John Von Neumann e vas organizações criminosas, poderosas e tec-

Oscar Morgenstgern formalizaram a matéria em nicamente eficientes. O crime organizado é, hoje

1944, no livro Theory of Games and Economic em dia, tema atraente para os jornalistas

Behavior (Teoria dos Jogos e Comportamento investigativos, justamente por suas relações

Econômico), mas os primeiros estudos a respei- simbióticas com estruturas do Estado e das

to datam do começo do Século XIX. Como a Corporações.

racionalidade é pressuposta na Teoria dos Jo-


gos, ela dificilmente se aplicaria à investigação
dos crimes comuns, onde os procedimentos são Palavras-chave:
ou podem ser ditados por fatores estranhos ao
Jornalismo investigativo
caso, tais como ódio, medo, lealdade, que não
se podem modelar em determinado caso. O cri- Teoria dos Jogos

me organizado, certamente, é distinto desse Crime Organizado


padrão. Funciona associado a estruturas do Es-
Globalização criminal
tado ou corporativas e obedece a um conjunto

*
Nilson Lage é do Departamento de Jornalismo - PPG em Engenharia de Gestão do Conhecimento- Universidade Federal de Santa Catarina, Campus de Trindade,
Florianópolis, e-mail lage@floripa.com.br e Samuel P. Lima é do Instituto Superior e Centro Educacional Luterano Bom Jesus/Ielusc, Joinvile, SC, Doutor em
Engenharia de Produção - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, e-mail: samuca@floripa.com.br.

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Ano VI - Nº 6 - Outubro 2005

Abstract

Game Theory is a branch of mathematics weapons, gems, people, support to rebels and

that uses models to study interaction of soldiers of fortune in the Third Word etc. This

formalized structures. It has a lot of applications, paper is a preclusive study of the possible

including economics, political science, military and application of Games Theory in the research of

business strategies. Game theorists study the the behavior of such great, powerful and

actual and the predicted behavior of individuals technologically efficient new crime organizations.

or organizations, generally considering the most Organized Crime is, nowadays, an attractive

rational and optimal strategies. John von subject do investigative journalist, just because

Neumann and Oscar Morgenstern first formalized has a symbiotic relation with structures of State

the subject in 1944 in their book Theory of Games and Corporations.

and Economic Behavior, but the first studies on it


came from the beginning of XIX century. We know
that rationality is a core condition in the Game
Theory and that such aspect has blocked any use
of it in common crime investigation. Here, there
are unpredictable attractors such as the fear, the
hate, and the loyalty, that can’t be modeled in
any particular case. Organized crime, surely, is Key Words
different. It works out associated with State and
Investigative Journalism
Business structures, and has to obey a set of
rules that imply the usage of optimal strategies Organized Crime

in order to assure de maximal profit and the better Game Theory


level of security to the managers of illegal
Globalization of criminal structures
business, usually embodying traffic of drugs,

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1. Introdução guns casos, lembram as antigas ‘cartas de corso’ que


autorizavam o apresamento de barcos mercantes .
Há pouco mais de uma década, o juiz itali- Abrigados à sombra do Estado, mafiosos high tech
ano Giovanni Falcone acreditava que o principal obstácu- agem numa rotina serena de negócios, cedendo eventu-
lo à globalização das máfias era a pluralidade de idio- almente pequena parcela dos produtos que traficam para
mas: não se teria ainda criado um “esperanto do crime permitir a forças de repressão o volume de êxitos que
organizado internacional” (PADOVANI & FALCONE, 1993). sustenta estatísticas positivas, aquietando a mídia e as
Hoje, com o suporte tecnológico da Informática e da web, sociedades.
Bandido no ‘Século do Crime’ (...) não se compromete, não se envolve, como
a barreira lingüística foi superada: mafiosos sicilianos
os criminosos do passado, com os homens poderosos da política, da polícia, da
dialogam facilmente com seus pares da Yakuza japone- imprensa, do Direito, da Justiça. Compra-os. (ARBEX JR. & TOGNOLLI, 1998:

10)
sa, das tríades chinesas, da máfia russa ou dos cartéis
colombianos; trocam informações, remetem moeda e A dimensão do comércio de drogas, o mais visível

realizam negócios pontuais como quaisquer organiza- dentre os negócios criminosos nas metrópoles do Pri-

ções empresariais de maior porte. meiro Mundo, é controverso:


