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Construção Do Território
Construção Do Território
Realização
Patrocínio
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Coordenação: Rocinha
Inês Gouveia Aline Alves de Souza
Cristina Martins
Articulação: Clea da Silva Pinto
Antônio Carlos Firmino Eliana Pereira de Araújo
Cleonice Lopes Glauce Severino Gomes
Emerson de Souza Gonçala Norberto Araújo Pereira
Shamyra Ferreira Maria Elisabeth Domingos dos Santos
Francisca Honorata de Oliveira
Pesquisa, entrevistas e transcrições: Flávia Melo Souza
Carolina Pires Heloisa Helena Moraes Cardoso
Cleonice Lopes Kinda Martins Firmino
Lília Santos de Lima
Assistência de pesquisa e transcrição: Maria da Paz Macedo Pereira
Bruna Soares Magnalda Rodrigues
Nataly Alves Maria do Rosário Marcelino
Kinda Firmino Rogéria Batista do Nascimento
Maria Edileusa Braga Rodrigues
Revisão: Maria de Socorro Carvalho dos Santos
Bruna Caldas Maria Izabel de Carvalho
Marilene Martins Costa
Fotografias: Maria Rosentina da Silva Oliveira
Acervo Museu do Horto Michelle da Silva
Acervo Museu Sankofa Memória Rita de Cássia Smith
e História da Rocinha Simone Alves dos Santos Rodrigues
Bruna Soares Suely Figueiredo de Souza
Kinda Firmino Suely da Conceição Rodrigues
Cleonice Lopes Raimunda Luci dos Santos
Shamyra Ferreira Tania Regina Rodrigues Miranda
Emerson de Souza
Programação Visual:
Thiago Venturotti
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Organização
Realização
Patrocínio
Sumário
Apresentação
Inês Gouveia
O Museu do Horto
Emerson de Souza
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Inês Gouveia
APRESENTAÇÃO
A pesquisa sintetizada neste livro recebeu Esse desejo encontrou a parceria da Rede de
inspiração de um importante evento de 2016: a Museologia Social do Rio de Janeiro com o Mu-
XVII Conferência do Movimento Internacional seu Sankofa da Rocinha e o Museu do Horto.
por uma Nova Museologia (MINOM), realizado Logo a seguir, o desejo instituído virou proje-
em Nazaré, distrito de Porto Velho, Rondônia. to a partir do lançamento do edital Territórios
Esse encontro foi capaz de reunir diferentes Culturais, no segmento Memória e Cidadania,
desejos de memória, para juntos conversarem acompanhado pela Superintendência de Mu-
sobre como o povo ribeirinho de Nazaré pode seus, da Secretaria de Cultura do Estado. A ex-
seguir cuidando de sua memória. periência vivida no MINOM nos fez conceber
Além daquilo que era previsto, o encontro em um projeto simples e transformador como a
Nazaré foi um clarão. Faça a experiência: reú- experiência que vivemos: ouvir e registrar his-
na mulheres com desejo de problematização em tórias de mulheres, realizar escutas e conversas
um espaço onde elas possam conversar entre si, entre elas e, no fim, divulgar o máximo possível
seguras e tranquilas. O resultado será: percebem esse conteúdo. Projeto reconhecido e incentiva-
sua força e a necessidade constante de lidar com do, seguiu-se a sua execução.
as diferentes formas de dominação pelo machis- O resultado: mais de 50 mulheres entrevis-
mo. Uma dinâmica tão simples que assusta. Para tadas por duas pesquisadoras, mais quatro
mim e para as demais, esse encontro produziu mulheres que auxiliaram as pesquisas e a cada
e renovou o desejo de atuar mais em prol da li- conversa se repetiu a experiência da autoper-
berdade, da igualdade de direitos e de oportuni- cepção – nós, nossas mães, nossas ancestrais,
dades para as mulheres, compreendendo-as em tantas mulheres com essa história de luta, co-
sua individualidade e enquanto coletividade. ragem, atuação valente, determinação e que
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Inês Gouveia é articuladora da Remus-RJ desde 2013. Doutora em Museologia e Patrimônio, mestra
em Memória Social e historiadora.
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Inês Gouveia
REDE DE
Museologia Social
DO RIO DE JANEIRO
A Rede de Museologia Social do Rio de Janei- rios. São memórias que combatem preconceitos,
ro (Remus-RJ) é fruto da articulação constante discriminações, ciclos de dominação social e que
e fluida entre iniciativas de memória, museus, favorecem a diversidade cultural, estimulando e
museus comunitários, ecomuseus, pontos de exercitando o direito à diferença.
memória, pesquisadores, profissionais de mu- A museologia social exprime um fazer muse-
seus e agentes públicos e privados. O encontro ológico específico, voltado exclusivamente para
destes diferentes agentes se dá pelo objetivo em afirmação consciente dessas memórias, com o
comum, que exprime a razão de ser da Rede: objetivo direto e claro de transformação social.
favorecer as condições de pesquisa, registro e Nessa direção, essa museologia específica é um
divulgação das narrativas e das memórias com movimento comprometido com a construção de
que esses grupos lidam. E que memórias são es- processos participativos, horizontais, que aco-
sas? Memórias que precisam se sobrepor ao es- lhem o saber técnico em pé de igualdade com
quecimento deliberado e sistematicamente pro- outras formas de saber. Com essa compreensão,
duzido. Memórias resistentes que afirmam um esse movimento não está alicerçado no saber
direito de lembrar, de (re)elaborar suas identida- acadêmico, escolástico. Suas raízes rizomáticas
des, de existir e de permanecer em seus territó- estão junto aos movimentos sociais (instituídos
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Assim, com orgulho, a Rede de Museologia jetivo a valorização das trajetórias de mulheres
Social do Rio de Janeiro (que têm integrantes e de quaisquer outros grupos sociais silenciados.
e parceiras incríveis) se ocupa das mulheres, Pelo exercício do labor em favor da Remus-RJ,
suas memórias e suas lutas, afirmando todos dos museus transformadores e dessas memórias
os seus direitos frente ao machismo estrutural, que nos importa cuidar, fica registrado o agra-
conservadorismo e aos preconceitos atuais. Não decimento a Cleonice Lopes e Carolina Câmara
há memórias neutras; ou elas cooperam com a Pires, pesquisadoras e as principais executoras,
manutenção dos mecanismos de controle e do- juntamente com Kinda Firmino, Bruna Soares e
minação ou elas atuam para modificá-los. Shamyra da Silva Ferreira. Agradecemos muito
A Remus-RJ compreende seu papel de agente ao trabalho das parceiras Mirela Araujo e Ron-
social, frente aos desafios de seu tempo. Reco- delly Cavulla, que elaboraram conjuntamente
nhece que a reprodução de uma memória social o projeto e expressando gratidão a elas, agra-
é o cimento do conservadorismo, assim como a decemos e saudamos a todas as mulheres que
produção de uma renovada memória social é o embalam a Remus-RJ e a as mulheres que nesse
fermento da transformação e da criação. Felizes mundo a fora são as guardiãs da memória de seu
pela publicação deste livro, esperamos que ele povo. Aos companheiros Firmino e Emerson,
incentive outras ações de registro e produção de permanece a gratidão pelo compromisso sincero
acervo sobre os territórios, que tenham como ob- e a generosa contribuição.
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MUSEU SANKOFA
Memória e História
da Rocinha
Buscar retratar as memórias e histórias da adultos), na Ação Social Padre Anchieta (ASPA),
considerada maior favela da América Latina a mais antiga instituição da Rocinha, com a pro-
(Rocinha) nunca foi fácil e nem vem sendo, mas fessora Lygia Segala. Os alunos partiram de uma
partimos de valorosas ações e atitudes realiza- pesquisa sobre aspectos culturais e, posso dizer
das entre as décadas de 1970 e 1980 pelos pró- também, pelo direito às suas memórias e histó-
prios moradores da Favela da Rocinha, sendo rias, mesmo em um contexto político e econômi-
estes alunos do antigo Mobral (alfabetização de co desfavorável, como na Ditadura Civil-Militar.
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O processo de construção foi de forma demo- Houve outras iniciativas, menos contínuas,
crática, levando em conta o conhecimento de como a do diretor Luiz Roberto, da então cria-
cada participante. Ao final se indagou sobre o da Associação de Moradores Amigos Bairro
que fazer com o material coletado, então sur- Barcelos, da parte baixa da favela, que iniciou
giu a ideia de um livro. Na época colaboraram uma atividade de preservação das histórias da
para organização: Antônio de Oliveira (presi- Rocinha. Essa atividade não foi à frente e, na
dente da associação União Pró Melhoramento década de 1990, outra iniciativa de outro grupo
da Rocinha) e a secretária da Associação, Tânia de moradores com rodas de conversas também
Silva, junto com Lygia Segala. aconteceu, mas não teve continuidade.
O livro, que é carinhosamente chamado de Em 2004, com o governo do então presiden-
Varal de Lembranças, é uma obra produzida te Luiz Inácio Lula da Silva, através do minis-
coletivamente pelos moradores e relata o co- tro da Cultura Gilberto Gil, foi lançado o edital
tidiano daqueles que nasceram na Rocinha, para pontos de cultura pelo Programa Cultura
ainda antes dela ser tornar a maior favela da Viva. Na ocasião, entre outras, duas institui-
América Latina. Contempla os descendentes ções trabalhavam em conjunto: Ação Social
dos africanos escravizados, imigrantes eu- Padre Anchieta (ASPA), uma das instituições
ropeus, os migrantes e a diversidade de suas mais antigas da Rocinha e Centro Interna-
histórias. Outra iniciativa importante na pro- cional de Estudo e Pesquisa sobre a Infância
dução da memória da Rocinha foi o documen- (CIESPI), que já realizavam ações de valoriza-
tário Rocinha 77 de Sergio Peó, produzido na ção, preservação do brincar e sua importância
década de 1970 em conjunto com os morado- no desenvolvimento do ser humano, em espe-
res, que relata parte de um cotidiano pelas par- cial nas crianças. Essas instituições entraram
tes baixa da favela. no edital e foram selecionadas para ser pontos
Na década de 80 houve produções de audio- de cultura, cumprindo seu plano de ação de ati-
visual de Eunice Gutman – Rocinha Criança e vidades de resgate, preservação e valorização
Rocinha tem histórias – do Centro de Comuni- das brincadeiras e cantigas na Rocinha. Neste
cação e Imagem popular (Cecip), e na literatu- contexto também foram realizados encontros
ra, publicação dos livros “Fala MARIA Favela”, entre moradores e ex-moradores, dentre os
“Uma esperança na Luta”, “Architecte des Fa- mais antigos, na busca de valorização da orali-
velas”, publicação em francês (Arquitetura de dade (Prosa Griô).
Favelas, em português) e dois livros infantis, Dentro deste contexto, o Centro de Cultura
“Picolé Picolé” e “Gata Vitória Pulou o Muro e Educação Lúdica da Rocinha – nome do pon-
Caiu na Lixeira Acabou a História” – todas as to de cultura – trouxe grandes contribuições
produções relatando histórias do cotidiano. para reflexões no processo de constituição do
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Museu da Rocinha. Agregou, mais tarde, com de Cultura do Estado do Rio de Janeiro, Paulo
o nome Museu Sankofa Memória e História Conde, e os presidentes das três associações,
da Rocinha, com a sua participação no ano de Willian de Oliveira (UPMMR), Wallace Pereira
2007 no Fórum Cultural da Rocinha, organi- (AMABB) e Carlos Costa (ALVC) na parte alta
zado pelo diretor do grupo de teatro Roça Caça da favela.
Cultural, Aurélio Mesquita. O Museu Sankofa O Fórum Cultural da Rocinha foi o reinício
teve a participação de moradores amantes das da junção de vários movimentos pela manu-
expressões culturais, representantes de insti- tenção da cultura local. Produziram um docu-
tuições locais, produtores culturais de dentro e mento chamado “Plano Cultural da Rocinha”,
fora da favela, autoridades como o Secretário com algumas diretrizes:
Diretrizes e recomendações
Estes são fragmentos do Plano Cultural da tins de Oliveira, coordena o grupo Rocinha
Rocinha que nasceu de movimentos anteriores Sem Fronteira. Contamos com Maria Helena
que buscavam, e buscam, o direito às memórias Carvalho da área da saúde, José Ricardo Du-
e histórias na favela. O grupo pró-Museu da arte, militar da reserva e presidente da Asso-
Rocinha, formado por moradores, desde 2008 ciação de Moradores da parte alta da Rocinha,
dentro do Fórum Cultural da Rocinha, tornou- Laborioux e Vila Cruzado; Fernando Ermiro,
-se um grupo independente em 2010. Muitos se historiador e mediador de conflito comuni-
desinteressaram por achar que o governo não tário e eu, Antônio Carlos Firmino, geógrafo,
fez cumprir o plano. O grupo pró-Museu da Ro- articulador do ponto de cultura Centro Lúdico
cinha (nome da época) seguiu acreditando na da Rocinha, membro do Fórum Cultural da Ro-
possibilidade de os moradores se organizarem, cinha, Fórum dos Pontos de Cultura e da Rede
mobilizarem e seguirem construindo a ideia e de Museologia Social do Estado do Rio de Ja-
transformando em ações concretas, de acordo neiro. Todos com mais de 20 anos de atuação
com suas pernas. Era preciso estar em espaços nas áreas da saúde, direitos humanos, social,
afins, conhecer outras iniciativas semelhantes educacional, ambiental e cultural.
e estabelecer relações de parcerias com insti- Sankofa é uma palavra Akan das nações afri-
tuições diversas, no campo da Memória Social, canas de Ghana e da Costa do Marfim, que signi-
Museologia, entre outras. Destacou-se também fica: “devemos olhar para trás e recuperar nosso
a importância da proximidade com instâncias passado, assim podemos nos mover para frente;
do Estado e autarquias das três esferas. assim compreendemos porque e como viemos a
O Museu Sankofa Memória e História da ser quem somos nós hoje”. Uma das formas de
Rocinha é formado por moradores, dos quais representação baseia-se na imagem de um pás-
um foi o primeiro administrador Regional da saro mítico que está com os pés plantados firme-
XXVII Região Administrativa da Rocinha, na mente para frente e com a cabeça olhando pra
década de 1980. Hoje, aposentado, José Mar- trás, como um certo guia para planejar o futuro.
