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Organização

Realização

Esse projeto faz parte do programa

da Secretaria de Estado de Cultura

Patrocínio
3

Organização: Assessoria administrativa


Rede de Museologia Social do Rio de Janeiro Luzia Duarte
Museu Sankofa Memória e História da Rocinha
Museu do Horto Entrevistadas:

Coordenação: Rocinha
Inês Gouveia Aline Alves de Souza
Cristina Martins
Articulação: Clea da Silva Pinto
Antônio Carlos Firmino Eliana Pereira de Araújo
Cleonice Lopes Glauce Severino Gomes
Emerson de Souza Gonçala Norberto Araújo Pereira
Shamyra Ferreira Maria Elisabeth Domingos dos Santos
Francisca Honorata de Oliveira
Pesquisa, entrevistas e transcrições: Flávia Melo Souza
Carolina Pires Heloisa Helena Moraes Cardoso
Cleonice Lopes Kinda Martins Firmino
Lília Santos de Lima
Assistência de pesquisa e transcrição: Maria da Paz Macedo Pereira
Bruna Soares Magnalda Rodrigues
Nataly Alves Maria do Rosário Marcelino
Kinda Firmino Rogéria Batista do Nascimento
Maria Edileusa Braga Rodrigues
Revisão: Maria de Socorro Carvalho dos Santos
Bruna Caldas Maria Izabel de Carvalho
Marilene Martins Costa
Fotografias: Maria Rosentina da Silva Oliveira
Acervo Museu do Horto Michelle da Silva
Acervo Museu Sankofa Memória Rita de Cássia Smith
e História da Rocinha Simone Alves dos Santos Rodrigues
Bruna Soares Suely Figueiredo de Souza
Kinda Firmino Suely da Conceição Rodrigues
Cleonice Lopes Raimunda Luci dos Santos
Shamyra Ferreira Tania Regina Rodrigues Miranda
Emerson de Souza

Programação Visual:
Thiago Venturotti
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Horto Sheila Guimarães Vieira


Maria dos Anjos Martins Maria Teresa de Souza
Neuza Maria Carcerere Shamyra da Silva Ferreira
Regina Antônia Tavares dos Santos Janaína de Souza Gama
Emília Maria de Souza Daniele de Oliveira Alves
Edna Maria de Souza Bernardete Costa de Souza
Vera Lúcia Fernandes da Silva Leontina Melo da Silva Ferreira
Rosane Augusto Caetano Ana Cristina Macieira Santos
Maria da Penha Marcelino Dias da Cruz Maria Lúcia de Oliveira
Margarida Maria das Graças Marques Tereza Cristina Francisca dos Santos
Nélia Maria Vasconcelos Luiza Barcellos Lopes
Neuza Martins da Silva Dayse Moreira Serra
Maria Aparecida Alves da Fonseca

Organização

Realização

Esse projeto faz parte do programa

da Secretaria de Estado de Cultura

Patrocínio
Sumário
Apresentação
Inês Gouveia

Rede de Museologia Social do Rio de Janeiro


Inês Gouveia

Museu Sankofa Memória e História da Rocinha


Antônio Carlos Firmino

O Museu do Horto
Emerson de Souza

Um pouco de história sobre o surgimento da Favela / Bairro da Rocinha


Cleonice Lopes

Comunidade do Horto: lugar de resistência ancestral


Carolina Câmara Pires

A participação das Mulheres na Construção da Rocinha


Cleonice Lopes

A participação das Mulheres na Construção do Horto


Carolina Câmara Pires
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Inês Gouveia

APRESENTAÇÃO
A pesquisa sintetizada neste livro recebeu Esse desejo encontrou a parceria da Rede de
inspiração de um importante evento de 2016: a Museologia Social do Rio de Janeiro com o Mu-
XVII Conferência do Movimento Internacional seu Sankofa da Rocinha e o Museu do Horto.
por uma Nova Museologia (MINOM), realizado Logo a seguir, o desejo instituído virou proje-
em Nazaré, distrito de Porto Velho, Rondônia. to a partir do lançamento do edital Territórios
Esse encontro foi capaz de reunir diferentes Culturais, no segmento Memória e Cidadania,
desejos de memória, para juntos conversarem acompanhado pela Superintendência de Mu-
sobre como o povo ribeirinho de Nazaré pode seus, da Secretaria de Cultura do Estado. A ex-
seguir cuidando de sua memória. periência vivida no MINOM nos fez conceber
Além daquilo que era previsto, o encontro em um projeto simples e transformador como a
Nazaré foi um clarão. Faça a experiência: reú- experiência que vivemos: ouvir e registrar his-
na mulheres com desejo de problematização em tórias de mulheres, realizar escutas e conversas
um espaço onde elas possam conversar entre si, entre elas e, no fim, divulgar o máximo possível
seguras e tranquilas. O resultado será: percebem esse conteúdo. Projeto reconhecido e incentiva-
sua força e a necessidade constante de lidar com do, seguiu-se a sua execução.
as diferentes formas de dominação pelo machis- O resultado: mais de 50 mulheres entrevis-
mo. Uma dinâmica tão simples que assusta. Para tadas por duas pesquisadoras, mais quatro
mim e para as demais, esse encontro produziu mulheres que auxiliaram as pesquisas e a cada
e renovou o desejo de atuar mais em prol da li- conversa se repetiu a experiência da autoper-
berdade, da igualdade de direitos e de oportuni- cepção – nós, nossas mães, nossas ancestrais,
dades para as mulheres, compreendendo-as em tantas mulheres com essa história de luta, co-
sua individualidade e enquanto coletividade. ragem, atuação valente, determinação e que
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impactam e transformam o ambiente em que Alguns homens participaram do processo de


vivem. Onde fica o estereótipo da fraqueza e pesquisa e elaboração do livro. Também tiveram
delicadeza incapacitante que as limita decidin- contribuições fundamentais, conhecem seus ter-
do o que elas podem ou não fazer? Revela-se o ritórios físicos e simbólicos e buscam a reflexão so-
óbvio: o discurso do sexo frágil em nada cor- bre a participação das mulheres na construção do
responde à vida prática da esmagadora maio- mundo. Os companheiros representam uma mi-
ria das mulheres. Não corresponde à realidade noria real, que na luta cotidiana se impõem como
das mulheres que fizeram esse livro e possi- maioria no campo dos direitos sociais. Os homens
velmente não corresponderá a realidade da têm um papel fundamental na transformação
leitora, mesmo que o discurso que ela elabora dessa realidade: escutar, perceber, agir consciente-
para si não traduza isso.Registro a gratidão por mente e tentar desvencilhar-se da comodidade da
todas as mulheres que, de forma tão genero- dominação masculina. A consciência é um pacto
sa, se dispuseram a contar suas histórias e nos de responsabilidade com o outro. Desejamos que a
deram tantas ocasiões para melhor pensarmos leitura sobre os territórios e as mulheres também
sobre nós mesmas e sobre o mundo em que inspire os homens nessa ação consciente.
vivemos. Vocês são extraordinárias, suas his- Gratidão e afeto pelas próximas páginas, com
tórias são aprendizado para vida e represen- suas histórias e perspectivas de quem vive e
tam a luta e a superação dos limites e desafios participa da construção dos territórios da Roci-
que nos são impostos. Vocês sobreviveram às nha e do Horto. Desejo mesmo é que esse livro
violências diárias, defenderam sua existên- seja brasa para corações quentes de mulheres,
cia, seus direitos e construíram os alicerces da homens e de todxs aqueles a quem a definição
transformação social. de gênero já não importa.

Inês Gouveia é articuladora da Remus-RJ desde 2013. Doutora em Museologia e Patrimônio, mestra
em Memória Social e historiadora.
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Shamyra da Silva Ferreira conta sua


história de vida para Carolina Pires.
Foto de Inês Gouveia

Roda de Memória na Rocinha con-


duzida por Cleonice Lopes (à direita),
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Inês Gouveia

REDE DE
Museologia Social
DO RIO DE JANEIRO
A Rede de Museologia Social do Rio de Janei- rios. São memórias que combatem preconceitos,
ro (Remus-RJ) é fruto da articulação constante discriminações, ciclos de dominação social e que
e fluida entre iniciativas de memória, museus, favorecem a diversidade cultural, estimulando e
museus comunitários, ecomuseus, pontos de exercitando o direito à diferença.
memória, pesquisadores, profissionais de mu- A museologia social exprime um fazer muse-
seus e agentes públicos e privados. O encontro ológico específico, voltado exclusivamente para
destes diferentes agentes se dá pelo objetivo em afirmação consciente dessas memórias, com o
comum, que exprime a razão de ser da Rede: objetivo direto e claro de transformação social.
favorecer as condições de pesquisa, registro e Nessa direção, essa museologia específica é um
divulgação das narrativas e das memórias com movimento comprometido com a construção de
que esses grupos lidam. E que memórias são es- processos participativos, horizontais, que aco-
sas? Memórias que precisam se sobrepor ao es- lhem o saber técnico em pé de igualdade com
quecimento deliberado e sistematicamente pro- outras formas de saber. Com essa compreensão,
duzido. Memórias resistentes que afirmam um esse movimento não está alicerçado no saber
direito de lembrar, de (re)elaborar suas identida- acadêmico, escolástico. Suas raízes rizomáticas
des, de existir e de permanecer em seus territó- estão junto aos movimentos sociais (instituídos
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Mulheres no encontro da Remus-RJ,


no Museu Vivo do São Bento,
Duque de Caxias, 12/2017.
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ou não) que produzem e ressignificam suas prá-


ticas de (re)existências. Assim, quem procura
compreender a museologia social medindo-a a
distância está fadado ao erro. É algo cuja experi-
mentação precisa tocar os sentidos e encontrar
no profissional, militante, estudante, um desejo,
um sentido de responsabilidade social e cidadã.
A museologia social
A Remus-RJ se reúne sistematicamente des-
de 2013, divulgando seus temas e construindo
exprime um fazer
pautas coletivas. De lá para cá, esse movimento
produziu uma aproximação real entre os seus in-
museológico
tegrantes que puderam conhecer in loco os tra-
balhos uns dos outros. Além das reuniões e en-
específico,
contros, a Rede também vem estimulando que os
grupos de museologia social realizem atividades com o objetivo
conjuntas, possibilitando um olhar sistemático
para as memórias com as quais operam. Nessa direto e claro de
direção é que se construiu esse projeto, pela par-
ceria entre o Museu do Horto e o Museu Sankofa transformação social.
Memória e História da Rocinha. O edital Territó-
rios Culturais - Memória e Cidadania, da Secreta-
ria de Cultura do Estado do Rio de Janeiro, trouxe
o primeiro aporte financeiro externo para a exe-
cução de ações da Remus-RJ, que até então vinha lidades numa sociedade que ainda as discrimi-
contando exclusivamente com recursos de seus na por seu gênero e pela sobreposição de outros
próprios integrantes, assumidamente militantes. preconceitos relativos à condição social, cor/raça,
Em 2017, além do desenvolvimento do projeto “A sexualidade, credo etc. Além da publicação deste
Participação das Mulheres”, a Remus-RJ iniciou livro, o projeto ocasionou a produção de um acer-
a execução de um amplo plano de trabalho, com vo digital indispensável ao Museu Sankofa e ao
várias ações desenvolvidas em favor dos grupos Museu do Horto. Um acervo fundamental para
que a integram. os museus em geral, que tradicionalmente repre-
A pesquisa sintetizada neste livro e, especial- sentam memórias que simulam imparcialidade,
mente os depoimentos das mulheres da Rocinha quando na prática pertencem a uma classe domi-
e do Horto, trouxeram a possibilidade de uma nante insistentemente representada por homens
escuta sistemática dessas agentes. Vistas assim, brancos e heterossexuais, como os donos e agen-
suas trajetórias evidenciam os limites e potencia- tes do espaço público.
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Assim, com orgulho, a Rede de Museologia jetivo a valorização das trajetórias de mulheres
Social do Rio de Janeiro (que têm integrantes e de quaisquer outros grupos sociais silenciados.
e parceiras incríveis) se ocupa das mulheres, Pelo exercício do labor em favor da Remus-RJ,
suas memórias e suas lutas, afirmando todos dos museus transformadores e dessas memórias
os seus direitos frente ao machismo estrutural, que nos importa cuidar, fica registrado o agra-
conservadorismo e aos preconceitos atuais. Não decimento a Cleonice Lopes e Carolina Câmara
há memórias neutras; ou elas cooperam com a Pires, pesquisadoras e as principais executoras,
manutenção dos mecanismos de controle e do- juntamente com Kinda Firmino, Bruna Soares e
minação ou elas atuam para modificá-los. Shamyra da Silva Ferreira. Agradecemos muito
A Remus-RJ compreende seu papel de agente ao trabalho das parceiras Mirela Araujo e Ron-
social, frente aos desafios de seu tempo. Reco- delly Cavulla, que elaboraram conjuntamente
nhece que a reprodução de uma memória social o projeto e expressando gratidão a elas, agra-
é o cimento do conservadorismo, assim como a decemos e saudamos a todas as mulheres que
produção de uma renovada memória social é o embalam a Remus-RJ e a as mulheres que nesse
fermento da transformação e da criação. Felizes mundo a fora são as guardiãs da memória de seu
pela publicação deste livro, esperamos que ele povo. Aos companheiros Firmino e Emerson,
incentive outras ações de registro e produção de permanece a gratidão pelo compromisso sincero
acervo sobre os territórios, que tenham como ob- e a generosa contribuição.

Oficina de audiovisual do Museu do


Horto, realizada com o apoio da Mairarê
- Produtora Audiovisual
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Antônio Carlos Firmino

MUSEU SANKOFA
Memória e História
da Rocinha
Buscar retratar as memórias e histórias da adultos), na Ação Social Padre Anchieta (ASPA),
considerada maior favela da América Latina a mais antiga instituição da Rocinha, com a pro-
(Rocinha) nunca foi fácil e nem vem sendo, mas fessora Lygia Segala. Os alunos partiram de uma
partimos de valorosas ações e atitudes realiza- pesquisa sobre aspectos culturais e, posso dizer
das entre as décadas de 1970 e 1980 pelos pró- também, pelo direito às suas memórias e histó-
prios moradores da Favela da Rocinha, sendo rias, mesmo em um contexto político e econômi-
estes alunos do antigo Mobral (alfabetização de co desfavorável, como na Ditadura Civil-Militar.
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Mapa do loteamento das terras da Fazenda


Quebra Cangalha década de 1920. O mapa foi
doado para o Museu Sankofa pelo herdeiro
João Castro de Guidão, bisneto da família.
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O processo de construção foi de forma demo- Houve outras iniciativas, menos contínuas,
crática, levando em conta o conhecimento de como a do diretor Luiz Roberto, da então cria-
cada participante. Ao final se indagou sobre o da Associação de Moradores Amigos Bairro
que fazer com o material coletado, então sur- Barcelos, da parte baixa da favela, que iniciou
giu a ideia de um livro. Na época colaboraram uma atividade de preservação das histórias da
para organização: Antônio de Oliveira (presi- Rocinha. Essa atividade não foi à frente e, na
dente da associação União Pró Melhoramento década de 1990, outra iniciativa de outro grupo
da Rocinha) e a secretária da Associação, Tânia de moradores com rodas de conversas também
Silva, junto com Lygia Segala. aconteceu, mas não teve continuidade.
O livro, que é carinhosamente chamado de Em 2004, com o governo do então presiden-
Varal de Lembranças, é uma obra produzida te Luiz Inácio Lula da Silva, através do minis-
coletivamente pelos moradores e relata o co- tro da Cultura Gilberto Gil, foi lançado o edital
tidiano daqueles que nasceram na Rocinha, para pontos de cultura pelo Programa Cultura
ainda antes dela ser tornar a maior favela da Viva. Na ocasião, entre outras, duas institui-
América Latina. Contempla os descendentes ções trabalhavam em conjunto: Ação Social
dos africanos escravizados, imigrantes eu- Padre Anchieta (ASPA), uma das instituições
ropeus, os migrantes e a diversidade de suas mais antigas da Rocinha e Centro Interna-
histórias. Outra iniciativa importante na pro- cional de Estudo e Pesquisa sobre a Infância
dução da memória da Rocinha foi o documen- (CIESPI), que já realizavam ações de valoriza-
tário Rocinha 77 de Sergio Peó, produzido na ção, preservação do brincar e sua importância
década de 1970 em conjunto com os morado- no desenvolvimento do ser humano, em espe-
res, que relata parte de um cotidiano pelas par- cial nas crianças. Essas instituições entraram
tes baixa da favela. no edital e foram selecionadas para ser pontos
Na década de 80 houve produções de audio- de cultura, cumprindo seu plano de ação de ati-
visual de Eunice Gutman – Rocinha Criança e vidades de resgate, preservação e valorização
Rocinha tem histórias – do Centro de Comuni- das brincadeiras e cantigas na Rocinha. Neste
cação e Imagem popular (Cecip), e na literatu- contexto também foram realizados encontros
ra, publicação dos livros “Fala MARIA Favela”, entre moradores e ex-moradores, dentre os
“Uma esperança na Luta”, “Architecte des Fa- mais antigos, na busca de valorização da orali-
velas”, publicação em francês (Arquitetura de dade (Prosa Griô).
Favelas, em português) e dois livros infantis, Dentro deste contexto, o Centro de Cultura
“Picolé Picolé” e “Gata Vitória Pulou o Muro e Educação Lúdica da Rocinha – nome do pon-
Caiu na Lixeira Acabou a História” – todas as to de cultura – trouxe grandes contribuições
produções relatando histórias do cotidiano. para reflexões no processo de constituição do
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Museu da Rocinha. Agregou, mais tarde, com de Cultura do Estado do Rio de Janeiro, Paulo
o nome Museu Sankofa Memória e História Conde, e os presidentes das três associações,
da Rocinha, com a sua participação no ano de Willian de Oliveira (UPMMR), Wallace Pereira
2007 no Fórum Cultural da Rocinha, organi- (AMABB) e Carlos Costa (ALVC) na parte alta
zado pelo diretor do grupo de teatro Roça Caça da favela.
Cultural, Aurélio Mesquita. O Museu Sankofa O Fórum Cultural da Rocinha foi o reinício
teve a participação de moradores amantes das da junção de vários movimentos pela manu-
expressões culturais, representantes de insti- tenção da cultura local. Produziram um docu-
tuições locais, produtores culturais de dentro e mento chamado “Plano Cultural da Rocinha”,
fora da favela, autoridades como o Secretário com algumas diretrizes:

Diretrizes e recomendações

Os debates realizados durante o I Fórum Cultural da Rocinha resultaram em diretrizes


e recomendações para ações governamentais que visam implementar o desenvolvimento
orgânico da cultura do bairro, isto é, ações amparadas na percepção de seus próprios atores
culturais. São elas:

Ações para a preservação da memória e tradições culturais


A Criação do Museu da Rocinha;
A documentação fotográfica das transformações do bairro e sua edição em livro;
A reedição do livro Varal de Lembranças;
A criação da Casa de Bamba para a valorização do samba de raiz, do samba de roda, com
a participação da Velha Guarda da Rocinha;
O apoio às ações de preservação da cultura afro-brasileira e de resgate das festas tradicio-
nais como as festas juninas, a folia de reis e o bumba meu boi;
A pesquisa e documentação dos mestres construtores que edificaram a Rocinha.

Ações para a valorização do patrimônio construído


A continuidade do trabalho de documentação fotográfica dos edifícios de importância
para a memória construída da Rocinha; dos que podem ser tomados como testemunhos do
engenho e da criatividade nos desafios da construção local; e daqueles que são marcos de
valor afetivo para a identidade da comunidade.
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Estes são fragmentos do Plano Cultural da tins de Oliveira, coordena o grupo Rocinha
Rocinha que nasceu de movimentos anteriores Sem Fronteira. Contamos com Maria Helena
que buscavam, e buscam, o direito às memórias Carvalho da área da saúde, José Ricardo Du-
e histórias na favela. O grupo pró-Museu da arte, militar da reserva e presidente da Asso-
Rocinha, formado por moradores, desde 2008 ciação de Moradores da parte alta da Rocinha,
dentro do Fórum Cultural da Rocinha, tornou- Laborioux e Vila Cruzado; Fernando Ermiro,
-se um grupo independente em 2010. Muitos se historiador e mediador de conflito comuni-
desinteressaram por achar que o governo não tário e eu, Antônio Carlos Firmino, geógrafo,
fez cumprir o plano. O grupo pró-Museu da Ro- articulador do ponto de cultura Centro Lúdico
cinha (nome da época) seguiu acreditando na da Rocinha, membro do Fórum Cultural da Ro-
possibilidade de os moradores se organizarem, cinha, Fórum dos Pontos de Cultura e da Rede
mobilizarem e seguirem construindo a ideia e de Museologia Social do Estado do Rio de Ja-
transformando em ações concretas, de acordo neiro. Todos com mais de 20 anos de atuação
com suas pernas. Era preciso estar em espaços nas áreas da saúde, direitos humanos, social,
afins, conhecer outras iniciativas semelhantes educacional, ambiental e cultural.
e estabelecer relações de parcerias com insti- Sankofa é uma palavra Akan das nações afri-
tuições diversas, no campo da Memória Social, canas de Ghana e da Costa do Marfim, que signi-
Museologia, entre outras. Destacou-se também fica: “devemos olhar para trás e recuperar nosso
a importância da proximidade com instâncias passado, assim podemos nos mover para frente;
do Estado e autarquias das três esferas. assim compreendemos porque e como viemos a
O Museu Sankofa Memória e História da ser quem somos nós hoje”. Uma das formas de
Rocinha é formado por moradores, dos quais representação baseia-se na imagem de um pás-
um foi o primeiro administrador Regional da saro mítico que está com os pés plantados firme-
XXVII Região Administrativa da Rocinha, na mente para frente e com a cabeça olhando pra
década de 1980. Hoje, aposentado, José Mar- trás, como um certo guia para planejar o futuro.

Representação de Sankofa, ave que retorna


ao passado para significar o presente.
Logo do Museu Sankofa da Rocinha.
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Devemos olhar para “Os museus comunitários, interes-

trás e recuperar nosso sados na construção de uma memória


coletiva que organize um discurso
passado, assim identitário, expressam assim disputas
simbólicas e tensões entre essas redes,
podemos nos mover flutuações de valores atribuídos a acon-
para frente; assim tecimentos e às lembranças, mediações
autorizadas no uso político do passado.
compreendemos O trabalho seletivo sobre a memória, de-

porque e como viemos finido nesses processos, envolve muitas


negociações principalmente aquelas em
a ser quem somos torno da pesquisa e da documentação,

nós hoje. do patrocínio, do mercado. Nas iniciati-


vas, proclama-se, no mais das vezes, um
outro discurso social sobre as favelas,
Neste sentido, o Museu Sankofa Memória e avesso à razão mítica – o encantamen-
História da Rocinha atua de diversas formas,
to, a exotização das culturas populares
tendo nossos conceitos dos saberes e fazeres,
sempre com nossos parceiros: os moradores, – e ao miserabilismo - a vitimização da
ex-moradores e pessoas que trabalharam por pobreza. Afirmam-se autorias, visibi-
anos na favela da Rocinha. Ações do Sankofa lidade histórica, relações de reconheci-
são diversas: digitalização do acervo, marcando mento social. (Lygia Segala e Firmino
as memórias e histórias através das artes; rea-
2009, Artigo ProextCultura. Memoria
lização de visitas guiadas, contextualizando o
nosso roteiro da caminhada; produção literária
Social, Museu e Trabalho Comunitário
“Memória Feminina Em Três Tempos”; exposi- na Rocinha, Rio de Janeiro)”
ções ambulantes “Ontem e hoje”; levantamento
da Matriz Africana no Coração da Rocinha; de- O Museu Sankofa da Rocinha busca estar ali-
senvolvimento de atividade de fortalecimentos nhado aos conceitos da museologia social, atra-
e ações junto com os seus parceiros - Facebook, vés da Rede de Museologia Social do Estado do
blogs e site memória Rocinha. Rio de Janeiro.
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“Ao mesmo tempo que preserva os O Sankofa vem se constituindo como pessoa
frutos materiais das civilizações passa- jurídica, a serviço da sociedade e do seu desen-
volvimento, na promoção e defesa do patrimô-
das, e que protege aqueles que testemu-
nio cultural, dos Direitos Humanos, do meio
nham as aspirações e a tecnologia atual, ambiente natural e construído em favelas e pe-
a nova museologia – ecomuseologia, riferias. Considera o patrimônio cultural mate-
museologia comunitária e todas as ou- rial e imaterial como processo social afirmativo
tras formas de museologia ativa – inte- de identidade coletiva e a sua preservação como
ressa-se, em primeiro lugar, pelo desen- direito de cidadania. Visa a manutenção de
acervos de memória como forma de fortalecer
volvimento das populações, refletindo
oportunidades de produção cultural para popu-
os princípios motores da sua evolução lação residente em favelas; envolvimento cul-
ao mesmo tempo que as associa aos tural, artístico e ambiental-urbano de interes-
projetos de futuro. (Mario Chagas, se comunitário; gestão compartilhada de ações
Nathália Lardosa e Luiza Calixto. Rede com órgãos públicos e privados de cultura, de
educação, de turismo, meio-ambiente, urbanis-
de Museologia Social do Rio de Janeiro:
mo e direitos humanos; estímulo à realização de
Uma experiência de diagnostico e carto- rodas de conversa comunitárias para discussão
grafia. Arquivo dos autores, disponível de questões relativas à memória, ao patrimônio
em http://rededemuseologiasocialdorj. cultural e à condição ambiental-urbana da Fa-
blogspot.com.br/p/rede-de-museologia- vela; faz uso das novas tecnologias da informa-
ção e comunicação na preservação do patrimô-
-social-do-rio-de.html)“
nio material e imaterial; promove intercâmbios
de experiências com territórios e organizações,
O Museu foi, também, selecionado em par-
nacionais e internacionais.
ceria com a Escola de Música da Rocinha em
Além disso, visa, ainda, a valorização das me-
concurso público (edital do Programa Ponto de
mórias e histórias nativas, quilombola, imigran-
Memória, edição 2014) para ações desenvol-
tes e migrantes, visando fortalecer a cultura
vidas por iniciativas de memória e museologia
local e seus valores históricos e sua identidade;
social pelo recém criado Instituto Brasileiro de
pesquisa, fomenta, cria, apoia ações culturais,
Museus (IBRAM). Este instituto é responsável
socioeducacionais, ambientais e de direitos hu-
pela Política Nacional de Museus (PNM) e por
manos; a valorização das memórias e histórias
implementar ações, estratégias e políticas para
da identidade coletiva da favela da Rocinha e
o setor. O Museu Sankofa é, portanto, um ponto
adjacências; capacitação de recursos humanos
de memória reconhecido por essa autarquia li-
em especial da favela para desempenho de ati-
gada ao Ministério da Cultura.
vidades de memória e museologia social; iden-
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Rocinha “no tempo dos mutirões”. Foto de


Padre Tiery Linard. Acervo Museu Sankofa

tifica, inventaria, coleta, preserva patrimônios curta duração, bem como exposições itinerantes
materiais e imateriais, acervos e informações abordando temas diversos e de interesse dos
referentes às memórias e histórias da Favela moradores da Rocinha e elabora e desenvolve
da Rocinha e adjacências de uso de novas tec- programas sistemáticos de educação museal.
nologias da informação e comunicação. E tam- Faz parte de nossos interesses considerar,
bém concebe e realiza exposições de longa e de cuidar e conservar a vegetação remanescen-
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te no topo dos morros, as vistas panorâmicas foram consideradas do domínio masculino. Na


e trilhas da Rocinha e entorno, como acervo realidade de muitas mulheres, quando seus
do patrimônio paisagístico e de interesse para companheiros saíam para o trabalho, além de
preservação socioambiental de estímulo e para ficar com as crianças e os afazeres domésticos,
o turístico sustentável da favela. Fora o desen- restavam-lhes também os problemas em função
volvimento do programa editorial de abrangên- de toda realidade socioeconômica e educacional,
cia local, nacional e internacional a partir das causada pela ausência das políticas sociais.
memórias e histórias da Rocinha e adjacências; A falta de água encanada e de saneamento
realizar intercâmbios e parcerias com museus, básico sempre foi presente na vida dos morado-
escolas, universidades, fundações, institutos de res das favelas. Isso levou as mulheres a preci-
preservação do patrimônio cultural, centros de sarem de muito mais criatividade para buscar
documentação e pesquisa, iniciativas museais, por água nas nascentes, poços – ou as chamadas
pontos de memórias, coletivos de arte e cultura bicas d’água. Levou-as a carregar latas d’água na
e redes de museologia; apoiar o fortalecimento cabeça. A música “Lata d’água na cabeça, lá vai
de redes na perspectiva da valorização e preser- Maria...” cantada em verso e prosa contradiz a
vação das memórias e histórias locais. ideia de mulher sexo frágil. Esta imagem emble-
Assim estamos trabalhando juntos com nossos mática denunciava a falta de responsabilidade
parceiros na construção deste espaço museoló- com o povo pelos políticos em cumprir com a
gico cultural. Espaço este que é referência em Constituição quanto aos direitos básicos e mais,
exposições, ações educativas e sócio-políticas, de mostrava a força e luta da mulher. Elas entra-
denúncias, publicações e pesquisas concernentes vam nas valas para as desentupirem, pois as
à memória e história da Rocinha e adjacência, no casa eram nas proximidades de córregos ou no
cenário universal e colocando-se como um espa- curso natural das águas das chuvas, a água en-
ço público para o diálogo com a sociedade. trava nas casas. São verdadeiras guerreiras que
Ao seguirmos a ideia da construção de um lutaram e lutam por melhores condições e por
possível Museu, uma ação inovadora, partimos conquistas de direitos básicos. Assim foi com
em busca de informações e coleta de acervos. O segurança e acesso à educação (creches e esco-
livro Varal de Lembranças, já mencionado, foi las comunitárias). A mais emblemática das lutas
o ponto de partida sobre as memórias e histó- foi a organização, mobilização e a realização dos
ria dos moradores e moradoras. O mais inte- mutirões de limpeza das valas que contribuíram
ressante foi que mais de 30 mulheres foram para a Rocinha ter sua primeira unidade de saú-
as coletoras de histórias e memórias e foram de, que este ano comemora 35 anos. Parabéns
descobrindo outras mulheres com importantes e um salve a todas as mulheres que lutaram e
papéis na vida da favela. As mulheres tinham lutam por melhores condições de vida!
e têm papel cotidiano em funções que sempre
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Referências
ACR- Agenda Cultural da Rocinha; Marry Ana; Sergio Linhares Miguel de Souza, Evandro Luiz
Editora livre Expressão 2012. de Carvalho (Org). PATRIMÔNIO CULTURAL
– Educação para o Patrimônio Cultural. Rio de
DESVALLÉS, André; MAIRESSE, François. Concei- Janeiro: Instituto Estadual do Patrimônio Cultural
tos-Chaves de museologia. Editores, Tradução Bru- (INEPAC), 2014.
no Brulon Soares e Marilia Xavier Cury – Comitê
Nacional Português do ICOM / Secretaria de Cultura PLANO CULTURAL DA ROCINHA, elaborado pelo
do Estado do Rio de Janeiro/FUNARJ-2010. Fórum Cultural da Rocinha em 2007.