Número bastante aceito, calculado pelas Nações Unidas, é
Especialistas de todos os campos de co-
de 400 bilhões de dólares (maior que indústria global do petróleo), empregando
nhecimento afirmam que o atual estágio de desenvolvi- perto de 20 milhões de pessoas e servindo de 70 a 100 milhões de consumido-
res. Talvez metade desses consumidores esteja nos Estados Unidos, o maior
mento do que aqui se vai, brevemente, tipificar como mercado de drogas do mundo. (COYLE, 2003: 28)

‘crime organizado’ deve-se, por um lado, à atração No entanto, o último relatório divulgado pelo
irresistível do volume de recursos envolvidos e, por ou- Escritório contra Drogas e Crimes da ONU, em junho de
tro, à simbiose de operadores da criminalidade com 2004 (UNODC, 2004), aponta perto do dobro de consu-
estruturas de estados. Há muitos exemplos – do Extre- midores. Seriam 185 milhões de pessoas, quase cinco
mo Oriente à Europa ocidental, África, Estados Unidos e por cento da população acima de 15 anos de idade: 146
América Latina – de episódios em que entes públicos se milhões de usuários de maconha e haxixe; 38 milhões
confundem – ou se fundem – com máfias, cartéis e soci- de drogas sintéticas; 13 milhões de cocaína e nove mi-
edades secretas para o tráfico de drogas, de armas, de lhões de heroína. A impressão que se tem é de que ain-
pedras preciosas, de pessoas, de órgãos humanos, de da esses números são modestos em confronto com a
espécimes silvestres, de segredos militares e industriais realidade – e que o dano social torna-se mais significati-
– crimes com grau variado de periculosidade. Em vários vo porque os prisioneiros ou diletantes da droga perten-
casos documentados (Camboja, Nicarágua, Afeganistão, cem, em grande número, à elite, dispõem de parcelas
África subequatorial), alianças foram firmadas por gru- de poder e influem na formação de opinião.
pos econômicos e nações de vocação imperial com gru- Mas a questão do crime organizado inclui
pos criminosos para atender a objetivos estratégicos importante aspecto instrumental: a corrupção da má-
secretos ou semi-secretos. As concessões feitas, em al- quina no Estado, que permite a apropriação de recursos

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públicos e autoriza crimes diversos de natureza fiscal. típica e antijurídica, culpável e punível. Ou ainda, sob
Caso paradigmático dessa simbiose foi o protagonizado enfoque material, o ato que viola ou ofende um bem
pela Scuderie Detetive Le Cocq, sindicato do crime que juridicamente tutelado.
dominou as estruturas dos poderes Executivo, Legislativo A caracterização elementar de ‘crime or-
e Judiciário do Estado do Espírito Santo1, atingindo até ganizado’ pressupõe, a rigor, a existência de outro tipo,
órgãos federais, desde meados dos anos 1980 e ao lon- o ‘crime desorganizado’. Essa discussão divide opiniões
go da década de 1990. A ação de dissolução desta soci- de cientistas sociais, juristas, juízes, promotores públi-
edade civil, proposta pelo Ministério Público Federal, es- cos, jornalistas especializados e pesquisadores de várias
clarece: áreas do conhecimento.
A Scuderie Detetive Le Cocq é sociedade civil sem fins lucrativos criada
Ainda hoje, há autores que negam a exis-
mediante registro de seus estatutos no Cartório de Registro Civil das Pessoas
jurídicas, livro A4, nº 3.338, em 24/10/84, com a finalidade social formalmente tência da máfia italiana tal como descrita em
declarada o bem servir à coletividade (...). Todavia, investigações (...) mostra-
ram que dita associação jamais se ateve realmente aos objetivos para os quais (FALCONE,1993) ou (STERLING,1997). É o caso de
foi supostamente criada, agindo desde o início como personificação jurídica do
crime-organizado e quartel e grupos paramilitares de “extermínio” (assassinato
Christopher Duggan (apud MINGARDI, 1998: 29):
A máfia não é uma sociedade secreta, mas um modo de vida, uma atitude. O
de supostos criminosos).
recente testemunho de Tommaso Buscetta é menos novidade do que se ima-
De episódios investigados por iniciativa do gina, e seu relato da Cosa Nostra deve ser entendido contra um pano de fundo
de mais de cem anos de ‘revelações’ similares (se bem que menos detalhadas).
Ministério Público Federal sai a matéria-prima para se
pretender modelar em computador uma representação
Na mesma direção, Daniel Bell nega a existência
baseada na teoria dos jogos, tomando como ponto de
da máfia nos Estados Unidos. O crime tipificado pelas
partida (para montar a “árvore dos jogos”) a plotagem
ações dos supostos mafiosos norte-americanos teria
final do caso, que representa o circuito percorrido pelo
permitido apenas mobilidade social. Um episódio relacio-
dinheiro: desvio original; distribuição e “lavagem”;
nado à Operação Mãos Limpas, que desembocou no jul-
integração à economia legal e redistribuição para a
gamento de vários dos grandes mafiosos italianos, gera
quadrilha que operava no Estado e além de seus limites.
o comentário irônico de Mingardi:
A representação estendida da matriz de prêmios O general Dalla Chiesa, comandante dos Carabiniere na Sicília, que chefiava
uma campanha contra a Máfia foi assassinado; dois juízes anti-Máfia, Falcone
de um jogo estratégico do tipo seqüencial de informação e Borselino, foram mortos apesar de estarem protegidos por dezenas de guar-
da-costas. Nos dois últimos casos, foi usada perto de uma tonelada de explosi-
completa é a vertente teórica que se usará para tentar
vos, talvez colocados na estrada por “um modo de vida ou uma atitude”.
elucidar essa categoria de jogo geopolítico. (MINGARDI, 1998: 31)