“Ao mesmo tempo que preserva os O Sankofa vem se constituindo como pessoa
frutos materiais das civilizações passa- jurídica, a serviço da sociedade e do seu desen-
volvimento, na promoção e defesa do patrimô-
das, e que protege aqueles que testemu-
nio cultural, dos Direitos Humanos, do meio
nham as aspirações e a tecnologia atual, ambiente natural e construído em favelas e pe-
a nova museologia – ecomuseologia, riferias. Considera o patrimônio cultural mate-
museologia comunitária e todas as ou- rial e imaterial como processo social afirmativo
tras formas de museologia ativa – inte- de identidade coletiva e a sua preservação como
ressa-se, em primeiro lugar, pelo desen- direito de cidadania. Visa a manutenção de
acervos de memória como forma de fortalecer
volvimento das populações, refletindo
oportunidades de produção cultural para popu-
os princípios motores da sua evolução lação residente em favelas; envolvimento cul-
ao mesmo tempo que as associa aos tural, artístico e ambiental-urbano de interes-
projetos de futuro. (Mario Chagas, se comunitário; gestão compartilhada de ações
Nathália Lardosa e Luiza Calixto. Rede com órgãos públicos e privados de cultura, de
educação, de turismo, meio-ambiente, urbanis-
de Museologia Social do Rio de Janeiro:
mo e direitos humanos; estímulo à realização de
Uma experiência de diagnostico e carto- rodas de conversa comunitárias para discussão
grafia. Arquivo dos autores, disponível de questões relativas à memória, ao patrimônio
em http://rededemuseologiasocialdorj. cultural e à condição ambiental-urbana da Fa-
blogspot.com.br/p/rede-de-museologia- vela; faz uso das novas tecnologias da informa-
ção e comunicação na preservação do patrimô-
-social-do-rio-de.html)“
nio material e imaterial; promove intercâmbios
de experiências com territórios e organizações,
O Museu foi, também, selecionado em par-
nacionais e internacionais.
ceria com a Escola de Música da Rocinha em
Além disso, visa, ainda, a valorização das me-
concurso público (edital do Programa Ponto de
mórias e histórias nativas, quilombola, imigran-
Memória, edição 2014) para ações desenvol-
tes e migrantes, visando fortalecer a cultura
vidas por iniciativas de memória e museologia
local e seus valores históricos e sua identidade;
social pelo recém criado Instituto Brasileiro de
pesquisa, fomenta, cria, apoia ações culturais,
Museus (IBRAM). Este instituto é responsável
socioeducacionais, ambientais e de direitos hu-
pela Política Nacional de Museus (PNM) e por
manos; a valorização das memórias e histórias
implementar ações, estratégias e políticas para
da identidade coletiva da favela da Rocinha e
o setor. O Museu Sankofa é, portanto, um ponto
adjacências; capacitação de recursos humanos
de memória reconhecido por essa autarquia li-
em especial da favela para desempenho de ati-
gada ao Ministério da Cultura.
vidades de memória e museologia social; iden-
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tifica, inventaria, coleta, preserva patrimônios curta duração, bem como exposições itinerantes
materiais e imateriais, acervos e informações abordando temas diversos e de interesse dos
referentes às memórias e histórias da Favela moradores da Rocinha e elabora e desenvolve
da Rocinha e adjacências de uso de novas tec- programas sistemáticos de educação museal.
nologias da informação e comunicação. E tam- Faz parte de nossos interesses considerar,
bém concebe e realiza exposições de longa e de cuidar e conservar a vegetação remanescen-
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Referências
ACR- Agenda Cultural da Rocinha; Marry Ana; Sergio Linhares Miguel de Souza, Evandro Luiz
Editora livre Expressão 2012. de Carvalho (Org). PATRIMÔNIO CULTURAL
– Educação para o Patrimônio Cultural. Rio de
DESVALLÉS, André; MAIRESSE, François. Concei- Janeiro: Instituto Estadual do Patrimônio Cultural
tos-Chaves de museologia. Editores, Tradução Bru- (INEPAC), 2014.
no Brulon Soares e Marilia Xavier Cury – Comitê
Nacional Português do ICOM / Secretaria de Cultura PLANO CULTURAL DA ROCINHA, elaborado pelo
do Estado do Rio de Janeiro/FUNARJ-2010. Fórum Cultural da Rocinha em 2007.
Antônio Carlos Firmino é morador da Rocinha, articulador cultural do Ponto de Cultura. Membro do
Fórum dos Pontos de Cultura e Fórum Cultural da Rocinha. Integrante do Museu Sankofa Memória e
História da Rocinha e do grupo de articulação e trabalho da Remus-RJ.
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Emerson de Souza
O MUSEU
do Horto
O Museu do Horto foi criado em 2010 para ser- atuante, inclusive na Rede de Museologia Social
vir como um instrumento de preservação e di- do Estado do Rio de Janeiro.
vulgação. Além disso, serve também para marcar Desde 2010, o Museu do Horto participa da
a legitimidade da comunidade do Horto Florestal, construção das políticas nacionais para museus
através das histórias das famílias tradicionais do através da participação nos grupos de trabalho
local, que vivem nas áreas de litígio da região. e mesa de debate, como no IV Fórum Nacional
O Museu do Horto funciona como um museu de Museus (Brasília – 2010), no V Fórum Nacio-
de percurso e virtual. Em seu acervo há objetos nal de Museus (Petrópolis – 2012) e no VI Fórum
como moedas, colheres e documentos pessoais Nacional de Museus (Belém – 2014). Nestes en-
e familiares, estruturas prediais (casas dos mo- contros também foram realizados os encontros
radores, escolas, clubes sociais, antigas ruínas e da Teia de Memória, o que fortaleceu o movi-
edificações), os patrimônios imateriais (festivida- mento da própria Rede de Museologia Social do
des, ervarias, crenças e ancestralidade) e as ricas Estado do Rio de Janeiro e redes de outros esta-
memórias dos moradores que mostram histórias dos. Também participou da construção do Con-
sobre as relações dos moradores com o meio am- selho de Gestão Participativa/Compartilhada
biente local. O acervo do Museu do Horto é cons- do Programa Pontos de Memória. Pela Rede de
truído através de “acervo participativo” recolhido Museologia Social, o Museu participa de encon-
pelos moradores da região. Estes objetos são digi- tros itinerantes realizados em diversos pontos
talizados, catalogados e estão expostos no site do do Estado do Rio com representantes de outros
museu. A criação do Museu do Horto foi possi- pontos de memória (ecomuseus e museus comu-
bilitada a partir da criação do Programa “Pontos nitários) e também com os pontos de cultura.
de Memória” pelo Instituto Brasileiro de Museus O Museu do Horto realiza ações dentro do
– IBRAM e tem o reconhecimento deste através seu território: projetos voltados à participação
do mesmo programa como um museu parceiro e dos moradores e parceiros em atividades para
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no que se refere à educação na comunidade. Em Hoje vivemos num mundo onde o Estado de
1984 foi feita a “Declaração de Quebec”, onde fo- Direito está sendo abalado e os direitos funda-
ram propostos os princípios da base de uma nova mentais (sociais, humanos) estão sendo desres-
museologia oriunda da gestão da Mesa Redonda peitados. O feminicídio no Brasil se encontra
de Santiago do Chile. A Declaração de Quebec com taxas altíssimas e a voz das mulheres não
firma a função social do museu e o caráter glo- é ouvida. É neste sentido que o projeto prêmio
bal de suas intervenções. Sendo assim, o Museu “A Participação das Mulheres na Construção do
do Horto é um museu comunitário que segue a Território” (apoiado pela Secretaria Estadual de
ideia da renovação da museologia proposta nas Cultura através da Superintendência Estadual
mesas de Santiago do Chile, de Quebec e de pen- de Museus, desenvolvido pela Rede de Museo-
sadores como Mário C. Moutinho, Mário Cha- logia Social do Estado do Rio de Janeiro, junto
gas, Hugues de Varine, entre outros. Tem como com o Museu do Horto e Sankofa da Rocinha)
função principal de ser um local de salvaguarda, vai ajudar a dar visibilidade a estas mulheres
de exposição e legitimação das diversas vozes que têm papel fundamental na história de cons-
dos vários atores que atuam na construção dos trução deste e de outros territórios. É função de
muitos territórios do Horto Florestal, do Rio de um museu que pretende cumprir seu papel de
Janeiro, do Brasil e do mundo. A partir da va- vanguarda nesta sociedade, abrir espaço para as
lorização dos seus saberes e fazeres específicos, tantas vozes de tantas mulheres que ainda so-
promove a noção de igualdade de oportunidades frem com o preconceito de uma sociedade em
para um mundo mais justo socialmente. E é fun- dicotomia: de pensamento machista, mas de
ção do museu proporcionar a construção deste maioria feminina.
espaço igualitário e assumir assim seu papel de
vanguarda no mundo contemporâneo.
Emerson de Souza é morador, nascido e criado no Horto Florestal, músico, produtor cultural e ativista
político. É um dos fundadores e integrantes do Museu do Horto e o atual presidente da Associação de
Moradores e Amigos do Horto, a AMAHOR.
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Cleonice Lopes
Um pouco de história
sobre o surgimento
DA Favela / Bairro
da Rocinha
“No dia 28 de outubro de 1968, chega-
mos de madrugada ao largo do Boiadei-
ro, na Rocinha, e fomos para o morro
Dois Irmãos, que na época se chamava “Rocinha amada e querida!!
morro da Roupa. A Rocinha é uma Rocinha minha história minha vida.
comunidade com um coração enorme, Rocinha quero homenagear-te
acolhe todo mundo, é a melhor da zona Cantar te em versos e prosas
sul do Rio de Janeiro; costumo dizer que
a Rocinha é uma cidade dentro de outra. Quero expressar-te o meu respeito,
Desde que botei o pé na Rocinha, falo meus apreço, meu amor e minha grati-
desse processo, desse momento pessoal, dão. Pois aos vinte anos de idade, aco-
como foi a chegada, a luta comunitária, lhes-te a me e aos meus no seio do teu
as conquistas, as decepções. Sempre pro- coração. (Honorata, 2017)”
curei relatar, através dos versos de cordel
que escrevi. (Honorata, 2003, pág. 100/101) “
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Começamos este breve histórico sobre o sur- No século XX, seguindo o rumo do crescimento
gimento da Rocinha com o texto de Francisca urbano, essa parte da capital federal começa a ga-
Honorata da Nobrega Oliveira, do livro “A Fa- nhar a configuração da atual Rocinha. Conforme
vela Fala”, pois achamos que o texto sintetiza o demonstrado no blog da Rocinha, esta etapa da
que é falar sobre a constituição da Rocinha e ocupação do território origina-se:
o sentimento de quem a escolheu para viver.
Não queremos e não temos a pretensão aqui
“Segundo histórias contadas através
de findar a forma como os moradores/pesqui-
de livros e depoimentos de pessoas que
sadores da Rocinha contam a história do seu
surgimento. Porém gostaríamos de contribuir residiram e residem na Rocinha, contam
com este debate, que acreditamos perpetuará que a comunidade recebeu seus primeiros
nas gerações futuras. habitantes, logo após a II Guerra Mundial,
É sempre importante lembrar que, o lugar vindos de Portugal, França e Itália. Eles
hoje habitado por nossas famílias e institui-
viviam, basicamente, da agricultura e
ções, já foi terra indígena. Com a invasão dos
portugueses a partir do século XVI, a dizima- possuíam pequenas roças e vendiam suas
ção dos indígenas e as mazelas da escravidão produções no povoado vizinho (Na feira
inseriam o território no drama da exploração da Praça Santos Drummond na Gávea).
colonial. A chamada Freguesia da Gávea (pro- Daí surgiu o nome Rocinha. Mineiros,
priedade que deu origem a Favela da Rocinha,
baianos e imigrantes da região nordes-
e que foi o nome dado a região até a atual Barra
te, chegados em meados dos anos 50,
da Tijuca), era também rota de liberdade para
os escravos que fugiam para os Quilombos do também fazem parte deste crescimento
Sacopã e das Camélias. populacional. (Rocinha Blog, 2010)”
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Pesquisando sobre o surgimento da Rocinha, a fazenda e vendeu lotes de 270 metros qua-
encontramos várias versões que datam sobre drados a particulares (Leitão, 2009). Para o au-
a ocupação do território; uma das versões que tor, foi a partir deste loteamento que ocorreu
quase todos concordam é sobre a rua principal a intensificação da ocupação da Rocinha, mas
da Rocinha (Estrada da Gávea) já existir nos se analisarmos o artigo publicado por Michel
anos 1900, que fazia a ligação entre as terras Silva, no Jornal Fala Roça, em 18 de agosto de
das fazendas e chácaras existentes no alto da 2015, lembramos que o território da Rocinha
Gávea com as terras de Conrado Niemeyer.2 já era ocupado anteriormente, pois havia vá-
A grande ocupação do território foi inten- rias chácaras, fazendas e sítios na região. Um
sificada após a venda da fazenda Quebra Can- exemplo desta ocupação pode ser observado
galha de propriedade da Companhia Castro pela pesquisa realizada pelo Blog Fala Roça:
Guidon. Entre 1927 e 1930, a companhia loteou
2 | Conrado Jacob de Niemeyer nasceu em Lisboa, em 28 de outubro de 1788, e faleceu no Rio de Janeiro, RJ,
em 5 de março de 1862. Filho do coronel de engenheiros Conrado Henrique de Niemeyer e Firmina Angélica
de Niemeyer. https://ihgb.org.br/perfil/userprofile/CJNiemeyer.html acessado em 07/02/2017 as 15:07.
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tempo foram trazendo seus parentes, que na O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatís-
Rocinha construíram suas moradias e seus tica (IBGE) constatou no Censo de 2010 que a
pequenos comércios. Rocinha é a favela mais populosa do país, com
No ano de 1950, ocorreu na Rocinha a pri- 69.356 pessoas, distribuídos em 25.352 domicí-
meira verificação do quantitativo de morado- lios (média de quase três moradores por residên-
res existentes. cia), dados estes contestados pelas lideranças da
Rocinha, que estipulam em cerca de 200.00 mil
“O primeiro recenseamento da Roci- habitantes. Os dados da Empresa Light, respon-
sável pela distribuição de energia elétrica do Rio
nha, realizado em 1950, aponta a exis-
de Janeiro, divergem do Censo 2010, esta esti-
tência de 4.513 habitantes numa área
pula que existam cerca de 150.00 mil moradores
que, devido à dispersão das moradias e na Rocinha. (Carvalho, 2017)
ao caráter rarefeito da ocupação, apre- Dados do Programa de Aceleração do Cres-
sentava característica das outras favelas cimento - PAC1, afirmam que a Rocinha ocupa
cariocas, onde se observava um maior uma área de 95 hectares ou 957.253m² e tem
uma população estimada em mais 100.000 ha-
adensamento de edificações. Em 1974,
bitantes, localizada entre dois bairros nobres da
um novo recenseamento realizado pela Zona Sul do Rio de Janeiro: Gávea e São Conrado
Secretaria de Segurança Pública apon- (Plano de Desenvolvimento sustentável, 2011).
tava a presença de 33.790 habitantes A Rocinha também se destaca pelo quantita-
distribuídos em cerca de 7.500 domicí- tivo de serviços que disponibiliza aos seus mo-
radores, tais como: três Associações de Mora-
lios. Em 1980, os dados fornecidos pela
dores, uma Associação do Comércio com 1.200
Secretaria Municipal de Planejamento
filiados, dois Centros Integrados de Educação
indicavam que o número de moradores Pública, jornais comunitários, vários sites, rá-
da Rocinha havia alcançado um total dios comunitárias, Postos de Saúde (UPA e três
de 97.945, ocupando 19.489 domicílios. Clínicas da Família), três agências bancárias
Esses números representam um percen- (Caixa Econômica, Brasil e Bradesco), linhas
de ônibus, supermercados, escolas públicas,
tual de crescimento de, respectivamen-
agência dos Correios, escola de samba (Acadê-
te,190% e 160% em relação aos dados micos da Rocinha) e diversas instituições que
obtidos em 1974. oferecem uma gama de cursos (alfabetização,
(LEITÃO, 2009, p.81,82,83)” profissionalizantes, artesanato, dança, lutas,
informática), centro/serviços sociais e um va-
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riado conjunto de atividades para todas as ida- Finalizaremos esta síntese sobre a Rocinha
des. São 2.700 estabelecimentos comerciais! A com a fala de Silvana de Araújo Porto, uma das
Rocinha transformou-se na 27ª Região Admi- fundadoras da primeira associação de Mora-
nistrativa da Cidade do Rio de Janeiro pelo De- dores da Rocinha, Serviço de Recuperação de
creto Municipal nº 6.011, de 4 agosto de 1986. Favela (SERFHA), fundada em agosto de 1960.
Foi reconhecida como bairro pela Lei Munici- Esta se tornou a primeira mulher a ser presi-
pal nº 1.995, de 18 de julho de 1993 e toda sua denta da associação de moradores em 1977. Em
área foi declarada de Especial Interesse Social, entrevista ao Jornal Brasil Mulher, em agosto
pela Lei Municipal nº 3.351 de 28 de junho de do mesmo ano, Silvana falou sobre o início de
2001 (Gonçalves, 2013). sua campanha e sua presidência e como era ser
uma mulher a liderar a Associação nesta época.
Rocinha hoje
3 | Durante a pesquisa não identificamos a presença de grupos de apoio à mulher vítima de violência ou gru-
pos diretamente voltados para a ampliação de direitos das mulheres. Isso não significa que não existam, mas
que, se existem, não são amplamente conhecidos e noticiados.