DES-TERRITORIALIZAÇÃO E IDENTIDADE: a rede Plano Nacional Setorial de Museus - Instituto Brasi-


gaúcha no Nordeste: Hasbaert Rogério - EDUFF- leira de Museus- IBRAM 2010 /2020.DF.
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grafos do Brasil (AGB) 60 anos, Apoio Sagres Editora 94. e Programação Visual 2015.

TURINO, Celio. PONTO DE CULTURA (O BRASIL


DE BAIXO PARA CIMA). São Paul: Editora e Livraria
Anita Ltda, 2009.

Antônio Carlos Firmino é morador da Rocinha, articulador cultural do Ponto de Cultura. Membro do
Fórum dos Pontos de Cultura e Fórum Cultural da Rocinha. Integrante do Museu Sankofa Memória e
História da Rocinha e do grupo de articulação e trabalho da Remus-RJ.
23

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o sumário

Emerson de Souza

O MUSEU
do Horto
O Museu do Horto foi criado em 2010 para ser- atuante, inclusive na Rede de Museologia Social
vir como um instrumento de preservação e di- do Estado do Rio de Janeiro.
vulgação. Além disso, serve também para marcar Desde 2010, o Museu do Horto participa da
a legitimidade da comunidade do Horto Florestal, construção das políticas nacionais para museus
através das histórias das famílias tradicionais do através da participação nos grupos de trabalho
local, que vivem nas áreas de litígio da região. e mesa de debate, como no IV Fórum Nacional
O Museu do Horto funciona como um museu de Museus (Brasília – 2010), no V Fórum Nacio-
de percurso e virtual. Em seu acervo há objetos nal de Museus (Petrópolis – 2012) e no VI Fórum
como moedas, colheres e documentos pessoais Nacional de Museus (Belém – 2014). Nestes en-
e familiares, estruturas prediais (casas dos mo- contros também foram realizados os encontros
radores, escolas, clubes sociais, antigas ruínas e da Teia de Memória, o que fortaleceu o movi-
edificações), os patrimônios imateriais (festivida- mento da própria Rede de Museologia Social do
des, ervarias, crenças e ancestralidade) e as ricas Estado do Rio de Janeiro e redes de outros esta-
memórias dos moradores que mostram histórias dos. Também participou da construção do Con-
sobre as relações dos moradores com o meio am- selho de Gestão Participativa/Compartilhada
biente local. O acervo do Museu do Horto é cons- do Programa Pontos de Memória. Pela Rede de
truído através de “acervo participativo” recolhido Museologia Social, o Museu participa de encon-
pelos moradores da região. Estes objetos são digi- tros itinerantes realizados em diversos pontos
talizados, catalogados e estão expostos no site do do Estado do Rio com representantes de outros
museu. A criação do Museu do Horto foi possi- pontos de memória (ecomuseus e museus comu-
bilitada a partir da criação do Programa “Pontos nitários) e também com os pontos de cultura.
de Memória” pelo Instituto Brasileiro de Museus O Museu do Horto realiza ações dentro do
– IBRAM e tem o reconhecimento deste através seu território: projetos voltados à participação
do mesmo programa como um museu parceiro e dos moradores e parceiros em atividades para
24

Dona Filinha com 88 anos


discursa em defesa dos
moradores do Horto, na
manifestação de 15/07/2012.
Acervo Museu do Horto
www.museudohorto.org.br

Moradores visitam a tenda da memória, na Jequitibá ancestral, patrimônio natural


inauguração do Museu do Horto em 2010. e cultural em destaque no percurso
Foto de Renato Tobias. do Museu do Horto.
Acervo Museu do Horto Acervo Museu do Horto
www.museudohorto.org.br www.museudohorto.org.br
25

Votação Teia da Memória,


Belém - 2014
Foto de Wellington Pedro da Silva

a manutenção e valorização da história local, A perspectiva da museologia social vem sendo


como o Projeto “Ludicidade da Memória”, em desenvolvida pelo menos desde a “Mesa Redon-
parceira com o CIESPI. O museu estimula a arte da de Santiago do Chile”, em 1972, com o intuito
local realizando oficinas, exposições e diversos de preparar a museologia para os novos desafios
eventos. Além disso, funciona como museu de de um mundo que se formava então – principal-
percurso e recebe visitação de grupos agenda- mente com as questões relacionadas à Améri-
dos para o passeio guiado nos diferentes cami- ca Latina, onde o papel dos museus deveria ser
nhos históricos que fazem parte dos percursos repensado e adaptado aos novos desafios, exer-
do Museu do Horto. cendo um papel mais atuante principalmente
26

no que se refere à educação na comunidade. Em Hoje vivemos num mundo onde o Estado de
1984 foi feita a “Declaração de Quebec”, onde fo- Direito está sendo abalado e os direitos funda-
ram propostos os princípios da base de uma nova mentais (sociais, humanos) estão sendo desres-
museologia oriunda da gestão da Mesa Redonda peitados. O feminicídio no Brasil se encontra
de Santiago do Chile. A Declaração de Quebec com taxas altíssimas e a voz das mulheres não
firma a função social do museu e o caráter glo- é ouvida. É neste sentido que o projeto prêmio
bal de suas intervenções. Sendo assim, o Museu “A Participação das Mulheres na Construção do
do Horto é um museu comunitário que segue a Território” (apoiado pela Secretaria Estadual de
ideia da renovação da museologia proposta nas Cultura através da Superintendência Estadual
mesas de Santiago do Chile, de Quebec e de pen- de Museus, desenvolvido pela Rede de Museo-
sadores como Mário C. Moutinho, Mário Cha- logia Social do Estado do Rio de Janeiro, junto
gas, Hugues de Varine, entre outros. Tem como com o Museu do Horto e Sankofa da Rocinha)
função principal de ser um local de salvaguarda, vai ajudar a dar visibilidade a estas mulheres
de exposição e legitimação das diversas vozes que têm papel fundamental na história de cons-
dos vários atores que atuam na construção dos trução deste e de outros territórios. É função de
muitos territórios do Horto Florestal, do Rio de um museu que pretende cumprir seu papel de
Janeiro, do Brasil e do mundo. A partir da va- vanguarda nesta sociedade, abrir espaço para as
lorização dos seus saberes e fazeres específicos, tantas vozes de tantas mulheres que ainda so-
promove a noção de igualdade de oportunidades frem com o preconceito de uma sociedade em
para um mundo mais justo socialmente. E é fun- dicotomia: de pensamento machista, mas de
ção do museu proporcionar a construção deste maioria feminina.
espaço igualitário e assumir assim seu papel de
vanguarda no mundo contemporâneo.

Emerson de Souza é morador, nascido e criado no Horto Florestal, músico, produtor cultural e ativista
político. É um dos fundadores e integrantes do Museu do Horto e o atual presidente da Associação de
Moradores e Amigos do Horto, a AMAHOR.
27

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o sumário

Cleonice Lopes

Um pouco de história
sobre o surgimento
DA Favela / Bairro
da Rocinha
“No dia 28 de outubro de 1968, chega-
mos de madrugada ao largo do Boiadei-
ro, na Rocinha, e fomos para o morro
Dois Irmãos, que na época se chamava “Rocinha amada e querida!!
morro da Roupa. A Rocinha é uma Rocinha minha história minha vida.
comunidade com um coração enorme, Rocinha quero homenagear-te
acolhe todo mundo, é a melhor da zona Cantar te em versos e prosas
sul do Rio de Janeiro; costumo dizer que
a Rocinha é uma cidade dentro de outra. Quero expressar-te o meu respeito,
Desde que botei o pé na Rocinha, falo meus apreço, meu amor e minha grati-
desse processo, desse momento pessoal, dão. Pois aos vinte anos de idade, aco-
como foi a chegada, a luta comunitária, lhes-te a me e aos meus no seio do teu
as conquistas, as decepções. Sempre pro- coração. (Honorata, 2017)”
curei relatar, através dos versos de cordel
que escrevi. (Honorata, 2003, pág. 100/101) “
28

Registros históricos sobre a


construção do território da Rocinha.
Acervo Museu Sankofa
29

Foto de uma das primeiras chácaras a


ocupar o morro onde hoje é a Rocinha
(Reprodução Rocinha Blog)

Começamos este breve histórico sobre o sur- No século XX, seguindo o rumo do crescimento
gimento da Rocinha com o texto de Francisca urbano, essa parte da capital federal começa a ga-
Honorata da Nobrega Oliveira, do livro “A Fa- nhar a configuração da atual Rocinha. Conforme
vela Fala”, pois achamos que o texto sintetiza o demonstrado no blog da Rocinha, esta etapa da
que é falar sobre a constituição da Rocinha e ocupação do território origina-se:
o sentimento de quem a escolheu para viver.
Não queremos e não temos a pretensão aqui
“Segundo histórias contadas através
de findar a forma como os moradores/pesqui-
de livros e depoimentos de pessoas que
sadores da Rocinha contam a história do seu
surgimento. Porém gostaríamos de contribuir residiram e residem na Rocinha, contam
com este debate, que acreditamos perpetuará que a comunidade recebeu seus primeiros
nas gerações futuras. habitantes, logo após a II Guerra Mundial,
É sempre importante lembrar que, o lugar vindos de Portugal, França e Itália. Eles
hoje habitado por nossas famílias e institui-
viviam, basicamente, da agricultura e
ções, já foi terra indígena. Com a invasão dos
portugueses a partir do século XVI, a dizima- possuíam pequenas roças e vendiam suas
ção dos indígenas e as mazelas da escravidão produções no povoado vizinho (Na feira
inseriam o território no drama da exploração da Praça Santos Drummond na Gávea).
colonial. A chamada Freguesia da Gávea (pro- Daí surgiu o nome Rocinha. Mineiros,
priedade que deu origem a Favela da Rocinha,
baianos e imigrantes da região nordes-
e que foi o nome dado a região até a atual Barra
te, chegados em meados dos anos 50,
da Tijuca), era também rota de liberdade para
os escravos que fugiam para os Quilombos do também fazem parte deste crescimento
Sacopã e das Camélias. populacional. (Rocinha Blog, 2010)”
30

Pesquisando sobre o surgimento da Rocinha, a fazenda e vendeu lotes de 270 metros qua-
encontramos várias versões que datam sobre drados a particulares (Leitão, 2009). Para o au-
a ocupação do território; uma das versões que tor, foi a partir deste loteamento que ocorreu
quase todos concordam é sobre a rua principal a intensificação da ocupação da Rocinha, mas
da Rocinha (Estrada da Gávea) já existir nos se analisarmos o artigo publicado por Michel
anos 1900, que fazia a ligação entre as terras Silva, no Jornal Fala Roça, em 18 de agosto de
das fazendas e chácaras existentes no alto da 2015, lembramos que o território da Rocinha
Gávea com as terras de Conrado Niemeyer.2 já era ocupado anteriormente, pois havia vá-
A grande ocupação do território foi inten- rias chácaras, fazendas e sítios na região. Um
sificada após a venda da fazenda Quebra Can- exemplo desta ocupação pode ser observado
galha de propriedade da Companhia Castro pela pesquisa realizada pelo Blog Fala Roça:
Guidon. Entre 1927 e 1930, a companhia loteou

2 | Conrado Jacob de Niemeyer nasceu em Lisboa, em 28 de outubro de 1788, e faleceu no Rio de Janeiro, RJ,
em 5 de março de 1862. Filho do coronel de engenheiros Conrado Henrique de Niemeyer e Firmina Angélica
de Niemeyer. https://ihgb.org.br/perfil/userprofile/CJNiemeyer.html acessado em 07/02/2017 as 15:07.
31

“Companhia Castro Guidon era dona


de diversas fazendas no Rio de Janeiro, Os moradores ao se instalarem na Rocinha
começaram a cultivar frutas e hortaliças, que
entre elas a fazenda Quebra Cangalha.
eram vendidas no Largo das Três Vendas (atu-
Segundo João Castro Guidão, o dono
al Praça Santos Dumont), na Gávea. Durante as
da Quebra Cangalha, que ocupava um vendas, quando os compradores perguntavam
terreno de aproximadamente 500 mil de onde vinham os produtos, os vendedores
metros quadrados, de onde hoje é a apontavam para o alto do morro e diziam: “lá
Rocinha, era um fazendeiro português na minha Rocinha”. Esta é uma das versões
sobre o surgimento do nome Rocinha, porém
chamado Manoel Fernandes Cortinhas.
existem outras, como a contada pelo senhor Is-
Antes de retornar para Portugal, no mael Elias da Silva, em 1983, no livro Varal de
início dos anos 10, ele vendeu a fazenda Lembranças. Ele diz:
para o engenheiro Luiz Catanhede por
cerca de 50 contos de réis. “Luiz contra- “A história do nome Rocinha vem do
tou cerca de 15 pessoas para cuidar e seguinte: segundo informações de um
morar na fazenda. A área ocupada pela morador que já é falecido, o seu José Pia,
Rocinha possuía, originalmente, caracte- aqui residiam umas primas, parentas dele
rísticas rurais. Mas ele não tinha visão de longe. Eram espanholas. Isso aqui era
negócios e entregou o terreno à Compa- uma chácara, não existia essa comunida-
nhia Castro Guidão, em 1915, através de de favelada. A estrada da Gávea era um
um acordo para acabar com uma dívida caminho por onde passavam aqueles ven-
entre ele e o banco criado pelos Irmãos dedores de frutas que vinha de Jacarepa-
Guidão (Fala Roça, 2015)” guá, com tropas de cavalos e burros. Elas.
Como eram plantadoras de hortaliças,
Em meados dos anos 1940, a maioria dos chamavam esse pessoal: Venham ver mi-
moradores da Rocinha ocupava três áreas dis-
nha rocinha! Então estes feirantes quan-
tintas: o sopé da encosta, a faixa de terreno ao
longo da estrada da Gávea e os lotes situados do faltava alguma coisinha, couve, cheiro
naquela que é apontada como a primeira rua, o verde, diziam: vamos na rocinha, pra ver
Caminho do Boiadeiro, posterior a construção se elas têm. Então pegou, por causa da
da Estrada da Gávea, que na época era pouco roça, da chácara que elas tinham. Pegou o
mais que um caminho (LEITÃO, 2009).
nome. (SILVA,1983, p. 30)”
32

Largo do Boiadeiro nos dias atuais.


Fotos de Kinda Firmino e Cleonice Lopes

Assim como o nome da Rocinha é contado


pelos moradores mais antigos de forma dife-
renciada, os nomes de suas ruas não poderiam
ser diferentes. Um exemplo foi a segunda rua
criada, o Caminho do Boiadeiro. Dentre as
versões sobre a origem do nome desta, há, por
exemplo, a versão de José Martins de Oliveira,
antigo morador da Rocinha:

Conheci a viúva dona Terezinha do


José Boiadeiro, nunca perguntei
para ela o porquê do nome, mas
conversando com o filho do casal, ele
me disse que o seu pai já tinha este
apelido de Zé Boiadeiro, onde mo-
rava no Nordeste antes de vim para
a Rocinha, pois lá trabalhava como
boiadeiro. Ao se instalar na Rocinha
e abrir um armazém que vendia de
tudo, o apelido continuou e as pesso-
as que iam ao armazém associavam
o nome dele ao caminho que percor-
riam até o armazém.
(José Martins de Oliveira,
22 de fevereiro de 2017).
33

Voltemos ao surgimento da Rocinha. De Dentre os fatores que contribuíram para o


acordo com Gonçalves (2013): crescimento da Rocinha, deve ser destacado o
contexto vivido pelo Rio de Janeiro nas décadas
“A favela da Rocinha constituiu-se a de 1960 e 1970, pois neste período passava-se
por uma grande transformação em relação a
partir do loteamento de uma fazenda 550
expansão da zonal sul da cidade. Foram reali-
mil2 situada nos limites da parte oeste
zadas a pavimentação da Avenida Alvorada, a
do bairro da Gávea (no alto do morro), implantação da Avenida das Américas, o início
incorporado pela empresa Castro Guidon da construção do túnel Dois Irmãos (atual Tú-
em 1927. Segundo o jornal Diário de No- nel Zuzu Angel, inaugurado em 1971), as vias
tícias, de maio de 1943, essa empresa já em São Conrado e Joá, e ainda a construção da
ponte sobre o canal da Barra da Tijuca e de vias
se encontrava em situação de concordata
perpendiculares.
em dezembro de 1933, o que a impediu Este período foi marcado pelas remoções
de prosseguir com as obras de urbani- dos moradores de favelas da zona sul da cida-
zação do terreno. O loteamento não foi de, como a favela Parque Proletário da Gávea
aprovado pelos organismos municipais em 1970, área onde hoje é o estacionamento
da PUC-Rio. Anterior a esta, em 1969, houve
competentes não só pela precariedade da
a remoção da favela Praia do Pinto, localizada
urbanização, mas também pelo fato de
no Leblon/Lagoa. Dentre tantas outras fave-
que não respeitava as disposições esta- las removidas no período, esta chama atenção,
belecidas, posteriormente, pelo código de pois após várias tentativas para retirar os mo-
obras de 1937, e pelo decreto n.º 58 de 10 radores do local, um grande incêndio destruiu
de dezembro de 1938, que regulamenta- a moradia (o território) das pessoas.
Acredita-se que mesmo com medo de serem
vam os loteamentos. Os compradores não
removidos, muitos dos moradores destas lo-
puderam, portanto, obter o registro defi- calidades migraram para a Rocinha, pois esta
nitivo de seus títulos de propriedade. Os lhes possibilitava mais facilidade de acessar
trabalhadores de abertura do túnel Zuzu seus trabalhos. Contribuindo, assim, para o
Angel (inaugurado em 1972), bem ao lado adensamento geográfico de hoje, em conjunto
com diversos fatores que favoreceram a ocu-
da favela da Rocinha, empregaram um
pação das terras da Rocinha. Variam desde
grande número de moradores da favela, sua localização na zona sul da cidade – que
melhorando o acesso à sua parte plana, já possibilita acesso “mais fácil” a empregos, co-
no bairro de São Conrado. mércios e escolas – a chegada dos moradores
(GONÇALVES, 2013, p. 352)” que vieram do Nordeste e com o passar do
34

tempo foram trazendo seus parentes, que na O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatís-
Rocinha construíram suas moradias e seus tica (IBGE) constatou no Censo de 2010 que a
pequenos comércios. Rocinha é a favela mais populosa do país, com
No ano de 1950, ocorreu na Rocinha a pri- 69.356 pessoas, distribuídos em 25.352 domicí-
meira verificação do quantitativo de morado- lios (média de quase três moradores por residên-
res existentes. cia), dados estes contestados pelas lideranças da
Rocinha, que estipulam em cerca de 200.00 mil
“O primeiro recenseamento da Roci- habitantes. Os dados da Empresa Light, respon-
sável pela distribuição de energia elétrica do Rio
nha, realizado em 1950, aponta a exis-
de Janeiro, divergem do Censo 2010, esta esti-
tência de 4.513 habitantes numa área
pula que existam cerca de 150.00 mil moradores
que, devido à dispersão das moradias e na Rocinha. (Carvalho, 2017)
ao caráter rarefeito da ocupação, apre- Dados do Programa de Aceleração do Cres-
sentava característica das outras favelas cimento - PAC1, afirmam que a Rocinha ocupa
cariocas, onde se observava um maior uma área de 95 hectares ou 957.253m² e tem
uma população estimada em mais 100.000 ha-
adensamento de edificações. Em 1974,
bitantes, localizada entre dois bairros nobres da
um novo recenseamento realizado pela Zona Sul do Rio de Janeiro: Gávea e São Conrado
Secretaria de Segurança Pública apon- (Plano de Desenvolvimento sustentável, 2011).
tava a presença de 33.790 habitantes A Rocinha também se destaca pelo quantita-
distribuídos em cerca de 7.500 domicí- tivo de serviços que disponibiliza aos seus mo-
radores, tais como: três Associações de Mora-
lios. Em 1980, os dados fornecidos pela
dores, uma Associação do Comércio com 1.200
Secretaria Municipal de Planejamento
filiados, dois Centros Integrados de Educação
indicavam que o número de moradores Pública, jornais comunitários, vários sites, rá-
da Rocinha havia alcançado um total dios comunitárias, Postos de Saúde (UPA e três
de 97.945, ocupando 19.489 domicílios. Clínicas da Família), três agências bancárias
Esses números representam um percen- (Caixa Econômica, Brasil e Bradesco), linhas
de ônibus, supermercados, escolas públicas,
tual de crescimento de, respectivamen-
agência dos Correios, escola de samba (Acadê-
te,190% e 160% em relação aos dados micos da Rocinha) e diversas instituições que
obtidos em 1974. oferecem uma gama de cursos (alfabetização,
(LEITÃO, 2009, p.81,82,83)” profissionalizantes, artesanato, dança, lutas,
informática), centro/serviços sociais e um va-
35

riado conjunto de atividades para todas as ida- Finalizaremos esta síntese sobre a Rocinha
des. São 2.700 estabelecimentos comerciais! A com a fala de Silvana de Araújo Porto, uma das
Rocinha transformou-se na 27ª Região Admi- fundadoras da primeira associação de Mora-
nistrativa da Cidade do Rio de Janeiro pelo De- dores da Rocinha, Serviço de Recuperação de
creto Municipal nº 6.011, de 4 agosto de 1986. Favela (SERFHA), fundada em agosto de 1960.
Foi reconhecida como bairro pela Lei Munici- Esta se tornou a primeira mulher a ser presi-
pal nº 1.995, de 18 de julho de 1993 e toda sua denta da associação de moradores em 1977. Em
área foi declarada de Especial Interesse Social, entrevista ao Jornal Brasil Mulher, em agosto
pela Lei Municipal nº 3.351 de 28 de junho de do mesmo ano, Silvana falou sobre o início de
2001 (Gonçalves, 2013). sua campanha e sua presidência e como era ser
uma mulher a liderar a Associação nesta época.

Rocinha hoje

Fotos de Kinda Firmino e Cleonice Lopes, 2017

3 | Durante a pesquisa não identificamos a presença de grupos de apoio à mulher vítima de violência ou gru-
pos diretamente voltados para a ampliação de direitos das mulheres. Isso não significa que não existam, mas
que, se existem, não são amplamente conhecidos e noticiados.
36

“Havia três chapas. Duas de homens.


Mas eles descuidaram e perderam. Os
homens não faziam propaganda. As
mulheres pregavam cartazes em toda
favela, fizemos propaganda com alto fa-
lante depois das dez horas, após as nove-
las. As mulheres trabalham com a cabeça
e os homens com a força manual. Hoje a
chapa já é reconhecida e até os homens
me chamam e se interessam. Quero dizer
que a união faz a força e a força só de-
pende de nós. Não sabemos o valor que
nós temos. Se todo mundo se reunisse
em redor de uma coisa, conseguiria tanta
coisa no mundo, conseguiria a paz, que Obras de canalização.
também depende da união. As pessoas Foto de Padre Tiery Linard.
Acervo Museu Sankofa
desunidas nunca vencem na vida [...]
Esse negócio de ficar só em casa eu não
gosto não. Qualquer um pode fazer
A história da Rocinha é constituída de pe-
este serviço, homem ou mulher. Como quenas e grandes lutas dos seus moradores,
trabalho na associação todos respeitam como a da senhora Silvana, que lutou durantes
o trabalho das mulheres. (Jornal Brasil anos para consolidar o território. A Rocinha é
Mulher apud Varal de Lembranças,1983, sem dúvida um lugar maravilhoso de se viver,
mas que também é marcado pela injustiça so-
p. 81/85/86)”
cial, gerada pela segregação espacial.
37

Rocinha em 2017.
Fotos de Alessandra Freitas,
38

Rocinha em 2017.
Fotos de Maria da Paz
39

Paisagem da Rocinha em 1958


Foto de acervo da família Castro Guidon

Rocinha em 2017
Foto de Michel Silva
40

Referências

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Editora FGV, 2003. https://www.youtube.com/watch?v=0tpM2gtU1uY

Acervo de Imagens e depoimentos - Museu Sankofa http://www.brasil.gov.br/infraestrutura/2010/12/


Memória e História da Rocinha. moradores-da-rocinha-recebem-casas-do-pac
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-brasileiras-20110521.html

Cleonice Lopes é moradora da Rocinha, Assistente Social, Pós-graduada em Gerenciamento de Projetos.


41

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o sumário

Carolina Câmara Pires

COMUNIDADE DO Horto:
lugar de resistência ancestral
Ao estudar a história das favelas da cidade do poder público junto a classe econômica domi-
Rio de Janeiro, é possível perceber que, muitas nante, com o objetivo de exterminar as favelas
delas, foram objeto de remoção por serem con- ou simplesmente deslocar uma população que
sideradas como algo estranho ao ideal hegemô- habita áreas classificadas como nobres para
nico, construído ao longo dos anos, do que se regiões periféricas, que não atendem aos re-
entende por cidade. Sob o signo de interesses quisitos de moradia adequada1 propostos pela
diversos, as remoções foram articuladas pelo Organização das Nações Unidas – ONU.

1 | O conceito de moradia adequada reúne alguns requisitos para que qualquer pessoa possa viver de forma
digna. Segundo a ONU (1991), as condições necessárias para conceituar uma moradia como adequada são: a) Se-
gurança da posse: a moradia não é adequada se os seus ocupantes não têm um grau de segurança de posse que
garanta a proteção legal contra despejos forçados, perseguição e outras ameaças; b) Disponibilidade de serviços,
materiais, instalações e infraestrutura: a moradia não é adequada, se os seus ocupantes não têm água potável,
saneamento básico, energia para cozinhar, aquecimento, iluminação, armazenamento de alimentos ou coleta de
lixo; c) Economicidade: a moradia não é adequada, se o seu custo ameaça ou compromete o exercício de outros
direitos humanos dos ocupantes; d) Habitabilidade: a moradia não é adequada se não garantir a segurança física
e estrutural proporcionando um espaço adequado, bem como proteção contra o frio, umidade, calor, chuva,
vento, outras ameaças à saúde; e) Acessibilidade: a moradia não é adequada se as necessidades específicas dos
grupos desfavorecidos e marginalizados não são levados em conta; f) Localização: a moradia não é adequada se
for isolada de oportunidades de emprego, serviços de saúde, escolas, creches e outras instalações sociais ou, se
localizados em áreas poluídas ou perigosas; g) Adequação cultural: a moradia não é adequada se não respeitar e
levar em conta a expressão da identidade cultural (apud BRASIL, 2013, p.13).
42

Visita ao território do Horto Florestal,


para pesquisa diagnóstica da Remus-RJ,
07/2017. Foto: Juliana Veiga.
43

As remoções das favelas na cidade do Rio


de Janeiro violam normas de direitos huma-
nos, pactuadas pelo Brasil nos tratados inter- Sob o signo de
nacionais e, por sua vez, infringem direitos
fundamentais assegurados pela Carta Magna interesses diversos,
de 1988. O impacto produzido por esta política
apresenta-se de forma negativa para a popula- as remoções foram
ção removida, tendo em vista que a realocação
dos moradores ocorre em locais muito distan-
tes e, na maioria dos casos, com infraestrutura
articuladas pelo poder
e serviços insuficientes ou inexistentes, além
da ausência de equipamentos públicos.
público junto com a
Nesse contexto, a comunidade2 do Horto é
uma potência, resistindo às contínuas ameaças
classe econômica
de remoção. Situada ao longo do Jardim Botâ-
nico, zona Sul da cidade do Rio de Janeiro, cujas
dominante, com o
terras estão avaliadas em torno de 10,6 bilhões
de reais, segundo matérias jornalísticas3, a co-
objetivo de exterminar
munidade do Horto é formada por 621 famílias
distribuídas ao longo de 11 localidades: Caxin-
as favelas
guelê, Chácara do Algodão, Clube dos Macacos,
Dona Castorina, Grotão, Hortão, Major Rubens marco na ocupação da localidade, segundo a
Vaz, Morro das Margaridas, Pacheco Leão, Solar pesquisadora Laura Olivieri4, a região foi ocu-
da Imperatriz e Vila São Jorge. pada de fato em 1596, com a inauguração do
A origem da comunidade remete ao Brasil Engenho D’El Rey. Este engenho de açúcar foi
colonial, nos tempos dos engenhos de açúcar fundado pelo governador Cristóvão de Barros
e das plantações de café, ou seja, nos tempos (1571-1575) e administrado posteriormente por
da escravidão. Embora a construção do Jar- Antônio Salema até 1577. A princípio houve
dim Botânico do Rio de Janeiro tenha sido um a tentativa de utilizar mão-de-obra indígena,

2 | Convém ressaltar que o termo comunidade é a nomenclatura usada pelos moradores para significar sua
identidade e existência coletivas.
3| A matéria sobre a remoção do Horto do dia 16.06.2016, do Jornal O Globo Online, informa que a área onde
está a comunidade foi avaliada em 10,6 bilhões de reais. Disponível em: http://oglobo.globo.com/rio/jardim-bo-
tanico-governo-dilma-ja-no-fim-tentou-manter-moradores-19326526. Acesso em: 07.01.2017.
4 | Convém ressaltar que o termo comunidade é a nomenclatura usada pelos moradores para significar sua
identidade e existência coletivas.
44

Mapa da Comunidade do Horto.