É mister distinguir previamente crime organizado


2. O conceito de crime e quadrilha. O procurador da República Celso Três es-
A raiz latina crimen remete à idéia de transgres- clarece: quadrilha (bando, societas delinquentium) é
são (adultério, por exemplo), dolo ou culpa, delito; acu- constante, estável, ilimitada, visível e não predatória; o
sação e, antes, separação, triagem. Na ciência jurídica, crime organizado é constante, estável, ilimitado, invisí-
do ponto de vista do conceito analítico, diz-se que é ação vel e predatório. Escreve:

1
Na região Sudeste do Brasil.

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Crime organizado é uma sociedade que tem por objeto atividade criminosa.
Janeiro, conhecidas e à vista de todos.
Regra geral visa objetivos econômicos, lucros, business, locupletamento ilícito
Várias definições são hoje utilizadas como refe-
(roubo de cargas, corrupção do dinheiro público, tráfico de drogas, etc.).2
rência:
De maneira geral, há cinco categorias de “produ-
Crime Organizado Tradicional: Grupo de pessoas voltadas para atividades
tos” em torno dos quais o crime organizado engendra ilícitas e clandestinas que possui uma hierarquia própria e capaz de planejamen-
to empresarial, que compreende a divisão do trabalho e o planejamento de
suas estratégias: a) o fornecimento de serviços ilegais lucros. Suas atividades se baseiam no uso da violência e da intimidação, tendo
como fonte de lucros a venda de mercadorias ou serviços ilícitos, no que é
(jogo, prostituição, proteção etc.); b) o suprimento de protegido por setores do Estado. Tem como características distintas de qualquer
mercadorias ilícitas (drogas, pornografia etc.); c) a infil- outro grupo criminoso um sistema de clientela, a imposição da lei do silêncio aos
membros ou pessoas próximas e o controle pela força de determinada porção de
tração em negócios lícitos (aquisição e/ou criação de território. (MINGARDI 1998: 82-83)

empresas legítimas para operar esquemas de ‘lavagem’ Quanto ao crime organizado do tipo empresarial,

de dinheiro); d) a utilização de empresas legítimas ou define o autor:


Sua característica mais marcante é transpor pra o crime métodos empresariais,
formalmente legítimas para prática de crimes (empre- ao mesmo tempo em que deixa de lado qualquer resquício de conceitos como
Honra, Lealdade, Obrigação. (MINGARDI, 1988: 87-88).
sas off-shore, por exemplo); e) infiltração na estrutura
Na realidade, Mingardi (MINGARDI, 1998) repor-
estatal e corrupção de servidores e agentes públicos.
ta-se especificamente a organizações empresariais cri-
(TIGRE MAIA, 1999).
adas para atuar em setores específicos, vinculadas ao
Mingardi (MINGARDI,1998) alerta para a
crime organizado que ele tipifica como tradicional. Ou
inexistência de um modelo único de crime organizado. O
seja, empresas especializadas em importação e expor-
autor aponta, pelo menos, dois tipos distintos: o crime
tação de produtos nos quais se dissimula o tráfico de
organizado tradicional (o exemplo mais típico no Brasil
drogas ou armas; ou, ainda, empresas, organizações
seria o jogo do bicho, considerado contravenção, e suas
(por exemplo, beneficentes, religiosas) ou grupos cria-
expansões) e o crime organizado empresarial.
dos com a única missão de praticar a ‘lavagem’ de di-
Antes de expor mais detalhadamente o conceito,
nheiro.
observe-se o que diz o próprio Mingardi (MINGARDI,
Há outras definições do que seja crime organiza-
1994) acerca das características centrais do crime orga-
do. Por exemplo, a do Federal Bureau of Investigation
nizado:
(FBI), a polícia judiciária federal dos EUA:
a) existência de uma hierarquia bem definida (hoje
qualquer grupo que tenha de alguma forma uma estrutura formalizada e cujo
ditada pela capacidade de liderança e pelo conhecimento); objetivo primário seja obter lucros através de atividades ilegais. Tais grupos
mantêm suas posições através do uso da violência, ou ameaça de violência,
b) previsão de lucro, de resultados operacionais, o que corrupção de funcionários públicos, suborno ou extorsão e geralmente tem um
impacto significativo na população local, da região ou país como um todo. Um
empresta à organização traços de empresa capitalista; grupo criminoso resume esta definição: La Cosa Nostra. (MINGARDI, 1998, p.
c) simbiose com o Estado, razão última da subsis- 43)

tência e perenidade do crime organizado. Não fosse isso, Para o autor, essa definição do FBI é precisa por-
por exemplo, não haveria como explicar a existência dos que menciona a estrutura formal, o impacto na popula-
pontos de venda (bocas) e maconha (fumo) e cocaína ção e define o conceito através da organização que o FBI
(pó) que funcionam há décadas nos morros do Rio de mais conhece: a máfia norte-americana:

2
www.abraji.org.br

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Isto faz lembrar uma característica marcante, a lei do silêncio. A estratégia


do no país em meados da década de 1970, como regis-
empregada por várias organizações criminosas para afastar a notoriedade é
muito semelhante. Cada uma delas tem sua versão particular da Omertà. tra Souza:
(op.cit)
Na primeira semana de agosto de 1975 o tema crime organizado surgia no
Citando Franco (1944), Borges aponta outras ca- Brasil pela primeira vez, durante a V Semana de Criminologia, promovida
pelo Centro de Estudos do Instituto Oscar Freire, ligado à Universidade de São
racterísticas: a) tem caráter transnacional; b) aprovei- Paulo. (SOUZA, 2002:135)

ta-se das deficiências do sistema penal, a partir de sua Com o advento da cocaína e dos sintéticos, nos
estruturação organizacional e de sua estratégia de atua- anos 1980, a questão central passou a ser o fato de que
ção global; c) a sua atuação resulta em um dano social máfias, cartéis e/ou associações criminosas movimen-
acentuado; d) realiza uma variedade de infrações, com tam, considerando apenas o setor de drogas, cifras que
uma vitimização difusa ou não; e) está aparelhado com superam o produto nacional bruto da grande maioria
instrumentos tecnológicos modernos; f) mantém cone- dos países. Esse volume de recursos financeiros precisa
xões com outros grupos delinqüenciais, ainda que estes ser ocultado, dissimulado e integrado na atividade eco-
sejam desorganizados; g) dispõe de ligações com pes- nômica lícita. Diante dessa constatação, é possível afir-
soas que ocupam cargos oficiais, na vida social, econô- mar que “as máfias deixaram de ser um assunto de po-
mica e política; h) em geral, utiliza-se de atos de extre- lícia para se tornarem uma questão geopolítica e finan-
ma violência; j) recorre a mecanismos que lhe permi- ceira de primeira grandeza.” (ARBEX JR E TOGNOLLI,
tem beneficiar-se da inércia ou da fragilidade dos ór- 1998: 32)
gãos estatais. (BORGES, 2002: 21) Por fim, aponta-se caracterização mais global ain-
Outra posição recorrente nos estudos sobre da, considerando a gama de produtos que o “crime or-
criminalidade organizada é a do juiz Luiz Flávio Gomes. ganizado” oferece a um mercado ávido:
Um fervilhante mundo clandestino, não submetido a nenhuma espécie de lei ou
Ele sugere um amplo rol de elementos típicos, defen-
regulamentação democrática, emprega centenas de milhares de pessoas. Os
dendo que a lei estabelecesse como associação ilícita ‘negócios’ incluem (...) o controle de cidades ou regiões inteiras com base na
força e no terror imposto por quadrilhas bem armadas e organizadas segundo
aquela que reunisse pelo menos três das seguintes ca- uma estrutura paramilitar. (ARBEX JR E TOGNOLLI, 1998: 32)