36
Rocinha em 2017.
Fotos de Alessandra Freitas,
38
Rocinha em 2017.
Fotos de Maria da Paz
39
Rocinha em 2017
Foto de Michel Silva
40
Referências
Links: http://www.falaroca.com/rio-antigo-a-fazenda-que-
http://oglobo.globo.com/rio/a-historia-da-favela-da- bra-cangalha-e-a-origem-da-rocinha/
-rocinha-em-sao-conrado acessado em 08 de fevereiro, 2017.
http://noticias.r7.com/rio-de-janeiro/noticias/popula- http://www.emop.rj.gov.br/trabalho-tecnico-social/
cao-da-rocinha-ja-e-maior-que-a-de-92-das-cidades- plano-de-desenvolvimento-sustentavel-pds.
-brasileiras-20110521.html
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o sumário
COMUNIDADE DO Horto:
lugar de resistência ancestral
Ao estudar a história das favelas da cidade do poder público junto a classe econômica domi-
Rio de Janeiro, é possível perceber que, muitas nante, com o objetivo de exterminar as favelas
delas, foram objeto de remoção por serem con- ou simplesmente deslocar uma população que
sideradas como algo estranho ao ideal hegemô- habita áreas classificadas como nobres para
nico, construído ao longo dos anos, do que se regiões periféricas, que não atendem aos re-
entende por cidade. Sob o signo de interesses quisitos de moradia adequada1 propostos pela
diversos, as remoções foram articuladas pelo Organização das Nações Unidas – ONU.
1 | O conceito de moradia adequada reúne alguns requisitos para que qualquer pessoa possa viver de forma
digna. Segundo a ONU (1991), as condições necessárias para conceituar uma moradia como adequada são: a) Se-
gurança da posse: a moradia não é adequada se os seus ocupantes não têm um grau de segurança de posse que
garanta a proteção legal contra despejos forçados, perseguição e outras ameaças; b) Disponibilidade de serviços,
materiais, instalações e infraestrutura: a moradia não é adequada, se os seus ocupantes não têm água potável,
saneamento básico, energia para cozinhar, aquecimento, iluminação, armazenamento de alimentos ou coleta de
lixo; c) Economicidade: a moradia não é adequada, se o seu custo ameaça ou compromete o exercício de outros
direitos humanos dos ocupantes; d) Habitabilidade: a moradia não é adequada se não garantir a segurança física
e estrutural proporcionando um espaço adequado, bem como proteção contra o frio, umidade, calor, chuva,
vento, outras ameaças à saúde; e) Acessibilidade: a moradia não é adequada se as necessidades específicas dos
grupos desfavorecidos e marginalizados não são levados em conta; f) Localização: a moradia não é adequada se
for isolada de oportunidades de emprego, serviços de saúde, escolas, creches e outras instalações sociais ou, se
localizados em áreas poluídas ou perigosas; g) Adequação cultural: a moradia não é adequada se não respeitar e
levar em conta a expressão da identidade cultural (apud BRASIL, 2013, p.13).
42
2 | Convém ressaltar que o termo comunidade é a nomenclatura usada pelos moradores para significar sua
identidade e existência coletivas.
3| A matéria sobre a remoção do Horto do dia 16.06.2016, do Jornal O Globo Online, informa que a área onde
está a comunidade foi avaliada em 10,6 bilhões de reais. Disponível em: http://oglobo.globo.com/rio/jardim-bo-
tanico-governo-dilma-ja-no-fim-tentou-manter-moradores-19326526. Acesso em: 07.01.2017.
4 | Convém ressaltar que o termo comunidade é a nomenclatura usada pelos moradores para significar sua
identidade e existência coletivas.
44
Limite do Parque
Nacional da Tijuca
Área de Preservação
Ambiental
Lagoa Rodrigo
de Freitas
Hortão
Aqueduto imperial
Caminho das carruagens
Parque Jardim Caminho do Rio dos Macacos
Botânico Horto
Rio d
Jockey os
M
ac
ac os
Av. Borges
Rua Jardim
de Medeiros
Botânico
mas dado o fracasso de tal empreitada, Antônio presença ancestral na região, embora o momen-
Salema dizimou as comunidades indígenas Tu- to histórico seja contado a partir da presença do
pinambás e aconteceu a substituição pela força colonizador. Iroko é uma ancestralidade afri-
de trabalho africana escravizada. De acordo cana, relacionada com o candomblé ketu, que
com o Portal Geo-Rio, o território foi ampliado representa o tempo e habita árvores sagradas.
pelo governador Martim de Sá, abrangendo o Portanto, a presença de um caminho de pedras
atual Parque Lage e as terras próximas à Lagoa que conduz ao Jequitibá, que até hoje se encon-
Rodrigo de Freitas. tra na floresta, em meio a uma pequena clareira,
remete ao culto da ancestralidade africana nos
“O início do processo de colonização ritos religiosos. E, ao considerar a presença de
quilombos na região no período colonial, há que
da região remonta ao ano de 1596, com
se fazer referência às ocupações realizadas pelo
a inauguração do Engenho de açúcar
escravizados fugidos que estabeleceram suas
D’El Rey. A história, contudo, é mais rotas de fuga no território, especificamente o
antiga, embora se tenha muito poucos Morro das Margaridas – conforme aponta o au-
registros sobre essa época, sendo que os tor Eduardo Silva (2003) – seja para alcançar o
que existem são da ordem do simbólico Quilombo do Sacopã (Lagoa) ou o Quilombo das
Camélias (Leblon).
e remetem à ancestralidade do lugar:
Conforme dispõe o Museu do Horto, o Engenho
são “as marcas do sagrado na floresta” D’El Rey passou por consideráveis transformações:
(Fonseca apud Oliveira, 2005), como o
enorme Jequitibá mata adentro e ou os “Em 1596, o Engenho D´El Rey foi
caminhos de pedra em pé-de-moleque, vendido ao vereador Diogo Amorim
datados do século XVI, que levavam ao Soares que, em 1609, voltou para Portu-
templo sagrado daquela árvore – Iroko. gal, transferindo a posse do Engenho por
Ora, quem andava e construía estradas e requerimento deferido pela Câmara dos
capoeiras sagradas pelas matas do Hor- vereadores, a Sebastião Fagundes Varela,
to nessa remota época senão os nativos como dote por seu casamento com a filha
e os pioneiríssimos no quilombismo? do então governador. Assim permanece-
(OLIVIERI, 2012, p.31)” ram as terras e a Lagoa salgada da região,
no nome de Fagundes Varela até que,
O que a pesquisadora aponta no trecho acima é em 1660, Rodrigo de Freitas de Mello e
importante para compreender que já havia uma
Castro herdou do sogro Fagundes Varela
46
Nesse contexto, a história da comunidade do quais as protagonistas são as mulheres. Isso evi-
Horto, para além do seu caráter ancestral, se dencia a riqueza de elementos trazidos por esta
compõe por meio de lutas históricas que passam bicentenária comunidade e a relevância de sua
pelo colonialismo, escravidão, quilombos, indus- permanência, pois a remoção da Comunidade
trialização, direito à moradia, dentre outros. A do Horto significa um real apagamento não só
construção e permanência desta territorialida- da história do Rio de Janeiro como também da
de passa pelas ações políticas de resistência, das história do Brasil.
49
Referências
BRASIL. Por uma cultura de direitos humanos Sites:
– Direito à moradia adequada. Secretaria de Armazém do Portal Geo-Rio. Bairros Cariocas.
Direitos Humanos da Presidência da República Disponível em http://portalgeo.rio.rj.gov.br/
– Brasília: Coordenação Geral de Educação em armazenzinho/web/BairrosCariocas/main_bair-
SDH/PR, Direitos Humanos, Secretaria Nacional ro.asp?area=027.
de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos, Acesso em 10.02.2017
2013. 76 p., il.
Jornal O Globo Online. Disponível em:
SILVA, Eduardo. As Camélias do Leblon e a http://oglobo.globo.com/rio/jardim-botanico-go-
Abolição da Escravatura: uma investigação de verno-dilma-ja-no-fim-tentou-manter-morado-
história cultural. São Paulo: Cia das Letras, 2003. res-19326526.
Acesso em 07.01.2017
SOUZA, Laura Olivieri Carneiro de. Horto
Florestal: um lugar de memória da cidade do
Rio de Janeiro. A construção do Museu do
Horto e seu correspondente projeto social de
memória. Tese apresentada ao Programa de
Pós Graduação em Serviço Social, 2012.
Carolina Câmara Pires é mestra em Sociologia e Direito na UFF. Graduada em Direito pela PUC-Rio.
50
51
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o sumário
Cleonice Lopes
A participação
das Mulheres na
Construção da Rocinha
Eu sou aquela mulher a quem o tempo muito ensinou.
Ensinou a amar a vida e não desistir da luta, recomeçar
na derrota, renunciar a palavras e pensamentos negativos.
Acreditar nos valores humanos e ser otimista.
Cora Coralina
Para compreender melhor os dados demonstra- Sou Cleonice Souza Lopes, tenho 46 anos, casa-
dos neste trabalho, combinei com Inês e Carolina da com Antônio1 há 29 anos, tenho 2 filhas, Thais
que o ideal seria me apresentar, para que você, lei- de 28 anos, Yasmin de 22 anos, e 4 netos. É com
tor, saiba quem é a mulher que está escrevendo e muito prazer que me apresento. Não me aprofun-
quais são as suas percepções e vivências quanto darei na descrição dos integrantes da minha fa-
as 26 mulheres moradoras da Rocinha, principais mília, apenas saibam o quão importantes são para
protagonistas deste levantamento. mim, são os grandes amores de minha vida.
1 | Sou casada com Antônio há quase 29 anos, o qual sempre me estimulou alçar os voos que eu quis.
Cito-o assim como forma de reconhecimento e homenagem.
52
Nasci na cidade de Mascote, interior do sul da Minha primeira visita à Rocinha aconteceu
Bahia. Talvez vocês nunca tenham ouvido falar. em um domingo, quando vim visitar a Marina,
É uma cidade linda. Até hoje meu pai continua que morava na Travessa Luz, com um compa-
morando lá, ao lado do Rio Pardo, que tanto ama nheiro que vivia bêbado e a agredia verbalmen-
e onde eu nadei e pesquei quando criança. Dei- te – motivo este que me levou até a casa de uma
3
xei esta cidade e nunca mais voltei. Quando eu amiga que morava no 7 e de lá elas me levaram
tinha 12 anos, meus pais se separaram, desde para conhecer a Feira da Rocinha. Lembro-me
então morei e trabalhei em outras cidades do sul que quando cheguei à feira, eu só pensava: “Meu
da Bahia até 18 anos, idade que resolvi “tentar” Deus a qualquer momento vai ter um tiroteio
a vida no Rio de Janeiro, no ano de 1990. Como aqui e nunca mais vou ver minha filha!”. Tive
podem ver, minha história não se diferencia de minha primeira filha dos 16 para 17 anos e a
tantas outras nordestinas, que como eu, deixam deixei com minha mãe em Canavieiras, última
o Nordeste fugindo da pobreza. Foi para fugir da cidade da Bahia que morei antes de vir para o
pobreza que saí da cidade de Canavieiras e vim Rio. Já era “casada” com Antônio, bem, casada
para o Rio de Janeiro, onde cheguei no mês de oficialmente não, mas morávamos juntos. Como
julho, com uma bolsa grande, cheia de papel e estava difícil conseguir emprego no Nordeste,
com três peças de roupa, mas repleta de sonhos. decidimos tentar a vida no Rio de Janeiro. Ele
Lembro-me de ter colocado papel dentro da veio primeiro para trabalhar, começou como
bolsa para que parecesse que estava cheia, pois ajudante de obra na construção civil. Trabalha-
morria de vergonha que as pessoas pensassem va e morava na obra. Após um mês ele conse-
que eu não tinha nada. guiu um trabalho para mim, em “casa de famí-
Cheguei para trabalhar como doméstica em lia”, aquela de Olaria, que comentei.
uma casa no bairro de Olaria, zona norte do Rio. Eu vinha de uma cidade pequena, no interior
Trabalhei e morei nesta casa por dois meses, da Bahia, onde a maioria das mortes acontecia
quando descobri que não receberia o salário míni- por peixeiras e no máximo por espingardas,
mo, valor pré-acordado e o que me motivou a vir acho até que morrer por espingardas acontecia
para o Rio, pois na Bahia recebia um terço pelas raramente. E, quando cheguei ao Rio de Janeiro,
mesmas atribuições. Minha frustração foi grande, meus patrões falavam dos perigos que as favelas
mas consegui através do Antônio, trabalhar e mo- representavam e, dentre as favelas, a mais cita-
rar com outra família no bairro de Botafogo, zona da era a Rocinha. Eu também via reportagens
sul da cidade. Neste novo endereço conheci Mari- retratando as atrocidades cometidas pelos tra-
na2, uma baiana e moradora da Rocinha. Fizemos ficantes na Rocinha e, por este motivo, quando
amizade e passei a frequentar a sua casa. vim a primeira, achei que só encontraria bandi-
2 | Marina se separou do companheiro agressivo, após anos de abuso e depois retornou para
Canavieiras, sua terra natal.
3 | Sub-bairro da Rocinha próximo a estrada da Gávea
53
me deu a oportunidade de conhecer o lado soli- lher moradora de uma. Hoje vejo o quão impor-
dário das mulheres da Rocinha; Zilda4 primeira tante é ter esta compreensão.
educadora da minha filha Thais, a irmã que con- No dia 11 de março de 2017, nosso grupo de
quistei e que ficava com minha filha para que pesquisa realizou uma reunião para falarmos
eu pudesse estudar; Aline5, que me fez acreditar sobre o que queríamos construir com esse es-
na minha capacidade de lutar por meus sonhos. tudo. Recebi neste dia uma linda mensagem de
Pararei por aqui, com lágrimas nos olhos, ao re- presente, escrito em um livro que está transfor-
lembrar o meu percurso. Ressalto a gratidão que mando o meu pensar sobre o que é ser mulher.
tenho por ter encontrado pessoas maravilhosas A mensagem é esta que lhes transcrevo:
que me ajudaram a ser quem sou.
Aprendi com essas mulheres a estimular as Querida Cleonice, salve o dia 02/02!
pessoas, que assim como eu, têm seu potencial
Começamos com a melhor das ener-
escondido dentro de si. Sinto-me feliz ao ajudar
gias e sinto que você trouxe para a
outras tantas que necessitam, ao fazer com que
se sintam cercadas de incentivo para extravasar gente esta força geradora, criadora e
suas potencialidades. madura de nossa Iemanjá. Feliz eu
Foi muito importante trabalhar nesse proje- fiquei por ter “descoberto” com você o
to de pesquisa, uma tarefa que amei executar. potencial transformador, fertilizador,
Recebi esta oportunidade como presente, lite-
deste livro. Você me deu um presente
ralmente, pois o convite para trabalhar nesta
pesquisa foi feito no dia 02 de fevereiro, dia do enorme que me motivou a retribuir
meu aniversário. Concomitantemente ao con- com este livro. Qual presente? Foi o
vite, conheci mais uma mulher maravilhosa, seguinte: renovou minha esperan-
a Inês, que entrou em minha vida e acredito ça na luta, na força por um mundo
que para sempre. Ela me fez refletir no que é
melhor, em que mulheres são respei-
ser mulher e morar no território da Rocinha.
tadas, tratadas como iguais.... Inês
O que pode parecer banal para muitos, mas
que para mim foi fundamental repensar sobre Gouveia, 11 de março de 2017.
a minha posição nesta localidade e o que sou
capaz de fazer e transformar a partir deste Com essa dedicatória talvez você possa enten-
entendimento. der quão enriquecedor é participar desta pes-
Ao longo da minha vida acadêmica estudei quisa, que me possibilitou conhecer Carolina,
muito sobre favelas, mas nunca o que é ser mu- uma mulher com uma percepção incrível sobre
4 | Zilda continua morando na Rocinha, porém não trabalha mais como educadora, e se tornou
madrinha de minha filha mais nova, Yasmin.