Fonte: Museu do Horto.
www.museudohorto.org.br

Limite do Parque
Nacional da Tijuca
Área de Preservação
Ambiental

Rio dos Ingleses

Lagoa Rodrigo
de Freitas

Hortão
Aqueduto imperial
Caminho das carruagens
Parque Jardim Caminho do Rio dos Macacos
Botânico Horto
Rio d
Jockey os
M
ac
ac os

Rua Pacheco Leão

Av. Borges
Rua Jardim
de Medeiros
Botânico

MAJOR RUBENS VAZ CAXINGUELÊ GROTÃO VILA SÃO JORGE


Vila operária Escola Julia Kubitschek Aléia
Antiga Mina D’água Largo da Pedra Caminho do rio
Comunidade Major Rubens Vaz Clube
Arcos

SOLAR DA IMPERATRIZ MORRO DAS CHÁCARA DO ALGODÃO ESTRADA D. CASTORINA


Antigo asilo agrícola MARGARIDAS Farmácia da Fábrica Carioca Cachoeiras
Horto Florestal Ruínas da Senzala Fábrica de tecido Carioca Mangueira Ancestral
Portal Aqueduto da Levada América Fabril Mesa do Imperador
Sede da Antiga Fazenda Talhão Clube dos operários Trilhas
Trilhas históricas Mirante Vista Chinesa
Fábrica Carioca de Tecidos
Escola da Fábrica Carioca de Tecidos
Vilas Operárias

PACHECO LEÃO CLUBE DOS MACACOS


Escola Camilo Castelo Branco Aléia de Palmeiras Imperiais
Escola Capistrano de Abreu Açude dos Macacos
Casas remanejadas pela subestação Light
Conjunto Habitacional Dona Castorina - Balança
45

mas dado o fracasso de tal empreitada, Antônio presença ancestral na região, embora o momen-
Salema dizimou as comunidades indígenas Tu- to histórico seja contado a partir da presença do
pinambás e aconteceu a substituição pela força colonizador. Iroko é uma ancestralidade afri-
de trabalho africana escravizada. De acordo cana, relacionada com o candomblé ketu, que
com o Portal Geo-Rio, o território foi ampliado representa o tempo e habita árvores sagradas.
pelo governador Martim de Sá, abrangendo o Portanto, a presença de um caminho de pedras
atual Parque Lage e as terras próximas à Lagoa que conduz ao Jequitibá, que até hoje se encon-
Rodrigo de Freitas. tra na floresta, em meio a uma pequena clareira,
remete ao culto da ancestralidade africana nos
“O início do processo de colonização ritos religiosos. E, ao considerar a presença de
quilombos na região no período colonial, há que
da região remonta ao ano de 1596, com
se fazer referência às ocupações realizadas pelo
a inauguração do Engenho de açúcar
escravizados fugidos que estabeleceram suas
D’El Rey. A história, contudo, é mais rotas de fuga no território, especificamente o
antiga, embora se tenha muito poucos Morro das Margaridas – conforme aponta o au-
registros sobre essa época, sendo que os tor Eduardo Silva (2003) – seja para alcançar o
que existem são da ordem do simbólico Quilombo do Sacopã (Lagoa) ou o Quilombo das
Camélias (Leblon).
e remetem à ancestralidade do lugar:
Conforme dispõe o Museu do Horto, o Engenho
são “as marcas do sagrado na floresta” D’El Rey passou por consideráveis transformações:
(Fonseca apud Oliveira, 2005), como o
enorme Jequitibá mata adentro e ou os “Em 1596, o Engenho D´El Rey foi
caminhos de pedra em pé-de-moleque, vendido ao vereador Diogo Amorim
datados do século XVI, que levavam ao Soares que, em 1609, voltou para Portu-
templo sagrado daquela árvore – Iroko. gal, transferindo a posse do Engenho por
Ora, quem andava e construía estradas e requerimento deferido pela Câmara dos
capoeiras sagradas pelas matas do Hor- vereadores, a Sebastião Fagundes Varela,
to nessa remota época senão os nativos como dote por seu casamento com a filha
e os pioneiríssimos no quilombismo? do então governador. Assim permanece-
(OLIVIERI, 2012, p.31)” ram as terras e a Lagoa salgada da região,
no nome de Fagundes Varela até que,
O que a pesquisadora aponta no trecho acima é em 1660, Rodrigo de Freitas de Mello e
importante para compreender que já havia uma
Castro herdou do sogro Fagundes Varela
46

o engenho, que foi conservado em poder instalação dos trabalhadores da fábrica


de sua família por 150 anos. Desde então, de pólvora e do Jardim Botânico. Assim,
as águas salgadas em formato de coração gerações de famílias de funcionários e
passaram a se chamar Lagoa Rodrigo de descendentes de funcionários da antiga
Freitas. Diogo Amorim transformou o fábrica e do Jardim Botânico constru-
Engenho D´El Rey num grande latifún- íram uma comunidade nos arredores
dio, incorporando as terras vizinhas e do parque, com autorização (formal e
mudou o nome do empreendimento para informal) das diversas administrações do
Engenho Nossa Senhora da Conceição Jardim Botânico e/ou do Ministério da
da Lagoa, tendo sido uma das maiores Agricultura, instância de poder a que o
propriedades da Freguesia da Gávea. Horto Florestal estava subordinado na
(MUSEU DO HORTO)” época. (MUSEU DO HORTO)”

Todavia, os registros históricos tradicionais, a Após o advento da República, houve um gran-


vinda da família real para o Brasil é que impul- de processo de industrialização que impulsionou
siona a ampliação do território onde está assen- a criação de vilas operárias na região, dentre as
tada a comunidade. fábricas mais famosas, destaca-se a América
Fabril. Por outro lado, o Instituto do Jardim Bo-
“Em 1808 D. João VI desapropriou o tânico do Rio de Janeiro, ao contratar seus fun-
Engenho de Nossa Senhora da Concei- cionários, cediam casas para mantê-los próximo
ao local, pois a região do Horto era pantanosa e
ção da Lagoa, de propriedade de Ro-
de difícil acesso. Assim, a comunidade do Hor-
drigo de Freitas, para a construção de
to se constitui enquanto uma territorialidade
uma fábrica de pólvora. Alguns meses construída a partir do esforço de trabalhadores
depois, fundou o Real Horto (que hoje que, ao se mudarem com suas famílias para a lo-
é o Instituto Jardim Botânico). Para tais calidade, ajudaram no processo de construção e
empreendimentos, houve uma 2ª onda manutenção do bairro do Jardim Botânico.
Esta comunidade sofre assédio constante e
populacional, pois os trabalhadores da
luta para permanecer na região desde a déca-
fábrica e do parque foram convidados da de 1980, quando foram ajuizadas ações de
a residir nas proximidades do trabalho. reintegração de posse pela União. Embora a
Em 1811, foram erguidas vilas para a Secretaria de Patrimônio da União (SPU-RJ) te-
47

nha contratado a Faculdade de Arquitetura e ros ao da população do bairro Jardim Botânico


Urbanismo da Universidade Federal do Rio de que é majoritariamente composta por pessoas
Janeiro - FAU/UFRJ para elaborar o projeto de brancas, somando um total de 82,8%. Isso sig-
regularização fundiária, o Parque do Jardim Bo- nifica que a comunidade do Horto é um territó-
tânico pressiona para que ocorra a remoção da rio negro, dentro de um espaço branco. Outro
comunidade sob o argumento de que necessita dado importante produzido pelo Censo 2010
ampliar a área do seu instituto de pesquisa. Nes- é que a composição da população desta comu-
se contexto, as decisões emitidas pelo Tribunal nidade é de maioria feminina, como é possível
Regional Federal – órgão do Poder Judiciário perceber no gráfico da página ao lado.
competente para julgar a lide – tem sido favo- O Horto tem um importante recorte do gênero
ráveis às reintegrações de posse, sendo recor- feminino: 190 mulheres brancas, 264 mulheres
rente nas decisões o magistrado se manifestar pardas, 86 mulheres pretas, formando, assim,
afirmando que não se trata de posse, e sim mera uma maioria de mulheres afrodescendentes, de
detenção. Assim, ignora os fatores histórico-so- acordo com a escala utilizada pelo IBGE. Nesse
ciais presentes no caso e não reconhece o direito contexto, é possível comparar com o contingen-
à permanência dos moradores. te masculino da população, que é relativamen-
Desse modo, há cerca de 35 anos essa comu- te menor que o feminino: 187 homens brancos,
nidade bicentenária vem estabelecendo sua 182 homens pardos e 79 homens pretos.
luta por permanência em um território super- Esses dados são fundamentais para perceber
valorizado e enfrentando um processo árduo que, os impactos negativos advindos desta po-
de especulação imobiliária, gentrificação, racis- lítica remocionista, recaem sobre uma popula-
mo institucional e ambiental. Todavia, faz-se ção majoritariamente negra e feminina. E as-
necessário observar a composição demográfica sim é possível compreender como as mulheres
da comunidade em questão para compreender lideram o movimento de resistência contra a
tais opressões. remoção do Horto. Portanto, essa resistência fe-
Segundo os dados publicados pelo Censo minina, diante da vulnerabilidade causada pelo
2010, do Instituto Brasileiro de Geografia e Es- governo no ato da remoção, se articula a fim de
tatística – IBGE, o Horto é composto por uma promover a permanência das suas famílias nas
população majoritariamente negra, pois cerca localidades onde residem e fomentam sua capa-
de 62,1% da comunidade é composta por pretos cidade de tomar decisões nos momentos difíceis
e pardos, categorias estabelecidas pelo órgão e enfrentar o sofrimento. Ainda que a política
para identificar pessoas negras ou não-bran- de remoção seja perversa e capaz de deixar vul-
cas. Portanto, a extinção dessa comunidade se nerável a sua condição socioeconômica, mental
constitui enquanto uma “limpeza étnica”, prin- e emocional, elas se mantêm firmes na decisão
cipalmente quando se contrapõe esses núme- de resistir e lutar por seus direitos.
48

Gráfico de população residente


na comunidade do Horto.
Fonte: Censo 2010 – IBGE
www.censo2010.ibge.gov.br/agsn

Nesse contexto, a história da comunidade do quais as protagonistas são as mulheres. Isso evi-
Horto, para além do seu caráter ancestral, se dencia a riqueza de elementos trazidos por esta
compõe por meio de lutas históricas que passam bicentenária comunidade e a relevância de sua
pelo colonialismo, escravidão, quilombos, indus- permanência, pois a remoção da Comunidade
trialização, direito à moradia, dentre outros. A do Horto significa um real apagamento não só
construção e permanência desta territorialida- da história do Rio de Janeiro como também da
de passa pelas ações políticas de resistência, das história do Brasil.
49

Referências
BRASIL. Por uma cultura de direitos humanos Sites:
– Direito à moradia adequada. Secretaria de Armazém do Portal Geo-Rio. Bairros Cariocas.
Direitos Humanos da Presidência da República Disponível em http://portalgeo.rio.rj.gov.br/
– Brasília: Coordenação Geral de Educação em armazenzinho/web/BairrosCariocas/main_bair-
SDH/PR, Direitos Humanos, Secretaria Nacional ro.asp?area=027.
de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos, Acesso em 10.02.2017
2013. 76 p., il.
Jornal O Globo Online. Disponível em:
SILVA, Eduardo. As Camélias do Leblon e a http://oglobo.globo.com/rio/jardim-botanico-go-
Abolição da Escravatura: uma investigação de verno-dilma-ja-no-fim-tentou-manter-morado-
história cultural. São Paulo: Cia das Letras, 2003. res-19326526.
Acesso em 07.01.2017
SOUZA, Laura Olivieri Carneiro de. Horto
Florestal: um lugar de memória da cidade do
Rio de Janeiro. A construção do Museu do
Horto e seu correspondente projeto social de
memória. Tese apresentada ao Programa de
Pós Graduação em Serviço Social, 2012.

Carolina Câmara Pires é mestra em Sociologia e Direito na UFF. Graduada em Direito pela PUC-Rio.
50
51

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o sumário

Cleonice Lopes

A participação
das Mulheres na
Construção da Rocinha
Eu sou aquela mulher a quem o tempo muito ensinou.
Ensinou a amar a vida e não desistir da luta, recomeçar
na derrota, renunciar a palavras e pensamentos negativos.
Acreditar nos valores humanos e ser otimista.
Cora Coralina

Para compreender melhor os dados demonstra- Sou Cleonice Souza Lopes, tenho 46 anos, casa-
dos neste trabalho, combinei com Inês e Carolina da com Antônio1 há 29 anos, tenho 2 filhas, Thais
que o ideal seria me apresentar, para que você, lei- de 28 anos, Yasmin de 22 anos, e 4 netos. É com
tor, saiba quem é a mulher que está escrevendo e muito prazer que me apresento. Não me aprofun-
quais são as suas percepções e vivências quanto darei na descrição dos integrantes da minha fa-
as 26 mulheres moradoras da Rocinha, principais mília, apenas saibam o quão importantes são para
protagonistas deste levantamento. mim, são os grandes amores de minha vida.

1 | Sou casada com Antônio há quase 29 anos, o qual sempre me estimulou alçar os voos que eu quis.
Cito-o assim como forma de reconhecimento e homenagem.
52

Nasci na cidade de Mascote, interior do sul da Minha primeira visita à Rocinha aconteceu
Bahia. Talvez vocês nunca tenham ouvido falar. em um domingo, quando vim visitar a Marina,
É uma cidade linda. Até hoje meu pai continua que morava na Travessa Luz, com um compa-
morando lá, ao lado do Rio Pardo, que tanto ama nheiro que vivia bêbado e a agredia verbalmen-
e onde eu nadei e pesquei quando criança. Dei- te – motivo este que me levou até a casa de uma
3
xei esta cidade e nunca mais voltei. Quando eu amiga que morava no 7 e de lá elas me levaram
tinha 12 anos, meus pais se separaram, desde para conhecer a Feira da Rocinha. Lembro-me
então morei e trabalhei em outras cidades do sul que quando cheguei à feira, eu só pensava: “Meu
da Bahia até 18 anos, idade que resolvi “tentar” Deus a qualquer momento vai ter um tiroteio
a vida no Rio de Janeiro, no ano de 1990. Como aqui e nunca mais vou ver minha filha!”. Tive
podem ver, minha história não se diferencia de minha primeira filha dos 16 para 17 anos e a
tantas outras nordestinas, que como eu, deixam deixei com minha mãe em Canavieiras, última
o Nordeste fugindo da pobreza. Foi para fugir da cidade da Bahia que morei antes de vir para o
pobreza que saí da cidade de Canavieiras e vim Rio. Já era “casada” com Antônio, bem, casada
para o Rio de Janeiro, onde cheguei no mês de oficialmente não, mas morávamos juntos. Como
julho, com uma bolsa grande, cheia de papel e estava difícil conseguir emprego no Nordeste,
com três peças de roupa, mas repleta de sonhos. decidimos tentar a vida no Rio de Janeiro. Ele
Lembro-me de ter colocado papel dentro da veio primeiro para trabalhar, começou como
bolsa para que parecesse que estava cheia, pois ajudante de obra na construção civil. Trabalha-
morria de vergonha que as pessoas pensassem va e morava na obra. Após um mês ele conse-
que eu não tinha nada. guiu um trabalho para mim, em “casa de famí-
Cheguei para trabalhar como doméstica em lia”, aquela de Olaria, que comentei.
uma casa no bairro de Olaria, zona norte do Rio. Eu vinha de uma cidade pequena, no interior
Trabalhei e morei nesta casa por dois meses, da Bahia, onde a maioria das mortes acontecia
quando descobri que não receberia o salário míni- por peixeiras e no máximo por espingardas,
mo, valor pré-acordado e o que me motivou a vir acho até que morrer por espingardas acontecia
para o Rio, pois na Bahia recebia um terço pelas raramente. E, quando cheguei ao Rio de Janeiro,
mesmas atribuições. Minha frustração foi grande, meus patrões falavam dos perigos que as favelas
mas consegui através do Antônio, trabalhar e mo- representavam e, dentre as favelas, a mais cita-
rar com outra família no bairro de Botafogo, zona da era a Rocinha. Eu também via reportagens
sul da cidade. Neste novo endereço conheci Mari- retratando as atrocidades cometidas pelos tra-
na2, uma baiana e moradora da Rocinha. Fizemos ficantes na Rocinha e, por este motivo, quando
amizade e passei a frequentar a sua casa. vim a primeira, achei que só encontraria bandi-

2 | Marina se separou do companheiro agressivo, após anos de abuso e depois retornou para
Canavieiras, sua terra natal.
3 | Sub-bairro da Rocinha próximo a estrada da Gávea
53

dos. Porém, não o que encontrei, na realidade, o


que descobri é que lá havia muito mais famílias
trabalhadoras e lutadoras que como eu, deixa-
ram sua terra natal em busca de melhorar suas
vidas e faziam isso através de muita luta pela
sobrevivência na cidade do Rio de Janeiro. Um
mês depois de conhecer a Rocinha, falei para o
Antônio que devíamos alugar um quarto e na
sequência a Marina falou que havia vagado um
no prédio em que morava e viemos morar na
Rocinha, em novembro de 1990. Três meses de-
pois fui buscar nossa filha na Bahia. Hoje são 28
Cleonice Lopes e seus netos
anos que moro na Rocinha e tenho orgulho de
dizer que vivo aqui.
Vivendo na Rocinha conquistei minha pri- em minha vida, me ajudaram a superar todos os
meira casa própria, concluí o Ensino Funda- meus medos e me fizeram perceber o quanto sou
mental, Ensino Médio, graduação em Serviço capaz de modificar minha realidade.
Social, pós-graduação em Gerenciamento de Vim de uma família de gerações de analfa-
Projetos, e atualmente estou cursando Direito. betos: meus avôs maternos e paternos, meus
Aqui nasceram a minha segunda filha, Yas- pais e, infelizmente, quase todos os meus 7 ir-
min, meus netos e também conquistei grandes mãos. Então não é difícil entender que, para
amigos. Quando cheguei ao Rio para trabalhar levantar minha autoestima, precisava ter en-
como doméstica eu tinha em mente que aquele contrado mulheres como Marina. O que posso
era só um meio para que eu conseguisse o que falar desta mulher? Que ela é uma guerreira,
realmente queria, que era estudar para realizar que apesar da vida sofrida que levava, estava
meu sonho de ser caixa de supermercado. Mu- sempre com um sorriso maravilhoso no rosto e
dei de sonho ao conhecer a Rocinha e não fui capaz de ver pontos positivos em tudo na vida.
mais caixa de supermercado. Conviver com ela durante muitos anos me fez
Ao contar um pouco sobre minhas conquistas repensar que eu não deveria ficar lamentando
depois que vim morar na Rocinha, pode pare- o que não conquistei e sim levantar e ir à luta
cer que eu teria alcançado o mesmo vivendo em com leveza.
qualquer outro lugar, de acordo com a perseve- Assim como Marina, conheci outras mulhe-
rança e as oportunidades. Provavelmente não, res importantes nesse caminho. Destaco dentre
mas é difícil saber. É fato que acredito que meu tantas os papéis desempenhados por: Suely, di-
destino era vir para a Rocinha e aqui conhecer retora da creche ASPA (Ação Social Padre An-
mulheres que talvez não saibam, mas ao estarem chieta) que recebeu minha filha na instituição e
54

me deu a oportunidade de conhecer o lado soli- lher moradora de uma. Hoje vejo o quão impor-
dário das mulheres da Rocinha; Zilda4 primeira tante é ter esta compreensão.
educadora da minha filha Thais, a irmã que con- No dia 11 de março de 2017, nosso grupo de
quistei e que ficava com minha filha para que pesquisa realizou uma reunião para falarmos
eu pudesse estudar; Aline5, que me fez acreditar sobre o que queríamos construir com esse es-
na minha capacidade de lutar por meus sonhos. tudo. Recebi neste dia uma linda mensagem de
Pararei por aqui, com lágrimas nos olhos, ao re- presente, escrito em um livro que está transfor-
lembrar o meu percurso. Ressalto a gratidão que mando o meu pensar sobre o que é ser mulher.
tenho por ter encontrado pessoas maravilhosas A mensagem é esta que lhes transcrevo:
que me ajudaram a ser quem sou.
Aprendi com essas mulheres a estimular as Querida Cleonice, salve o dia 02/02!
pessoas, que assim como eu, têm seu potencial
Começamos com a melhor das ener-
escondido dentro de si. Sinto-me feliz ao ajudar
gias e sinto que você trouxe para a
outras tantas que necessitam, ao fazer com que
se sintam cercadas de incentivo para extravasar gente esta força geradora, criadora e
suas potencialidades. madura de nossa Iemanjá. Feliz eu
Foi muito importante trabalhar nesse proje- fiquei por ter “descoberto” com você o
to de pesquisa, uma tarefa que amei executar. potencial transformador, fertilizador,
Recebi esta oportunidade como presente, lite-
deste livro. Você me deu um presente
ralmente, pois o convite para trabalhar nesta
pesquisa foi feito no dia 02 de fevereiro, dia do enorme que me motivou a retribuir
meu aniversário. Concomitantemente ao con- com este livro. Qual presente? Foi o
vite, conheci mais uma mulher maravilhosa, seguinte: renovou minha esperan-
a Inês, que entrou em minha vida e acredito ça na luta, na força por um mundo
que para sempre. Ela me fez refletir no que é
melhor, em que mulheres são respei-
ser mulher e morar no território da Rocinha.
tadas, tratadas como iguais.... Inês
O que pode parecer banal para muitos, mas
que para mim foi fundamental repensar sobre Gouveia, 11 de março de 2017.
a minha posição nesta localidade e o que sou
capaz de fazer e transformar a partir deste Com essa dedicatória talvez você possa enten-
entendimento. der quão enriquecedor é participar desta pes-
Ao longo da minha vida acadêmica estudei quisa, que me possibilitou conhecer Carolina,
muito sobre favelas, mas nunca o que é ser mu- uma mulher com uma percepção incrível sobre

4 | Zilda continua morando na Rocinha, porém não trabalha mais como educadora, e se tornou
madrinha de minha filha mais nova, Yasmin.
5 | Aline foi uma das mulheres entrevistadas para essa pesquisa, assim como a Suely.
55

o papel da mulher na sociedade brasileira e no me despertou para o pensar sobre as mulheres


mundo. Ao ler o livro Mulheres, Raça e Classe e não uma das tantas talentosas escritoras bra-
de Ângela Davis, a vejo representando aquelas sileiras que temos, e que pretendo ler ao longo
mulheres que tanto lutaram para assegurar seu da minha vida. Mas, a partir dessa leitura pas-
lugar na sociedade machista, dominada por ho- sei a perceber, por exemplo, o quanto nós mu-
mens que acham que lugar da mulher é em casa lheres contribuímos para a construção e con-
e de preferência na cozinha. Devo ressaltar que solidação do nosso território. Veremos o quão
até iniciar o projeto não conhecia os textos des- transformadoras são as mulheres moradoras
ta autora. Desejo que cada mulher, ao ler esta da Rocinha, aqui representadas pelas mulheres
pesquisa, também fique com vontade de ler este entrevistadas, as quais tive o imenso prazer em
importante livro, que me fez perceber que pou- conhecer. Confesso que achava conhecer algu-
co conheço sobre a luta das mulheres ao longo mas antes de iniciar a pesquisa, mas descobri
de nossa história. Sei que serei criticada por al- que pouco sabia sobre elas.
guns ao trazer ngela Davis como a autora que

Conhecendo
as mulheres
Para a pesquisa foram realizadas entrevistas individuais com 20 mulheres de di-
versas idades, todas moradoras da Rocinha. Afim de se aproximar da realidade das
mulheres deste território, foram promovidas duas rodas de conversas, utilizando-se
os mesmos critérios das entrevistas individuais. Mulheres que nasceram ou adota-
ram a Rocinha como sua terra, e que, embora nem sempre percebam, contribuíram
e contribuem para transformar o seu território. Esta pesquisa não tem a intenção de
diminuir a contribuição dos homens para a consolidação do território da Rocinha,
mas reconhece que as suas experiência e histórias são tradicionalmente mais difun-
didas, inclusive por sua maior presença no espaço público, com voz e vez.
56

MUlheres
ENTREVIstadaS

Aline Alves de Souza, 45 anos, carioca, estudante, último período de direito,


casada, 2 filhas e 2 netas.
Cristina Martins, 49 anos, carioca, pedagoga, pós-graduada em psicopedagogia,
casada, 2 filhas.
Clea da Silva Pinto, 39 anos, carioca, artesã, ensino médio, trabalha volun-
tariamente com aulas para idosos moradores da Rocinha, casada.
Eliana Pereira de Araújo, 49 anos, carioca, ensino fundamental, agente
da Pastoral de Favela da Arquidiocese do Rio de Janeiro, voluntária da Igreja
Nossa Senhora da Boa Viagem na Rocinha, viúva, 4 filhos, 3 netos.
Glauce Severino Gomes, 48 anos, paraibana, ensino médio, solteira,
comerciante e 3 filhos.
Gonçala Norberto, 77 anos, cearense, ensino médio, professora aposenta-
da, conselheira da Ação Social Padre Anchieta, viúva.
Maria Elisabeth Domingos dos Santos, 28 anos, cearense, estudante do
último período de Serviço Social, trabalha em projetos para Primeira Infância
na Rocinha, solteira.
Francisca Honorata de Oliveira, 69 anos, paraibana, escritora, ensino
médio, viúva, aposentada, 3 filhos e 2 netos.
57

MUlheres ENTREVIstadaS

Flávia Melo Souza, 37 anos, carioca, professora de música, voluntária da


Escola de Música da Rocinha e do Grupo Roça Caça e Cultura, solteira, 2 filhos.
Heloisa Helena Moraes Cardoso, 57 anos, carioca, assistente social, traba-
lha com abrigos do município do Rio de Janeiro, solteira, 3 filhos e 4 netos.
Kinda Martins Firmino, 18 anos, carioca, estudante de Serviço Social, solteira.
Lília Santos de Lima, 46 anos, carioca, estudante, 6º período de pedagogia,
dona da Creche Tio João, na Rua 2 – Rocinha, casada.
Maria da Paz Macedo Pereira, 51 anos, paraibana, estudante do último
período de pedagogia, agente da Pastoral de Favela da Arquidiocese do Rio de
Janeiro, casada, 2 filhos.
Magnalda Rodrigues, 38 anos, maranhense, assistente social, pós-graduada
em violência doméstica, trabalha na Instituição União das Mulheres do Morro
da Alegria na Rocinha, solteira.
Maria do Rosário Marcelino, 53 anos, mineira, crocheteira, ensino médio,
educadora de um centro social na Cachopa na Rocinha, solteira, 1 filho.
Rogéria Batista do Nascimento, 50 anos, carioca, professora, trabalha
com a primeira infância na Rocinha, solteira, 2 filhos.
Maria Edileusa Braga Rodrigues, 52 anos, cearense, ensino médio,
conselheira distrital de saúde e voluntária da Paróquia Nossa Senhora da Boa
Viagem na Rocinha, casada, 2 filhos.
Maria de Socorro Carvalho dos Santos, 33 anos, carioca, presidente da
Ação Social Padre Anchieta (ASPA), casada, 1 filha.
58

MUlheres ENTREVIstadaS

Maria Izabel de Carvalho, 33 anos, cearense, assistente social,


doutoranda, solteira.
Marilene Martins Costa, 52 anos, carioca, artesã, ensino médio,
trabalha em projeto social para o público idoso, casada, 2 filhos.
Maria Rosentina da Silva Oliveira, 67 anos, carioca, funcionária
pública, ensino médio, solteira, 2 filhas.
Michelle da Silva, 27 anos, maranhense, advogada, solteira.
Rita de Cássia Smith, 54 anos, carioca, ensino médio, agente de
saúde aposentada, solteira, 2 filhos e 4 netos.
Simone Alves dos Santos Rodrigues, 29 anos, paraibana, advo-
gada, membra fundadora do Grupo Rocinha Sem Fronteiras, solteira.
Suely Figueiredo de Souza, 55 anos, professora, Diretora da Ação
Social Padre Anchieta (ASPA), solteira, 2 filhas e 1 neta.
Suely da Conceição Rodrigues, 52 anos, carioca, assistente so-
cial, trabalha com criança e adolescente, casada, 1 filha e 1 neto.
Raimunda Luci dos Santos, 60 anos, cearense, escritora, artesã,
ensino médio, trabalha em uma cooperativa de mulheres com artesa-
nato, viúva, 2 filhas e 1 neta.
Tania Regina Rodrigues Miranda, 59 anos, carioca, professora
estatutária aposentada, solteira, 2 filhos 2 netos.
59

Sou feita de retalhos. Pedacinhos coloridos de cada vida que


passa pela minha e que vou costurando na alma. Nem sem-
pre bonitos, nem sempre felizes, mas me acrescentam e me
fazem ser quem eu sou.