racterísticas: a) hierarquia estrutural; b) previsão de


acumulação de riqueza indevida; c) planejamento em- 3. Aplicação em Teoria dos
presarial; d) divisão funcional das atividades; e) cone- Jogos
xão estrutural ou funcional com o poder público ou com O envolvimento necessário de estruturas do Esta-
agentes do poder público; f) divisão territorial das ativi- do e o caráter transnacional tornam o crime organizado
dades ilícitas, entre outras. (BORGES, 2002). tema adequado ao jornalismo investigativo. Mas é a in-
O Código Penal brasileiro, no artigo 288, tipificou corporação ou contágio da racionalidade empresarial –
a formação de quadrilha ou bando e, “limitando-se a sua oposta ao caráter aleatório, passional, emotivo do crime
reforma em 1984 à parte geral, não deu tratamento es- comum e à exigência de lealdade à hierarquia, no crime
pecífico às associações criminais do tipo mafioso.” organizado tradicional – que permitem utilizar no estudo
(BORGES, 2002: 18) O conceito só passou a ser discuti- da matéria a Teoria dos Jogos.

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O objetivo dos matemáticos que desenvolveram a contendas que envolvem o Estado, representado pelos
teoria dos jogos, a partir de meados do século XIX, foi entes e agentes públicos, e o crime organizado – em
simular as várias situações possíveis em que duas ou seus diferentes matizes, vertentes e produtos vincula-
mais pessoas estivessem submetidas às “conseqüências dos. Com efeito, “são situações desse gênero que ca-
não só de suas próprias ações, mas também das ações racterizam o mundo econômico empresarial, onde a
3
dos outros” . Propuseram que a vida em sociedade é interdependência entre empresas, governo e consumi-
um grande jogo estratégico – ou uma série simultânea dores demanda a consideração de sua interdependência.”
deles –, que poderia ser modelado matematicamente (FIANI, 2004: 5)
através de um sofisticado arsenal conceitual,
metodológico e matemático – as ferramentas da teoria. 3.1 Jogos de Estratégia, Racionalidade e Ma-
Dois franceses, Augustin Cournot e Joseph triz de pay-off
Bertrand, foram os primeiros a formular, em 1838, as
bases da teoria dos jogos. Cournot fortalecia a tese do A racionalidade se impõe como conceito central
mercado como agente mediador de todos os conflitos; na Teoria dos Jogos. No entanto, é possível afirmar que
Bertrand desenvolveu algo similar, mas levava a conclu- os operadores da criminalidade organizada agem segun-
são (ou partia de premissa) diferente: sustentava a ne- do regras racionais? Até que ponto a ação dita de Estado
cessidade da intervenção do Estado para regular os também é matizada pelas tintas da racionalidade huma-
oligopólios. na e política?
Nesse universo teórico há alguns conceitos fun- Nem sempre as pessoas, ou mesmo as organizações, se comportam de forma
racional, ou seja, de forma a empregar os meios de que dispõem de forma
damentais: modelo formal, interações, agentes, adequada aos seus fins. (FIANI, 2004: 8)

racionalidade e comportamento estratégico. Ele permite Neste ponto, pode-se estabelecer o nexo entre as
analisar situações que envolvam interações entre agen- visões de Ziegler e Fiani. O mais alto escalão de coman-
tes racionais, cujo comportamento estratégico seja ana- do das organizações criminosas agiria de forma racio-