5 | Aline foi uma das mulheres entrevistadas para essa pesquisa, assim como a Suely.
55
Conhecendo
as mulheres
Para a pesquisa foram realizadas entrevistas individuais com 20 mulheres de di-
versas idades, todas moradoras da Rocinha. Afim de se aproximar da realidade das
mulheres deste território, foram promovidas duas rodas de conversas, utilizando-se
os mesmos critérios das entrevistas individuais. Mulheres que nasceram ou adota-
ram a Rocinha como sua terra, e que, embora nem sempre percebam, contribuíram
e contribuem para transformar o seu território. Esta pesquisa não tem a intenção de
diminuir a contribuição dos homens para a consolidação do território da Rocinha,
mas reconhece que as suas experiência e histórias são tradicionalmente mais difun-
didas, inclusive por sua maior presença no espaço público, com voz e vez.
56
MUlheres
ENTREVIstadaS
MUlheres ENTREVIstadaS
MUlheres ENTREVIstadaS
Para iniciar esta colcha, o primeiro retalho re- era a diferença gritante entre a cidade de onde
presenta a impressão que as mulheres que não migrou. Acredito que este estranhamento foi
nasceram na Rocinha tiveram ao chegar neste se aprofundando ao longo dos anos, pois se na
território, algumas vezes escolhido, outras ve- década de 70, o adensamento da Rocinha já era
zes por imposição da vida. grande, hoje temos a certeza de que é enorme e
Luci, como gosta de ser chamada, pegou o com isso os moradores têm problemas na aera-
fardo da sua vida e o transformou através do ção e na circulação interna, na especulação imo-
trabalho artesanal. Ela foi uma das fundadoras biliária, na poluição, problemas de transporte,
da Cooperativa Copa Roca na década de 1980, aumento da percepção de violência...
que tinha como objetivo proporcionar condições
para que as mulheres trabalhassem em suas
residências e assim ampliassem o orçamen-
to familiar. Para atingir este fim, a cooperativa
capacitava e coordenava o trabalho de mais de
100 mulheres moradoras da Rocinha, as quais
produziam peças artesanais focadas no merca-
do da moda, e realizavam desfiles no Brasil e em
outros países, como Inglaterra, Alemanha, Ho-
landa, França e Itália, mostrando seus produtos.
Luci é uma mulher inventiva que encontrou
uma maneira para driblar as imposições do seu
marido que a impedia de registrar a sua história
de vida pelos seus escritos, que eram escondidos
pela casa e encontrados por acaso depois de al-
gum tempo. Após ficar viúva Luci escreveu dois
livros e aguarda a oportunidade de publicá-los.
Ela ressalta que quando chegou a Rocinha, em
1972, estranhou a falta de espaço, que para ela
Maria Edileusa
Em 1951 os moradores se valiam das águas que Ou mesmo a irmã Rita7, que mobilizou mulheres
existiam em algumas bicas e em alguns poços da Vila Verde8 para irem juntas à CEDAE cobrar
artesianos existentes na Rocinha. Em 1976 foi para que a água chegasse até suas moradias em
encaminhado à Companhia Estadual de Águas 2014. É semelhante à década de 1970, quando os
e Esgotos do Rio de Janeiro (CEDAE) um ofício moradores se uniram em busca de uma solução
e um abaixo assinado pedindo água encanada universal, para que todos tivessem água.
para os moradores, que se transformou no An- A luta era e continua sendo para que os mo-
teprojeto R. D., Rio 0070/76, que permaneceu radores da Rocinha tenham os mesmos direitos
anos engavetado. Só em 1981 um novo projeto que os moradores dos bairros vizinhos, como Gá-
de água foi criado, depois de várias reivindi- vea e São Conrado, que não sofrem com a falta de
cações, para que a água chegasse às principais água. A Organização das Nações Unidas (ONU)
ruas. A CEDAE implantou o sistema em 1983, reconheceu em 2010 que acesso à água potável
mas, infelizmente, até hoje a comunidade ainda e instalações sanitárias são direitos de todos os
enfrenta problemas no abastecimento de água. seres humanos, pois são indispensáveis ao pleno
O problema de água ocorre desde sua forma- gozo da vida. Todos devem ter esses direitos, in-
ção, como podemos observar no trecho do livro dependentemente da classe social em que vivem:
Varal de Lembranças:
“O território também representa o chão
“Aqui já se pegou água de nascente, do exercício da cidadania, significa vida
das bicas, das calhas de bambu, das ativa no território, onde se concretizam
pipas d´água, dos aguaceiros, dos poços, as relações sociais, as relações de vizi-
nas latas nas balanças ... queremos água
6
nhança e solidariedade, as relações de
da CEDAE em todas as casas da Roci- poder. É no território que as desigualda-
nha!!! (Citação em cartazes em protestos. des sociais tornam-se evidentes entre os
Extraído de SEGALA,1983 p. 141)” cidadãos, as condições de vida entre mo-
radores de uma mesma cidade mostram-
A distribuição de água continua sendo um su-
-se diferenciadas, a presença/ausência
plício, mesmo após iniciativas como a da Chica,
deste mesmos serviços apresentam-se
que em 2015 mobilizou mulheres para pressionar
as autoridades sobre a falta d’água na Rocinha. desiguais. (Koga, 2011, p. 33)“
6 | Balança de água é feito com uma madeira no centro e duas latas, uma em cada ponta, para que
a pessoa, ao carregar, não se desequilibre.
7 | Irmã Rita é uma freira da congregação Irmãs de Jesus Crucificado que morou durante 10 anos na
Rocinha e realiza missão missionária nesta desde de 1995.
8 | Um dos sub-bairros da Rocinha
64
PRECaRIEdadE
ESTRUTURAL
DO TERRITÓRIO
da ROCINHa
Atualmente está trabalhando no Morro da uma alquimia que serve para reproduzir
Roupa Suja9, também chamado de Morro da a força de trabalho a baixos custos para
Alegria, localizado na área acima do túnel Zuzu
o capital, constitui-se num elemento que
Angel, um dos sub bairros da Rocinha, em que
praticamente inexiste a noção de acessibilida-
acirra ainda mais a dilapidação daqueles
de, inclusive para se ter acesso a Instituição que só têm a energia física para ofere-
União de Mulheres Pró Melhoramento da Rou- cer a um sistema econômico que por
pa Suja. Ela, assim como outras mulheres que si já apresenta características marca-
trabalham nesta instituição, continuam subin- damente selvagens. (Kowarick, apud,
do e descendo escadas e fazendo a diferença
Leitão pag. 47, 2009).”
para os moradores.
Na Rocinha, o acesso para as moradias é di-
ficultado na medida em que as casas ficam dis- É importante destacar que foram os moradores
tantes da Estrada da Gávea e das poucas ruas de da Roupa Suja, assim como dos demais sub-bair-
seu interior. O desenho dos becos, vielas e es- ros da Rocinha, que construíram o acesso às suas
cadarias que saem das vias principais de acesso moradias, e as poucas intervenções públicas no
têm a irregularidade típica dos assentamentos local não melhoraram a acessibilidade dos mora-
que surgiram sem planejamento, pois a primei- dores. O plano inclinado (projeto semelhante ao
ra necessidade era de se abrigar. E isso pode ser implantado no Morro Dona Marta, que estava
observado nas diversas escadarias construídas previsto para acontecer no Morro da Roupa Suja)
sem princípio de dimensionamento: não aconteceu nas obras do PAC1-Rocinha. Essa
obra não resolveria todos os problemas de falta
de acessibilidade, pois seria necessária a realiza-
“Realizadas através da autoconstru-
ção de obras estruturais no local e isso não esta-
ção e do trabalho tradicional gratuito, va previsto no PAC1, mas possibilitaria melhoras
que frequentemente perdura por anos, significativas para os moradores locais, princi-
a confecção da casa própria só pode palmente para as pessoas com dificuldades de lo-
levar à redução de outros itens vitais comoção. Enquanto o estado se omite, mulheres
como Magnalda, Marcia e Carminha continuam
da cesta básica de consumo inclusive
trabalhando na localidade onde todos os dias sur-
à diminuição do padrão alimentar que,
gem problemas que precisam de solução.
para muitas famílias, passa a se situar Como mencionado anteriormente, Izabel tam-
abaixo dos níveis mínimos de sobrevi- bém se impactou pela quantidade de escadas en-
vência. Assim a autoconstrução quanto contradas na Rocinha:
Maria Izabel, assim como Magnalda, fez das O estranhamento ressaltado pelas entrevis-
escadas uma ponte que continua subindo e tadas ao chegar à Rocinha, acredito que seja o
descendo na Rocinha. Estas duas nordestinas, mesmo de quem vem ao território hoje, pois o
de estados distintos, já trabalharam na mesma crescimento populacional só aumenta cada vez
localidade da Roupa Suja. Izabel, assim como mais e com isso o número de construções não
Magnalda, quando se formou em Serviço Social, para de crescer. As poucas obras de infraestru-
começou a trabalhar na Rocinha e a Roupa Suja tura realizadas pelo poder público não acompa-
foi um dos sub-bairros em que trabalhou duran- nham o crescimento da população. Os proble-
te as obras do PAC1, cadastrando famílias que mas identificados na década de 80, como a falta
estavam em área de risco no local para serem de água, saneamento básico e luz continuam
realocadas. Infelizmente as obras não acontece- ocorrendo na atualidade.
ram, mas durante o trabalho de campo, Izabel
e equipe identificaram vários moradores com
algum tipo de deficiência, e muitas deles rece-
beram visitas da assistente social e equipe, que
elaboraram parecer social e laudos técnicos da
precariedade das moradias e da falta de acessi-
bilidade desses moradores.
Durante o trabalho, ela seguiu a orientação de
cadastrar preferencialmente as mulheres res-
ponsáveis pelas pessoas com deficiência e assim
ocorreu. Na Roupa Suja foram 4 famílias que re-
ceberam apartamento e melhoraram sua condi-
ção de vida. Sabemos que é um número pequeno
frente à realidade local, mas para as famílias em
questão foram mudanças significativas.
Maria Izabel
68
Heloisa Helena
69
A entrevista da Glauce foi realizada em sua às suas moradias, inicialmente para orientar
barraca no camelódromo no acesso à Rocinha. como vender os produtos. Mas seu trabalho
Durante a pesquisa, duas outras mulheres me ultrapassa as fronteiras da relação comercial,
disseram: “Olha você deve entrevistar a Glauce, pois nesse conjunto há mulheres que vivem em
pois é uma grande mulher”. Então lá fui eu em situação de extrema pobreza, baixa escolarida-
busca desta grande mulher, que não se conside- de e é muito comum que se depare com casos
rava uma referência, pois em seu conceito, não de violência.
havia feito nada demais para modificar o terri- Quando lhe perguntei sobre a sua participa-
tório da Rocinha. ção na mudança na vida das mulheres, ela res-
Glauce estava equivocada, pois possibilitou pondeu que costuma influenciar positivamente,
que mais de 200 mulheres tivessem uma fon- principalmente quanto à autoestima, quando
te de renda alternativa através da venda de as mulheres passam a ter uma fonte de renda
cosméticos. Hoje ela diz atender “poucas mu- e quebram laços de dependência financeira com
lheres, pois só têm 170”. Glauce, através de sua os companheiros. Muitas voltam a estudar e en-
história de vida, orienta e aconselha as mulhe- tram no mercado formal de trabalho. Há muito
res que trabalham com ela, realizando visitas que se agradecer a Glauce!
70
10 | Fundada em 1983, na cidade de Florestópolis, Paraná, pela médica sanitarista e pediatra, Dra. Zilda Arns Neu-
mann, e pelo então Arcebispo de Londrina, hoje cardeal emérito, Dom Geraldo Majella Agnelo. A Pastoral da Criança
hoje se faz presente em todos os estados brasileiros e em outros 11 países da África, Ásia, América Latina e Caribe.
73
Segundo a Organização Mundial de Saúde iniciativa da Dra. Zilda Arns Neumann, funda-
(OMS), a desnutrição contribui com mais de um dora da Pastoral da Criança. O programa criado
terço das mortes de crianças no mundo, apesar por ela tinha como objetivo reduzir a mortali-
de raramente ser listada como a principal causa. dade infantil e a desnutrição e, para conseguir
Nos anos 1970, cerca de 30% das crianças entre atingir seus objetivos, mulheres como Edileusa
5 e 9 anos estavam com déficit de altura no Bra- e tantas outras moradoras de áreas pobres das
sil, um forte indicador de desnutrição de longa cidades brasileiras foram convidadas para tra-
data na infância. balhar com a Pastoral.
A desnutrição infantil sempre foi um grande Ao longo da história da Rocinha, outras neces-
problema no Brasil. Nos anos de 1980 e 1990, sidades foram emergindo e mais mulheres foram
os índices eram alarmantes, superavam os mi- participando ativamente da construção do terri-
lhões. De acordo com a Organização das Nações tório. Outra luta bem marcada, refletida na histó-
Unidas para Alimentação e Agricultura, o Brasil ria das entrevistadas foi pela educação, nos anos
conseguiu reduzir em 58% o número de mor- 1960-1970. Sobre isso, conta Gonçala Norberto:
tes de crianças desnutridas e, com isso, atingiu
uma das 15 metas da Conferência Mundial de
Alimentação, que era reduzir o índice em 50%
até 2015. Grande parte desta vitória ocorreu por
Gonçala Norberto
74
Modificação
DO TERRITÓRIO
ATRAVÉS DA EDUCAÇÃO
Ao longo da história da educação na Rocinha, fossem a lutar para se adaptarem à nova rea-
as mulheres que lutaram para que os moradores lidade e continuassem a atender as demandas
tivessem acesso à educação de qualidade, evolu- dos moradores. As mulheres pioneiras e as que
íram juntamente com os avanços tecnológicos e as sucederam fizeram cursos superiores e con-
as frequentes e necessárias mudanças no âmbi- tinuam a luta por uma educação de qualidade.
to educacional, fizeram com que estas mulheres
76
Como as mulheres
vEEm a Rocinha?
Durante as entrevistas perguntou-se o que as
entrevistadas veem na Rocinha e se estas preten-
diam algum dia morar fora deste território. Das
20 mulheres entrevistadas, 6 disseram que pre-
tendem algum dia se mudar. Seus motivos: falta
de oportunidade de aquisição da casa própria, a
falta de segurança pública e as questões da falta
de estrutura. Vejam o que Aline contou sobre isso.
A Rocinha, por suas dimensões e também pela preços dos aluguéis triplicaram, prejudicando mo-
peculiar localização no tecido urbano da cidade, radores que vivem de aluguel. Como podemos ver
sempre teve o aluguel muito caro, mas a partir das na fala da Aline, comprar um imóvel na Rocinha
obras do PAC, iniciadas em 2008, o valor do alu- não é fácil, pois apesar de ser um bairro oficial da
guel triplicou. Durante as obras muitas famílias ti- cidade desde 1993, os imóveis existentes não são
veram que ser removidas de suas moradias e com legalizados, e por isso não podem ser financiados
isso, a procura por imóveis para alugar cresceu, os pelos órgãos oficiais. Isso não impede que exista
77
muda-se da
ROCINHA OU NãO?
Eu sofri muito quando passei por todo processo seletivo para tra-
balhar na H. Stern, e como ninguém me avisou que eu não pode-
ria dizer que morava na Rocinha, eu disse e não fui contratada...
Depois disso eu comecei a colocar o endereço de uma amiga que
morava fora da Rocinha, no meu currículo.