Em cada encontro, em cada contato, vou ficando maior. Em


cada retalho, uma vida, uma lição, um carinho, uma saudade...
que me tornam mais pessoa, mais humano, mais completo.

E penso que é assim mesmo que a vida se faz: de pedaços de


outras gentes que vão se tornando parte da gente também. E
a melhor parte é que nunca estaremos prontos, finalizados...
haverá sempre um retalho novo para adicionar à alma. Por-
tanto, obrigada a cada um de vocês, que fazem parte da mi-
nha vida e que me permitem engrandecer minha história com
os retalhos deixados em mim. Que eu também possa deixar
pedacinhos de mim pelos caminhos e que eles possam ser
parte das suas histórias.

E que assim, de retalho em retalho, possamos nos tornar, um


dia, um imenso bordado de nós.
Cora Coralina
60

Perfil das entrevistadas

As mulheres entrevistadas têm entre 18 e 69 Segundo o Censo 2010, moram na Rocinha


anos. Oito têm nível superior, sendo que dentre 35.144 mulheres e, dentro deste universo, o nú-
elas, cinco possuem pós-graduação, uma tem mero de entrevistadas, à primeira vista, parece
mestrado e doutorado, duas estão finalizando insignificante. Porém acredito que a trajetória
a graduação e uma está iniciando a graduação, das entrevistadas representa bem o destino so-
uma tem ensino fundamental e as demais têm cial do contingente total de mulheres.
ensino médio. As entrevistadas quando pergun-
tadas sobre sua cor, oito disseram ser negras;
onze, brancas; e sete, pardas. 16 são cariocas,
quatro são cearenses, duas são maranhenses e Nas palmas de tuas mãos
duas são paraibanas. Dentre as cariocas, qua-
tro, quando nasceram, seus pais não moravam leio as linhas da minha vida.
na Rocinha, e uma paraibana chegou para mo-
Linhas cruzadas, sinuosas,
rar na Rocinha com seis meses de idade. Assim
como as nordestinas que vieram morar na Roci- interferindo no teu destino.
nha, as cariocas também salientam que vieram
em busca de melhorar/transformar suas vidas.
Não te procurei, não me pro-
Seguindo o ensinamento de Cora Coralina, curastes –íamos sozinhos por
vou fazer uma colcha de retalhos, às vezes com
tons alegres, outras vezes com cores mais só- estradas diferentes. Indife-
brias, que bem ilustram as falas das mulheres, rentes, cruzamos. Passavas
na tentativa de mostrar a riqueza apurada nas
entrevistas realizadas. com o fardo da vida…
(Meu destino) Cora Coralina
61

Cheguei à Rocinha em um dia chuvoso de 1972, eu tinha 15 anos.


Imagine o que é você morar em um lugar onde existe bastante
espaço e pouca gente, era assim onde eu morava no interior do
Ceará. Quando eu vim morar na Rocinha, encontrei o oposto do
local onde eu morava, havia muita gente e pouco espaço.
Raimunda Luci dos Santos

Para iniciar esta colcha, o primeiro retalho re- era a diferença gritante entre a cidade de onde
presenta a impressão que as mulheres que não migrou. Acredito que este estranhamento foi
nasceram na Rocinha tiveram ao chegar neste se aprofundando ao longo dos anos, pois se na
território, algumas vezes escolhido, outras ve- década de 70, o adensamento da Rocinha já era
zes por imposição da vida. grande, hoje temos a certeza de que é enorme e
Luci, como gosta de ser chamada, pegou o com isso os moradores têm problemas na aera-
fardo da sua vida e o transformou através do ção e na circulação interna, na especulação imo-
trabalho artesanal. Ela foi uma das fundadoras biliária, na poluição, problemas de transporte,
da Cooperativa Copa Roca na década de 1980, aumento da percepção de violência...
que tinha como objetivo proporcionar condições
para que as mulheres trabalhassem em suas
residências e assim ampliassem o orçamen-
to familiar. Para atingir este fim, a cooperativa
capacitava e coordenava o trabalho de mais de
100 mulheres moradoras da Rocinha, as quais
produziam peças artesanais focadas no merca-
do da moda, e realizavam desfiles no Brasil e em
outros países, como Inglaterra, Alemanha, Ho-
landa, França e Itália, mostrando seus produtos.
Luci é uma mulher inventiva que encontrou
uma maneira para driblar as imposições do seu
marido que a impedia de registrar a sua história
de vida pelos seus escritos, que eram escondidos
pela casa e encontrados por acaso depois de al-
gum tempo. Após ficar viúva Luci escreveu dois
livros e aguarda a oportunidade de publicá-los.
Ela ressalta que quando chegou a Rocinha, em
1972, estranhou a falta de espaço, que para ela

Raimunda Luci dos Santos


62

Maria Edileusa

Luta pelo dirEITO À


água potávEl
A voz das entrevistadas repetiu a preocupa-
ção com a falta de água potável na Rocinha.
O acesso a este bem universal sempre foi uma
luta dos moradores.
Apresento-lhes Maria Edileusa, cearense que
veio morar na Rocinha por insistência do mari-
do, que na época era motorista de uma empresa
de ônibus que possuía uma garagem na Rocinha.

“Quando vim morar na Rocinha, a maioria das pessoas pegava


água no poço da Tuia, mas no meu barraco já havia um ponto de
água, pois meu marido havia feito a ligação com os amigos, mas
ainda assim faltava muita água. Em 1983, no governo de Chagas
Freitas, foi construído um chafariz na Rua 2, ali onde hoje é a lixeira.
Lá havia uma pedra no local, aproveitada para fazer um chafariz
onde pegávamos água para beber. A Rocinha sempre teve muita
dificuldade no acesso a água para seus moradores e esta luta vem
desde a década de 1970”.
Maria Edileusa
63

Em 1951 os moradores se valiam das águas que Ou mesmo a irmã Rita7, que mobilizou mulheres
existiam em algumas bicas e em alguns poços da Vila Verde8 para irem juntas à CEDAE cobrar
artesianos existentes na Rocinha. Em 1976 foi para que a água chegasse até suas moradias em
encaminhado à Companhia Estadual de Águas 2014. É semelhante à década de 1970, quando os
e Esgotos do Rio de Janeiro (CEDAE) um ofício moradores se uniram em busca de uma solução
e um abaixo assinado pedindo água encanada universal, para que todos tivessem água.
para os moradores, que se transformou no An- A luta era e continua sendo para que os mo-
teprojeto R. D., Rio 0070/76, que permaneceu radores da Rocinha tenham os mesmos direitos
anos engavetado. Só em 1981 um novo projeto que os moradores dos bairros vizinhos, como Gá-
de água foi criado, depois de várias reivindi- vea e São Conrado, que não sofrem com a falta de
cações, para que a água chegasse às principais água. A Organização das Nações Unidas (ONU)
ruas. A CEDAE implantou o sistema em 1983, reconheceu em 2010 que acesso à água potável
mas, infelizmente, até hoje a comunidade ainda e instalações sanitárias são direitos de todos os
enfrenta problemas no abastecimento de água. seres humanos, pois são indispensáveis ao pleno
O problema de água ocorre desde sua forma- gozo da vida. Todos devem ter esses direitos, in-
ção, como podemos observar no trecho do livro dependentemente da classe social em que vivem:
Varal de Lembranças:
“O território também representa o chão
“Aqui já se pegou água de nascente, do exercício da cidadania, significa vida
das bicas, das calhas de bambu, das ativa no território, onde se concretizam
pipas d´água, dos aguaceiros, dos poços, as relações sociais, as relações de vizi-
nas latas nas balanças ... queremos água
6
nhança e solidariedade, as relações de
da CEDAE em todas as casas da Roci- poder. É no território que as desigualda-
nha!!! (Citação em cartazes em protestos. des sociais tornam-se evidentes entre os
Extraído de SEGALA,1983 p. 141)” cidadãos, as condições de vida entre mo-
radores de uma mesma cidade mostram-
A distribuição de água continua sendo um su-
-se diferenciadas, a presença/ausência
plício, mesmo após iniciativas como a da Chica,
deste mesmos serviços apresentam-se
que em 2015 mobilizou mulheres para pressionar
as autoridades sobre a falta d’água na Rocinha. desiguais. (Koga, 2011, p. 33)“

6 | Balança de água é feito com uma madeira no centro e duas latas, uma em cada ponta, para que
a pessoa, ao carregar, não se desequilibre.
7 | Irmã Rita é uma freira da congregação Irmãs de Jesus Crucificado que morou durante 10 anos na
Rocinha e realiza missão missionária nesta desde de 1995.
8 | Um dos sub-bairros da Rocinha
64

PRECaRIEdadE
ESTRUTURAL
DO TERRITÓRIO
da ROCINHa

Apresento-lhes Magnalda e Maria Izabel. A


primeira, uma maranhense que, acompanhan-
do os passos da irmã mais velha, veio tentar a
vida no Rio de Janeiro. A segunda veio ao Rio
para ficar junto aos seus pais que, ao longo de
sua vida, dividiam-se entre o Ceará, onde dei-
xavam os filhos, e a Rocinha, onde vinham para
trabalhar. Estas duas mulheres não se conhe-
cem, mas têm muito em comum, que vai desde
a profissão que escolheram, à primeira impres-
são que tiveram ao chegar à Rocinha pela pri-
meira vez. Elas ressaltam em suas entrevistas,
que o que mais lhes impactou ao chegar foi ver
a quantidade de escadas existentes para acessar
Magnalda Rodrigues
onde iriam morar.

Quando cheguei à Rocinha o que me chocou foi a quantidade


de escadas que eu teria que percorrer para chegar na casa da
minha irmã. Inicialmente isso foi a coisa que mais me chamou
atenção, pois eu vinha de uma cidade rural onde as construções
eram completamente diferentes das da Rocinha, lá não tinha
escadas para subir.
Magnalda Rodrigues
65
65

Magnalda é uma dessas pessoas que, como diz


Clarice Lispector, não se limita à apenas o que
é possível de fazer. Para ela, o excesso de esca-
das nunca foi um impedimento para trabalhar Não quero ter a terrível limitação
e contribuir para melhorar a vida de outros mo- de quem vive apenas do que é
radores. Após se formar em Serviço Social, Mag- o passível de fazer sentido.
nalda foi trabalhar na Associação de Moradores,
(Água Viva, Clarice Lispector)
onde percorria as diversas escadarias da Roci-
nha para atender os hipossuficientes.

Assim que concluí a faculdade comecei a trabalhar na Rocinha,


era uma vontade que já tinha antes, mas que por conta da ne-
cessidade de trabalhar para sobreviver, fui adiando, até que tive a
oportunidade de trabalhar na comunidade e depois de iniciar, não
parei mais, e pretendo continuar trabalhando em prol das pessoas
que necessitam.
Magnalda Rodrigues
66

Atualmente está trabalhando no Morro da uma alquimia que serve para reproduzir
Roupa Suja9, também chamado de Morro da a força de trabalho a baixos custos para
Alegria, localizado na área acima do túnel Zuzu
o capital, constitui-se num elemento que
Angel, um dos sub bairros da Rocinha, em que
praticamente inexiste a noção de acessibilida-
acirra ainda mais a dilapidação daqueles
de, inclusive para se ter acesso a Instituição que só têm a energia física para ofere-
União de Mulheres Pró Melhoramento da Rou- cer a um sistema econômico que por
pa Suja. Ela, assim como outras mulheres que si já apresenta características marca-
trabalham nesta instituição, continuam subin- damente selvagens. (Kowarick, apud,
do e descendo escadas e fazendo a diferença
Leitão pag. 47, 2009).”
para os moradores.
Na Rocinha, o acesso para as moradias é di-
ficultado na medida em que as casas ficam dis- É importante destacar que foram os moradores
tantes da Estrada da Gávea e das poucas ruas de da Roupa Suja, assim como dos demais sub-bair-
seu interior. O desenho dos becos, vielas e es- ros da Rocinha, que construíram o acesso às suas
cadarias que saem das vias principais de acesso moradias, e as poucas intervenções públicas no
têm a irregularidade típica dos assentamentos local não melhoraram a acessibilidade dos mora-
que surgiram sem planejamento, pois a primei- dores. O plano inclinado (projeto semelhante ao
ra necessidade era de se abrigar. E isso pode ser implantado no Morro Dona Marta, que estava
observado nas diversas escadarias construídas previsto para acontecer no Morro da Roupa Suja)
sem princípio de dimensionamento: não aconteceu nas obras do PAC1-Rocinha. Essa
obra não resolveria todos os problemas de falta
de acessibilidade, pois seria necessária a realiza-
“Realizadas através da autoconstru-
ção de obras estruturais no local e isso não esta-
ção e do trabalho tradicional gratuito, va previsto no PAC1, mas possibilitaria melhoras
que frequentemente perdura por anos, significativas para os moradores locais, princi-
a confecção da casa própria só pode palmente para as pessoas com dificuldades de lo-
levar à redução de outros itens vitais comoção. Enquanto o estado se omite, mulheres
como Magnalda, Marcia e Carminha continuam
da cesta básica de consumo inclusive
trabalhando na localidade onde todos os dias sur-
à diminuição do padrão alimentar que,
gem problemas que precisam de solução.
para muitas famílias, passa a se situar Como mencionado anteriormente, Izabel tam-
abaixo dos níveis mínimos de sobrevi- bém se impactou pela quantidade de escadas en-
vência. Assim a autoconstrução quanto contradas na Rocinha:

9 | A instituição foi fundada e é exclusivamente dirigida por mulheres.


67

Cheguei à Rocinha quando faltava um mês para completar 18


anos, e olha que eu não me lembro de muitos detalhes, mas eu
lembro de um que para mim era muito diferente do lugar do in-
terior de onde eu vim. Havia muitas escadas, pois meus pais mo-
ravam na Vila Verde e, para chegar onde eles moravam, subia-se
muitas escadas.
Maria Izabel

Maria Izabel, assim como Magnalda, fez das O estranhamento ressaltado pelas entrevis-
escadas uma ponte que continua subindo e tadas ao chegar à Rocinha, acredito que seja o
descendo na Rocinha. Estas duas nordestinas, mesmo de quem vem ao território hoje, pois o
de estados distintos, já trabalharam na mesma crescimento populacional só aumenta cada vez
localidade da Roupa Suja. Izabel, assim como mais e com isso o número de construções não
Magnalda, quando se formou em Serviço Social, para de crescer. As poucas obras de infraestru-
começou a trabalhar na Rocinha e a Roupa Suja tura realizadas pelo poder público não acompa-
foi um dos sub-bairros em que trabalhou duran- nham o crescimento da população. Os proble-
te as obras do PAC1, cadastrando famílias que mas identificados na década de 80, como a falta
estavam em área de risco no local para serem de água, saneamento básico e luz continuam
realocadas. Infelizmente as obras não acontece- ocorrendo na atualidade.
ram, mas durante o trabalho de campo, Izabel
e equipe identificaram vários moradores com
algum tipo de deficiência, e muitas deles rece-
beram visitas da assistente social e equipe, que
elaboraram parecer social e laudos técnicos da
precariedade das moradias e da falta de acessi-
bilidade desses moradores.
Durante o trabalho, ela seguiu a orientação de
cadastrar preferencialmente as mulheres res-
ponsáveis pelas pessoas com deficiência e assim
ocorreu. Na Roupa Suja foram 4 famílias que re-
ceberam apartamento e melhoraram sua condi-
ção de vida. Sabemos que é um número pequeno
frente à realidade local, mas para as famílias em
questão foram mudanças significativas.

Maria Izabel
68

A diferença estrutural do bairro da Gávea para


a Rocinha foi ressaltada pela Heloisa na entrevista
e continua sendo até hoje extremamente gritan-
te. 99% dos moradores da Gávea dispõem de rede
de esgoto oficial, ao passo que na Rocinha, 60% da
população não tem acesso (Leitão, 2009, p.13). Mas
esta desigualdade gritante não fez com que estas
mulheres se acomodassem, muito pelo contrário,
elas foram à luta para melhorar sua realidade.
O contraste entre os territórios da Rocinha e
da Gávea está na narrativa de Heloisa Helena: Heloísa Helena

Vim morar na Rocinha há mais de 33 anos, e minha primeira


impressão não foi boa porque eu era agregada de uma família
classe média alta no bairro da Gávea. Por este motivo eu tive
um choque de realidade quando vim morar aqui, pois eu vi-
via em condições completamente diferentes das encontradas
na Rocinha. Vim morar em um lugar onde as estruturas eram
bastante precárias, principalmente a falta de saneamento
básico. Quando chovia acontecia enchentes, o valão transbor-
dando, havia muitos ratos. No início, esta realidade para mim
foi um desafio muito grande a ser superado.

Heloisa Helena
69

Outra mulher importante na construção de


seu território é Glauce Severino Gomes, per-
nambucana, que como diz Marta Medeiros, é
uma daquelas mulheres que vão à luta e com-
pram passagem de ida, neste caso, só de vinda
para a Rocinha, há 30 anos.

Glauce Severino Gomes

No primeiro dia que cheguei à Rocinha eu sentia que ia chegar ao


céu porque fui lá para o final do morro dentro dos matos. E pensa-
va assim: estou indo e não sei o que faço agora, eu pensava: será
que eu vou conseguir alguma coisa, vou conseguir trabalhar, vou
conseguir ter alguma coisa para minha vida?

Glauce Severino Gomes

A entrevista da Glauce foi realizada em sua às suas moradias, inicialmente para orientar
barraca no camelódromo no acesso à Rocinha. como vender os produtos. Mas seu trabalho
Durante a pesquisa, duas outras mulheres me ultrapassa as fronteiras da relação comercial,
disseram: “Olha você deve entrevistar a Glauce, pois nesse conjunto há mulheres que vivem em
pois é uma grande mulher”. Então lá fui eu em situação de extrema pobreza, baixa escolarida-
busca desta grande mulher, que não se conside- de e é muito comum que se depare com casos
rava uma referência, pois em seu conceito, não de violência.
havia feito nada demais para modificar o terri- Quando lhe perguntei sobre a sua participa-
tório da Rocinha. ção na mudança na vida das mulheres, ela res-
Glauce estava equivocada, pois possibilitou pondeu que costuma influenciar positivamente,
que mais de 200 mulheres tivessem uma fon- principalmente quanto à autoestima, quando
te de renda alternativa através da venda de as mulheres passam a ter uma fonte de renda
cosméticos. Hoje ela diz atender “poucas mu- e quebram laços de dependência financeira com
lheres, pois só têm 170”. Glauce, através de sua os companheiros. Muitas voltam a estudar e en-
história de vida, orienta e aconselha as mulhe- tram no mercado formal de trabalho. Há muito
res que trabalham com ela, realizando visitas que se agradecer a Glauce!
70

TERRITório da Rocinha tráfico. Ela tenta, sem nenhum apoio externo,


modificar a realidade que se encontra através
e a vivência com a do pouco que possui.
violência URBANa O tema da violência está presente em nosso co-
tidiano. Ainda que seja difícil falarmos sobre, é
Nos relatos das mulheres a violência também importante registrar a violência sofrida em áreas
está presente. Sem identificar seus nomes, regis- esquecidas pelo poder público. Observemos:
tro suas narrativas:
Um dia a caminho da casa de minha
A minha primeira impressão da mãe com meus filhos presenciei um
Rocinha foi de medo, pois não estava tiroteio entre policiais e bandidos, no
acostumada a ver armas e tiroteios. valão. Me lembro de ter me abaixado
Nasci em uma cidade pequena do atrás de um carro, e olhei para trás
Estado de Minas Gerais, vim morar e havia um homem encostado na
na Rocinha há 6 anos. Cheguei aqui parede ao meu lado, este homem
através de uma colega, vim conhecer foi baleado e morreu dias depois no
a Rocinha e não sai mais. (Entrevis- hospital. Houve também uma outra
tada do projeto “A Participação das violência que não vi, mas ouvi com
Mulheres na Construção do Território”) minha família, um rapaz sendo tortu-
rado na frente de nossa casa, os tor-
Infelizmente não se pode negar que na Roci-
turadores arrancaram os dedos dele,
nha o poder paralelo continua muito presente,
mesmo após ocupação pelas forças policiais em e a gente ouvia os gritos desespera-
13 de novembro de 2011 e a inauguração, em 20 dos do rapaz sendo torturado e nada
de setembro de 2012, da Unidade de Polícia Pa- podíamos fazer para ajudá-lo. No dia
cificadora, com um efetivo de 700 policias. Esse seguinte observamos que havia mui-
aparato não fez com que os moradores ficassem
to sangue em nosso beco. Se formos
livres da presença de traficantes.
falar das violências que já presenciei
A entrevistada que deu o relato anterior tra-
balha em um local esquecido pelo poder público aqui na Rocinha, acho que ficaremos
onde ela, um colega e voluntários tentam, atra- só falando sobre isso o dia inteiro.
vés de um pequeno projeto social, evitar que (Entrevistada do projeto “A Participação
crianças e adolescentes sejam empregadas pelo das Mulheres na Construção do Território”)
71

Vem, vem, vem, comigo


trabalhar! Vamos limpar a
vala pra favela urbanizar!
(Bis) Você mora do lado de lá,
eu moro do lado de cá, Quan-
do a vala se enche a gente
MULHERES Na LUTa
não pode passar. Vem, vem,
PARA MODIFICAÇÃO DO
TERRITÓRIO vem... Vamos todos trabalhar
com enxada e picareta! Va-
Ainda que a violência seja real, é preciso frisar
que há mulheres que contribuem para a efetiva-
mos limpar a vala para a vida
ção da tão sonhada cultura de paz. melhorar. Vem, vem, vem...
Com ajuda do Cristiano e do
MOBILIZAÇÃO dAs Frei José, Vamos limpar a vala
MORADORAs para não sujar o pé Vem, vem,
As mulheres entrevistadas nunca se acomo-
vem!... Obrigado, comunidade lá
daram: foram à luta e contribuíram para mo- de cima do casarão. Todos com
dificar a realidade do local em que vivemos. As
moradoras da Rocinha sempre estiveram pre- boa vontade. Todos com bom
sentes na construção física e simbólica do terri- coração. Vem, vem, vem!... Não
tório. Posso citar, por exemplo, o envolvimento
de mulheres como a Maria das Dores de Melo, precisa ninguém temer já falei
“Maria do Teatro” como era chamada pelos mo-
com o Didi. Não é preciso ter
radores. Para conseguir a adesão dos morado-
res para a limpeza das valas da Rocinha, fazia medo. Vem, vem, vem comigo
diversas campanhas de mobilização e em uma
destas, criou a seguinte música:
trabalhar! Vamos limpar a vala
par favela urbanizar!
(Maria das Dores de Melo (Maria do
Teatro. In: SEGALA,1983, p. 108)
72

Maria do Teatro, assim como outras mulheres


como Chica da Rocinha, foram grandes mobiliza-
doras dos moradores para conseguir a construção
da passarela e para conquistar outros direitos. No
livro Varal de Lembranças (1983), Maria do Teatro
conta que mobilizava os moradores batendo de
casa em casa até conseguir as completar o abaixo As lutas dessas mulheres se somam a de mui-
assinado, e depois, ela e outras(os) moradoras(os), tas outras, como a saúde, educação, combate à
apresentavam o abaixo assinado para a imprensa desnutrição infantil e saneamento básico.
e solicitavam audiência com o governador, pedin- Sobre o combate à desnutrição infantil, Ma-
do a construção da passarela e melhorias estrutu- ria Edileusa fala com propriedade. Ela e outras
rais para a Rocinha. A reivindicação para a cons- companheiras, coordenadas pela freira Irmã
trução da passarela aconteceu 8 anos após (1979) a Domingas, trabalharam muito em benefício
construção do Túnel Zuzu Angel (1971). dessa causa. Segundo ela:

Nos anos 80 comecei a trabalhar com a Pastoral da Criança10 aqui


na Rocinha, principalmente na Roupa Suja, com crianças desnutri-
das. A gente pesava as crianças e fazia sopa de pé de galinha para
elas, fornecia e ensinava as mães das crianças desnutridas a fazer
farinha de casca de ovo. Me lembro até hoje do barraco da Socor-
ro que usávamos, o pé de jaca que existia lá, onde amarrávamos
pano para pesar as crianças. Naquela época atendíamos crianças
com 5 anos com peso de uma criança de 2 anos.
Maria Edileusa

10 | Fundada em 1983, na cidade de Florestópolis, Paraná, pela médica sanitarista e pediatra, Dra. Zilda Arns Neu-
mann, e pelo então Arcebispo de Londrina, hoje cardeal emérito, Dom Geraldo Majella Agnelo. A Pastoral da Criança
hoje se faz presente em todos os estados brasileiros e em outros 11 países da África, Ásia, América Latina e Caribe.
73

Segundo a Organização Mundial de Saúde iniciativa da Dra. Zilda Arns Neumann, funda-
(OMS), a desnutrição contribui com mais de um dora da Pastoral da Criança. O programa criado
terço das mortes de crianças no mundo, apesar por ela tinha como objetivo reduzir a mortali-
de raramente ser listada como a principal causa. dade infantil e a desnutrição e, para conseguir
Nos anos 1970, cerca de 30% das crianças entre atingir seus objetivos, mulheres como Edileusa
5 e 9 anos estavam com déficit de altura no Bra- e tantas outras moradoras de áreas pobres das
sil, um forte indicador de desnutrição de longa cidades brasileiras foram convidadas para tra-
data na infância. balhar com a Pastoral.
A desnutrição infantil sempre foi um grande Ao longo da história da Rocinha, outras neces-
problema no Brasil. Nos anos de 1980 e 1990, sidades foram emergindo e mais mulheres foram
os índices eram alarmantes, superavam os mi- participando ativamente da construção do terri-
lhões. De acordo com a Organização das Nações tório. Outra luta bem marcada, refletida na histó-
Unidas para Alimentação e Agricultura, o Brasil ria das entrevistadas foi pela educação, nos anos
conseguiu reduzir em 58% o número de mor- 1960-1970. Sobre isso, conta Gonçala Norberto:
tes de crianças desnutridas e, com isso, atingiu
uma das 15 metas da Conferência Mundial de
Alimentação, que era reduzir o índice em 50%
até 2015. Grande parte desta vitória ocorreu por

Durante muitos anos não existiam escolas


públicas aqui na Rocinha, eram as mulheres
que montavam escolinhas para ensinar as
crianças que chegavam principalmente do
Nordeste e não conseguiam vagas nas esco-
las dos bairros vizinhos. Eu, Socorro, Minerva,
Arlete, Elisa entre outras moradoras, fomos
umas dessas mulheres que durante anos lu-
taram para que as crianças tivessem acesso
à educação aqui na Rocinha”.
Gonçala Norberto

Gonçala Norberto
74

Nos anos 70 a Rocinha tinha só duas escolas


e uma creche: a Escola Municipal Paula Brito e
a já extinta Escola Municipal Pastor Belarmino,
que funcionava em duas salas cedidas pela Igre-
ja Batista, na Estrada da Gávea, área central da
Rocinha. Esta funcionava com quatro turmas,
duas pela manhã e duas à tarde. Estas escolas,
além de serem insuficientes para atender as de-
mandas, também tinham critérios para receber
os alunos como saber ler, estar na idade corres-
pondente à série, entre outros. Por estes moti-
vos, Rosa, Judite, Ester, Marlene e Maura foram
e são extremamente importantes para o direito
à educação na Rocinha.
Tivemos ao longo dos anos grandes mulheres
que estimularam e lutaram para que os moradores Francisca Eliza Medeiros Pirosi,
tivessem acesso à educação. Durante a pesquisa, conhecida como Dona Eliza.
não tivemos a oportunidade de entrevistar uma
protagonista da história da educação na Rocinha,
a Francisca Eliza Medeiros Pirosi11. Dona Eliza foi de idade, reprovadas ou rejeitadas pelas escolas
uma das pessoas que mais lutou pela educação na tradicionais. Ela também atendia crianças cujos
Rocinha, de acordo com Clea, Eliane, Heloisa, Ma- pais não tinham dinheiro para pagar passagem,
ria da Paz e muitas outras mulheres. comprar uniformes, livros e cadernos, que não
Ela chegou a Rocinha em 1966. Incomoda- eram fornecidos nessa época nem na rede pú-
da em ver crianças fora da escola, improvisou blica de ensino. Ela foi uma das fundadoras do
uma sala de aula com material recolhido em pré-vestibular comunitário do Colégio Teresia-
obras e carteiras escolares que coletava nos li- no, na Gávea, e com isso conseguiu que muitos
xos de outras escolas. O objetivo da Dona Elisa moradores da Rocinha pudessem ingressar no
era alfabetizar crianças dos cinco aos 14 anos ensino superior.