lisado formalmente como um jogo: nal. Nos níveis imediatamente inferiores da ‘hierarquia’,
a) Modelo formal. A teoria dos jogos envolve técnicas de descrição e análise, no entanto, a ação poderia ser ditada por elementos ir-
ou, em outras palavras, propõe regras preestabelecidas para apresentar e es-
tudar um jogo; b) Interações. As ações de cada agente, consideradas individu- racionais:
almente, afetam os demais. (...) Jogos são processos que envolvam interações O universo da criminalidade transcontinental organizada assemelha-se a uma
entre os agentes; c) Agente. Qualquer indivíduo ou grupo de indivíduos com selva. A única lei respeitada é avendeta. Nenhuma palavra empenhada,
capacidade de decisão para afetar os demais: um indivíduo sozinho pode ser nenhum contrato assinado tem a menor chance de durar. Muitos assassinatos
agente, como no caso do empregado que decide se vai ou não pedir um públicos, eliminações discretas e mutilações que constituem a trama quotidiana
aumento ao patrão; d) Racionalidade. Os indivíduos empregam os meios mais da atividade dos cartéis só podem ser explicados pelo ódio pessoal, a paixão
adequados aos objetivos que almejam, sejam quais forem esses objetivos; e) amorosa, a vaidade, o desejo de vingança ou uma delirante vontade de poder.
Comportamento Estratégico. Cada jogador, ao tomar a sua própria decisão, (ZIEGLER, 2003: 84)
leva em consideração o fato de que os jogadores interagem entre si, e que,
Os limites da teoria dos jogos são apontados por
portanto, sua decisão terá conseqüências sobre os demais jogadores, assim
como as decisões dos outros terão complexas conseqüências sobre ele. (FIANI, Fiani:
2004: 3-4)
A teoria dos jogos não deve ser utilizada diretamente como instrumento de
Na categoria de jogos estratégicos inserem-se as previsão do comportamento de agentes em situação de interação estratégica

3
CartaCapital, 18/09/2002, p. 12

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indiscriminadamente, nem tampouco como ‘receita’ pronta de como se deve


tal.
agir em uma situação específica. (FIANI, 2004: 7-8)

A partir da caracterização dos chamados “jogos Há dois tipos gerais de jogos estratégicos: o si-

de estratégia” (RAPOPORT, 1998), é possível combinar multâneo e o seqüencial.


(a) simultâneo é aquele em que cada jogador ignora as decisões dos demais no
três elementos distintos: a) conflitos de interesses; b) momento em que toma a sua própria decisão; (b) seqüencial é aquele em que
os jogadores realizam seus movimentos em uma ordem predeterminada. (FIANI,
certo número de alternativas em cada fase da situação;
2003, 27-31).
c) pessoas com condições de avaliar as conseqüências Os jogos podem ainda ser, de acordo com a
de suas escolhas. Do ponto de vista de um possível mo- interação entre os players, cooperativos e não-coopera-
delo de comportamento, na perspectiva de construir uma tivos (ou competitivos):
matriz de pay-off dando conta da relação íntima ‘crime Os jogos cooperativos são aqueles em que é possível o planejamento de
estratégias em conjunto pelos jogadores. Os jogos não-cooperativos são aque-
organizado & Estado’, há que se considerar tais fatores. les em que não é possível o planejamento de estratégias em conjunto, e esses
são os mais comuns. (SCHUCH, 1999: 3)
Para os operadores do crime organizado, o prê-
A representação de um exemplo de jogo
mio estará sempre associado ao processamento total do
seqüencial, na forma estendida (na próxima página) – e
ciclo da produção. Se tomarmos como exemplo a coca-
não na matriz típica da matemática – oferece a analogia
ína, cujo processo produtivo começa com o plantio da
conceitual precisa, e possível, para que se viabilize a
coca e conclui em alguma boca (ponto-de-venda a vare-
matriz de prêmios (pay-off):
jo), a matriz de pagamentos deverá contemplar estima-
No gráfico tem-se uma representação de um jogo
tiva de lucro e o risco da apreensão por parte de alguma
entre duas empresas (Inovadora e Líder) em que a pri-
agência federal e/ou ente multilateral de prevenção e
meira decide antes se vai ou não lançar o seu novo mo-
combate à droga.
delo de van; a partir daí, a segunda toma sua decisão, já
conhecendo a escolha da primeira.
3.2 Descrevendo os Padrões: as Bases Caso a Inovadora decida lançar a sua própria van e a empresa Líder reduza o
preço da sua, cada empresa obtém um lucro na produção de vans de $2
Conceituais Adotadas milhões, uma vez que ambas disputam o mercado acirradamente. Por outro
lado, se nessas circunstâncias a Líder decide manter inalterado o preço de sua
Haverá condições teóricas e técnicas de se cons- van, suas vendas se reduzem significativamente e seus lucros caem para $1
milhão, enquanto a Inovadora vê seus lucros aumentarem para $4 milhões.
truir uma matriz de “pay-off” que possa representar esse (FIANI,2004:29)