Cléa Silva Pinto
13 | A lei 11.340/2001. Em seu art. 5º define como violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou
omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral
ou patrimonial: I- no âmbito da unidade doméstica, compreendida como espaço de convívio permanente de
pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas; II- no âmbito familiar, compre-
endida como a comunidade formada indivíduos que são os se consideram aparentados, unidos por laços natu-
rais, por afinidade ou por vontade expressa; III- em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva
ou tenha convivido com a agredida, independentemente de coabitação. Parágrafo único - as relações pessoais
enunciadas neste artigo independem orientação sexual.
83
Outro caso que me marcou foi o caso de uma mulher que ficava
presa em casa com duas filhas, pelo marido, ele as espancava e
as deixava presas quando saía. Chamamos as autoridades e elas
foram encaminhadas para um abrigo, estavam muito maltrata-
das. Assim como estes, eu já presenciei e conheci muitas mulheres
que foram espancadas aqui na Rocinha. Quando eu trabalhava
na Rocinha, quase todos os dias surgia alguma denúncia de ca-
sos como estes que citei.
Mulher entrevistada
rado aumenta ano a ano. Mas as mudanças na mos as entrevistadas como é a divisão das tare-
divisão do trabalho doméstico nas famílias, no fas domésticas, 4 responderam que dividem as
entanto, quase não ocorreram e as mulheres tarefas domésticas com os maridos, 2 disseram
continuam trabalhando muito mais em casa do que quem faz as tarefas doméstica são os mari-
que os homens. Na Rocinha isso também se re- dos, 3 disseram que dividem as tarefas com os
produz. Todas as mulheres entrevistadas traba- filhos, 2 dividem as tarefas com as mães, e as
lham fora de casa, até as que já se aposentaram demais falaram que realizam sozinhas as tare-
continuam trabalhando em outras atividades fas domésticas. Vejam o que as mulheres acham
para aumentar suas rendas. Quando pergunta- sobre o trabalho doméstico.
Quando entrevistamos a Ritinha, ela disse saúde que atuam na Rocinha, tem um longo
acreditar que tem uma missão na vida: passar caminho a ser percorrido antes que a tuber-
para frente todo o conhecimento sobre a tu- culose seja eliminada da Rocinha. Apesar das
berculose que ela adquiriu. “Eu amo essa causa, inúmeras iniciativas, a Rocinha continua tendo
quantas e quantas pessoas nós conseguimos ti- o maior número de casos de tuberculose do es-
rar do fundo do poço”. Para ela a falta de infor- tado do Rio de Janeiro, com 300 pessoas com a
mação e esclarecimento sobre esta doença é o doença para cada 100 mil habitantes. O número
que dificulta o tratamento e mencionou ser este é superior a média de casos em todo o Brasil, que
o motivo pela qual sua mãe faleceu. gira em torno de 37,4 pessoas para cada 100 mil,
A luta da Ritinha e de todos os agentes de segundo dados do Ministério da Saúde.
96
MOmentos históricos
passados na Rocinha
Com o desejo de ouvir sobre as histórias que
entrelaçam as vidas das mulheres com a de seu
território, perguntamos sobre seus momentos
marcantes na Rocinha.
Maria Rosentina
A fala da Maria Rosentina ressalta a impor- perguntou: “O que vocês acham que a gente tem
tância que foi para ela participar dos mutirões que fazer para melhorar a Rocinha, pra entrar
que ocorreram na Rocinha nas décadas de o Ano Novo com uma coisa nova?” (Segala, 1983
70/80. Ficaram marcados como momentos de p.114). Após várias ideias e todas achadas pelos
união e solidariedade entre os moradores. O pri- presentes difíceis de serem executadas, um mo-
meiro mutirão da foi criado numa festa de na- rador fez a proposta pela limpeza das valas. (Se-
tal na Igreja Católica. Durante a missa, o Padre gala, 1983, p.114)
98
Por meio desta pesquisa, identificamos outras • Mutirão de plantio do projeto de Olho no
frentes de atuação coletiva que mobilizam os Lixo15, realizado em 06 de junho deste ano.
moradores da Rocinha nos dias atuais: A iniciativa foi organizada pelos moradores,
Secretaria de Ambiente do Estado e ONG
• Mobilização dos moradores para reivindicar Viva Rio. O mutirão tinha como finalidade
a reabertura da Biblioteca Parque14, através sensibilizar, conscientizar e mobilizar os mo-
de abaixo assinado e mobilização nas ruas da radores da Rocinha sobre a importância da
Rocinha; preservação do meio ambiente.
• Mutirão de limpeza das encostas do sub-bair- Outro momento que marcou a memória re-
ro Laboriaux organizado pelos moradores; cente dos moradores da Rocinha, também des-
tacado na fala das entrevistadas foi a visita do
ex-presidente Lula:
Essa visita ocorreu com o objetivo de inaugu- Apesar das obras feitas, após quatro anos e
rar o início das obras do PAC 1. As obras foram meio e R$ 278,8 milhões do PAC serem gastos
iniciadas em 2008 e tinham como prazo de con- na Rocinha, ainda falta muito para ser feito em
clusão o ano de 2010, mas depois de diversos urbanização e saneamento básico, que se tor-
atrasos no cronograma e mudanças no projeto, nou, mais uma vez, uma bandeira de luta para os
foram interrompidas em dezembro de 2011, an- moradores, para que nas próximas intervenções
tes de finalizar partes previstas, como plano in- públicas seja esse o aspecto priorizado. Dados do
clinado, mercado popular, urbanização do Largo Censo 2010 apontam que quase 15% dos domicí-
dos Boiadeiros e do Valão, construção da creche lios da Rocinha não têm banheiro e isso equivale
(que só foi concluída depois de muitas reivindi- a 3.400 famílias. Este número pode ser muito su-
cações dos moradores). Apesar disso foram con- perior ao apontado pelo Censo, já que as lideran-
cluídas as obras de 144 apartamentos, Comple- ças da Rocinha projetam um número de mora-
xo Esportivo, abertura e construção da Rua 4, dores muito superior ao divulgados pelo mesmo.
construção do prédio da biblioteca Parque (C4), As lembranças de luta convivem com lem-
construção da passarela e a construção da UPA. branças de luto:
Maria da Paz
101
O momento mais marcante que vivi aqui na Rocinha não faz mui-
to tempo e aconteceu aqui mesmo onde moro. Este local foi amea-
çado há 7 anos de remoção e a forma que a prefeitura queria fazer
mexeu muito com todos os moradores, principalmente pela forma
com que as casas eram marcadas para serem demolidas pela Se-
cretaria Municipal de Habitação, sem respeitar os moradores, pois
a única explicação que era dada, era que os moradores deveriam
sair por bem ou por mal de suas casas. Eu lembro que dois dos
nossos vizinhos enfartaram pouco tempo depois desta atrocidade
cometida pela prefeitura. Neste período saíram daqui 130 famílias,
que foram colocadas em locais distantes da Rocinha.
Simone Rodrigues
Simone Rodrigues
Em abril de 2010, uma chuva torrencial cas-
tigou a cidade do Rio de Janeiro provocando,
assim como em outras áreas da cidade, desliza-
mentos de terra na Rocinha, provocando a mor-
te de dois moradores no sub-bairro Laboriaux.
Por conta das mortes e a repercussão do caso na
imprensa, o prefeito da cidade decretou a inter-
dição de quase toda área, incluindo a Escola Mu-
nicipal Abelardo Chacrinha Barbosa. Mobiliza-
dos, os moradores organizaram uma comissão, Durante um longo período estes moradores
com apoio da Pastoral de Favelas e de grupos conviveram com o medo da remoção, e vários
sociais como o “Rocinha Sem Fronteiras” e De- deles foram removidos de suas casas e tiveram
fensoria Pública, para reivindicar seus direitos seus imóveis demolidos. Após muita luta conse-
de continuar em suas moradias. Os moradores guiram a reabertura da escola. A prefeitura rea-
receberam estudos técnicos realizados por espe- lizou obras de contenção em um dos lados do La-
cialistas, que diziam que não eram todas as mo- boriaux, (o lado que fica para o bairro da Gávea),
radias que estavam em área de risco, portanto, porém o lado voltado para a Rocinha continua
bastaria realizar obras de contenção das encos- sem receber as obras de contenção das encostas
tas para que continuassem na localidade. e essa hoje é uma das bandeiras dos moradores.
104
Referências
LEITÃO,J. Dos Barracos de Madeira aos Prédios DAVIS, A. MULHERES, RAÇA E CLASSE. Editora
de Quitinetes: Uma análise do Processo de Produ- Boitempo. São Paulo, 2016
ção de Moradia na favela da Rocinha, ao longo de
cinquenta anos. Tese de doutorado, UFRJ, Rio de MEDEIROS,L. EM BRIGA DE MARIDO E MU-
Janeiro, 2004. LHER, O ESTADO DEVE METER A COLHER:
Políticas Públicas de enfrentamento à violência
UNIÃO PRÓ-MELHORAMENTO DOS MORA- doméstica. Editora PUC-RIO: São Paulo, 2016.
DORES DA ROCINHA. Varal de Lembranças: his-
tórias da Rocinha. Tempo e presença: SEC; MEC;
FNDE. Rio de Janeiro, 1983.
voltar para
o sumário
A participação
das Mulheres na
Construção do Horto
Horto. Como dito inicialmente, este território feminina desta comunidade, é preciso que eu
é guardião de uma história ancestral, cujo de- me apresente a você, para que compreenda o
senvolvimento foi possível graças à resistência meu olhar neste processo de escrita.
de um povo que chegou ao Brasil escravizado, Meu nome é Carolina Câmara Pires, sou mu-
vindo de vários países da África, e que, ao longo lher negra e militante do processo de luta para
dos anos, se constituiu graças à bravura das mu- a efetivação de direitos e emancipação do povo
lheres e homens que sobreviveram aos horrores negro no Brasil e na diáspora. Sou carioca, te-
da escravidão e contribuíram com seus saberes, nho 33 anos e sou filha e neta de mulheres e
suas heranças culturais. Não há como falar do homens negros nascidos na Bahia e no Espírito
Horto sem lembrar os engenhos que ocuparam Santo. Fui bolsista integral pelo Programa Uni-
essas terras, no período colonial, e a mão de obra versidade para Todos (PROUNI) na Pontifícia
escravizada que a desenvolveu. Desse modo, a Universidade Católica do Rio de Janeiro, onde
ancestralidade de origem africana evoca, ainda me graduei em Direito no ano de 2013. Poste-
hoje, uma resistência que passa necessariamen- riormente, fui aprovada no Programa de Pós-
te por questões de gênero e raça e assim com- -Graduação em Sociologia e Direito da Univer-
põem a complexa história de construção deste sidade Federal Fluminense, em 2015, e concluí
território. Antes de mergulharmos na vivência o mestrado defendendo a dissertação “Elekô –
112
Mulheres Negras na Luta por Direito à Moradia por instituições públicas e privadas. Ao lembrar
na Cidade do Rio de Janeiro”, em 30 de maio de dessa cena, penso agora que ela representa a
2017, cujo estudo de caso para a concepção do síntese das diversas mulheres moradoras do
trabalho foi a Comunidade do Horto. Horto que, com muito esforço, guardam e cons-
Desde o ano de 2010 investigo as discrimina- troem seu território. Esse foi o meu primeiro
ções de raça e gênero, dentre outras, presentes contato com o Horto e eu sequer poderia ima-
no contexto das remoções das favelas na cidade ginar a riqueza de histórias e trajetórias que eu
do Rio de Janeiro, com o objetivo de denunciar encontraria por lá.
tal política como excludente, discriminatória, Ao terminar a graduação, ingressei no ano de
racista. A grande maioria dos trabalhos acadê- 2014 no Projeto de Extensão “Direitos em Mo-
micos acerca das remoções das favelas abrange vimento – Territórios e Comunidades”, coorde-
apenas um tipo de discriminação: classe. Por- nado pelos professores Adriano Pilatti, Adriana
tanto, insisto nesta investigação para desmasca- Geisler e Mariana Trotta e que agregou uma
rar a política racista anti-negros engendrada no equipe excelente formada tanto por ex-estagiá-
processo remocionista. rios do NUTH, como por alunos da graduação
E foi neste contexto que conheci a Comunida- e pós-graduação em Direito da PUC-Rio. No
de do Horto. Escrevo comunidade porque esta decorrer do projeto, a AMAHOR solicitou as-
é a maneira que a maioria de seus moradores sessoria jurídica e, foi nesse momento que me
reconhece este território. Conheci a história do aproximei mais do Horto e descobri alguns as-
Horto quando ainda era estagiária do Núcleo pectos discriminatórios dissimulados na política
de Terras e Habitação da Defensoria Pública do remocionista.
Estado do Rio de Janeiro (NUTH-DPGE) através Naquele ano acompanhei algumas reuniões
das reuniões do antigo Conselho Popular, cujo das assembleias comunitárias e protestos nas
objetivo era reunir pessoas de várias favelas e ruas e percebi que a maioria do público que
ocupações da cidade do Rio de Janeiro a fim de comparecia era feminino. Essa observação me
pensar estratégias e de acesso ao solo urbano e instigou bastante e eu quis cada vez mais desco-
efetivação do direito à moradia. Em uma dessas brir as nuances daquele conflito fundiário. As-
reuniões, tive a oportunidade de presenciar a sim, ao ingressar no mestrado, decidi que o es-
fala contundente de uma mulher negra e altiva tudo de caso da minha pesquisa seria o conflito
que exteriorizava com firmeza a situação da sua existente no território, deflagrando as questões
comunidade. Ao fim daquele encontro fui con- de raça e gênero. A minha escolha se pautou na
versar com ela e descobri que era a Srª. Emília urgência de denúncia das violações de direitos
de Souza, presidente da Associação de Morado- e a iminência da remoção total da comunidade.
res do Horto – AMAHOR. A Emília surgiu como Durante o último ano da pesquisa, 2016, recebi
uma mulher que defende sua comunidade, des- o convite, por meio da AMAHOR, para partici-
mascarando as violações de direitos impostas par desta pesquisa “A Participação das Mulheres
113
na Construção do Território”, realizada por meio lias e suas próprias vidas, o que tem sido histo-
de uma parceria entre a Rede de Museologia So- ricamente vital para a formação, manutenção
cial, o Museu Sankofa e o Museu do Horto. Por e permanência dos moradores na localidade. O
sinal, um convite que me deixou muito alegre. protagonismo feminino fica evidente: zelam por
Não apenas pela oportunidade de fazer parte de si mesmas, pela família, ambiente doméstico e
uma pesquisa muito interessante, que seguiria estendem esse labor para o ambiente público
em uma linha muito próxima ao que estava de- que as cerca. Considero que as mulheres assu-
senvolvendo para a dissertação, mas também mem essa postura central porque a sua relação
pela confiança da comunidade na seriedade do com o ambiente doméstico e comunitário, ain-
meu trabalho. da que trabalhem fora de casa, é mais forte à
Assim, mergulhei mais uma vez em histórias, masculina, até mesmo pela própria construção
memórias e trajetórias das mulheres do Horto e social sobre o papel feminino. Essa relação ou li-
é a partir dessa caminhada que escrevo as linhas gação com a família e o território as impulsiona
que se seguem. Devo dizer ainda que embora a a gerir tais espaços.
política de remoção apareça como pano de fun- Em termos da pesquisa, por meio de um ro-
do dessas trajetórias, nosso objetivo aqui é evi- teiro semiestruturado e com base nos métodos
denciar o protagonismo feminino, partindo do de investigação da pesquisa ativista foram en-
empoderamento político, das estratégias criadas trevistadas, no total, 24 mulheres pertencen-
pelas mulheres para resistir e da maneira como tes às famílias mais antigas e engajadas com a
elas conduzem a construção do território. resistência contra as remoções. A metodologia
Para ilustrar o impacto da participação femi- adotada foi a realização de entrevistas individu-
nina na Comunidade do Horto, selecionamos ais e duas rodas de memória para o registro co-
mulheres de regiões distintas da referida locali- letivo. O primeiro método possibilitou adentrar
dade para realizar as entrevistas, considerando de forma mais intensa o universo de cada en-
que o território está subdividido em onze áreas. trevistada, enquanto as rodas de memória des-
Como já havia realizado uma imersão, seja por pertaram lembranças outrora adormecidas e à
meio de leituras ou por meio do exercício em medida que uma das entrevistadas se lembrava
campo para a escrita da dissertação, a continui- de algo, despertava em sua companheira outras
dade das entrevistas aconteceu de maneira mais lembranças. Nesse contexto, entrevistei quinze
intensa, profunda. mulheres individualmente, somadas às nove
Foi por meio dessa nova imersão proporcio- que participaram das duas rodas de memória.