11 | Francisca Eliza Medeiros Pirosi faleceu em 03/04/2017 com 77 anos.


75

Modificação
DO TERRITÓRIO
ATRAVÉS DA EDUCAÇÃO

A partir da trajetória de Rogéria, “me encon-


trei” com uma geração de mulheres que tiveram
a oportunidade de estudar em universidades e
trouxeram para a Rocinha seus aprendizados.
Rogéria é professora há muitos anos na área de
alfabetização de Jovens e Adultos e hoje traba-
lha com a primeira infância:

Hoje trabalho na Rocinha acompanhando crianças de 0 a 3 anos e


as suas famílias, visitamos as casas dessas crianças e seus pais; de-
monstrando a importância do brincar. É através das brincadeiras
que verificamos se a criança está se desenvolvendo corretamente.
Nas visitas, observo que são as mulheres que se envolvem mais nas
brincadeiras, os homens demonstram sempre uma resistência e
até falam que não tem paciência para isso.
Rogéria Batista

Ao longo da história da educação na Rocinha, fossem a lutar para se adaptarem à nova rea-
as mulheres que lutaram para que os moradores lidade e continuassem a atender as demandas
tivessem acesso à educação de qualidade, evolu- dos moradores. As mulheres pioneiras e as que
íram juntamente com os avanços tecnológicos e as sucederam fizeram cursos superiores e con-
as frequentes e necessárias mudanças no âmbi- tinuam a luta por uma educação de qualidade.
to educacional, fizeram com que estas mulheres
76

Como as mulheres
vEEm a Rocinha?
Durante as entrevistas perguntou-se o que as
entrevistadas veem na Rocinha e se estas preten-
diam algum dia morar fora deste território. Das
20 mulheres entrevistadas, 6 disseram que pre-
tendem algum dia se mudar. Seus motivos: falta
de oportunidade de aquisição da casa própria, a
falta de segurança pública e as questões da falta
de estrutura. Vejam o que Aline contou sobre isso.

Aline Alves de Souza

Pretendo mudar da Rocinha, já venho há algum tempo pensando


nisso. Os motivos pelos quais quero me mudar são: Primeiro - eu
moro de aluguel e aluguel na Rocinha é muito caro; Segundo -
como os imóveis na Rocinha não são legalizados, eu não consigo
entrar em um financiamento e para pagar à vista eu não tenho di-
nheiro para isso. Portanto para eu conseguir ter uma casa própria,
tenho que sair da Rocinha e por este motivo tenho buscado uma
outra alternativa para ter moradia. E para conseguir minha casa
própria estou participando do Programa Minha Casa, Minha Vida.
Aline Alves de Souza

A Rocinha, por suas dimensões e também pela preços dos aluguéis triplicaram, prejudicando mo-
peculiar localização no tecido urbano da cidade, radores que vivem de aluguel. Como podemos ver
sempre teve o aluguel muito caro, mas a partir das na fala da Aline, comprar um imóvel na Rocinha
obras do PAC, iniciadas em 2008, o valor do alu- não é fácil, pois apesar de ser um bairro oficial da
guel triplicou. Durante as obras muitas famílias ti- cidade desde 1993, os imóveis existentes não são
veram que ser removidas de suas moradias e com legalizados, e por isso não podem ser financiados
isso, a procura por imóveis para alugar cresceu, os pelos órgãos oficiais. Isso não impede que exista
77

a especulação imobiliária, o que dificulta o acesso


dos moradores com baixo poder aquisitivo e, por
este motivo, muitos se mudam.
Como destacamos, existem outros motivos que
contribuem para a saída dos moradores da Roci-
nha, mas igualmente, todos os dias novos morado-
res chegam, fazendo com que o crescimento popu-
lacional cresça na mesma proporção que crescem
as novas moradias produzidas no território.

muda-se da
ROCINHA OU NãO?

Lília dos Santos Lima conta o que sente sobre


a Rocinha e diz que não pretende se mudar, mas
salienta as dificuldades e as peculiaridades de
Lília dos Santos Lima
viver no território.

Amo morar na Rocinha e só saio daqui para morar na Delfim Mo-


reira, falo isso para ser uma coisa utópica mesmo, pois não pretendo
me mudar da Rocinha. Me falam que eu moro na área nobre da
Rocinha e por este motivo não quero sair da Rocinha, e eu respondo:
“Como se a minha rua fosse chique, é um barulhão a noite toda e
para entrar em casa passamos por diversos usuários de drogas, e eu
moro na casa de minha mãe, de favor, e o dia que ela não me quiser
mais lá, arrumo outro lugar na Rocinha para morar, mas não saio
daqui.” Falo para todo mundo que moro na Rocinha e tenho orgu-
lho de dizer isso. E fico triste que uma das mulheres que trabalham
comigo tenha me dito que quando perguntam para ela onde mora,
diz que mora em outro lugar e não na Rocinha, tento passar o meu
ponto de vista e minha atitude como pessoa que faz parte deste ter-
ritório e que tem esperança de ver uma Rocinha cada dia melhor.
Lília dos Santos Lima
78

É fácil compreender o que faz alguns mora-


dores dizerem que moram em outros lugares,
ao invés de afirmarem que moram na Rocinha.
Isso ocorre por conta de uma construção histó-
rica de discriminação sobre moradores de fave-
las. Este tipo de discriminação muitas mulhe-
res da Rocinha já sofreram, o que a narrativa
de Cléa evidencia:

Cléa Silva Pinto

Eu sofri muito quando passei por todo processo seletivo para tra-
balhar na H. Stern, e como ninguém me avisou que eu não pode-
ria dizer que morava na Rocinha, eu disse e não fui contratada...
Depois disso eu comecei a colocar o endereço de uma amiga que
morava fora da Rocinha, no meu currículo.
Cléa Silva Pinto

Cléa fala do enfrentamento do preconceito


contra quem mora em favelas, que possui vários
outros estigmas embutidos, dentre eles o de ca-
ráter social, econômico e racial. O preconceito e
a situação de classes no país configurou que mu-
lheres negras se destinem ao trabalho domésti-
co ou outras profissões subalternizadas.
79

A fala da Magnalda se identifica com a de


muitas outras mulheres que sempre tiveram
que lutar pelos seus direitos, mesmos estan-
SEr mulher Na Rocinha do estes garantidos na “Carta Magna” como o
E a vivência com princípio da igualdade. Na prática, as mulheres
que moram em favelas, além de carregarem os
a discriminação preconceitos pelo simples fato de serem mu-
lheres, carregam ainda estigmas/rótulos como
E como é ser mulher e viver no território da a declarada pelo ex-governador do estado, que
Rocinha? Sabemos que a luta feminina tem re- afirmou: “Tem tudo a ver com violência. Você
sultado em avanços na ampliação de direitos das pega o número de filhos por mãe na Lagoa Ro-
mulheres. Mas há ainda grandes desafios para drigo de Freitas, Tijuca, Méier e Copacabana,
atingir a sonhada igualdade entre mulheres e é padrão Sueco. Agora, pega na Rocinha. É pa-
homens. Sobre ser mulher moradora da Roci- drão Zâmbia, Gabão. Isso é uma fábrica de pro-
nha, Magnalda Rodrigues comentou: duzir marginal12”.

Ser mulher na Rocinha é lutar sempre, é buscar seus ideais, é ser


uma mulher que pensa além daquilo que nos é imposto, é pensar:
“Não é por ser mulher e morar na Rocinha que não tenho direito a
ter direitos”. É você ser vítima de preconceitos por ser negra, pobre e
favelada. É você passar por tudo isso e ir à luta.
Magnalda Rodrigues

12 | http://g1.globo.com/Noticias/Politica/0,,MUL155710-5601,00- RO.html. Acessado em 06/08/2017


80

Assim como nossa entrevistada declarou,


muitas mulheres moradoras de favelas são dis-
criminadas e vistas como cúmplices de uma mi-
noria envolvida com o tráfico de drogas. Além
disso, os agentes públicos veem as mulheres que
moram na favela como de pouco estudo, pobres
e ignorantes intelectualmente. O fundamento
dessa noção é o preconceito. A favela sempre
Na comparação com a Zâmbia e Gabão a se- aportou seus conhecimentos mais diversos, en-
melhança está principalmente em relação a raizados em diferentes culturas e tradições. O
má distribuição de renda, em que um pequeno conhecimento certificado pelo estado, expresso
grupo de pessoas, como o ex-governador, detém em grau de escolaridade, também está na fave-
mais de 60% da riqueza do país e como ainda la. As entrevistadas mostram isso claramente.
acham pouco, nos roubam mais, desviando di- Com muito esforço fizeram cursos, graduação,
nheiro público de setores fundamentais. pós, mestrado, doutorado...
Segue a fala de Clea da Silva Pinto, que evi- A herança cultural machista ainda é uma in-
dencia como a visão preconceituosa do ex-go- cômoda realidade a ser superada. Os trechos de
vernador se impõe na vida prática das mulheres depoimentos a seguir falam da cultura machista
que moram na Rocinha: enraizada na Rocinha.

No início, quando passei a sofrer agressões dos policiais aqui na


Rocinha, eu tinha raiva, eu tinha medo, eu tinha tudo que você
pode imaginar, só por morar na Rocinha. Porque eu sempre fui
uma cidadã de bem e mesmo assim fui muito agredida aqui. Se
eu estivesse em um carro, eu era parada e revistada, se eu estivesse
a pé, eu era parada e revistada. Por conta de minha aparência os
policiais achavam que eu transportava drogas.
Clea da Silva Pinto
81

Eu não acho que as mulheres sejam respeitadas na Rocinha, o que


elas têm é seu lugar de “respeito” e como aqui a predominância é de
homens nordestinos, eu vejo que a mulher, se for mãe e seguir o mo-
delo que a sociedade acha que é destinada ao papel da mulher, ela
terá um certo “respeito”.
[...]
Eu não acho que a mulher seja respeitada, nem aqui na Rocinha nem
em lugar algum. Nós fomos criadas em uma sociedade que está come-
çando a ser modificada lentamente agora. Hoje o homem pensa que
ele pode tudo e as mulheres não podem nada.
Lília Santos de Lima

Infelizmente ainda vivemos em uma cultura em que o homem pode


tudo e as mulheres têm que seguir padrões determinados a elas.
Eles podem sair, passar a noite fora bebendo com os amigos e isso é
aceitável, mas se a mulher for fazer o mesmo ela é criticada. Então se
formos pensar se a mulher é respeitada, respondo que não somos, de
modo geral, respeitadas. E a forma que a mulher é aceita e dita res-
peitada eu não aceito, pois para ela ser respeitada deve estar submis-
sa aos caprichos de um homem.
Flavia Melo

Moradora hoje da Rocinha, de modo geral, é não ser respeitada


como cidadã deste país, assim como eu acho que ocorre em todos
os lugares.
Eliana Pereira
82

Violência Os números da violência contra a mulher na


cidade do Rio de Janeiro divulgados pelo Ob-
doméstica servatório Judicial da Mulher, do TJ-RJ, reve-
lam que, no primeiro semestre de 2016, foram
Ao abordar a temática sobre a luta das mulhe- proferidas 4.498 sentenças relacionadas a cri-
res por direitos, não poderíamos deixar de tra- mes contra mulheres – um aumento de 33%
zer aqui um pedaço de retalho sobre violência na comparação com os primeiros seis meses de
doméstica13 que é um problema mundial, e que 2015. Além disso, foram autorizadas mais de
no Brasil atinge 2 milhões de mulheres por ano. 9.500 medidas protetivas em favor de vítimas
Segundo dados recentes, a cada hora 503 mu- que precisam com urgência de amparo legal.
lheres são agredidas. Do início de 2011 a agosto de 2016, quase 250
Na Rocinha, 60% das ocorrências que chegam mil casos de agressões físicas contra mulheres
à 11ª Delegacia de Política são sobre violência no ambiente doméstico foram encaminhados ao
doméstica. Esses são os números de mulheres Judiciário fluminense.
que denunciam, mas, infelizmente, sabemos Como citado anteriormente, estes dados são
que muitas não se sentem seguras para denun- referentes aos casos que chegam às autoridades
ciar. Casos marcantes como o estupro e assassi- policiais, porém sabemos que muitas mulheres
nato da menina Rebeca de Carvalho, de 9 anos não denunciam a violência que sofrem e, como
(em outubro de 2013) e de Francisca Gleiciane, ainda vivemos em uma cultura em que os ca-
18 anos (em 2014), chocaram a Rocinha. Estes sos de violência doméstica são vistos como coi-
crimes foram praticados por desconhecidos, sa particular, supõe-se que os números de mu-
mas de acordo com Gabriel Ferrando, delega- lheres agredidas sejam superiores aos números
do em exercício no ano de 2014, na 11ª DP, esse oficiais. A agressão contra a mulher ocorre nas
perfil de violência, onde a vítima não conhece o favelas como nos demais territórios da cidade.
agressor, é minoria na Rocinha. “A maior parte A diferença fundamental é que, nas favelas, as
dos estupros acontece no interior dos lares, com mulheres, pelo conjunto dos problemas sociais,
autoria conhecida”, diz, acrescentando que são sentem-se mais vulneráveis e fragilizadas para
crimes enquadrados na Lei Maria da Penha, de denunciar seus agressores.
ameaça e lesão corporal.

13 | A lei 11.340/2001. Em seu art. 5º define como violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou
omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral
ou patrimonial: I- no âmbito da unidade doméstica, compreendida como espaço de convívio permanente de
pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas; II- no âmbito familiar, compre-
endida como a comunidade formada indivíduos que são os se consideram aparentados, unidos por laços natu-
rais, por afinidade ou por vontade expressa; III- em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva
ou tenha convivido com a agredida, independentemente de coabitação. Parágrafo único - as relações pessoais
enunciadas neste artigo independem orientação sexual.
83

Durante a pesquisa perguntamos às mulhe-


res entrevistadas se elas sofreram ou presen-
ciaram algum tipo de violência doméstica na
Rocinha. Todas as entrevistadas ou já sofreram
ou já presenciaram.

Já presenciei várias vezes. Um caso de violência doméstica mar-


cante para mim foi a de um vizinho que batia tanto na mulher,
que um dia ela ficou tão desequilibrada que abandonou tudo e
foi embora, deixando casa e filhos para trás. Hoje ela vive comple-
tamente debilitada por conta dos maus tratos sofridos.
Mulher entrevistada

Outro caso que me marcou foi o caso de uma mulher que ficava
presa em casa com duas filhas, pelo marido, ele as espancava e
as deixava presas quando saía. Chamamos as autoridades e elas
foram encaminhadas para um abrigo, estavam muito maltrata-
das. Assim como estes, eu já presenciei e conheci muitas mulheres
que foram espancadas aqui na Rocinha. Quando eu trabalhava
na Rocinha, quase todos os dias surgia alguma denúncia de ca-
sos como estes que citei.
Mulher entrevistada

Quando eu trabalhava com as mulheres, ouvia sobre diversos ca-


sos de violência doméstica. Eu mesma tenho uma vizinha que so-
fre violência do marido. Houve uma ocasião em que eu denunciei,
pois não aguentava mais ver os filhos do casal pedindo socorro
quando a mãe apanhava. Depois que denunciei, a mulher retirou
a queixa e continua vivendo com o homem e sendo agredida.
Mulher entrevistada
84

Minha própria mãe sofria violência do meu pai, não a violência


física, mas sim, a violência verbal. Acho que é por isso que quis
construir minha vida diferente da que minha mãe teve, nunca dei-
xei que nenhum homem determinasse o rumo de minha vida.
Mulher entrevistada

Nunca sofri violência doméstica, mas infelizmente é muito co-


mum presenciarmos violência doméstica contra mulher nas ruas
e becos da Rocinha. Eu mesma já presenciei um homem batendo
a cabeça de mulher em um poste de luz. Existem diversas violên-
cias contra a mulher, uma que ocorre comumente, infelizmente,
é a violência verbal, que constantemente presenciamos nas ruas,
ônibus e casas vizinhas. Existem também muitas mulheres que
sofrem violência dos filhos, muitos ameaçam as mães em busca
de dinheiro, isso acontece principalmente com as mulheres idosas
que têm filhos viciados em drogas.
Mulher entrevistada

Era muito ‘comum’ ouvir os gritos das vizinhas sendo agredidas


pelos seus companheiros, assim os vizinhos sempre ficavam inco-
modados como os gritos das mulheres sendo agredidas. Hoje, eu
acho que acontece menos, pelo menos aqui na localidade que eu
moro. Não é frequente, eu não posso falar da Rocinha como um
todo, pois não estou entre becos e vielas, mas acredito que ainda
tem sim muita violência contra as mulheres, principalmente nas
áreas mais carentes e onde as mulheres têm baixa escolaridade e
suas moradia são de difícil acesso.
Mulher entrevistada
85

Eu conheci muitos casos de violência doméstica, principalmente,


através de relatos das crianças que atendíamos em meu traba-
lho. Muitas vezes as crianças relatavam que o pai havia batido na
mãe. A gente procurava a mulher para conversar e aconselhar,
mas sempre foi uma coisa difícil, pois para a mulher é complica-
do denunciar o marido, morando na comunidade, porque se a
mulher fosse à polícia, poderia sofrer as consequências por ter ido
à polícia, se ela denunciasse para os traficantes locais, o agressor
poderia levar uma surra e até morrer, e isso elas não queriam. Eu
acho que o que imperava e impera até hoje para a mulher que é
agredida na Rocinha e não denuncia, é a cultura do medo, provo-
cada pelo afastamento do poder público.
Mulher entrevistada

Eu mesma fui uma mulher que sofreu violência doméstica, o pai


de meus filhos me humilhava com palavras duras e me fazia me
sentir um verdadeiro lixo. Eu não sofria a violência física, mas so-
fria a verbal e só saí deste relacionamento quando tomei a atitu-
de e falei para ele, que sempre saia de casa e ficava dois três dias
fora: “Aqui você não entra mais”. Algumas das mulheres que tra-
balham comigo relatam o que passam em casa com os compa-
nheiros violentos. Eu não posso falar sobre esses casos, pois estas
confiam em mim quando falam de suas realidades.
Mulher entrevistada
86

Dados levantados por Medeiros (2016) apon-


tam que durante o ano de 2013, o Estado do Rio
de Janeiro registrou 2.853 homicídios de mu-
lheres, destes 376 foram cometidos pelos com-
panheiros ou por ex-companheiros.

Cotidianamente sei de casos. Recentemente uma mãe da creche veio


trazer o filho e estava de olho roxo e quando fui conversar com ela para
saber o que aconteceu, ela me falou que o marido queria transar e
como ela não quis, este bateu nela e transou com ela assim mesmo. Às
vezes eu chamo o marido para conversar sobre a violência que ele fez
e faço também encontros temáticos com as famílias e, entre os temas
discutidos nos encontros, falamos sobre a violência doméstica. Mas
teve uma vez que a mãe me falou que apanhava do marido e ele des-
cobriu que ela havia me contado e bateu muito mais nela. Aí eu falei
para ele que da próxima vez eu ia acionar a justiça contra ele. Enfim,
tento de alguma forma ajudar estas mulheres, mas não é fácil, pois
estamos falando de mulheres que voltam para casa após a agressão
que sofreram, para o lado dos seus agressores.
Mulher entrevistada
87

É sabido que a violência contra a mulher trans-


cende o espaço privado e se reflete no espaço pú-
blico. A violência doméstica não é tão somente
um caso de polícia, mesmo porque se lida com
relações intrafamiliares, que são complexas. Se-
gundo especialistas, os círculos da violência do- “Dentre todos os tipos de violência
méstica são marcados por fases. A primeira é o contra a mulher existentes no mundo,
início da tensão. Nesta fase ocorre incidentes me- aquela praticada no ambiente familiar é
nores como agressões verbais, crises de ciúmes, uma das mais cruéis e perversas. O lar,
ameaças, destruição de objetos, xingamentos,
identificado como local acolhedor e de
crítica constante, humilhação psicológica, e pe-
quenos incidentes de agressão física. Na segun- conforto, passa a ser, nestes casos, um
da fase ocorre a violência física contra a mulher, ambiente de perigo contínuo que resulta
que frequentemente é acompanhada por severa num estado de medo e ansiedade per-
agressão verbal. Na fase três o agressor mostra- manente. Envolta em emaranhado de
-se arrependido com o comportamento que teve
emoções e relações afetivas, a violência
e age de forma humilde e amorosa, procurando
se desculpar. Ele se desculpa e promete não ata-
doméstica contra as mulheres mantém,
cá-la novamente. Como é um ciclo, depois de um até hoje, como uma sombra em nossa
tempo volta-se a fase um, dois e por aí vai. sociedade. (MEDEIROS, 2016, p.39)”.

Cotidianamente aqui na Instituição percebo que algumas


mulheres, quando vem trazer ou buscar o filho, apanharam
dos companheiros. Eu converso com algumas quando me dão
abertura. Estas são meninas novas, que falam para mim que se
largar o seu agressor, este a mata. Aí eu tento conversar e ofere-
ço ajuda para encaminhá-las para órgãos que trabalham com
mulheres agredidas, mas estas normalmente recusam.
Mulher entrevistada
88

Sabemos que a violência contra a mulher ocor-


re em toda parte, mas nas favelas a intervenção
externa fica mais difícil de acontecer. Há poucos
projetos voltados para trabalhar esta realidade e
a intervenção estatal é quase inexistente. Geral-
mente quando ocorre é por intermédio da rede
O ingresso das mulheres de saúde, que ao atender uma mulher que foi
espancada, aciona as autoridades. Mas, ainda
no mercado de trabalho assim, eventualmente a vítima nega, por medo
de mais agressão.
remunerado aumenta Nesse sistema de medo, as mulheres não se
veem como sujeito de direito, mas como inferio-
ano a ano. Mas as res, subalternas. Falta um elo de empoderamen-
to e proteção que a religuem de forma segura
mudanças na divisão aos serviços oferecidos para o enfrentamento
da questão, como as delegacias, postos de saúde
do trabalho doméstico e centros de apoio. Mas será que os serviços ofe-
recidos estão preparados para receber uma mu-
nas famílias, no entan- lher vítima de violência? Será que os profissio-
nais estão capacitados para acolher esta mulher,
to, quase não ocorreram não culpabilizando-a pelo ocorrido? Será que a
falta de treinamento profissional não corrobo-
e as mulheres continu- ra com a não notificação dos casos de violência
contra a mulher?
am trabalhando muito
Trabalho
mais em casa do que doméstico/
tarefas femininas?
os homens.
Nosso próximo pedaço de retalho é sobre o
trabalho doméstico realizado pelas mulheres
entrevistadas. Esse perfil de trabalho ainda é
visto como uma atividade predominantemen-
te feminina na sociedade brasileira. O ingresso
das mulheres no mercado de trabalho remune-
89

rado aumenta ano a ano. Mas as mudanças na mos as entrevistadas como é a divisão das tare-
divisão do trabalho doméstico nas famílias, no fas domésticas, 4 responderam que dividem as
entanto, quase não ocorreram e as mulheres tarefas domésticas com os maridos, 2 disseram
continuam trabalhando muito mais em casa do que quem faz as tarefas doméstica são os mari-
que os homens. Na Rocinha isso também se re- dos, 3 disseram que dividem as tarefas com os
produz. Todas as mulheres entrevistadas traba- filhos, 2 dividem as tarefas com as mães, e as
lham fora de casa, até as que já se aposentaram demais falaram que realizam sozinhas as tare-
continuam trabalhando em outras atividades fas domésticas. Vejam o que as mulheres acham
para aumentar suas rendas. Quando pergunta- sobre o trabalho doméstico.

Eu sou daquelas pessoas que não gostam de fazer tarefas domés-


ticas, acho que perdemos muito tempo com essas tarefas, mas
como o meu marido também não gosta, sobram para mim. No
início do meu casamento chegamos a dividir o trabalho da casa,
mas depois de um tempo meu marido foi deixando de fazer a par-
te dele e hoje ele não lava nem um copo. Sou eu que me respon-
sabilizo pelos afazeres da casa, mas faço no meu tempo, pois não
deixo de fazer outras coisas que considero mais importantes para
limpar a casa.
Mulher Entrevistada

Veja como nós, mulheres, somos discriminadas. Olha o que nosso


presidente quer fazer agora, igualar a idade para homens e mu-
lheres se aposentarem. Isso não está correto, pois as mulheres têm
dupla jornada de trabalho. A mulher trabalha fora e quando che-
ga em casa, ainda tem muitos afazeres domésticos para cuidar.
Mesmo que ela tenha condições de ter uma empregada, “cabe a
ela” organizar a vida doméstica da família.
Maria Rosentina
90

Em relatório divulgado em 2016 pela Organi- “A nova consciência associada ao


zação das Nações Unidas, em todas as econo- movimento de mulheres contemporâ-
mias e culturas, as mulheres são responsáveis neas encorajou um número de mulheres
pela maior parte dos cuidados não remunera-
a reivindicar que seus companheiros
dos e tarefas domésticas. Elas fazem cerca de
2,5 vezes mais deste trabalho que os homens. ofereçam algum auxílio neste trabalho
No Brasil dados do IBGE destacam que a maio- penoso. Muitos homens já começaram
ria das mulheres com idades entre 16 e 60 anos, a colaborar com suas parceiras em casa,
realizam as tarefas domésticas, e apenas quatro alguns deles até devotando o mesmo tem-
entre dez homens na mesma faixa etária, tra-
po que elas aos afazeres domésticos. Mas
balham nas atividades da casa. As mulheres
mesmo cumprindo jornadas de trabalho de 40 a
quantos destes homens se libertaram da
44 horas semanais, ainda assim se dedicam en- concepção de as tarefas domésticas são
tre 20 e 25 horas semanais com cuidados com a “trabalho de mulher”? Quantos deles não
casa e os filhos e, quando estão desempregadas, caracterizam suas atividades de limpeza
a jornada de trabalho doméstico das mulheres
da casa como uma “ajuda” às suas com-
sobe para cerca de 26 horas semanais.
panheiras. ( Ângela Davis, 2016, p. 225)”

Meu marido cuida do cachorro e corta a grama, e eu lavo, passo,


cozinho e arrumo. Lá em casa não existe divisão, eu faço tudo. No
início tentei fazer uma divisão, mas não deu certo, pois meu mari-
do não cumpriu a parte dele, ele tinha o tempo dele para fazer e
tem coisas que não podem esperar, por isso e para manter as coi-
sas organizadas, eu faço sozinha as tarefas domésticas. Nós mu-
lheres temos uma visão trezentos e sessenta graus, por isso acaba-
mos conseguindo desenvolver várias tarefas ao mesmo tempo e os
homens não.
Mulher entrevistada
91

Na minha casa as divisões das tarefas domésticas são realizadas


por minha mãe, onde todos nós temos que fazer algumas coisas.
Meu pai coloca a roupa para lavar, eu estendo, ele faz comida du-
rante a semana e minha mãe aos finais de semana, pois ela tra-
balha em dois empregos durante a semana, mas mesmo assim
quem decide as coisas em casa é ela. Mesmo agora, ela estando
doente e não podendo fazer nada, é ela quem comanda tudo.
Quando ela estava internada, ligava determinando o que a gente
tinha que fazer.
Mulher entrevistada

Eu gosto das coisas limpas, mas eu não gosto de fazer limpeza,


sempre tive alguém para limpar minha casa, desde que eu era
criança. Hoje não tenho ninguém limpando minha casa, porque
meu marido não se sente bem em ter alguém fazendo as coisas
para ele, pois a mãe dele é empregada doméstica. Então é ele
quem faz as coisas em casa e eu faço comida porque amo cozi-
nhar, mas como não gosto de lavar louça, é ele que lava. As pes-
soas acham estranho ele fazer as coisas, mas eu não acho nada
demais ele lavar e passar minhas roupas. Eu não faço comida
para ele também?!
Lília da Silva
92

Nossa sociedade, de um modo geral, vê os ho-


mens de forma predominante como os provedo- Flávia Melo
res da família e mulheres como cuidadoras do
lar, porém como observamos em nossa pesquisa,
as mulheres além de realizarem tarefas domés-
ticas, são também as provedoras das famílias na
atualidade. De acordo com a “Síntese de Indica-
Mulheres referências
dores Sociais: uma análise das condições de vida
NO território, na luta
da população brasileira” (SIS 2015), no interva- por direitos
lo de um ano, 1,4 milhão de mulheres passou a
exercer a função de chefe de suas famílias no Perguntamos para as entrevistadas se tinham
país. A Constituição de 1988, em seu artigo 226, outras mulheres como referência na Rocinha e
afirma que os direitos e deveres referentes ao elas indicaram várias. Muitas ressaltaram que
casamento devem ser exercidos igualmente por as instituições que desenvolvem trabalhos so-
homens e mulheres e estes direitos devem ser ciais e educacionais na Rocinha são, na maioria,
compreendidos como direitos fundamentais. chefiadas por mulheres que lutaram e continu-
Por que as mulheres ainda têm que lutar tanto am lutando para que os moradores tenham seus
para que seus direitos sejam respeitados? direitos garantidos.