jogo estratégico? No caso de a Inovadora decidir pelo não lança-


A resposta é complexa. É necessário primeiro mento de seu novo modelo de van, a decisão da Líder
apontar a base conceitual através da qual se poderia afetará tão somente o valor de seus próprios lucros: com
representar e descrever os padrões de atuação estraté- a redução do preço, seus lucros caem para $3 milhões;
gica desenvolvida pelos dois atores (crime organizado, se optar pela manutenção, seu faturamento será $4 mi-
de um lado e, de outro, Estado de Direito). Nessa pers- lhões. Para representar esse tipo de jogo, Fiani utiliza a
pectiva, um caminho seria fracionar a representação do chamada árvore de jogos, composta por ramos e nós.
Estado, relacionando os segmentos caso a caso com o Cada nó representa uma etapa do jogo em que um dos
sindicato do crime e/ou organização caracterizada como jogadores tem de tomar uma decisão. Já um ramo (ou

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flecha) representa uma escolha possível para o jogador, uma ação ilícita de alguma autoridade pública (licitação
a partir do seu nó. fraudulenta, por exemplo) compõe um momento dife-
Eis a representação visual do esquema de frau- renciado do esquema que passa pelo superfaturamento,
des operado pela Scuderie Le Cocq, no Espírito Santo. O pelas ações criminosas de ‘queima de arquivo’ (assassi-
jogo é também do tipo seqüencial, de informação com- nato de possíveis informantes pelo esquadrão da mor-
pleta, de conluio entre o crime e as forças representati- te), criação de empresas fantasmas, lavagem do dinhei-
vas do Estado. ro no sistema financeiro e o botim final – quando o di-
Este padrão de atuação reproduziu-se nas prefei- nheiro roubado, já limpo, volta como nó terminal às mãos
turas do interior do Estado, operado a partir da cúpula dos comandantes da organização criminosa.
da Le Cocq. Cada nó do extenso jogo que começa com

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4. Conclusão mento dos padrões de atuação estratégica do crime or-


ganizado, sobretudo quando se consideram os grandes
A aplicação da Teoria dos Jogos aos crimes em movimentos da cúpula criminosa em simbiose com agen-
geral não é fácil. Seria inexeqüível, por exemplo, a cri- tes do Estado.
mes passionais ou àqueles que dependem de fatores
imponderáveis, como o grau de lealdade, a habilidade
na condução e resposta a interrogatórios, o procedimento
dependente de circunstâncias eventuais propícias etc.
No entanto, (a) o envolvimento contínuo de
corporações e organismos estatais na promoção e apoio
de atos criminosos, com objetivos econômicos ou políti-
cos; (b) a necessidade que os detentores de capital a
aplicadores de recursos alheios têm de investir parcelas
de recursos em negócio de altíssimo lucro, embora
de alto risco, já que as atividades produtivas clássicas
tendem a reduzir a lucratividade em regime de competi-
ção aberta; (c) a gestão profissional dessas aplicações,
implicando, por exemplo, o cálculo prévio dos índices
aceitáveis de perdas por apreensão, custeio de opera-
ções de corrupção e defesa nos tribunais etc.; (d) o rá-
pido crescimento das oportunidades de negócios ilícitos
como braços atuantes de empreendimentos legais, como
o beneficiamento de minérios, pedras ou operações com
commodities (por exemplo, petróleo) – tudo isso conduz
a uma nova realidade.
Trata-se agora da aplicação ao mundo do crime
da habilidade gerencial aplicada por inteiro nos jogos de
esperteza, nos quais a interação com os parceiros é fun-
damental e a informação sobe o contexto elemento pri-
mordial na tomada de decisões. Reduzem-se os espa-
ços do acaso e da sorte e se amplia o da racionalidade.
A partir desse momento, podem-se aplicar algumas fer-
ramentas da Teoria dos Jogos na descrição e reconheci-

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Ano VI - Nº 6 - Outubro 2005

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