nada pela pesquisa, que compreendi que mesmo Antes de adentrar as narrativas das mulhe-
considerando a importância e presença mascu- res do Horto, é preciso dizer que a pesquisa, cujo
lina no processo de construção do Horto, as mu- produto final se concretizou na elaboração des-
lheres ocupam um papel central ao liderarem e te livro, foi idealizada e realizada por mulheres
administrarem a comunidade, a casa, as famí- de personalidade forte, comprometidas e solidá-
114
rias. Oito mulheres participaram dessa produção: classe, sexualidade, localização geográfica, ida-
Inês Gouveia, como coordenadora, eu e Cleonice de, dentre outros, aprofundam o processo dis-
Lopes, como pesquisadoras, Bruna Ribeiro, Na- criminatório, que por sua vez, dificultará o aces-
taly Alves e Kinda Firmino como assistentes de so a direitos legalmente garantidos.
pesquisa, Bruna Caldas, revisora e Luzia Duar- Uma das leituras sugeridas para a confecção
te, como contadora geral de execução do projeto. desta pesquisa foi o livro “Mulheres, Raça e
Nossos colegas Antônio Carlos Firmino, Emerson Classe”, da filósofa e ativista do Movimento Ne-
de Souza e Thiago Venturotti (respectivamente gro, Angela Davis. Nesta obra, a autora demons-
representantes do Museu Sankofa, do Museu do tra o racismo presente no feminismo universal,
Horto e designer gráfico do projeto), também co- assim como aponta o sexismo na luta contra o
laboraram neste processo. Por suas vivências e racismo e a dominação contínua por meio do ca-
militâncias, auxiliaram a indicação de mulheres pitalismo. Davis aponta a importância de conju-
entrevistadas e quanto a representação narrati- gar feminismo, antirracismo e a luta de classes
va que envolve a pesquisa e o livro. para pensar novas estratégias de ação e garantir
As histórias de vida que serão narradas estão a efetivação de direitos, sobretudo das mulheres
conectadas com o processo de construção deste negras. Segundo Davis, dada a complexidade do
território, sua manutenção e permanência. Dian- contexto social, é impossível tratar as experiên-
te do que ouvi e vivenciei, meu papel aqui será de cias discriminatórias e violências de maneira
ampliar vozes e memórias das mulheres do Horto. isolada, pois tal análise estaria fadada ao fracas-
so (2016, p.202).
Ser mulher no Horto E é nesse ponto que aproximo o pensamento
desta filósofa à realidade das mulheres morado-
Ao entrevistar as mulheres do Horto foi pos- ras do Horto. As reflexões trazidas por este livro
sível perceber a complexidade de perfis, identi- são imprescindíveis para compreender que a in-
dades, profissões, estágios de educação formal, segurança, gerada pelo Estado, quanto a perma-
experiências com violências etc. Todas essas nência das famílias no local surge por meio do
diferenças influenciam a forma de construir e modus operandi capitalista, o qual se sustenta e
vivenciar o “ser mulher”. A experiência das mu- apoia nas discriminações pautadas pelo racismo
lheres em geral, dada a estrutura patriarcal na e sexismo. Além disso, afeta suas subjetividades,
qual foi constituída a sociedade, pode trazer a seja através da opressão ou da ressignificação
percepção de que a discriminação contra a mu- trazida pelo movimento de resistência.
lher ocorre de maneira universalizada. No en- A seguir, apresento as mulheres participantes
tanto, apesar das similaridades, o processo de da pesquisa. Os trechos de suas narrativas que
constituição da mulher sofre alteração à medi- aparecem a seguir são transcrições literais das
da que as diferenças se inter-relacionam. Desse entrevistas realizadas, por isso resguardam o
modo, marcadores sociais como raça, gênero, tom e o nexo da narrativa oral.
115
ENTREVISTAS
INDIViduais
Maria dos Anjos Martins: Nascida no Horto e pertencente a uma das famí-
lias mais antigas, Maria dos Anjos tem 52 anos, é evangélica, se reconhece como
mulher negra e mora com sua família que é composta majoritariamente por mu-
lheres. Estudou até o quinto ano do Ensino Fundamental e até o momento da
entrevista estava impossibilitada de trabalhar por questões de saúde.
Neuza Maria Carcerere: Filha de um casal interracial, sua mãe é negra e seu
pai era branco, de origem italiana, Dona Neuza nasceu no Horto e entende-se
como mulher negra. Ela professa como religião o espiritismo, de orientação karde-
cista. Completou o Ensino Fundamental e Médio, graduou-se em Administração
e vive com a mãe e sua filha no mesmo terreno onde seu pai iniciou a construção
da casa nos idos de 1940.
116
ENTREVISTAS INDiVIduais
Emília Maria de Souza: Liderança da comunidade, Emília tem 65 anos, foi presi-
dente da Associação de Moradores do Horto (AMAHOR) e no ano passado foi eleita
como vice-presidente. Ela se considera negra, chegou ao Horto com a sua família
aos três anos de idade e desde então nunca mais saiu da localidade. Emília é viúva,
segue a umbanda como religião e estudou até o ensino médio técnico. Emília vive
com sua filha e netas na mesma casa onde seus pais viveram por décadas.
Edna Maria de Souza: Irmã da Emília de Souza, Edna tem 63 anos e chegou
ao Horto com apenas um ano de idade. Ela é graduada em Serviço Social, vive em
regime de união estável (atualmente, seu marido trabalha em Luanda, Angola)
e também é umbandista. Seu pai trabalhou na América Fabril e posteriormente
passou a ser funcionário do Jardim Botânico, e, por esse motivo, a família se mu-
dou para o Horto. Edna mora com os dois filhos e um deles, o Emerson, é o atual
presidente da AMAHOR.
117
ENTREVISTAS INDiVIduais
Vera Lúcia Fernandes da Silva: Mãe de quatro filhos, viúva, Dona Vera tem
70 anos, nasceu no Hospital Miguel Couto e sempre viveu na comunidade. Seu pai
trabalhou no Jardim Botânico como pintor de letra e se mudou para o Horto aos 18
anos. Sua mãe faleceu quando tinha apenas 10 anos de idade e, por ser a filha mais
velha, Dona Vera ajudou o pai a cuidar da casa e criar seus seis irmãos. Por todo esse
contexto, ela estudou apenas até a oitava série e começou a trabalhar muito cedo,
além de não vivenciar a infância e adolescência de maneira plena. Trabalhou como
auxiliar de serviços gerais no SERPRO e no IMPA e se aposentou por causa de um
acidente de trabalho. Dona Vera mora no Horto com quatro netos.
ENTREVISTAS INDiVIduais
Neuza Martins da Silva: Dona Neuza tem 79 anos, nasceu no Horto e seu pai
era funcionário do Jardim Botânico, assim como seu marido. Ela é branca, viúva,
mãe de quatro filhos. Dentre eles um tem necessidades especiais, uma é adotiva
e o filho mais velho é falecido. Seu avô materno já morava na região e trabalhava
como feitor. Ela estudou até a quinta série, começou a trabalhar aos 14 anos de
carteira assinada como embaladora em um laboratório e foi aposentada por inva-
lidez devido a uma cardiopatia. Dona Neuza coleciona recortes de jornal sobre as
ameaças de remoção e luta para permanecer em sua comunidade.
ENTREVISTAS INDiVIduais
Sheila Guimarães Vieira: Sheila tem 62 anos, é negra e nasceu em sua casa
no Horto, pelas mãos de uma parteira. Seu avô era funcionário do Parque Jardim
Botânico e sua mãe tinha em torno de nove anos quando a família se mudou para
a localidade. Ela começou a estudar aos seis anos, mas, não pôde completar os es-
tudos em razão da gravidez na adolescência. Ela engravidou pela primeira vez aos
15 anos, mas o bebê não resistiu e faleceu. Aos 17 anos engravidou novamente,
se casou e a situação econômica era muito difícil. Alguns anos depois, Sheila se
divorciou do seu primeiro marido e conheceu seu atual companheiro com quem
vive em união estável há trinta e seis anos. Ela me contou que começou a traba-
lhar formalmente aos 27 anos, no IMPA e atualmente trabalha como copeira no
SERPRO. Sheila é mãe, avó e bisavó e diz não se imaginar vivendo fora do Horto e
que só em pensar nisso tem sensação de pânico.
Maria Teresa de Souza: Dona Maria Teresa é branca, tem 72 anos, e nasceu
no Horto. Sua mãe lavava roupas sob encomenda e seu pai era guarda florestal. Ela
mora sozinha na casa onde morou com seus pais e seus dois irmãos. Ela começou
a estudar aos sete anos e teve que interromper os estudos por causa do trabalho
durante a adolescência. Cursou até o segundo ano do Ensino Médio e muitos anos
depois, retomou os estudos e concluiu o Ensino Médio Técnico em Administração
de Empresas. Começou a namorar aos dezesseis, casou aos dezessete, foi morar no
bairro de Santa Teresa e teve um casal de filhos. Divorciou-se do marido, porque ele
se tornou alcoólatra e assim retornou com seus filhos para a casa dos pais. Criou os
filhos sozinha e enfrentou preconceito por ser divorciada.
120
ENTREVISTAS INDiVIduais
Rodas de mEMória
RODA 1 | ASSOCIAÇÃO DE MORADORES
Rodas de mEMória
RODA 1 | ASSOCIAÇÃO DE MORADORES
Daniele de Oliveira Alves: Dani sempre viveu no Horto, desde o seu nas-
cimento. Ela tem 34 anos, é casada, mãe de dois filhos e herdou da tia-avó Antô-
nia o gosto pela organização das festas comunitárias. Seu pai morava em Rocha
Miranda quando criança e foi morar com a tia no Horto porque a sua mãe tinha
muitos filhos e não tinha condição de criá-lo. Assim ele cresceu na região e, pos-
teriormente, constituiu família, vivendo em uma parte da casa cedida por sua tia.
De maneira similar, Dani nasceu, cresceu e formou sua família e construiu sua
casa no mesmo terreno onde sua tia-avó morava. Daniele estudou até o Ensino
Médio Técnico na área de Informática, nunca exerceu a profissão e fez um curso
profissionalizante de cabeleireira no SENAC (Serviço Nacional de Aprendizagem
Comercial) e trabalha na própria residência.
Rodas de mEMória
Maria Lúcia de Oliveira: Dona Maria Lúcia tem 70 anos e se mudou para
o Balança quando tinha apenas 4 anos de idade. Ela parou de estudar por volta
dos 16 anos e começou a trabalhar como prensista em uma lavanderia chamada
Toalheiro Brasil. Dona Maria Lúcia é secretária do ambulatório de ortopedia do
Hospital Miguel Couto há mais de 40 anos e diz que sempre está disposta a ajudar
seus vizinhos e refere-se a si mesma como o S.O.S do Balança.
Rodas de mEMória
RODA 2 | BALANÇA (CONJUNTO HABITACIONAL DONA CASTORINA)
Luiza Barcellos Lopes: Luiza tem 54 anos, nasceu e se criou no Balança. Sua
avó também foi morar no conjunto por causa da remoção da Praia do Pinto. Ela
contou que teve uma infância maravilhosa e diz que a convivência no conjunto
habitacional é como uma grande família que se desentende algumas vezes, mas
que, quando alguém precisa, todos se unem para acolher ou socorrer a necessi-
dade uns dos outros. Luiza disse que, assim como Tetê, namorou bastante, teve
alguns relacionamentos sérios, teve três filhos, mas nunca se casou. Ela estudou
até o Ensino Médio, seu primeiro emprego foi em uma fábrica de roupa infantil,
chegou a gerente e exerceu a função durante 9 anos. Trabalhou em uma empresa
do ramo de lavanderia industrial, mas depois teve que sair porque teve seu filho
mais novo e ele precisava de cuidados. Atualmente, Luiza é uma das lideranças
locais, assumindo a função de síndica do Balança.
Dayse Moreira Serra: Dayse conta que a sua mãe morava na Rocinha quan-
do sua tia se mudou para o subúrbio e chamou sua mãe para morar no Balança.
Dayse tem 57 anos e mora no mesmo apartamento que foi da sua tia. Ela parou
de estudar para trabalhar e seu primeiro emprego foi aos 18 anos em uma loja de
roupas infantis em Ipanema. Dayse tem dois filhos, mas não se casou porque pre-
za sua liberdade. Ela contou que precisou parar de trabalhar para cuidar da mãe,
que veio a falecer e que enquanto não consegue um emprego novamente, ela faz
uns “bicos”.
124
O QUE é ser
mulher no Horto?
Dores, alegrias, irreverência, resistência, luta,
indignação, medos, inseguranças, persistência,
determinação são algumas das palavras que apa-
recerão nos relatos colocados a seguir. De ma-
neira muito generosa, elas deram contribuições
valiosíssimas para compreendermos sua inser-
ção no processo de construção do território do
Horto. A partir das narrativas, mergulharemos
em suas memórias, sentimentos, vivências e ex-
periências. Por hora, se faz necessário retomar a
questão inicial: o que é ser mulher no Horto?
Às vezes é difícil, né? Porque a gente cresceu com isso, né? A gente
ter casa e não ter. Fica Horto, não fica Horto e vai chegando um certo
tempo na sua vida que isso vai te incomodando. Porque eu nasci, fui
criada aqui, tenho 33 anos e não posso dizer que a casa é minha por-
que não tenho nenhum documento que prove que o terreno é meu,
que a casa é minha. Então, às vezes é complicado. É insegurança!
Até mesmo na última remoção que teve foi até complicado, porque
eles vieram já com o intuito mesmo de remover a casa, de gerar uma
confusão, de não estar respeitando se era criança, se era velho, se era
idoso, se era mulher, se não era. Então é complicado.
Dani Alves
126
Então, eu acho que tem uma pequena parte das mulheres do Horto
que fazem acontecer. Então, eu acho que ser mulher no Horto é ser
muito guerreira porque o pouco de mulher que tem aqui luta pelo seu
direito e pelos dos outros. Conta muito porque se não fosse por elas
muita coisa aqui não teria acontecido.
Janaína Gama
127
E quando surge um conflito, também são as mães, tias e parentes idosos. Nesse processo,
mulheres que interferem para acalmar os âni- elas percebem que existe uma diferença na re-
mos, conciliar e resolver o problema. Essa práti- corrência social da prática feminina e masculi-
ca de cuidado se mostrou bastante presente, não na: enquanto homens ignoram ou se omitem na
apenas no âmbito comunitário, mas também no resolução dos conflitos, as mulheres se lançam
individual. Para além dos cuidados exercidos na tentativa de resolvê-lo.
pela maternidade, as mulheres cuidam das suas
Rosane Caetano
Shamyra Ferreira
131
VIOLÊNCIA CONTRA
a MULHER
Quando perguntei sobre a percepção de vio-
lência contra a mulher no território, a maioria
delas me respondeu que não havia sofrido ne-
nhum tipo de violência e que consideravam o
Horto um lugar seguro, tendo em vista que suas
famílias residem ali há muito tempo e elas co-
nhecem a vizinhança.
Ah, muito (segura), não é só para as mulheres não! Pra todo mundo!
Pros homens, pras crianças! Aqui não tem nada, não acontece nada,
não é só aqui, porque quando eu oro a Deus, eu agradeço, aqui, nas
Margaridas, lá no Horto, eu agradeço a Deus por isso tudo aqui.