Na Rocinha temos várias mulheres que são referências. Para mim


é fácil dizer, pois o círculo que convivo é cercado dessas mulheres.
Posso citar por exemplo a Chica da Rocinha, que contribuiu e conti-
nua contribuindo para o desenvolvimento da comunidade. No dia a
dia temos muitas mulheres trabalhando em benefício da Rocinha,
muitos dos projetos desenvolvidos na comunidade hoje são coorde-
nados por mulheres.
Flávia Mello
93

Francisca Honorata da Nóbrega, a Chica da


Rocinha como é conhecida, veio morar na Ro-
cinha em 1968, com dois filhos e o marido, para
tentar a vida na cidade do Rio de Janeiro. A
partir dos anos 70 se engajou na luta pelas me-
mórias na Rocinha e não parou mais. Hoje sua
luta é pela a reabertura da Biblioteca Parque C4
da Rocinha, um equipamento cultural solicita-
do durante muitos anos pelos moradores e lide-
ranças culturais que foi inaugurado em 2012,
fechada em dezembro de 2016 e durante 2017.
A biblioteca é uma das poucas opções de espaços
culturais, um espaço fundamental para estimu-
lar a leitura e a arte. Também dispõe de sala de
computadores para realização de pesquisas e
cursos, salas de estudo, teatros para apresenta-
ções e ensaios de grupos locais e equipamentos
multimídias. É um bem dos moradores da Roci-
nha que não pode lhes ser negado.
Francisca Honorata da Nóbrega

Acho que a história da Rocinha foi construída por nós mulhe-


res, e poderia citar várias dessas como a Maria Helena, que foi
presidente da Associação de Moradores e que foi brutalmente
assassinada. A Maria do Socorro, que trabalhou muito pela
comunidade em várias áreas e depois foi trabalhar na saúde.
Arlete que não mora mais na Rocinha, mas trabalhou muito
pela Rocinha, principalmente na área da educação. As mulhe-
res foram assumindo novas posições na área social na Rocinha,
como a Suely na coordenação da ASPA e a Maria Helena na
luta pela saúde.
Gonçala Norberto
94

Durante nossa pesquisa identificamos 37 ins-


tituições/projetos, entre públicos e privados, que
desenvolvem atividades na Rocinha, e destes, 34
são coordenados por mulheres. Na Rocinha exis-
te uma predominância de mulheres que exercem
cargos de chefia nas instituições/projetos, escolas
e órgãos governamentais como diretorias de pos-
tos de saúde, escolas municipais e creches. Um
exemplo que podemos trazer e que exemplifica
esta realidade é Maria Helena Carneiro, enfer-
meira e diretora do Centro Municipal de Saúde
(CMS) Dr. Albert Sabin, desde 1993. Helena é uma
apaixonada pelo serviço público e pelo trabalho
que realiza na Rocinha. Ela é uma das muitas mu-
lheres moradoras da Rocinha em cargos de chefia
e que continua lutando para que os moradores
tenham acesso aos serviços públicos de qualidade.
A nossa próxima entrevistada traz como refe-
rência de mulher a sua mãe, e com as palavras
dela esperamos homenagear as demais mães
das entrevistadas. Durante as entrevistas, 16
mulheres falaram que suas mães são exemplos
de mulheres guerreiras e perseverantes e res-
saltaram que elas, apesar de terem passado por
momentos difíceis, foram exemplo de amor e
dedicação aos filhos e às famílias.

Várias mulheres são referências para mim na Rocinha, mas a


minha primeira referência é minha mãe, pois do jeito dela, sem-
pre lutou para mudar as coisas que considerava ruins e acho que
isso herdei dela. Ela foi uma mulher que não se acomodou com
o que a vida lhe impôs. Sempre foi a luta e tentava impulsionar
meu pai para querer mais e lutar para mudar nossa realidade.
Suely Figueiredo
95

A próxima entrevistada afirmou como refe-


rência feminina, Rita de Cassia Smith, uma mu-
lher resiliente que nasceu e foi criada na Roci-
nha e que não desiste de lutar pelos moradores
que sofrem com tuberculose. Rita, que sofreu
com essa doença, se tornou uma referência na
luta contra a tuberculose na Rocinha.
Rita de Cassia Smith

Ritinha para mim é um exemplo de mulher que luta para melho-


rar a vida dos moradores da Rocinha, pois ela sempre lutou pelas
pessoas que tem tuberculose. Nunca perdeu a oportunidade de
falar sobre a tuberculose, para que todos, inclusive o poder pú-
blico, vejam as dificuldades que os moradores passam para se
curar da doença.
Eliana P. de Araújo

Quando entrevistamos a Ritinha, ela disse saúde que atuam na Rocinha, tem um longo
acreditar que tem uma missão na vida: passar caminho a ser percorrido antes que a tuber-
para frente todo o conhecimento sobre a tu- culose seja eliminada da Rocinha. Apesar das
berculose que ela adquiriu. “Eu amo essa causa, inúmeras iniciativas, a Rocinha continua tendo
quantas e quantas pessoas nós conseguimos ti- o maior número de casos de tuberculose do es-
rar do fundo do poço”. Para ela a falta de infor- tado do Rio de Janeiro, com 300 pessoas com a
mação e esclarecimento sobre esta doença é o doença para cada 100 mil habitantes. O número
que dificulta o tratamento e mencionou ser este é superior a média de casos em todo o Brasil, que
o motivo pela qual sua mãe faleceu. gira em torno de 37,4 pessoas para cada 100 mil,
A luta da Ritinha e de todos os agentes de segundo dados do Ministério da Saúde.
96

A fala da Cléa destacou a Dona Eliza como


grande defensora da educação. No ano de 1978,
Dona Eliza abriu um barracão para atender
crianças e adultos do alto da Rocinha que não ti-
nham acesso às escolas públicas. Em 1988 se for-
mou professora para melhor atender os mora-
dores da Rocinha. Suas reivindicações tiveram
um papel importante no acesso de moradores da
Rocinha à universidade.

No dia da Cultura, em julho de 2010,


no CIEP Bento Rubião, durante o Chá de Museu,
D. Eliza falou sobre a educação como elemento
transformador da sociedade.

Temos muitas mulheres que são referências em trabalhar para os


moradores da Rocinha, mas para mim a mais importante é a dona
Eliza. Ela é uma mulher que sempre lutou pela educação, eu aprendi
com ela que a educação está acima de tudo. Ela conseguiu com que
muitos moradores da Rocinha, tivessem a oportunidade de fazer uma
faculdade, para ela não existe bandido e mocinho, o que importa é
todos terem direito à educação e para isso ela luta com muita garra
para que aqueles que queiram estudar tenham a oportunidade.
Clea da Silva Pinto (entrevista concedida uma semana antes do falecimento da dona Eliza)
97

MOmentos históricos
passados na Rocinha
Com o desejo de ouvir sobre as histórias que
entrelaçam as vidas das mulheres com a de seu
território, perguntamos sobre seus momentos
marcantes na Rocinha.
Maria Rosentina

Um dos momentos importantes para mim aqui na Rocinha foi o mo-


mento dos mutirões para limpar as valas dos quais eu tive a honra de
participar. Quando comecei a participar eu não imaginava que esta-
va ajudando a fazer a diferença, mas hoje eu vejo como foram impor-
tantes aqueles momentos. Era um período em que os moradores se
juntavam para lutar e melhorar a qualidade de vida da Rocinha.
Maria Rosentina

A fala da Maria Rosentina ressalta a impor- perguntou: “O que vocês acham que a gente tem
tância que foi para ela participar dos mutirões que fazer para melhorar a Rocinha, pra entrar
que ocorreram na Rocinha nas décadas de o Ano Novo com uma coisa nova?” (Segala, 1983
70/80. Ficaram marcados como momentos de p.114). Após várias ideias e todas achadas pelos
união e solidariedade entre os moradores. O pri- presentes difíceis de serem executadas, um mo-
meiro mutirão da foi criado numa festa de na- rador fez a proposta pela limpeza das valas. (Se-
tal na Igreja Católica. Durante a missa, o Padre gala, 1983, p.114)
98

Por meio desta pesquisa, identificamos outras • Mutirão de plantio do projeto de Olho no
frentes de atuação coletiva que mobilizam os Lixo15, realizado em 06 de junho deste ano.
moradores da Rocinha nos dias atuais: A iniciativa foi organizada pelos moradores,
Secretaria de Ambiente do Estado e ONG
• Mobilização dos moradores para reivindicar Viva Rio. O mutirão tinha como finalidade
a reabertura da Biblioteca Parque14, através sensibilizar, conscientizar e mobilizar os mo-
de abaixo assinado e mobilização nas ruas da radores da Rocinha sobre a importância da
Rocinha; preservação do meio ambiente.

• Mutirão de limpeza das encostas do sub-bair- Outro momento que marcou a memória re-
ro Laboriaux organizado pelos moradores; cente dos moradores da Rocinha, também des-
tacado na fala das entrevistadas foi a visita do
ex-presidente Lula:

Uma data inesquecível para mim foi a visita do presidente Lula à


Rocinha, no dia 07 de março de 2008, que ficou marcada para sem-
pre em minha memória. Eu tive a oportunidade de conversar com o
Lula sobre os problemas que tínhamos na Rocinha e na época falei
com ele que eu tinha um sonho que os moradores da Rocinha tives-
sem acesso a uma saúde digna, pois só tínhamos um posto de saúde
na Rocinha, que não conseguia atender a todos os moradores. Antes
a Rocinha já tinha recebido a visita do Fernando Collor, mas não me
marcou como marcou a visita do Lula.
Maria Edileusa

14 | Inaugurada em junho de 2012, fechada desde dezembro de 2016.


15 | De Olho no Lixo é um Projeto do Estado em parceria com a ONG Viva Rio e tem como meta desenvolver um
trabalho de manejo correto dos resíduos nas comunidades da Rocinha, Roquette-Pinto e Praia de Ramos.
99

Essa visita ocorreu com o objetivo de inaugu- Apesar das obras feitas, após quatro anos e
rar o início das obras do PAC 1. As obras foram meio e R$ 278,8 milhões do PAC serem gastos
iniciadas em 2008 e tinham como prazo de con- na Rocinha, ainda falta muito para ser feito em
clusão o ano de 2010, mas depois de diversos urbanização e saneamento básico, que se tor-
atrasos no cronograma e mudanças no projeto, nou, mais uma vez, uma bandeira de luta para os
foram interrompidas em dezembro de 2011, an- moradores, para que nas próximas intervenções
tes de finalizar partes previstas, como plano in- públicas seja esse o aspecto priorizado. Dados do
clinado, mercado popular, urbanização do Largo Censo 2010 apontam que quase 15% dos domicí-
dos Boiadeiros e do Valão, construção da creche lios da Rocinha não têm banheiro e isso equivale
(que só foi concluída depois de muitas reivindi- a 3.400 famílias. Este número pode ser muito su-
cações dos moradores). Apesar disso foram con- perior ao apontado pelo Censo, já que as lideran-
cluídas as obras de 144 apartamentos, Comple- ças da Rocinha projetam um número de mora-
xo Esportivo, abertura e construção da Rua 4, dores muito superior ao divulgados pelo mesmo.
construção do prédio da biblioteca Parque (C4), As lembranças de luta convivem com lem-
construção da passarela e a construção da UPA. branças de luto:

Eu não lembro o ano em que aconteceu, mas o que me marcou na


Rocinha foi o assassinato de três adolescentes aqui. Eu não os co-
nhecia, mas em homenagem a dor daquelas mães, eu me juntei a
passeata que os moradores organizaram pedindo paz pelos jovens
da Rocinha, que cada vez mais estavam sendo assassinados.
Marilene Martins

No dia 22 de fevereiro de 2004 (domingo), Os moradores protestaram contra a violência


por volta das 4h da manhã, três jovens mo- da ação e os pais dos jovens provaram que eles
radores da Rocinha de 13, 14 e 17 anos foram eram estudantes e não traficantes. Foram con-
mortos por policiais do Batalhão de Operações siderados criminosos por serem negros, pobres
Especiais (Bope) da PM, quando voltavam de e moradores de favela.
um baile funk. Segundo a polícia, eles seriam A ação que se fundamenta na narrativa de
traficantes e resistiram à prisão. Além dos três, combate à violência é também violadora. Na
um quarto jovem ficou gravemente ferido na memória de Maria da Paz, isso se representa
ação e não morreu porque os policias acharam pela ocupação das forças policiais em 2011.
que ele estava morto ao ser levado ao hospital.
100

Ao longo dos anos em que moro na Rocinha, já tive vários


momentos marcantes, mas um que nunca vou esquecer foi
quando o exército entrou na Rocinha, aquilo para mim foi
muito marcante, eu nunca vou esquecer a imagem de um
tanque do exército voltado para a Vila Verde. Eu achei aquilo
uma agressão muito grande.
Maria da Paz

Os moradores da Rocinha acordaram na ma- traficantes, em disputa pelo controle do comér-


drugada do dia 13 de novembro de 2011 (do- cio de drogas, que fez com que os moradores se
mingo), com uma Rocinha que parecia estar se tornassem prisioneiros em suas próprias mora-
preparando para iniciar uma grande guerra. dias durantes dias.
A ocupação do território pelas forças policiais
contou com cerca de 3 mil homens, 6 blinda-
dos da PM, 18 blindados da Marinha, 4 Heli-
cópteros da PM e 3 da Policia Civil. Durante
os dias consecutivos os moradores tiveram que
conviver com os armamentos pesados volta-
dos para suas casas e ruas da favela. Imaginem
o que é tentar viver o cotidiano em meio a uma
situação de guerra...
Sem que a violência fosse um tema induzido às
entrevistadas, esse aspecto é marcante em suas
memórias. Esse dado exprime a recorrência,
claro, mas também a magnitude desses eventos,
difíceis de serem apreendidos à distância. São
situações a que os moradores de áreas tratadas
como periféricas passam. Uma realidade que só
conhece quem vive e que dificilmente se traduz
na literatura dos jornais. Uma evidência disso é
a memória de Flávia Melo sobre a invasão de

Maria da Paz
101

Um momento muito marcante para mim ocorreu em abril de


2004. Era uma sexta-feira santa, quando um bando de traficantes
armados invadiu a Rocinha com o objetivo de tomar o controle
do tráfico de drogas daqui. Eu já tinha, infelizmente, presenciado
outros momentos de confrontos entre bandidos na Rocinha, mas
essa vez não foi um dia de confronto, este durou vários dias. As
pessoas ficaram presas em casa e tinham medo de sair. Me lem-
bro de nunca ter visto a Rocinha tão vazia como naquele período.
Me lembro de ter passado alguns dias na casa de amigos, fora da
Rocinha, por conta do medo que eu tive. Na noite que a invasão
aconteceu, nosso grupo de teatro havia acabado de fazer o último
ensaio geral da Via Sacra nas ruas da Rocinha, e foi só o tempo
de terminar o ensaio e entrar na instituição onde guardávamos
nossas roupas e o tiroteio começou. Naquele ano não houve a via
sacra, que por tradição, encenávamos todos os anos.
Flávia Melo

A Rocinha já havia passado por momentos as atrocidades cometidas pelos traficantes. Em


de muita violência, mas talvez pelo simbolismo apenas duas semanas, 12 pessoas foram mortas.
do dia, a sexta-feira santa deste ano ficou mar- Os problemas existem, portanto, e marcam a
cada na memória dos moradores para sempre, vida dos moradores. Eles impõem uma atitude
pois fomos surpreendidos pela invasão de trafi- permanente de luta pela transformação des-
cantes rivais aos que atuavam na Rocinha. Du- sas condições de violência que nos são igual-
rantes vários dias os moradores sofreram com mente impostas.
102

Um momento maravilhoso que vivi foi a oportunidade de ir para


Brasília representando as mulheres da Paz da Rocinha. Nesse dia
fiquei no meio de muitas mulheres formadas, mulheres que che-
gavam e debatiam, falavam muito bem. Com tantas mulheres
importantes ali eu me sentia a mais humilde, mas acho que tam-
bém me sentia a mais feliz de todas. Ser escolhida para ir para
Brasília representando a Rocinha me deixou muito orgulhosa e
com uma felicidade que não sei como explicar.
Glauce S. Gomes

O Projeto Mulheres da Paz fez parte do Pro-


grama Nacional de Segurança Pública com Durante os treinamentos e ao longo da atua-
Cidadania (Pronasci) destinado à prevenção, ção das mulheres no território da Rocinha, mui-
controle e repressão da criminalidade, atuando tas destas tiveram a oportunidade, assim como
em suas raízes socioculturais, além de articular a Glauce, de trocar experiência com mulheres
ações de segurança pública com políticas sociais de todo território nacional que, assim como ela,
por meio da integração entre União, estados e estavam trabalhando para melhorar a vida dos
municípios. Esse projeto tinha como objetivo ca- jovens de suas localidades.
pacitar mulheres moradoras para se aproximar O medo da remoção, um dos principais aspe-
de jovens em risco social para encaminhá-los tos da vida dos moradores do Horto Florestal e
aos programas sociais e educacionais oferecidos de várias áreas da cidade do Rio de Janeiro, a
pelo Pronasci. O grupo capacitado na Rocinha exemplo da história recente da Vila Autódromo
foi formado por 200 mulheres, através do curso (vide Museu das Remoções), também marcou
de Promotoras Legais Populares, que incluiu te- parte dos moradores da Rocinha e foi destacado
mas como direitos humanos, mediação de con- por Simone Rodrigues.
flitos e cidadania. E para realizar o trabalho, as
mulheres recebiam bolsa mensal de R$ 190.
103

O momento mais marcante que vivi aqui na Rocinha não faz mui-
to tempo e aconteceu aqui mesmo onde moro. Este local foi amea-
çado há 7 anos de remoção e a forma que a prefeitura queria fazer
mexeu muito com todos os moradores, principalmente pela forma
com que as casas eram marcadas para serem demolidas pela Se-
cretaria Municipal de Habitação, sem respeitar os moradores, pois
a única explicação que era dada, era que os moradores deveriam
sair por bem ou por mal de suas casas. Eu lembro que dois dos
nossos vizinhos enfartaram pouco tempo depois desta atrocidade
cometida pela prefeitura. Neste período saíram daqui 130 famílias,
que foram colocadas em locais distantes da Rocinha.
Simone Rodrigues

Simone Rodrigues
Em abril de 2010, uma chuva torrencial cas-
tigou a cidade do Rio de Janeiro provocando,
assim como em outras áreas da cidade, desliza-
mentos de terra na Rocinha, provocando a mor-
te de dois moradores no sub-bairro Laboriaux.
Por conta das mortes e a repercussão do caso na
imprensa, o prefeito da cidade decretou a inter-
dição de quase toda área, incluindo a Escola Mu-
nicipal Abelardo Chacrinha Barbosa. Mobiliza-
dos, os moradores organizaram uma comissão, Durante um longo período estes moradores
com apoio da Pastoral de Favelas e de grupos conviveram com o medo da remoção, e vários
sociais como o “Rocinha Sem Fronteiras” e De- deles foram removidos de suas casas e tiveram
fensoria Pública, para reivindicar seus direitos seus imóveis demolidos. Após muita luta conse-
de continuar em suas moradias. Os moradores guiram a reabertura da escola. A prefeitura rea-
receberam estudos técnicos realizados por espe- lizou obras de contenção em um dos lados do La-
cialistas, que diziam que não eram todas as mo- boriaux, (o lado que fica para o bairro da Gávea),
radias que estavam em área de risco, portanto, porém o lado voltado para a Rocinha continua
bastaria realizar obras de contenção das encos- sem receber as obras de contenção das encostas
tas para que continuassem na localidade. e essa hoje é uma das bandeiras dos moradores.
104

Por meio desta pesquisa ficou evidente a re-


lação direta entre a leitura da realidade que as
mulheres fazem e como os aspectos críticos que
elas observam se transformaram em frentes de
lutas em suas histórias de vida na Rocinha. O
seu desejo, seu sonho por um porvir transfor-
mado está refletido nas frentes que encampa-
ram e nas lutas que permanecem no presente.
Fica registrada assim, a perspectiva de futuro de
algumas das mulheres entrevistadas. Eliana Pereira

Eu espero que a Rocinha esteja em uma situação melhor da que


temos hoje. Eu espero que os moradores se conscientizem de que
tem que lutar por seus direitos. Hoje eu vejo uma Rocinha largada.
Porém largada entre aspas, pois a Rocinha nunca foi completa-
mente largada, os políticos sempre a usaram como curral eleitoral,
então na época da política vêm aqui, prometem a troco de fazer
alguma coisa e após eleitos nada fazem e os que os apoiam, aca-
bam se contentando com favores pessoais. Eu espero que no futuro
as pessoas não vendam seus votos em troca de cestas básicas e
favores pessoais. Gostaria que a luta por saneamento básico seja
uma conquista e não caia no esquecimento como caiu hoje, pois
recentemente fomos às ruas lutar pelo saneamento básico e contra
a construção do teleférico e de repente o movimento esfriou e não
se fala e faz mais nada.
Eliana Pereira
105

Sabe, o que eu mais gostaria de ver na Rocinha, era que


os moradores se conscientizassem sobre a questão do
lixo. Que todos vissem a importância de não jogar o lixo
em qualquer local. Desejo também que tenhamos repre-
sentação, cujo objetivo seja montar uma equipe que veja
os problemas da Rocinha.
Suely Figueiredo de Souza

Eu espero que consigamos um dia acabar com o lixo


nas ruas e becos da Rocinha. Sei que este meu sonho é
muito difícil de alcançar, pois infelizmente estamos fa-
lando de mudar uma cultura que está posta e é muito
difícil desconstruir, onde é comum ver as pessoas joga-
rem lixo nas ruas... Eu desejo que as pessoas se cons-
cientizassem sobre a questão do lixo, que os moradores
não jogassem lixo em locais inadequados, pois isso traz
diversas doenças aos moradores.
Maria Rosentina

Eu confesso que estou muito preocupada com o futuro


da Rocinha, pois estamos vivendo momentos difíceis, e
infelizmente a tendência é piorar. Veja, por exemplo, a
questão da segurança pública, aquela falsa ilusão de se-
gurança já não temos mais. Estamos voltando a viver em
um clima de violência e o poder público está cada vez
mais ausente. O que eu desejo para o futuro da Rocinha
é que tenhamos paz e que o poder público não olhe para
os moradores que aqui vivem só na época de eleições.
Marilene Martins
106

Se eu tivesse a possibilidade, colaboraria com projetos sociais, com


um olhar mais profundo para realidade local dos jovens moradores
da Rocinha. Que este não fosse um projeto de maquiagem. Eu acho
que os projetos hoje na Rocinha não estão voltados para a realidade
local. Muitos projetos começam, mas não são fiscalizados e por este
motivo acabam se desviando de suas finalidades.
Magnalda Rodrigues

Eu espero que no futuro as pessoas não vejam os moradores da


Rocinha como se todos fossem coniventes com o tráfico de drogas,
pois sei que é isso que muitos pensam. Espero que no futuro seja vis-
to que muitos dos moradores, mesmo remando contra a corrente,
foram à luta, estudaram e construíram uma carreira acadêmica.
Espero que no futuro o poder público seja mais atuante na Rocinha,
que possibilite aos moradores acesso a cursos técnicos voltados
para os jovens e que os moradores da Rocinha não sejam vistos
como parte do poder paralelo existente na favela, que possamos
viver harmoniosamente cultivando uma cultura de paz.
Aline Alves

Eu tenho esperança, pois gosto de ser uma pessoa esperançosa


e otimista. Eu acredito muito na capacidade do ser humano de
lutar para melhorar suas vidas. Espero que o saneamento básico
seja uma realidade para os moradores da Rocinha neste tempo.
Eu faço parte de um grupo que vem lutando para que isso seja
uma realidade um dia.
Simone A. S. Rodrigues
107

Eu desejo encontrar uma Rocinha mais limpa, pois o lixo é uma


coisa muito forte aqui na Rocinha, e é um grande problema que
está cada vez mais presente na comunidade. Vejo que o poder
público não investe em programas que ajudem a resolver esta
questão. Veja, você hoje caminha desde a passarela que dá aces-
so à Rocinha e em todas as ruas e becos e não encontra nenhuma
lixeira. Não estou com isso justificando que os moradores devam
jogar o lixo na rua, mas acredito que se houver programas educa-
tivos, vamos conseguir modificar esta triste realidade. Você anda
em Ipanema e a cada 10 metros existe uma lixeira, e mesmo as-
sim ainda teve que ser criado uma punição maior para que as
pessoas não jogassem lixo na rua. Aí você imagina em uma favela
como a Rocinha, que nem coletores de lixo existem. Mas eu tenho
esperança e gosto de citar uma cena que presenciei há muitos
anos quando minha creche era no acesso da Rocinha. Um dia eu
estava na janela da creche e vi um senhor com um cachorro pas-
seando e quando o cachorro fez cocô ele abaixou-se e limpou a
sujeira. Olhei a cena e disse: “Vamos em frente que a Rocinha tem
jeito sim, há esperança sim”.
Lília S. Lima

Durante as entrevistas aproximamos um pou- de segurança, saúde, educação, habitação com


co da realidade vivida por mulheres no territó- mobilização popular. Foram ações que contri-
rio da Rocinha, através de suas falas. Mulheres buíram para melhorar a questão de falta d’água,
que agem para transformar a sua vida e princi- creche e o empoderamento feminino. O que nos
palmente a dos outros. Nas falas dessas mulhe- faz acreditar que a cidadania, como a garantia
res se percebe a ideia de sujeitos políticos, pre- dos direitos, só é alcançada com a participação/
ocupadas na efetivação e garantia dos direitos, luta diária de Marias, Elizabethes, Flávias, Hele-
que enfrentam situações adversas como falta nas, Franciscas, Tânias, Micheles. Cristinas...
108

Roda de memória na Rocinha, com


a condução de Cleonice Lopes, par-
ticipação de Kinda Firmino, Maria
Izabel de Carvalho e Michelle Maria
da Silva. Foto de Inês Gouveia
109

Referências

LEITÃO,J. Dos Barracos de Madeira aos Prédios DAVIS, A. MULHERES, RAÇA E CLASSE. Editora
de Quitinetes: Uma análise do Processo de Produ- Boitempo. São Paulo, 2016
ção de Moradia na favela da Rocinha, ao longo de
cinquenta anos. Tese de doutorado, UFRJ, Rio de MEDEIROS,L. EM BRIGA DE MARIDO E MU-
Janeiro, 2004. LHER, O ESTADO DEVE METER A COLHER:
Políticas Públicas de enfrentamento à violência
UNIÃO PRÓ-MELHORAMENTO DOS MORA- doméstica. Editora PUC-RIO: São Paulo, 2016.
DORES DA ROCINHA. Varal de Lembranças: his-
tórias da Rocinha. Tempo e presença: SEC; MEC;
FNDE. Rio de Janeiro, 1983.