Neuza Silva
Eu, pelo menos, eu vejo assim, ó... Eu descendo, tem um grupinho ali,
mas ninguém mexe com ninguém. Os meninos respeitam bastante
“Oi tia, tudo bem?”. Se você tiver com algum problema eles vem pra
ajudar, se tiver com bolsa de mercado pesada eles vem “Quer que eu
leve?”. Eu não vejo problema nenhum em matéria de segurança.
Sheila Vieira
Aqui em cima (Morro das Margaridas) não! Nunca houve essas coi-
sas de violência, marido batendo nas mulheres não. É briga normal.
Maria Aparecida
132
Tem alguns casos. Poucos! Não tem muitos não. E então eles me cha-
mavam de vez em quando. Porque já aconteceu. Já me chamaram
de madrugada, meia noite, de manhã, com chuva. (...) Vamos pegar
um grupo de mulheres que querem trabalhar nessa área, fazer um
estágio, conscientizar as suas filhas, conscientizar elas mesmas. Elas
não têm que levar desaforo pra casa, não no sentido de bater no ma-
rido também, porque eu não concordo, entendeu? Não é obrigada a
dormir com o marido se ela não quiser! “Se eu não fizesse isso, ele me
largava”. Vai procurar outra, ué! Quer ir? Tu vai! Problema nenhum! Eu
não quero e não quero! Nesse sentido, você entendeu?
Gal Marques
133
Sabe aquela coisa assim... Eu casei pra dar uma satisfação. Tipo, de-
cepcionei meu pai, vou tentar pra... Nem gostava dele tanto assim [do
noivo]. Aconteceu que eu namorava e engravidei, e eu tentei por cau-
sa disso, por causa da decepção que eu vi em meu pai. Ele ficava com
raiva, ficou arrasado, arrasado mesmo quando eu engravidei. Ele (o
marido) voltou a ficar paranoico e eu deixando passar, empurrando
com a barriga. Aí, teve um momento que eu saindo pra trabalhar:
“Olha, tá tudo pronto aí”. Sei lá, acordava às seis horas, era dez pras
seis, nem banho eu tinha tomado. Naquele dia que você dá faxina na
casa e perde a hora, eu disse pra ele tinha que tomar banho e ele dis-
se que queria jantar, tava com fome. E eu disse pra ele que tava tudo
pronto, era só esquentar. E ele disse para eu arrumar pra ele. Eu res-
pondi que não, estava atrasada pra trabalhar. ‘Eu vou tomar banho
e vou correr.’ Quando eu saí, virei as costas pra ir pro banheiro, saí do
quarto pro banheiro. Ele me deu um tapão e me jogou em cima. A mi-
nha casa era bem pequeninha, meio quitinete, porque meus pais divi-
diram a casa pra gente. Então fiquei com o quarto e fiz um banheiro
e um pedaço da cozinha. Eu tinha um sofá na cozinha, uma parte da
cozinha, ele me deu uma porrada que me jogou em cima do sofá. E
eu louca naquele momento, eu nem pensei. Só olhei pra cima da pia,
olhei pra cima da pia. Eu mesma falei: “que merda eu iria fazer” Por-
que quando eu trabalhava eu comprei, de um fornecedor, sabe essas
fábricas de peixeira, aquelas com cabo branco. Eu comprei porque
o menino tinha me ensinado a fazer sushi, eu comprei pra fazer em
casa. Aí, ela estava onde? Em cima do raio da pia, na hora eu nem
pensei, só peguei a faca e fui pra cima dele. É, então dali eu falei: “não,
não dá mais”. Se eu cheguei a esse ponto, ele chegou a esse ponto e
eu também, só vai piorar. E dali mesmo, nesse dia, ele já pegou meia
dúzia de cueca e foi pra mãe dele. Nunca mais.
Shamyra Ferreira
134
A ação realizada pela polícia para desmobi- O episódio deixou marcada a pele da irmã da
lizar a resistência pacífica dos moradores teve Dona Penha e o pé da Gal Marques e também
consequências marcantes. Além da Neuza Silva marcou intimamente a todas pela experiência
e Gal Marques, outras mulheres foram atingi- traumática. Diante de tais abusos, a comuni-
das. Dona Maria da Penha me contou que esta- dade se organizou para denunciar a violência
va na porta de casa conversando com a sua irmã perpetrada aos órgãos de proteção e defesa dos
e uma vizinha que segurava em seu colo o filho, direitos humanos e assim foi aberta uma inves-
um bebê com meses de vida, quando apareceu tigação em âmbito administrativo para averi-
um grupo de policiais em formação de combate guar essa ação covarde e desastrosa.
e lançou na direção delas três bombas de gás la- Ainda sobre violência e memória traumática,
crimogêneo e efeito moral. Ela disse que no local mas mudando um pouco de parâmetro, um dos
não havia nem sinal de enfrentamento, estava relatos que mais me impressionou foi de Rosa-
distante do local de acirramento do conflito, ne Caetano que, como mulher negra, vivenciou
mas que havia grupos de policiais espalhados uma dura experiência com o racismo no am-
pela comunidade, como se estivessem em terri- biente escolar durante a sua infância.
tório inimigo, em plena guerra.
Eu, por exemplo, dos quatro irmãos, sou a que tem o cabelo mais
crespo e isso sempre foi muito focado pelos meus amigos, uma vez
pela professora. Inclusive na faculdade eu fiz um trabalho sobre isso,
porque eu tinha o cabelo muito crespo e minha mãe não tinha muito
tempo de cuidar da gente. Então, minha irmã era muito fácil, cabelo
liso, ela fazia uns cachinhos e ficava o dia inteiro. Já comigo, ela dava
aquele jeito, abaixava, molhou o cabelo e ficava daquele jeito, né?
Que hoje em dia a gente diz bonito. E a professora achava que aquilo
era por desleixo. Então, uma vez, ela me pegou pelo braço e me levou
em todas as salas. Pra mostrar pros meninos, pros outros colegas de
turma que eu não penteava o cabelo e na verdade não era isso. É
porque o cabelo não ficava baixo mesmo! Mas, na verdade, isso não
me marcou tanto. O que me marcou mais foi o dia seguinte. Uma
137
A experiência da Rosane Caetano envolve dis- com seus colegas universitários, os processos de
criminação de raça e gênero, simultaneamente. violência racial que ocorrem nas escolas. A for-
Ela ressignificou a violência sofrida e foi estudar ma como ela reagiu contra o racismo sofrido na
Pedagogia, ter formação na área do magistério. infância, expondo o caso na universidade, de-
Rosane conseguiu transformar algo tão marcan- monstra coragem e uma resistência que busca
te em motivação para o seu desenvolvimento e atingir mudanças no sistema educacional para
ainda levou a questão para pensar em conjunto, uma coletividade.
138
Memórias SOBRE
O HORTO
Durante a entrevista, perguntei sobre as me-
mórias que elas tinham sobre a origem da comu-
nidade do Horto e descobri fatos interessantes.
Algumas mulheres associaram a origem da loca-
lidade ao período histórico colonial, trazendo ves-
tígios da escravidão. Isso é simbólico porque traz
à tona a memória ancestral que permeia o lugar.
Essas memórias sobre o período escravocrata Dona Castorina. Inclusive nos relatos abaixo é
e colonial se repetem em alguns depoimentos. O possível perceber a materialidade das informa-
mais interessante é que eles partem de mulheres ções tendo em consideração os vestígios que exis-
que moram em localidades distintas dentro do tiram em um dado momento ou que ainda perma-
território do Horto: Caxinguelê, 2040 e Estrada necem na comunidade.
Olha, como surgiu, foi com o D. João VI. Ele chegou no Jardim Bo-
tânico e, ele, segundo consta, ficava sentado embaixo de uma
mangueira, jaqueira, assistindo as pessoas trabalharem, né, os
escravos. E ele designou...Tinha o feitor...Tinha... Eram três ou quatro
tipos de funcionários que ele designou... E esses funcionários que
vieram morar aqui foram se multiplicando. Mas eu queria lembrar,
inclusive, aquelas casas que têm ali, no início do Jardim Botânico,
onde ficava os guardas, né? Eles ficavam ali. Não tinha muro, né?
Era uma cerca e eles trabalhavam vinte e quatro horas. E eles eram
usados, né? Mas, na época eles eram os guardiões mesmo.
Neuza Carcerere
140
Emília de Souza
Edna de Souza
Regina Antônia
141
Nossa casa fazia parte da senzala, uma das paredes tem até hoje.
Um dia te levo lá. As paredes ainda estão em pé. Um dia vou te
levar na casa do meu primo, Adilson, que mora lá até hoje. E, você
vai ver que na parede ainda tem a marca daquele janelão enorme,
em uma das paredes, que fazia parte da casa grande. Na medida
que as pessoas foram chegando no Morro das Margaridas, foram
construindo em torno da senzala. A senzala, na verdade, era mais
no subterrâneo.
Emília de Souza
Essas memórias retomam o cenário atual de categoria aglomerados subnormais, termo utili-
conflito que a comunidade do Horto atravessa. zado pelo IBGE – Instituto Brasileiro de Geogra-
Apesar de, esteticamente, o Horto não ter uma fia e Estatística para designar áreas faveladas.
similaridade com as favelas, a comunidade é Trago à memória o trecho do livro “Quarto de
uma “ilha” de negros e pobres situada em um Despejo”, de Carolina Maria de Jesus, escritora
bairro cuja população é majoritariamente bran- negra do século XX, que descreve a experiência
ca e com poder aquisitivo econômico bastante cotidiana de morar na favela.
alto. A comunidade é identificada por meio da
143
Ah, minha infância foi maravilhosa! Não tinha esse lance da inter-
net. Então foi infância, infância mesmo, de brincar muito todos os
dias à tarde, vários vizinhos que a gente cresceu junto. Brincar de
pique esconde, de bola, de bicicleta, infância mesmo de moleque
mesmo, de brincar, brincar muito todo dia.
Dani Alves
A minha infância foi maravilhosa! Vamos dizer que foi uma infância,
infância, porque eu brinquei muito, subi em árvores, entrava pelos
matos, subia pra represa escondido dos meus pais, cachoeira... Fui
moleca, posso dizer que fui moleca, eu subia mais árvores, sendo
que como eu moro no Solar da Imperatriz, nessa época funcionava
o Ministério e só podia passar ou brincar depois das 17h00 e isso era
respeitadíssimo. Se alguém passasse, pegasse uma flor, subisse na
146
Ah, mas foi ótimo! Tinha uma sede lá atrás que eu lembro, era ga-
rota, tinha baile, mas os mais velhos não deixavam a gente entrar
não. Lembro que eu e minha irmã a gente chegava só na janela,
era muito bom gente, era muito bom. Eu fui nascida e criada aqui,
né? Moro aqui há 61 anos. Então o primeiro (bloco de carnaval) que
teve aqui, foi o Psicodélico, que Paulo primo de Zé Luiz, que fez a
fantasia de saco pra gente. Aí, depois foi Urubu Cheiroso, chegou
até o Nil do Jardim Botânico, como a minha comadre aqui falou,
Cristina, onde o pai dela veio a ser o presidente. Foi uma infância
boa! Eu não tenho nada o que falar, nada, nada, nada. Não me
arrependo de nada, adoro isso aqui!
Tetê Santos
147
Mas olha, vou dizer uma coisa pra você: era muito bom aquilo ali!
Reunia aquele grupo, época de festa, época de natal, reunia ali. O
pessoal fazia aniversário, cada um levava uma quantidade, muito
bom. Não vou dizer pra você que agora é ruim não, é bom mas na-
quela época era melhor.
Maria Aparecida
Aí, minha mãe, antes de morrer, me entregou pra uma família. Na-
quela família eu trabalhei, trabalhei muito na roça porque eu era
muito pequena. Trabalhei muito na roça e fui me criando e depois a
minha outra irmã veio embora pro Rio. Aí, depois, ela foi me buscar
com o meu cunhado. Minha irmã mais velha se casou. Foi me bus-
car lá, foi me buscar. Meu cunhado foi meu tutor, o marido da minha
irmã. Aí já vim pra cá. Eu deveria de ter mais ou menos, tô com se-
tenta, vou fazer setenta e sete... Então, naquela época, deveria de ter
uns doze... Treze para quatorze anos, que eu deveria de ter. Aí, aqui eu
comecei a trabalhar, trabalhei muito. Casa de família. Fazia de tudo
um pouco. Tudo, tudo, faxineira, era tudo. Depois eu me casei.
Maria Aparecida
Aí, pela dificuldade, porque chegou uma época que a gente não
tinha nem dinheiro pra comprar o material, eu precisava trabalhar
pra ajudar. Aí, eu parei de estudar pra trabalhar. Na Amaro Caval-
cante eu fiz até o segundo comercial básico, aí eu parei.
Maria Teresa
Fiz até a quinta série. Aí, depois, eu ia fazer ginásio, mas tinha que
pagar. E eu já era muito assim de casa, então, eu sabia a dificulda-
de que era, que meu pai tinha de botar comida dentro de casa e
ver minha mãe num tanque lavando roupa. Todo dia no tanque la-
vando roupa. Eu já tinha essa maturidade de ver o sacrifício. Fiquei
ajudando a minha mãe. Ajudava em casa. Ela lavava roupa, eu
passava. Dia de sábado eu entregava roupa o dia inteiro, ela fazia
aquelas trouxas. Ela fazia uma marca com aquela bolsa de crochê,
com aquela argola de vidro, não sei, né? Era uma bolsa aqui no
braço com uma trouxa, e outra aqui no braço. Eu chegava, saltava
na General Osório, que o ônibus só ía até a General Osório, e des-
cia, pegava a (rua) Gomes Carneiro e ia até lá em Copacabana.
Levar roupa, levava limpa e trazia suja. Depois, com quatorze anos,
aprendi a costurar. Fui pra uma aula de costura à noite.
Maria da Penha
Identifiquei no decorrer da pesquisa que as maneira deram suporte para que elas pros-
mulheres que conseguiram completar o en- seguissem nos estudos. Já outras interrom-
sino superior tinham apoio econômico e es- peram sua trajetória acadêmica e retornaram
trutural da família. Suas famílias de alguma após a fase adulta.
150
Olha, eu vou citar Emília, porque Emília pra mim é assim fora do
comum! Já falei pra ela várias vezes ‘’Olha, meu espelho é você. Eu
te admiro muito! Não tome isso como inveja porque eu não gosto
dessa palavra, não tem no meu dicionário isso, no meu vocabulá-
rio”. Tenho a Emília como espelho, como uma pessoa que luta. En-
tão, eu vejo a Emília, a Neuza (Carcerere) também, minha vizinha
que é da associação também, uma pessoa que está sempre lutan-
do, batalhando, sempre corre atrás. ‘’Olha avisa fulano, fala com
ciclano”. Eu acho bacana! Eu acho até que deveria ter mais pesso-
as, mais moças, mais pessoas lutando lá na frente, né? Mas...
Bernardete Costa
Minha mãe Emília, Beta, Neusa, minha vó que já faleceu, mas que
continua atuando de alguma forma, que todo mundo sempre
lembra de alguma coisa que ela fez, das coisas que ela falava, dos
conselhos que ela dava, sempre uma pessoa que lembro. Minha vó
pra mim é uma mãe, a mãe de todos. Parecia a Iemanjá do Horto.
Ela cuidava de todo mundo, entendeu? Sempre foi muito guerreira,
sempre foi muito acolhedora, sempre foi muito braba também, por-
que ela era braba, né Beta? Mas, assim, uma pessoa maravilhosa,
um coração maravilhoso, uma mãezona pra todo mundo, não só
pra minha mãe, pros meus filhos. Mas, ela marcou a história do
Horto, não tem uma pessoa aqui no Horto que não saiba quem
foi minha vó. Ela é, tipo assim, eu acho que ela é uma referência
no Horto, que todo mundo conhece a Elza, todo mundo fala da tia
Elza, todo mundo gosta, gostava, gosta da tia Elza, não gostava,
gosta ainda. Então, eu acho que ela foi de grande valia pra história
do Horto também, que ela foi casada com meu avô. Meu avô veio
pra cá, trabalhava no Jardim Botânico também. Meu avô traba-
lhava no Ministério da Agricultura, trabalhou muitos anos dentro
153
do Jardim Botânico. Então, ela junto com o meu avô fez a nossa his-
tória aqui no Horto.