KONGA, D. Medidas de Cidades: Entre territórios


de vida e territórios vividos. Editora Cortez. São
Paulo,2011.
110
111

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o sumário

Carolina Câmara Pires

A participação
das Mulheres na
Construção do Horto
Horto. Como dito inicialmente, este território feminina desta comunidade, é preciso que eu
é guardião de uma história ancestral, cujo de- me apresente a você, para que compreenda o
senvolvimento foi possível graças à resistência meu olhar neste processo de escrita.
de um povo que chegou ao Brasil escravizado, Meu nome é Carolina Câmara Pires, sou mu-
vindo de vários países da África, e que, ao longo lher negra e militante do processo de luta para
dos anos, se constituiu graças à bravura das mu- a efetivação de direitos e emancipação do povo
lheres e homens que sobreviveram aos horrores negro no Brasil e na diáspora. Sou carioca, te-
da escravidão e contribuíram com seus saberes, nho 33 anos e sou filha e neta de mulheres e
suas heranças culturais. Não há como falar do homens negros nascidos na Bahia e no Espírito
Horto sem lembrar os engenhos que ocuparam Santo. Fui bolsista integral pelo Programa Uni-
essas terras, no período colonial, e a mão de obra versidade para Todos (PROUNI) na Pontifícia
escravizada que a desenvolveu. Desse modo, a Universidade Católica do Rio de Janeiro, onde
ancestralidade de origem africana evoca, ainda me graduei em Direito no ano de 2013. Poste-
hoje, uma resistência que passa necessariamen- riormente, fui aprovada no Programa de Pós-
te por questões de gênero e raça e assim com- -Graduação em Sociologia e Direito da Univer-
põem a complexa história de construção deste sidade Federal Fluminense, em 2015, e concluí
território. Antes de mergulharmos na vivência o mestrado defendendo a dissertação “Elekô –
112

Mulheres Negras na Luta por Direito à Moradia por instituições públicas e privadas. Ao lembrar
na Cidade do Rio de Janeiro”, em 30 de maio de dessa cena, penso agora que ela representa a
2017, cujo estudo de caso para a concepção do síntese das diversas mulheres moradoras do
trabalho foi a Comunidade do Horto. Horto que, com muito esforço, guardam e cons-
Desde o ano de 2010 investigo as discrimina- troem seu território. Esse foi o meu primeiro
ções de raça e gênero, dentre outras, presentes contato com o Horto e eu sequer poderia ima-
no contexto das remoções das favelas na cidade ginar a riqueza de histórias e trajetórias que eu
do Rio de Janeiro, com o objetivo de denunciar encontraria por lá.
tal política como excludente, discriminatória, Ao terminar a graduação, ingressei no ano de
racista. A grande maioria dos trabalhos acadê- 2014 no Projeto de Extensão “Direitos em Mo-
micos acerca das remoções das favelas abrange vimento – Territórios e Comunidades”, coorde-
apenas um tipo de discriminação: classe. Por- nado pelos professores Adriano Pilatti, Adriana
tanto, insisto nesta investigação para desmasca- Geisler e Mariana Trotta e que agregou uma
rar a política racista anti-negros engendrada no equipe excelente formada tanto por ex-estagiá-
processo remocionista. rios do NUTH, como por alunos da graduação
E foi neste contexto que conheci a Comunida- e pós-graduação em Direito da PUC-Rio. No
de do Horto. Escrevo comunidade porque esta decorrer do projeto, a AMAHOR solicitou as-
é a maneira que a maioria de seus moradores sessoria jurídica e, foi nesse momento que me
reconhece este território. Conheci a história do aproximei mais do Horto e descobri alguns as-
Horto quando ainda era estagiária do Núcleo pectos discriminatórios dissimulados na política
de Terras e Habitação da Defensoria Pública do remocionista.
Estado do Rio de Janeiro (NUTH-DPGE) através Naquele ano acompanhei algumas reuniões
das reuniões do antigo Conselho Popular, cujo das assembleias comunitárias e protestos nas
objetivo era reunir pessoas de várias favelas e ruas e percebi que a maioria do público que
ocupações da cidade do Rio de Janeiro a fim de comparecia era feminino. Essa observação me
pensar estratégias e de acesso ao solo urbano e instigou bastante e eu quis cada vez mais desco-
efetivação do direito à moradia. Em uma dessas brir as nuances daquele conflito fundiário. As-
reuniões, tive a oportunidade de presenciar a sim, ao ingressar no mestrado, decidi que o es-
fala contundente de uma mulher negra e altiva tudo de caso da minha pesquisa seria o conflito
que exteriorizava com firmeza a situação da sua existente no território, deflagrando as questões
comunidade. Ao fim daquele encontro fui con- de raça e gênero. A minha escolha se pautou na
versar com ela e descobri que era a Srª. Emília urgência de denúncia das violações de direitos
de Souza, presidente da Associação de Morado- e a iminência da remoção total da comunidade.
res do Horto – AMAHOR. A Emília surgiu como Durante o último ano da pesquisa, 2016, recebi
uma mulher que defende sua comunidade, des- o convite, por meio da AMAHOR, para partici-
mascarando as violações de direitos impostas par desta pesquisa “A Participação das Mulheres
113

na Construção do Território”, realizada por meio lias e suas próprias vidas, o que tem sido histo-
de uma parceria entre a Rede de Museologia So- ricamente vital para a formação, manutenção
cial, o Museu Sankofa e o Museu do Horto. Por e permanência dos moradores na localidade. O
sinal, um convite que me deixou muito alegre. protagonismo feminino fica evidente: zelam por
Não apenas pela oportunidade de fazer parte de si mesmas, pela família, ambiente doméstico e
uma pesquisa muito interessante, que seguiria estendem esse labor para o ambiente público
em uma linha muito próxima ao que estava de- que as cerca. Considero que as mulheres assu-
senvolvendo para a dissertação, mas também mem essa postura central porque a sua relação
pela confiança da comunidade na seriedade do com o ambiente doméstico e comunitário, ain-
meu trabalho. da que trabalhem fora de casa, é mais forte à
Assim, mergulhei mais uma vez em histórias, masculina, até mesmo pela própria construção
memórias e trajetórias das mulheres do Horto e social sobre o papel feminino. Essa relação ou li-
é a partir dessa caminhada que escrevo as linhas gação com a família e o território as impulsiona
que se seguem. Devo dizer ainda que embora a a gerir tais espaços.
política de remoção apareça como pano de fun- Em termos da pesquisa, por meio de um ro-
do dessas trajetórias, nosso objetivo aqui é evi- teiro semiestruturado e com base nos métodos
denciar o protagonismo feminino, partindo do de investigação da pesquisa ativista foram en-
empoderamento político, das estratégias criadas trevistadas, no total, 24 mulheres pertencen-
pelas mulheres para resistir e da maneira como tes às famílias mais antigas e engajadas com a
elas conduzem a construção do território. resistência contra as remoções. A metodologia
Para ilustrar o impacto da participação femi- adotada foi a realização de entrevistas individu-
nina na Comunidade do Horto, selecionamos ais e duas rodas de memória para o registro co-
mulheres de regiões distintas da referida locali- letivo. O primeiro método possibilitou adentrar
dade para realizar as entrevistas, considerando de forma mais intensa o universo de cada en-
que o território está subdividido em onze áreas. trevistada, enquanto as rodas de memória des-
Como já havia realizado uma imersão, seja por pertaram lembranças outrora adormecidas e à
meio de leituras ou por meio do exercício em medida que uma das entrevistadas se lembrava
campo para a escrita da dissertação, a continui- de algo, despertava em sua companheira outras
dade das entrevistas aconteceu de maneira mais lembranças. Nesse contexto, entrevistei quinze
intensa, profunda. mulheres individualmente, somadas às nove
Foi por meio dessa nova imersão proporcio- que participaram das duas rodas de memória.
nada pela pesquisa, que compreendi que mesmo Antes de adentrar as narrativas das mulhe-
considerando a importância e presença mascu- res do Horto, é preciso dizer que a pesquisa, cujo
lina no processo de construção do Horto, as mu- produto final se concretizou na elaboração des-
lheres ocupam um papel central ao liderarem e te livro, foi idealizada e realizada por mulheres
administrarem a comunidade, a casa, as famí- de personalidade forte, comprometidas e solidá-
114

rias. Oito mulheres participaram dessa produção: classe, sexualidade, localização geográfica, ida-
Inês Gouveia, como coordenadora, eu e Cleonice de, dentre outros, aprofundam o processo dis-
Lopes, como pesquisadoras, Bruna Ribeiro, Na- criminatório, que por sua vez, dificultará o aces-
taly Alves e Kinda Firmino como assistentes de so a direitos legalmente garantidos.
pesquisa, Bruna Caldas, revisora e Luzia Duar- Uma das leituras sugeridas para a confecção
te, como contadora geral de execução do projeto. desta pesquisa foi o livro “Mulheres, Raça e
Nossos colegas Antônio Carlos Firmino, Emerson Classe”, da filósofa e ativista do Movimento Ne-
de Souza e Thiago Venturotti (respectivamente gro, Angela Davis. Nesta obra, a autora demons-
representantes do Museu Sankofa, do Museu do tra o racismo presente no feminismo universal,
Horto e designer gráfico do projeto), também co- assim como aponta o sexismo na luta contra o
laboraram neste processo. Por suas vivências e racismo e a dominação contínua por meio do ca-
militâncias, auxiliaram a indicação de mulheres pitalismo. Davis aponta a importância de conju-
entrevistadas e quanto a representação narrati- gar feminismo, antirracismo e a luta de classes
va que envolve a pesquisa e o livro. para pensar novas estratégias de ação e garantir
As histórias de vida que serão narradas estão a efetivação de direitos, sobretudo das mulheres
conectadas com o processo de construção deste negras. Segundo Davis, dada a complexidade do
território, sua manutenção e permanência. Dian- contexto social, é impossível tratar as experiên-
te do que ouvi e vivenciei, meu papel aqui será de cias discriminatórias e violências de maneira
ampliar vozes e memórias das mulheres do Horto. isolada, pois tal análise estaria fadada ao fracas-
so (2016, p.202).
Ser mulher no Horto E é nesse ponto que aproximo o pensamento
desta filósofa à realidade das mulheres morado-
Ao entrevistar as mulheres do Horto foi pos- ras do Horto. As reflexões trazidas por este livro
sível perceber a complexidade de perfis, identi- são imprescindíveis para compreender que a in-
dades, profissões, estágios de educação formal, segurança, gerada pelo Estado, quanto a perma-
experiências com violências etc. Todas essas nência das famílias no local surge por meio do
diferenças influenciam a forma de construir e modus operandi capitalista, o qual se sustenta e
vivenciar o “ser mulher”. A experiência das mu- apoia nas discriminações pautadas pelo racismo
lheres em geral, dada a estrutura patriarcal na e sexismo. Além disso, afeta suas subjetividades,
qual foi constituída a sociedade, pode trazer a seja através da opressão ou da ressignificação
percepção de que a discriminação contra a mu- trazida pelo movimento de resistência.
lher ocorre de maneira universalizada. No en- A seguir, apresento as mulheres participantes
tanto, apesar das similaridades, o processo de da pesquisa. Os trechos de suas narrativas que
constituição da mulher sofre alteração à medi- aparecem a seguir são transcrições literais das
da que as diferenças se inter-relacionam. Desse entrevistas realizadas, por isso resguardam o
modo, marcadores sociais como raça, gênero, tom e o nexo da narrativa oral.
115

ENTREVISTAS
INDIViduais

Maria dos Anjos Martins: Nascida no Horto e pertencente a uma das famí-
lias mais antigas, Maria dos Anjos tem 52 anos, é evangélica, se reconhece como
mulher negra e mora com sua família que é composta majoritariamente por mu-
lheres. Estudou até o quinto ano do Ensino Fundamental e até o momento da
entrevista estava impossibilitada de trabalhar por questões de saúde.

Neuza Maria Carcerere: Filha de um casal interracial, sua mãe é negra e seu
pai era branco, de origem italiana, Dona Neuza nasceu no Horto e entende-se
como mulher negra. Ela professa como religião o espiritismo, de orientação karde-
cista. Completou o Ensino Fundamental e Médio, graduou-se em Administração
e vive com a mãe e sua filha no mesmo terreno onde seu pai iniciou a construção
da casa nos idos de 1940.
116

ENTREVISTAS INDiVIduais

Regina Antônia Tavares dos Santos: Residente e nascida no Horto, Dona


Regina tem 66 anos, é casada, estudou até o Ensino Médio, mas não concluiu. Ela
trabalha em casa vendendo quentinhas e assim mantém economicamente a sua
família. Dona Regina se reconhece como negra, diz que tem orgulho por isso e se
identifica com as religiões de matriz africana. Seu pai trabalhou como jardineiro
no Jardim Botânico do Rio de Janeiro (JBRJ) e depois foi guarda florestal pelo
IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Reno-
váveis). Em sua casa residem nove mulheres e cinco homens, entre filhos, netos,
companheiro e parentes.

Emília Maria de Souza: Liderança da comunidade, Emília tem 65 anos, foi presi-
dente da Associação de Moradores do Horto (AMAHOR) e no ano passado foi eleita
como vice-presidente. Ela se considera negra, chegou ao Horto com a sua família
aos três anos de idade e desde então nunca mais saiu da localidade. Emília é viúva,
segue a umbanda como religião e estudou até o ensino médio técnico. Emília vive
com sua filha e netas na mesma casa onde seus pais viveram por décadas.

Edna Maria de Souza: Irmã da Emília de Souza, Edna tem 63 anos e chegou
ao Horto com apenas um ano de idade. Ela é graduada em Serviço Social, vive em
regime de união estável (atualmente, seu marido trabalha em Luanda, Angola)
e também é umbandista. Seu pai trabalhou na América Fabril e posteriormente
passou a ser funcionário do Jardim Botânico, e, por esse motivo, a família se mu-
dou para o Horto. Edna mora com os dois filhos e um deles, o Emerson, é o atual
presidente da AMAHOR.
117

ENTREVISTAS INDiVIduais

Vera Lúcia Fernandes da Silva: Mãe de quatro filhos, viúva, Dona Vera tem
70 anos, nasceu no Hospital Miguel Couto e sempre viveu na comunidade. Seu pai
trabalhou no Jardim Botânico como pintor de letra e se mudou para o Horto aos 18
anos. Sua mãe faleceu quando tinha apenas 10 anos de idade e, por ser a filha mais
velha, Dona Vera ajudou o pai a cuidar da casa e criar seus seis irmãos. Por todo esse
contexto, ela estudou apenas até a oitava série e começou a trabalhar muito cedo,
além de não vivenciar a infância e adolescência de maneira plena. Trabalhou como
auxiliar de serviços gerais no SERPRO e no IMPA e se aposentou por causa de um
acidente de trabalho. Dona Vera mora no Horto com quatro netos.

Rosane Augusto Caetano: Rosane tem 52 anos, nasceu no Hospital Miguel


Couto e desde então vive no Horto. Ela relatou sua experiência com o racismo du-
rante a infância na escola onde estudava. Graduada em Pedagogia, nunca exerceu
a função e trabalha como auxiliar administrativo na ABBR. Rosane é separada e
mora com o filho de 20 anos de idade e seu cachorro.

Maria da Penha Marcelino Dias da Cruz: Filha de um funcionário do Jar-


dim Botânico do Rio de Janeiro (JBRJ), Dona Maria da Penha nasceu no Hospital
Miguel Couto e morou nos seus primeiros anos de vida na Pedra da Gávea. Não
se lembra exatamente quando se mudou para o Horto, mas sabe que foi durante a
infância. Dona Penha é viúva, tem 74 anos, se identifica racialmente como negra
e mora com a sua irmã, o filho e a nora na região do Caxinguelê.

Margarida Maria das Graças Marques: Conhecida no Horto como Gal,


Dona Margarida tem 64 anos, nasceu em Fortaleza, veio morar no Rio aos 18 anos
e chegou à comunidade aos 30 anos. Hoje aposentada, ela me contou que traba-
lhou a vida inteira, constituiu família, teve dois filhos, com quem vive na comuni-
dade e não pôde concluir a faculdade de enfermagem, em razão dos cuidados que
o seu filho mais novo necessita.
118

ENTREVISTAS INDiVIduais

Nélia Maria Vasconcelos: Nascida em São Luís do Maranhão, Nelia veio


para o Rio aos 17 anos, morar com a sua mãe em Copacabana. Ela chegou ao Horto
ao constituir família com um morador, filho de um agente florestal do Jardim Bo-
tânico. Nélia se graduou em Administração de Empresas pela Bennett, trabalhou
na PUC-Rio desde os 20 anos e se aposentou recentemente. Atualmente se dedica
às atividades e organização da Comissão de Moradores do Horto, outro grupo de
resistência formado na comunidade.

Neuza Martins da Silva: Dona Neuza tem 79 anos, nasceu no Horto e seu pai
era funcionário do Jardim Botânico, assim como seu marido. Ela é branca, viúva,
mãe de quatro filhos. Dentre eles um tem necessidades especiais, uma é adotiva
e o filho mais velho é falecido. Seu avô materno já morava na região e trabalhava
como feitor. Ela estudou até a quinta série, começou a trabalhar aos 14 anos de
carteira assinada como embaladora em um laboratório e foi aposentada por inva-
lidez devido a uma cardiopatia. Dona Neuza coleciona recortes de jornal sobre as
ameaças de remoção e luta para permanecer em sua comunidade.

Maria Aparecida Alves da Fonseca: Dona Maria Aparecida tem 77 anos,


é negra e nasceu na cidade de Santos Dumont, no interior de Minas Gerais. Seus
pais adoeceram e antes de falecer entregaram-na para uma família que vivia em
uma roça. Ela trabalhou alguns anos com eles e quando tinha em torno de 13 anos,
sua irmã, já casada, foi buscá-la e a trouxe para o Rio de Janeiro. A irmã e o cunha-
do, o qual foi seu tutor, já residiam no Horto. Ela trabalhou muito como emprega-
da doméstica e por isso não teve condições de estudar. Dona Maria Aparecida se
casou com um morador do Horto e constituiu família, teve duas filhas. Seu marido
trabalhava em uma padaria e ela lavava e passava roupas sob encomenda. E algo
que me contou com muito orgulho é que suas filhas puderam estudar, foram à
faculdade e hoje são professoras. Dona Maria Aparecida vive no Horto com a sua
filha mais velha e a neta adolescente.
119

ENTREVISTAS INDiVIduais

Sheila Guimarães Vieira: Sheila tem 62 anos, é negra e nasceu em sua casa
no Horto, pelas mãos de uma parteira. Seu avô era funcionário do Parque Jardim
Botânico e sua mãe tinha em torno de nove anos quando a família se mudou para
a localidade. Ela começou a estudar aos seis anos, mas, não pôde completar os es-
tudos em razão da gravidez na adolescência. Ela engravidou pela primeira vez aos
15 anos, mas o bebê não resistiu e faleceu. Aos 17 anos engravidou novamente,
se casou e a situação econômica era muito difícil. Alguns anos depois, Sheila se
divorciou do seu primeiro marido e conheceu seu atual companheiro com quem
vive em união estável há trinta e seis anos. Ela me contou que começou a traba-
lhar formalmente aos 27 anos, no IMPA e atualmente trabalha como copeira no
SERPRO. Sheila é mãe, avó e bisavó e diz não se imaginar vivendo fora do Horto e
que só em pensar nisso tem sensação de pânico.

Maria Teresa de Souza: Dona Maria Teresa é branca, tem 72 anos, e nasceu
no Horto. Sua mãe lavava roupas sob encomenda e seu pai era guarda florestal. Ela
mora sozinha na casa onde morou com seus pais e seus dois irmãos. Ela começou
a estudar aos sete anos e teve que interromper os estudos por causa do trabalho
durante a adolescência. Cursou até o segundo ano do Ensino Médio e muitos anos
depois, retomou os estudos e concluiu o Ensino Médio Técnico em Administração
de Empresas. Começou a namorar aos dezesseis, casou aos dezessete, foi morar no
bairro de Santa Teresa e teve um casal de filhos. Divorciou-se do marido, porque ele
se tornou alcoólatra e assim retornou com seus filhos para a casa dos pais. Criou os
filhos sozinha e enfrentou preconceito por ser divorciada.
120

ENTREVISTAS INDiVIduais

Shamyra da Silva Ferreira: Shamyra tem 32 anos, é negra, solteira, mãe de


um menino e uma menina. Apesar dos seus pais morarem no Horto há muitos
anos, Shamyra nasceu em Duque de Caxias porque sua mãe estava na região visi-
tando a família. Seu avô era funcionário do Jardim Botânico e ela mora na mesma
casa construída por ele e que está localizada dentro do JBRJ. Shamyra começou a
estudar formalmente aos três anos de idade, completou o ensino médio e chegou a
frequentar a faculdade, estudando por dois semestres, mas teve que interromper
por causa da primeira gravidez. Ela foi mãe pela segunda vez no ano passado e
hoje divide seu tempo entre o cuidado com os filhos, o trabalho em um ateliê de
artes em Santa Teresa, as tarefas domésticas e a retomada aos estudos. Em 2015,
ela fez a prova do ENEM e no ano seguinte iniciou a graduação em Biologia na
Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Rodas de mEMória
RODA 1 | ASSOCIAÇÃO DE MORADORES

Janaína de Souza Gama: Janaína nasceu e se criou no Horto. Filha da Emília


de Souza, ela tem 43 anos, é negra, mãe de duas meninas, estudou até o Ensino
Médio e sempre trabalhou como auxiliar administrativo, mas atualmente traba-
lha em um bistrô de uma loja de bicicletas, localizada no bairro do Jardim Botâ-
nico. Ela relata que a sua infância foi muito divertida, em contato direto com a
natureza e que brincava muito com seus primos no quintal e pelas redondezas.
Janaína lembra de seus avós com muito carinho, contando o quanto eram pessoas
acolhedoras e o quanto sua avó foi um exemplo de mulher batalhadora.
121

Rodas de mEMória
RODA 1 | ASSOCIAÇÃO DE MORADORES

Daniele de Oliveira Alves: Dani sempre viveu no Horto, desde o seu nas-
cimento. Ela tem 34 anos, é casada, mãe de dois filhos e herdou da tia-avó Antô-
nia o gosto pela organização das festas comunitárias. Seu pai morava em Rocha
Miranda quando criança e foi morar com a tia no Horto porque a sua mãe tinha
muitos filhos e não tinha condição de criá-lo. Assim ele cresceu na região e, pos-
teriormente, constituiu família, vivendo em uma parte da casa cedida por sua tia.
De maneira similar, Dani nasceu, cresceu e formou sua família e construiu sua
casa no mesmo terreno onde sua tia-avó morava. Daniele estudou até o Ensino
Médio Técnico na área de Informática, nunca exerceu a profissão e fez um curso
profissionalizante de cabeleireira no SENAC (Serviço Nacional de Aprendizagem
Comercial) e trabalha na própria residência.

Bernardete Costa de Souza: Beta, como é chamada carinhosamente pelos


moradores do Horto, tem 51 anos e também nasceu no Horto. Seu pai foi funcio-
nário do Ministério da Agricultura, trabalhando no JBRJ e construiu sua casa na
região do Solar da Imperatriz. Bernardete conta que teve uma infância saudável,
em contato com a natureza, brincando com seus amigos pelos espaços da comu-
nidade. Ela terminou o Ensino Médio e se graduou em Português-Inglês e Lite-
ratura. Também foi secretária da AMAHOR por dois mandatos, mas teve que se
afastar porque sua mãe adoeceu e precisou de cuidados especiais.

Leontina Melo da Silva Ferreira: Leontina é conhecida no Horto como


Tina, tem 59 anos, é casada, mãe de três filhos (dentre eles a Shamyra também
participante da entrevista), avó de dois netos, e se mudou para o Horto em 1984,
quando tinha 26 anos, ao se casar com um morador nascido e criado na região.
Tina trabalha atualmente como cuidadora de idosos, mas já trabalhou como em-
pregada doméstica e auxiliar de serviços gerais em um bar, no qual chegou a fun-
ção de gerente. Sua casa está na iminência de ser removida por estar localizada
dentro do JBRJ, mas ela e a sua família seguem resistindo às ameaças de remoção.
122

Rodas de mEMória

RODA 2 | BALANÇA (CONJ. HABIT. DONA CASTORINA)

Ana Cristina Macieira Santos: A Cristina tem 54 anos, nasceu na Pacheco


Leão e foi morar no Balança quando tinha 3 anos de idade, quando sua avó adqui-
riu o apartamento no segundo andar e trouxe o seu pai para morar no terceiro an-
dar com a família. Ela conta que a sua infância foi muito divertida, principalmente
por causa dos eventos realizados pelos moradores do Balança. Cristina completou
o Ensino Médio, fez a graduação em Ciências Contábeis e trabalhou na área de
contabilidade por 10 anos, mas hoje trabalha como representante de vendas.

Maria Lúcia de Oliveira: Dona Maria Lúcia tem 70 anos e se mudou para
o Balança quando tinha apenas 4 anos de idade. Ela parou de estudar por volta
dos 16 anos e começou a trabalhar como prensista em uma lavanderia chamada
Toalheiro Brasil. Dona Maria Lúcia é secretária do ambulatório de ortopedia do
Hospital Miguel Couto há mais de 40 anos e diz que sempre está disposta a ajudar
seus vizinhos e refere-se a si mesma como o S.O.S do Balança.

Tereza Cristina Francisca dos Santos: Tereza Cristina é carinhosamente


chamada de Tetê pelos moradores do Balança. Sua família foi morar no conjun-
to habitacional devido a remoção da Praia do Pinto. Tetê tem 61 anos e contou
que brincou muito durante a sua infância e no período da adolescência namorou
bastante. Ela contou que estudou apenas até a 5ª série, pois não gostava muito de
estudar e que os pais providenciaram tudo o que precisava. Tetê começou a tra-
balhar aos 18 anos e em 1982 passou a atuar como inspetora de alunos na Escola
Joaquim Abílio Borges, onde trabalha até hoje.
123

Rodas de mEMória
RODA 2 | BALANÇA (CONJUNTO HABITACIONAL DONA CASTORINA)

Luiza Barcellos Lopes: Luiza tem 54 anos, nasceu e se criou no Balança. Sua
avó também foi morar no conjunto por causa da remoção da Praia do Pinto. Ela
contou que teve uma infância maravilhosa e diz que a convivência no conjunto
habitacional é como uma grande família que se desentende algumas vezes, mas
que, quando alguém precisa, todos se unem para acolher ou socorrer a necessi-
dade uns dos outros. Luiza disse que, assim como Tetê, namorou bastante, teve
alguns relacionamentos sérios, teve três filhos, mas nunca se casou. Ela estudou
até o Ensino Médio, seu primeiro emprego foi em uma fábrica de roupa infantil,
chegou a gerente e exerceu a função durante 9 anos. Trabalhou em uma empresa
do ramo de lavanderia industrial, mas depois teve que sair porque teve seu filho
mais novo e ele precisava de cuidados. Atualmente, Luiza é uma das lideranças
locais, assumindo a função de síndica do Balança.

Dayse Moreira Serra: Dayse conta que a sua mãe morava na Rocinha quan-
do sua tia se mudou para o subúrbio e chamou sua mãe para morar no Balança.
Dayse tem 57 anos e mora no mesmo apartamento que foi da sua tia. Ela parou
de estudar para trabalhar e seu primeiro emprego foi aos 18 anos em uma loja de
roupas infantis em Ipanema. Dayse tem dois filhos, mas não se casou porque pre-
za sua liberdade. Ela contou que precisou parar de trabalhar para cuidar da mãe,
que veio a falecer e que enquanto não consegue um emprego novamente, ela faz
uns “bicos”.
124

Rodas de memória com


as mulheres no Horto
Foto de Shamyra Ferreira
125

O QUE é ser
mulher no Horto?
Dores, alegrias, irreverência, resistência, luta,
indignação, medos, inseguranças, persistência,
determinação são algumas das palavras que apa-
recerão nos relatos colocados a seguir. De ma-
neira muito generosa, elas deram contribuições
valiosíssimas para compreendermos sua inser-
ção no processo de construção do território do
Horto. A partir das narrativas, mergulharemos
em suas memórias, sentimentos, vivências e ex-
periências. Por hora, se faz necessário retomar a
questão inicial: o que é ser mulher no Horto?

Daniele de Oliveira Alves

Às vezes é difícil, né? Porque a gente cresceu com isso, né? A gente
ter casa e não ter. Fica Horto, não fica Horto e vai chegando um certo
tempo na sua vida que isso vai te incomodando. Porque eu nasci, fui
criada aqui, tenho 33 anos e não posso dizer que a casa é minha por-
que não tenho nenhum documento que prove que o terreno é meu,
que a casa é minha. Então, às vezes é complicado. É insegurança!
Até mesmo na última remoção que teve foi até complicado, porque
eles vieram já com o intuito mesmo de remover a casa, de gerar uma
confusão, de não estar respeitando se era criança, se era velho, se era
idoso, se era mulher, se não era. Então é complicado.
Dani Alves
126

De acordo com os relatos, percebi que a expe-


riência do “ser mulher” no Horto passa pela
apreensão e medo de ser removida da sua re-
sidência. A ameaça concreta de perder a mo-
radia, construída com tanto trabalho e esforço
ao longo dos anos, gera um forte sentimento
de insegurança. Por outro lado, compreendo
que a opressão sofrida move as mulheres, pro-
duzindo o impulso de continuar resistindo às
Janaína de Souza Gama
violações de direitos.

Então, eu acho que tem uma pequena parte das mulheres do Horto
que fazem acontecer. Então, eu acho que ser mulher no Horto é ser
muito guerreira porque o pouco de mulher que tem aqui luta pelo seu
direito e pelos dos outros. Conta muito porque se não fosse por elas
muita coisa aqui não teria acontecido.
Janaína Gama
127

Outro ponto importante a se destacar é que a


convivência coletiva também fortalece esse pro-
cesso do ser mulher. As festas comunitárias, or-
ganizadas em sua maioria pelas mulheres, para
além da função de socializar, resgatam o prazer
existente no lazer, muitas vezes esquecido pela
dura rotina diária de trabalho. Desse modo, a
simples partilha de um bate-papo acompanhado
de uma cerveja, funciona como mecanismo de
aproximação e troca de afeto entre elas, fortale-
cendo os laços pessoais e comunitários.