Janaína Gama
A dona Maria Luíza, a mãe dela, a mãe, a avó. Porque são mulheres
que a gente sabe que criaram seus filhos, educaram, lavando roupa
lá naquele... Ali tinha um tanque. Era uma guerra, pelo que eu me
lembro, lavar roupa ali do lado da birosca. Tinha um cara, tinha que
revezar para lavar roupa, tinha cuidar dos filhos, porque os maridos
gostavam dos bailes, iam pros bailes. Então, eu acho que eram mu-
lheres que vieram pra cá e praticamente fundaram isso daqui.
Luiza Barcelos
E outra coisa. Aqui a gente sempre teve respeito. A Lúcia aqui é mais
velha. Se um filho meu fizer malcriação para ela, a gente vai pegar
e vai botar dentro de casa, entendeu? Tem que respeitar! Os idosos
passavam, a gente tinha que cumprimentar e falar direito porque
nossos pais e avós pegavam a gente. Tinha respeito!
Luiza Barcelos
Senão o idoso chegava e falava “passei pelo seu filho e ele não
falou comigo”
Maria Lucia
154
Porque você vê hoje em dia, tem muitas crianças que já não tão
fazendo isso. Estão desacatando o idoso, os mais velhos, entendeu?
Então, são pessoas de referência que educaram os filhos e a gente
respeitava essas senhoras: Maria Garrincha; a mãe da Rosália, era
rezadeira. Se precisava, levava lá para Dona Olinda poder rezar a
gente, todo mundo levava, entendeu? São pessoas que marcaram
muito. Maria Garrincha, mãe da Francilina Romualdo.
Luiza Barcelos
Tinha umas senhoras aqui que deixaram a sua marca, né? E refe-
rências boas que a gente tem saudades delas, entendeu?
Luiza Barcelos
Toda essa construção feminina é fundamen- cimento na região ocorreu a partir de relações
tal para a perseverança da comunidade em de trabalho. O lugar outrora desvalorizado foi
continuar no local. As ameaças de remoção são transformado em um excelente espaço de con-
confrontadas pelo ânimo de luta e permanên- vivência por essas desbravadoras, guerreiras,
cia destas mulheres que são “chefes de família” que junto com suas famílias construíram uma
e administradoras das suas casas e da comuni- comunidade pacífica em harmonia com a natu-
dade. A resistência não tem sido um processo reza. Apesar do cansaço de anos à frente des-
fácil. Resistir à criminalização dos moradores é se processo de luta por permanência, elas não
uma tarefa hercúlea, principalmente quando se estão dispostas a abandonar suas memórias, vi-
tem a consciência que a ocupação e o estabele- vências e histórias.
155
Eu penso que tem uma senhora que morava ali, que ela morreu
com cem anos. Tem dois anos que ela morreu. A Record foi na casa
dela nessa época, passou até na televisão, nós assistimos. Ela falou
na televisão e nós vimos daqui. Ela falou que a gente só iria sair
daqui pro caixão. Realmente, ela morreu, saiu de casa pro caixão,
morreu em casa. Ela foi criada aqui e o marido também. Ela traba-
lhou no Jardim Botânico. Quer dizer, ela morreu com cento e dois
anos. Ela foi carregada por aquele negócio. Quando eu saí pra ir no
mercado, eu vi aquele corpo saindo, fiquei num estado de nervos.
Voltei pra casa chorando, entrei, todo mundo perguntando o que
foi, eu falei, “ela tá saindo agora morta, no carro.” Quer dizer, ela
falou pra repórter da Record que só ia sair dali no caixão. Eu falo
também! Só vou sair daqui no caixão! Não vou sair! Poxa, mexendo
com a gente aqui! A gente não incomoda ninguém, aqui é calmo,
não tem nada. Aqui as pessoas ficam na rua até três, quatro horas
da manhã, não tem nada! O meu neto fica três horas da manhã
na rua, na festa do vizinho. Eu saindo daqui, Deus me livre! O dia
que falar a senhora vai ter que ser despejada’”, não sei nem se vou
aguentar, como vou agir, porque eu não sei não.
Vera Lúcia
Acho que nós devemos brigar pelos nossos direitos. Acho que aqui
eu tenho direito total, porque isso aqui já é nosso. Como diziam: a
minha casa é a minha vida. E eu falei, foi até a primeira vez, pra
uma rádio aí, em uma entrevista. Eu falei: a minha casa é a minha
vida. Então, acho que o motivo maior, porque você tem que ter uma
identidade, um local pra você morar, pra chamar de seu. E isso
aqui é nosso! Só depende da boa vontade, entender. Eles já enten-
deram. Saber que é nosso eles já sabem. A parte financeira grita
muito, preconceito também. Abrir a janela, e dar de cara com po-
157
bre, deve doer tanto, né?! Quero ver quando morrer... Nós, operários,
juntamos pra construir o prédio. E, pela nossa condição financeira,
nós somos impedidos de morar, habitar. Você não imagina... Por-
que na hora que o Jardim Botânico precisava construir... de mão de
obra, né... de gente pra colocar a mão na massa, nós servíamos. É
igual você construir uma escola, e depois seu filho não poder estu-
dar lá, porque sua condição financeira não permite, né?
Neuza Carcerere
pessoas aqui, como a mãe dela, a Dona Antônia. Meu Deus, quan-
do tinha festa aqui, festa junina, a mãe dela botava barraca de
doce. Era lindo! Não me esqueço disso. Nós éramos felizes. Era onde
colocaram esses entulhos ali.
Regina Antônia
Nelia Maria
Nem sempre ter é poder. Acho que as pessoas têm que ter consci-
ência do seu papel, do que ele pode, até onde ele pode ir... O seu
papel aqui na terra. E, hoje, estão muito distorcidos... estão pensan-
do muito em si. Tá muito dividido. O poder está do lado do outro. Te-
mos que unir as pessoas! A violência tá crescendo por causa disso...
Porque as pessoas que têm estão se afastando das que não têm
poder. E isso está isolando, as pessoas estão ficando mais isoladas.
Então, acho que as pessoas têm que pensar na sua forma de viver.
Temos dentro do nosso país uma Constituição, que dizem ser avan-
çada, mais avançada do mundo, que diz a questão do direito à
moradia, que todos têm direito. Acho que tem que fazer valer o que
está na Constituição. Tem que ser aplicado. Na teoria isso é tudo
muito bonito, mas na prática não está sendo respeitado. Acho que,
quando a sociedade entender que esse não é o caminho pra con-
duzir o mundo, as coisas vão ficar melhor. Todos vão ter seu direito,
seu espaço, a garantia de ter seu cantinho, sua tranquilidade... É o
mais importante pra todo mundo.
Edna de Souza
um absurdo isso, mas espero que as pessoas, assim como eu, não
desista. Não pode desistir. Correr atrás, lutar, ser firme. Ter aquele
propósito e, enfim, não pode desistir!
Maria dos Anjos
Olha, eu confesso que eu tenho muita força pra fazer tudo para
que a gente continue, mas a gente sabe que a gente tá lutando
contra gente muito poderosa e isso às vezes dá uma derrubada na
gente, sabe? De achar que de repente a gente pode passar aqui na
frente e isso aqui não vai mais existir. Isso dói e a gente sabe que a
gente não ocasiona nenhum dano ambiental, muito pelo contrário,
você faz uma missa ali, você vê vegetação a sua volta. E até por-
que a gente sabe que eles vão visar o lucro vão destruir isso tudo,
eles não estão preocupados com o verde, eles não estão! A preocu-
pação deles é dinheiro mesmo! Infelizmente, a humanidade fica
cega, a ganância cega muito a humanidade e parece que tudo se
esvazia dentro da pessoa em termos de amor pelo lugar, pelo lado
humano mesmo e isso tudo parece que morre dentro dessas pes-
soas que vem pro Jardim Botânico (Nélia se emociona). É tão ób-
vio que eles tem interesse né? A gente tá aqui nesse pedacinho de
chão... Por que essa investida toda em cima da comunidade? Eles
tem interesse, eles vão ter a contrapartida deles. Essa vizinha, quan-
do a gente fez um DVD sobre a história do Horto, disse assim: “me
deixa aqui no meu pedacinho de chão”.
Nelia Maria
Minha filha é minha vida que está aqui, minha vida. Acho que eu
tinha sete anos quando morei lá no Grotão, meu pai com tanto
sacrifício fez lá de pau-a-pique. Aqui de tijolo, pagou pra construir
essa casa, aí vim morar aqui. Aqui tem braço do meu pai, suor de
162
lavar roupa da minha mãe! Eu acho que eu tenho que lutar até o
fim pra garantir isso aqui, porque aqui tem suor dos dois, tanto do
meu pai como da minha mãe. Minha mãe lavando roupa pra fora,
quando cresci um cadinho que já podia andar na rua, eu ajudava
levando a roupa, levava limpa e trazia suja. Enquanto tiver luta e
falar vamos em tal lugar, eu vou, eu estou junto. (emocionada).
Maria da Penha
Minha raiz tá aqui, né? Assim, de tudo, porque não é uma casa que
eu vim morar. Eu nasci, meu avô construiu com a minha avó e não
foi rápido porque ele trabalhava, minha avó também trabalhava
e sei lá, demorou. Ele só fazia (a casa) aos finais de semana, as fol-
gas, quando ele tava em casa, ele vinha pra cá, fazia, tinha um ou
dois amigos que ajudavam. Então, demorou sim, três, quatro anos
pra conseguir levantar a casa. Meu pai nascido e criado na casa,
eu também, agora meus filhos, não me vejo, não atrapalho. Por
que tirar se não está atrapalhando? A gente não está desmatando,
a gente não está poluindo. Eu tô com trinta e dois, meu pai tá com
sessenta e um, meu avô morou na casa sei lá quantos anos. Então,
minha casa tem por baixo uns setenta anos! Meu avô foi tempo que
ele construiu mais o tempo que ele morou com a minha avó sem ter
filhos, nessa brincadeira deve ter sido quase dez anos, construção e
ele morar sem ter filhos, porque meu pai é o do meio, tenho uma tia
mais velha, acho que agora ela está com setenta três. Vamos dizer
que durante esses sete anos, foram três, quatro anos sem filhos, se-
tenta anos. Poxa, meus amigos estão aqui, estudei aqui, tudo aqui,
em qualquer hipótese, nem que seja na casa do amigo, mas é pra
cá que eu vou voltar! Aqui que eu conheço todo mundo, aqui que eu
to acostumada, não tem porque voltar pra não ficar.
Shamyra Ferreira
163
Ao escrever estas linhas, percebi quão trans- nar trechos que sintetizassem a importância das
formadora foi esta pesquisa não somente em mulheres na construção do território e que cou-
termos de compreensão política e de mundo, bessem em apenas um livro. Sou grata por esta
mas também no âmbito da construção de minha oportunidade e confiança concedidos para par-
subjetividade. Muitas lições foram aprendidas ao ticipar deste lindo trabalho. Agradeço a equipe,
ouvir as histórias e praticar o exercício de uma que me confiou esta difícil tarefa, pelas inúmeras
escuta atenta e solidária. Fiquei emocionada em trocas e especialmente pela paciência no proces-
diversos momentos, até porque as trajetórias so de confecção. Sinto-me honrada em escrever
muitas vezes se encontraram com a minha his- essa história construída por mulheres tão poten-
tória pessoal e familiar. Minha total gratidão e tes. Foi um período de aprendizado intenso para
admiração a cada participante que cedeu seu pre- todas e todos nós envolvidos na pesquisa. Decidi
cioso tempo para colaborar com esta construção acrescentar aqui os depoimentos das assistentes
coletiva. Recebi muito amor, carinho, atenção e de pesquisa do Horto, Bruna Ribeiro e Nataly Al-
espero que esta produção esteja à altura de todo ves, estudantes do ensino médio, pois eles reve-
afeto trocado durante este processo. lam parte da dimensão deste trabalho:
Colhi material suficiente para escrever ao me-
nos uns três livros, porém, foi necessário selecio-
Pra quem vai ler, que veja com outros olhos a comunidade do
Horto, que tente saber um pouquinho da história, como a gente
chegou aqui, para que essas pessoas que deram a vida pelo par-
que, hoje em dia sejam adjetivados por invasores e estarem sendo
tratados dessa forma tão cruel, de querer tirar sem direito a nada.
Até porque a gente não quer casa em outro lugar não! A gente
quer continuar aqui, a gente sabe que a gente protegeu a área,
isso daqui tinha tudo pra ter se tornado em um favelão. A popu-
lação do Horto se não fosse constituída, esse lado esquerdo somos
todos da mesma situação, se não fosse beirando a rua, e servindo
de segurança para essa área aqui, me diz se não tinha? Antes isso
aqui era visto como subúrbio da zona sul. A própria Globo fez uma
novela que tinha uma mulher que ela queria ser da classe alta,
mas quando ela dizia que morava no Horto, diziam “Ah, naquele
bairrozinho xinfrim”! As amigas dela de classe alta falavam. Então,
era visto assim como subúrbio da zona sul e de uma hora pra ou-
tra a elite foi chegando ali pra área de preservação ambiental. E
foram querendo tirar a gente do campo de visão deles, então isso
é muito covarde, você que chegou ali, aquilo é novo é recente, né.
Então, isso é recente, leiam, procure saber mais da história, como
aconteceu e não vejam a comunidade como invasora até porque
nós não somos e nunca fomos. Nós somos os protetores disso aqui,
essa é a grande verdade. Quem chegou pra cima da gente foi o
parque que colocou o portão aqui atrás do orquidário, veio colocar
aqui. Já colocou duas casas pra dentro, coloca uma grade ali colo-
ca meia dúzia de casa pra dentro. Então, eles que estão vindo pra
cima da comunidade, por que que o certo era querer a área toda
se eles podem se expandir nos 89% restante. É covarde isso, covarde
é não querer o pobre aqui mesmo entendeu.
Nelia Maria
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Considerando todas as vozes femininas aqui Horto e toda a minha admiração pela luta tra-
colocadas, faço coro aos pedidos dessas incrí- vada por mulheres guerreiras, que não se cur-
veis mulheres para que você busque conhecer vam aos desmandos do poder público aliado aos
a história da comunidade. Durante muitos anos, interesses privados. Termino essa escrita afir-
uma opinião pública contrária à permanência mando que a luta continua enquanto o coração
dos moradores e moradoras no local foi fomen- dessas mulheres e seus descendentes pulsarem!
tada por uma mídia tradicional que, monopoliza O Horto fica!
os meios de comunicação, está interessada nos
lucros trazidos pela especulação imobiliária e
assim publica matérias que tem por objetivo cri-
minalizar as pessoas que lá residem, chamando-
-as de invasoras.
Hoje, a permanência do Horto significa o res-
peito e a efetivação da cidadania de trabalhado-
res e trabalhadoras, que cederam os melhores
anos das suas vidas para construir e manter o
Parque do Jardim Botânico, além de criar um
ambiente saudável, de respeito à natureza e
convivência pacífica. Resta aqui os meus since-
ros desejos de permanência à comunidade do
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Referências
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ação da mulher negra na América Latina a partir Diário de uma Favelada. 1ª ed, São Paulo: Francis-
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EMPREENDIMENTOS SOCIAIS; TAKANO
CIDADANIA (Orgs.). Racismos contemporâneos. PACE, ngela F.; LIMA, Marluce O. Racismo
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HALE, Charles R. What is Activist Research? dez/2011. Disponível em: http://www.artificios.
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15. 2001.
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