Ana Cristina Macieira Santos

Olha, na realidade, a gente trabalha bastante. Nós somos mulheres


e somos os homens da casa. A gente não tem tempo perdido não!
Quando a gente tá no sufoco, tem alguém pra ajudar né? E a gente
tá sempre trabalhando, não tem tempo! Na realidade, a gente tem
tempo sim. Quando tem, a gente para aqui um pouquinho, bebe
uma cervejinha. Mas, normalmente de manhã e à tarde as pessoas
só trabalham e quando chegam à noite, tem que fazer comida pro
dia seguinte. Sempre foi assim! Minha mãe, a vida dela sempre foi as-
sim e agora minha geração também está sendo assim, né? Acho que
não tem muita coisa diferente não! A gente tipo se ajunta numa festa
junina ou um bloco, alguma festa lá atrás que tem na sede. Mas, nos-
so dia a dia é de trabalho, é de ralação, né?
Ana Cristina Santos
128

Luiza Barcellos Lopes

Maria Aparecida Alves da Fonseca

Neuza Martins da Silva


Sheila Guimarães Vieira
129

E quando surge um conflito, também são as mães, tias e parentes idosos. Nesse processo,
mulheres que interferem para acalmar os âni- elas percebem que existe uma diferença na re-
mos, conciliar e resolver o problema. Essa práti- corrência social da prática feminina e masculi-
ca de cuidado se mostrou bastante presente, não na: enquanto homens ignoram ou se omitem na
apenas no âmbito comunitário, mas também no resolução dos conflitos, as mulheres se lançam
individual. Para além dos cuidados exercidos na tentativa de resolvê-lo.
pela maternidade, as mulheres cuidam das suas

Eu acho que as mulheres aqui do Balança são mais fortes do que os


homens porque qualquer coisa que haja, geralmente a gente toma
a frente, a gente vai ver, a gente quer saber o que está acontecendo.
Às vezes tem umas brigas no meio da rua, alguma coisa, as mulheres
que vão pra cima, as mulheres que tentam separar, que tentam re-
solver, entendeu? Que tentam amenizar as coisas, entendeu? Eu acho
que as mulheres daqui tem mais atitude. A gente tem atitude, a gen-
te trabalha muito, muitas aqui não são casadas, tem umas que tem
seus maridos, mas, a gente sai, a gente trabalha. Eu falei pra você: Eu
trabalho no condomínio, tenho minha casa, eu cuido da minha vó.
Como ela teve que largar o trabalho dela pra cuidar da mãe dela, se
revezar com a filha, ela agora, a Cristina tá cuidando da mãe, tam-
bém teve. Então, a gente é mais de tomar atitudes de qualquer coisa.
Se a gente ver qualquer coisa errada, se o vizinho está gritando muito,
a gente chega fala, e fala “pô, dá pra parar”?! Agora o homem já não
toma essa atitude, entendeu? Eu acho que a gente é mais forte aqui.
Eu acho! Minha opinião!”
Luiza Barcelos
130

Neuza Maria Carcerere

Rosane Caetano

Shamyra Ferreira
131

VIOLÊNCIA CONTRA
a MULHER
Quando perguntei sobre a percepção de vio-
lência contra a mulher no território, a maioria
delas me respondeu que não havia sofrido ne-
nhum tipo de violência e que consideravam o
Horto um lugar seguro, tendo em vista que suas
famílias residem ali há muito tempo e elas co-
nhecem a vizinhança.

Ah, muito (segura), não é só para as mulheres não! Pra todo mundo!
Pros homens, pras crianças! Aqui não tem nada, não acontece nada,
não é só aqui, porque quando eu oro a Deus, eu agradeço, aqui, nas
Margaridas, lá no Horto, eu agradeço a Deus por isso tudo aqui.
Neuza Silva

Eu, pelo menos, eu vejo assim, ó... Eu descendo, tem um grupinho ali,
mas ninguém mexe com ninguém. Os meninos respeitam bastante
“Oi tia, tudo bem?”. Se você tiver com algum problema eles vem pra
ajudar, se tiver com bolsa de mercado pesada eles vem “Quer que eu
leve?”. Eu não vejo problema nenhum em matéria de segurança.
Sheila Vieira

Aqui em cima (Morro das Margaridas) não! Nunca houve essas coi-
sas de violência, marido batendo nas mulheres não. É briga normal.
Maria Aparecida
132

Outros sentidos de violência são, no entanto,


retomados:

Eu já passei por uma experiência de violência doméstica.


No meu (primeiro) casamento tinha muita violência doméstica.
Foi um dos motivos da separação.
Sheila Vieira

Tem alguns casos. Poucos! Não tem muitos não. E então eles me cha-
mavam de vez em quando. Porque já aconteceu. Já me chamaram
de madrugada, meia noite, de manhã, com chuva. (...) Vamos pegar
um grupo de mulheres que querem trabalhar nessa área, fazer um
estágio, conscientizar as suas filhas, conscientizar elas mesmas. Elas
não têm que levar desaforo pra casa, não no sentido de bater no ma-
rido também, porque eu não concordo, entendeu? Não é obrigada a
dormir com o marido se ela não quiser! “Se eu não fizesse isso, ele me
largava”. Vai procurar outra, ué! Quer ir? Tu vai! Problema nenhum! Eu
não quero e não quero! Nesse sentido, você entendeu?
Gal Marques
133

Sabe aquela coisa assim... Eu casei pra dar uma satisfação. Tipo, de-
cepcionei meu pai, vou tentar pra... Nem gostava dele tanto assim [do
noivo]. Aconteceu que eu namorava e engravidei, e eu tentei por cau-
sa disso, por causa da decepção que eu vi em meu pai. Ele ficava com
raiva, ficou arrasado, arrasado mesmo quando eu engravidei. Ele (o
marido) voltou a ficar paranoico e eu deixando passar, empurrando
com a barriga. Aí, teve um momento que eu saindo pra trabalhar:
“Olha, tá tudo pronto aí”. Sei lá, acordava às seis horas, era dez pras
seis, nem banho eu tinha tomado. Naquele dia que você dá faxina na
casa e perde a hora, eu disse pra ele tinha que tomar banho e ele dis-
se que queria jantar, tava com fome. E eu disse pra ele que tava tudo
pronto, era só esquentar. E ele disse para eu arrumar pra ele. Eu res-
pondi que não, estava atrasada pra trabalhar. ‘Eu vou tomar banho
e vou correr.’ Quando eu saí, virei as costas pra ir pro banheiro, saí do
quarto pro banheiro. Ele me deu um tapão e me jogou em cima. A mi-
nha casa era bem pequeninha, meio quitinete, porque meus pais divi-
diram a casa pra gente. Então fiquei com o quarto e fiz um banheiro
e um pedaço da cozinha. Eu tinha um sofá na cozinha, uma parte da
cozinha, ele me deu uma porrada que me jogou em cima do sofá. E
eu louca naquele momento, eu nem pensei. Só olhei pra cima da pia,
olhei pra cima da pia. Eu mesma falei: “que merda eu iria fazer” Por-
que quando eu trabalhava eu comprei, de um fornecedor, sabe essas
fábricas de peixeira, aquelas com cabo branco. Eu comprei porque
o menino tinha me ensinado a fazer sushi, eu comprei pra fazer em
casa. Aí, ela estava onde? Em cima do raio da pia, na hora eu nem
pensei, só peguei a faca e fui pra cima dele. É, então dali eu falei: “não,
não dá mais”. Se eu cheguei a esse ponto, ele chegou a esse ponto e
eu também, só vai piorar. E dali mesmo, nesse dia, ele já pegou meia
dúzia de cueca e foi pra mãe dele. Nunca mais.
Shamyra Ferreira
134

Os depoimentos mostram três perspectivas de finitivo da relação. Essas experiências demons-


enfrentamento da violência doméstica. A pri- tram estratégias de autonomia e emancipação
meira aponta a violência doméstica como uma femininas diante de práticas violentas no con-
das causas do divórcio, o que demonstra a ati- texto familiar e comunitário.
tude de se divorciar para encerrar o seu ciclo. A Para além da violência contra a mulher, especi-
segunda trata da necessidade de conscientizar ficamente a doméstica, relatada nos trechos des-
mulheres acerca do problema e de como reagir tacados acima, as mulheres também são vítimas
aos parâmetros patriarcais, envolvendo, princi- da violência estatal, especialmente no processo
palmente, as relações conjugais. A terceira re- de resistência contra as remoções. Algumas con-
trata o combate físico, a autodefesa mediante a taram sobre as agressões praticadas pela polícia
agressão física, a não subordinação a violência no episódio da última ação de reintegração de
doméstica que impulsionou o rompimento de- posse, ocorrida no dia 06 de novembro de 2016.

A última investida que eles deram... Tem minha cara no jornal, na


frente assim, tinha no muro lá do Jardim. Eu falei que não era pra ter
tirado, eles tiraram, tem meu rosto no Jardim Botânico. Eu participo
de tudo e nunca fui agredida, dessa vez eu estava encostadinha no
portão ali e quando entrou aquela turma do Choque. Aí, me deram
um empurrão! Me jogaram! Olha, só não me machuquei porque fui
voando por cima dos outros, aí um rapaz me agarrou na frente aqui.
É agressivo, né? Mas, eu enfrento nem que seja pra morrer! Eu vou.
Agora tem uma coisa, covardia é covardia. Eles falam em tirar as pes-
soas, dizem que nós somos invasores, eles confessam com isso incom-
petência deles, porque cada portão tem um guarda, por onde que
entra invasor? Não é verdade? Incompetência da chefia. Tem outra
coisa, eles falam em nos tirar e vai nos colocar onde? Onde? Vão nos
colocar? Eu tive uma isquemia, uma isquemia transitória, fiquei com
a visão assim. Aqui só nesse meiozinho. Eu podia enfiar uma agulha,
fazer um crochê. Mas, quando olho pros lados até agora... Tanto é que
tenho uma consulta com vários exames agora. Isso foi logo depois
dessa confusão aí.
Neuza Silva
135

A menina que levou tiro de bala de borracha, nesse momento, a po-


lícia já tinha chegado lá em cima. Quando eu corri ali, tinha uma
garrafa na mão, um monte de toalhas e camisetas que eu peguei
do meu filho, que ele rasgava. Estava tudo molhado o bastante. A
bolsa e uma garrafa de água, também para... Garrafa pet na mão e
já tinha jogado uma bomba nos garotos, dois garotos. Conseguiram
escapar da bomba. Quando eu falei: “não pula para o jardim porque
tem policial”! Eles pularam pra dentro da casa do Guilherme e ai eu
ouvi a Vera: “Fulana foi atingida”. Eu falei “vou ter que socorrer”, fui
correr pra rua, ainda estava avistando ela, ela me viu, eu vi ela e ela
me viu. Aí, eu saí para o meio da rua, quando eu saí, eles estavam
atravessando, subindo para a casa que ia ser demolida, fazer a rein-
tegração. O cara só me olhou, jogou uma (bomba). Quando eu fiz
isso, ele pegou foi pra atirar, mas não deu tempo, eu corri, prendi para
não sentir o gás. Senti pressão nos olhos. Quando eu fui sair daqui
pra entrar novamente lá pra dentro, eu falei: “O que é isso”? Eu olhei
e estava pegando fogo. Minha calça é aquela lycra. Senti a dor e vi
a calça. “Preciso entrar na minha casa! Olha só o que seus colegas
fizeram comigo! Eu preciso entrar na minha casa”! Eu precisei entrar
na minha casa pegar meu documento! “Documento pra que”? “Para
eu ir para o hospital”! “Estou ferida, um colega de vocês me feriu, preci-
so entrar na minha casa”! “Mas, a senhora não vai entrar”! “Como não
vou entrar na minha casa? A minha casa não está sendo despejada!
A casa é minha e eu vou entrar na minha casa”. Olhei pra trás e esta-
va passando a repórter da Band correndo e eu gritei: “Repórter, eu fui
ferida! Olha isso aqui”! Ela veio, filmou, fotografou. Eu me tremia toda.
Gal Marques
136

A ação realizada pela polícia para desmobi- O episódio deixou marcada a pele da irmã da
lizar a resistência pacífica dos moradores teve Dona Penha e o pé da Gal Marques e também
consequências marcantes. Além da Neuza Silva marcou intimamente a todas pela experiência
e Gal Marques, outras mulheres foram atingi- traumática. Diante de tais abusos, a comuni-
das. Dona Maria da Penha me contou que esta- dade se organizou para denunciar a violência
va na porta de casa conversando com a sua irmã perpetrada aos órgãos de proteção e defesa dos
e uma vizinha que segurava em seu colo o filho, direitos humanos e assim foi aberta uma inves-
um bebê com meses de vida, quando apareceu tigação em âmbito administrativo para averi-
um grupo de policiais em formação de combate guar essa ação covarde e desastrosa.
e lançou na direção delas três bombas de gás la- Ainda sobre violência e memória traumática,
crimogêneo e efeito moral. Ela disse que no local mas mudando um pouco de parâmetro, um dos
não havia nem sinal de enfrentamento, estava relatos que mais me impressionou foi de Rosa-
distante do local de acirramento do conflito, ne Caetano que, como mulher negra, vivenciou
mas que havia grupos de policiais espalhados uma dura experiência com o racismo no am-
pela comunidade, como se estivessem em terri- biente escolar durante a sua infância.
tório inimigo, em plena guerra.

Eu, por exemplo, dos quatro irmãos, sou a que tem o cabelo mais
crespo e isso sempre foi muito focado pelos meus amigos, uma vez
pela professora. Inclusive na faculdade eu fiz um trabalho sobre isso,
porque eu tinha o cabelo muito crespo e minha mãe não tinha muito
tempo de cuidar da gente. Então, minha irmã era muito fácil, cabelo
liso, ela fazia uns cachinhos e ficava o dia inteiro. Já comigo, ela dava
aquele jeito, abaixava, molhou o cabelo e ficava daquele jeito, né?
Que hoje em dia a gente diz bonito. E a professora achava que aquilo
era por desleixo. Então, uma vez, ela me pegou pelo braço e me levou
em todas as salas. Pra mostrar pros meninos, pros outros colegas de
turma que eu não penteava o cabelo e na verdade não era isso. É
porque o cabelo não ficava baixo mesmo! Mas, na verdade, isso não
me marcou tanto. O que me marcou mais foi o dia seguinte. Uma
137

colega de turma me deu de presente uma caixinha de grampo e um


pentinho preto do flamengo, antigo, era um pentinho pequeninho.
Isso me marcou mais! Eu acho que na hora da professora me levar
de sala em sala, por ser uma criança rebelde, eu não estava nem aí!
“Tá me levando pra todo mundo ver?” Dava tchauzinho e tudo. No
dia seguinte, por eu ter ganho de uma coleguinha de turma uma
caixinha de grampo e um pente, aquilo ficou marcado. Como se ela
chegasse em casa, falou pra mãe dela que tinha uma coleguinha de
classe com o cabelo duro, que a professora mostrou pra todo mundo
e que não tinha grampo. Então, foi isso que me marcou mais. E eu
voltei a falar nisso no trabalho da faculdade porque nós lemos o livro
“O professor inesquecível’’ e cada um tinha que falar do seu professor
inesquecível e a minha professora inesquecível é essa. Hoje em dia as
pessoas estão se impondo mais, hoje em dia cada um faz o cabelo
que quer, as pessoas estão se impondo mais, as mulheres estão se
impondo mais: “o meu cabelo é assim e você vai ter que me aceitar”.
Rosane Caetano

A experiência da Rosane Caetano envolve dis- com seus colegas universitários, os processos de
criminação de raça e gênero, simultaneamente. violência racial que ocorrem nas escolas. A for-
Ela ressignificou a violência sofrida e foi estudar ma como ela reagiu contra o racismo sofrido na
Pedagogia, ter formação na área do magistério. infância, expondo o caso na universidade, de-
Rosane conseguiu transformar algo tão marcan- monstra coragem e uma resistência que busca
te em motivação para o seu desenvolvimento e atingir mudanças no sistema educacional para
ainda levou a questão para pensar em conjunto, uma coletividade.
138

Memórias SOBRE
O HORTO
Durante a entrevista, perguntei sobre as me-
mórias que elas tinham sobre a origem da comu-
nidade do Horto e descobri fatos interessantes.
Algumas mulheres associaram a origem da loca-
lidade ao período histórico colonial, trazendo ves-
tígios da escravidão. Isso é simbólico porque traz
à tona a memória ancestral que permeia o lugar.

É, foi assim... Aqui foi engenho, né? Fábrica de pólvora. Então, a


comunidade começou a se formar a partir até das pessoas que
trabalhavam no engenho e na fábrica de pólvora. Parece que tem
também alguma coisa de quilombolas aqui, né? Inclusive, quando
a gente fez uma trilha, nós encontramos mesmo alguns vestígios
da época da escravidão, construções de pedra, sabe? Uma coisa
que parecia recipiente de armazenamento de água. E fizemos lá
pelo 2040, no final. Quem nos levou foi um morador que é funcio-
nário do parque, tem até cachoeira lá, que se chama represa, né?
Mas, a gente achou essas construções que parecem pirâmides de
pedra, tipo com um côncavo pra tipo passar um cano, aquilo tudo
servia pra alguma coisa, né? A gente encontrou alguns vestígios
e até lá no 2040 parece que as casas têm uns trilhos, assim, sabe?
Então realmente tem essa questão dos quilombolas mesmo, né?
E assim, a comunidade mesmo foi se formando porque a própria
direção da época chamou os seus funcionários, cedia a área para
que fizessem suas casas aqui. Aqui, o que me disseram, é que era
uma plantação de eucaliptos e teve um vendaval, um temporal
139

muito forte, derrubou e ficou um clarão. Então, eles ofereciam mui-


to essa área. Os funcionários construíram muito aqui, cediam aqui
por causa da proximidade com o parque. Aí que eu acho a cruel-
dade do ser humano! Quando essas pessoas serviram para a cons-
trução do parque foram chamadas e agora a crueldade é chamar
os idosos de invasores!
Nelia Vasconcelos

Essas memórias sobre o período escravocrata Dona Castorina. Inclusive nos relatos abaixo é
e colonial se repetem em alguns depoimentos. O possível perceber a materialidade das informa-
mais interessante é que eles partem de mulheres ções tendo em consideração os vestígios que exis-
que moram em localidades distintas dentro do tiram em um dado momento ou que ainda perma-
território do Horto: Caxinguelê, 2040 e Estrada necem na comunidade.

Olha, como surgiu, foi com o D. João VI. Ele chegou no Jardim Bo-
tânico e, ele, segundo consta, ficava sentado embaixo de uma
mangueira, jaqueira, assistindo as pessoas trabalharem, né, os
escravos. E ele designou...Tinha o feitor...Tinha... Eram três ou quatro
tipos de funcionários que ele designou... E esses funcionários que
vieram morar aqui foram se multiplicando. Mas eu queria lembrar,
inclusive, aquelas casas que têm ali, no início do Jardim Botânico,
onde ficava os guardas, né? Eles ficavam ali. Não tinha muro, né?
Era uma cerca e eles trabalhavam vinte e quatro horas. E eles eram
usados, né? Mas, na época eles eram os guardiões mesmo.
Neuza Carcerere
140

Emília de Souza

Edna de Souza

Regina Antônia
141

Nossa casa fazia parte da senzala, uma das paredes tem até hoje.
Um dia te levo lá. As paredes ainda estão em pé. Um dia vou te
levar na casa do meu primo, Adilson, que mora lá até hoje. E, você
vai ver que na parede ainda tem a marca daquele janelão enorme,
em uma das paredes, que fazia parte da casa grande. Na medida
que as pessoas foram chegando no Morro das Margaridas, foram
construindo em torno da senzala. A senzala, na verdade, era mais
no subterrâneo.
Emília de Souza

E tinha, antigamente, aqueles negócios de tortura, né, nas árvores.


Era onde os escravos eram torturados. Eu mesma achei uma cor-
rente, uma corrente antiga. A minha avó quase me bateu, quando
eu cheguei com aquela corrente em casa. Não sabia o que era,
achei bonita a corrente, fui pra casa. A minha avó quase me bateu,
porque ela já viveu uma época em que ela conheceu, né? (risos).
Então, ela disse: joga isso fora agora ! E eu: “vovó que isso?!”
Edna de Souza

Tinha muitas marcas do tempo da escravidão. Tinha um eucalipto,


que a gente era criança... A gente conviveu com isso, um eucalipto
enorme, que dois homens não conseguiram abraçar! Esse eucalipto
tinha um ferro fincado nele, com uma corrente. Onde era torturado.
E a gente achava muita coisa, muitos vestígios.
Emília de Souza
142

Eu já ouvi falar que aí, onde é o casarão (Solar da Imperatriz) era um


porão. Inclusive, a Cristina, minha filha, ela trabalhava ali. Quando
ela era criança, dizia que tinha correntes ali embaixo, correntes do
tempo da escravidão. Eu nunca entrei lá, mas ela dizia que tinha
corrente. O que eu sei é isso. Porque, sabe o que acontece, quando
a gente é jovem, a gente não se liga muito, a gente quer curtir, sair.
Então, você vai aprendendo o que você ouve. Aí, você vai tendo mais
maturidade, a sua mente vai evoluindo. Você começa a prestar mais
atenção e você vai guardando as coisas. Mas, eu, na minha juventu-
de, eu não me ligava muito nisso. Estou sendo sincera, eu não me liga-
va mesmo nisso. Agora que eu estou coroa, cascuda, eu vou pegando
as histórias e guardando. Eu soube disso. Antigamente, os escravos
viviam aqui. Teve coisas relacionadas a escravidão. É o que eu já ouvi
falar. E, o casarão era habitado, foi na época de D. Pedro. Acabaram
com tudo. Tiraram tudo que estava lá dentro. Sumiu tudo. Ela tra-
balhava lá, separava conchas, catava moedas. Essas casas aí. Só eu
tenho sessenta anos, se não tem cem anos. Se você colocar um prego
em alguns lugares aqui, o prego não entra, coisa antiga, tijolo maciço.
Quando a árvore caiu aqui, se fosse essas casas modernas, tinha ar-
riado elas todas. Era uma árvore imensa! Acabou com a minha cozi-
nha, mas só quebrou um pedaço porque a casa foi feita firme.
Regina Antônia

Essas memórias retomam o cenário atual de categoria aglomerados subnormais, termo utili-
conflito que a comunidade do Horto atravessa. zado pelo IBGE – Instituto Brasileiro de Geogra-
Apesar de, esteticamente, o Horto não ter uma fia e Estatística para designar áreas faveladas.
similaridade com as favelas, a comunidade é Trago à memória o trecho do livro “Quarto de
uma “ilha” de negros e pobres situada em um Despejo”, de Carolina Maria de Jesus, escritora
bairro cuja população é majoritariamente bran- negra do século XX, que descreve a experiência
ca e com poder aquisitivo econômico bastante cotidiana de morar na favela.
alto. A comunidade é identificada por meio da
143

“Os visinhos de alvenaria olha os Algumas moradoras do Horto falaram acerca


favelados com repugnância. Percebo do incômodo trazido pela tentativa de criminali-
zar a comunidade a partir da acusação realizada
seus olhares de ódio porque eles não
sobre os moradores de serem invasores ou de
quer a favela aqui. Que a favela detur- degradar o meio ambiente.
pou o bairro. Que tem nojo da pobresa.
Esquecem eles que na morte todos ficam
pobres. (JESUS, 1960, p. 56)”

Eles querem tirar porque eles chamam de invasores, né? Eu pelo


menos não sou invasora! Eu pago a conta do terreno e tenho todos
os recibos. Já há uns setenta anos que eu tenho, muitos já foram
embora porque o cupim comeu. Mas eu tenho toda a documen-
tação, meu pai sempre pagou. Antigamente, quando a gente era
pequeno, vinha até descontado o valor no contracheque dele.
Maria Teresa

O fato de eu ter nascido aqui, me criei, trabalho perto, não consigo


me ver em outro lugar. A qualidade de vida que nós temos aqui...
Eu acho que é o principal fator que faz com que os grandões te-
nham olho nisso aqui é a qualidade de vida. Porque aqui dentro,
por mais que eles digam que nós estamos degradando a área,
desmatando, se vocês pegarem foto bem antiga vão ver que não
mudou muita coisa, cresceu como cresce em todo o lugar. Você
tem filho, aquelas pessoas que aparecem. Mas a qualidade de
vida aqui é superior a qualquer outra.
Rosane Caetano
144

A maioria das entrevistadas nasceu no Hor-


to ou foi morar ainda na infância ou mesmo no
início da fase adulta. Portanto, a memória afeti-
va, o sentimento de pertencimento ao local e a
vivência comunitária são elementos muito pre-
sentes nas vidas dessas mulheres. Suas memó-
rias afetivas estão preenchidas de muito amor
e carinho pelos membros da comunidade e pelo
próprio território. Percebi o brilho nos olhos e
o entusiasmo quando elas contaram sobre a in-
fância vivida em meio a natureza, as brincadei-
ras infantis, tanto nos quintais quanto nas ruas
da comunidade.

Ah, minha infância foi maravilhosa! Não tinha esse lance da inter-
net. Então foi infância, infância mesmo, de brincar muito todos os
dias à tarde, vários vizinhos que a gente cresceu junto. Brincar de
pique esconde, de bola, de bicicleta, infância mesmo de moleque
mesmo, de brincar, brincar muito todo dia.
Dani Alves

Nasci aqui e minha infância foi maravilhosa. E o que eu acho me-


lhor que tem aqui dentro do conjunto é o seguinte: Eu fui nascida e
criada aqui e vivia na rua pra baixo e pra cima e se eu me machu-
casse o vizinho me socorria. Se minha mãe não estivesse em casa,
eles pegavam me socorriam, cuidavam de mim. Quando minha
mãe chegava, iam lá e chegava, “Dona Enete, aconteceu isso, isso,
isso”. Até hoje é assim, a gente se desentende com os vizinhos, mas
a gente é unida pra isso.
Luiza Barcelos
145

Eu era um moleque, juntava eu e meu primo e a gente só fazia “M”,


entendeu? Literalmente. Aqui no quintal, que a gente mora aqui do
lado da associação, tem uma jabuticabeira enorme e a jabuticabei-
ra vivia com casa de marimbondo e a gente vivia picado de marim-
bondo porque a gente vivia em cima da árvore. Mas era assim, eu
sempre fui muito criança na minha infância, entendeu? Não tinha
aquela coisa de querer crescer e se eu pudesse eu voltaria, porque
foi muito bom, quintal de barro. A gente não tinha maldade naque-
la época. Menino brincava junto com menina, dormia todo mundo
junto no quarto quando vinha “familiarada”, não tinha essa preocu-
pação de separar porque o cara é homem e não pode dormir com
a prima, não, era todo mundo junto, familhão, todo mundo junto,
vinha todo mundo e vinha de Coelho da Rocha, São Gonçalo e se
embolava todo mundo. Todo mundo brincava, todo mundo comia,
meu avô foi a pessoa mais maravilhosa que eu conheci. Gente, meu
avô foi a pessoa mais maravilhosa que eu conheci no mundo. Assim,
ele sempre foi um paizão sabe? Ele abraçava todo mundo! O Lula,
que mora aqui em casa, viu minha mãe, minha tia, meu tio crescer,
ele veio não sei da onde que eu não sei. Foi parar no Morro da Mar-
garida e ficou até hoje aqui com a gente. Ele que levava minha mãe,
meu tio, tudo pras festas. Tomava conta, né?
Janaína Gama

A minha infância foi maravilhosa! Vamos dizer que foi uma infância,
infância, porque eu brinquei muito, subi em árvores, entrava pelos
matos, subia pra represa escondido dos meus pais, cachoeira... Fui
moleca, posso dizer que fui moleca, eu subia mais árvores, sendo
que como eu moro no Solar da Imperatriz, nessa época funcionava
o Ministério e só podia passar ou brincar depois das 17h00 e isso era
respeitadíssimo. Se alguém passasse, pegasse uma flor, subisse na
146

grama, advertência! E nós sempre respeitamos isso, então depois das


cinco subia nas árvores, mas ninguém quebrava nada, arrancava
flor, nada! Sempre no respeito como criança, né? E era fantástico! Na
minha época tinha muita festa junina que nós organizávamos, mui-
tas festas, tinha um bloco de carnaval também. Era uma infância
assim muito rica brincar de amarelinha, pular corda, tudo isso. Ir pra
torre, fazer trilha na torre. Minha mãe desesperada procurando se a
gente estava no mato, pegando frutas. Foi uma infância rica.
Bernardete Costa

Outra memória afetiva importante que apare-


ce nos depoimentos são as que retratam as festas
e cultura da localidade. Blocos de carnaval, festas
natalinas e juninas, além de movimentar a co-
munidade, exercitava a organização comunitária
cuja liderança normalmente era feminina.

Ah, mas foi ótimo! Tinha uma sede lá atrás que eu lembro, era ga-
rota, tinha baile, mas os mais velhos não deixavam a gente entrar
não. Lembro que eu e minha irmã a gente chegava só na janela,
era muito bom gente, era muito bom. Eu fui nascida e criada aqui,
né? Moro aqui há 61 anos. Então o primeiro (bloco de carnaval) que
teve aqui, foi o Psicodélico, que Paulo primo de Zé Luiz, que fez a
fantasia de saco pra gente. Aí, depois foi Urubu Cheiroso, chegou
até o Nil do Jardim Botânico, como a minha comadre aqui falou,
Cristina, onde o pai dela veio a ser o presidente. Foi uma infância
boa! Eu não tenho nada o que falar, nada, nada, nada. Não me
arrependo de nada, adoro isso aqui!
Tetê Santos
147

Mas olha, vou dizer uma coisa pra você: era muito bom aquilo ali!
Reunia aquele grupo, época de festa, época de natal, reunia ali. O
pessoal fazia aniversário, cada um levava uma quantidade, muito
bom. Não vou dizer pra você que agora é ruim não, é bom mas na-
quela época era melhor.
Maria Aparecida

Outras mulheres não tiveram o privilé- da estrutura econômica, os relatos evidenciam


gio de vivenciar a mesma experiência. O aban- também como a discriminação patriarcal sobre-
dono dos anos escolares iniciais, aspecto relati- carrega as mulheres em atividades domésticas e
vo a isso, decorre geralmente da necessidade de isenta os homens do espaço da casa e da educa-
se manter ou mesmo prover a família. Para além ção dos filhos.

A responsabilidade era toda em cima de mim, cuidando dos meus


irmãos. Os outros meus irmãos, um tinha um ano, também não
conheceu a minha mãe direito e a outra também que tinha cinco
meses também não conheceu. Fui cuidando, indo pra escola, reu-
nião de colégio, eu tava lá. Era eu porque meu pai não gostava de
reunião de colégio porque só ia mulher e ele não gostava.
Vera Lúcia
148

Aí, minha mãe, antes de morrer, me entregou pra uma família. Na-
quela família eu trabalhei, trabalhei muito na roça porque eu era
muito pequena. Trabalhei muito na roça e fui me criando e depois a
minha outra irmã veio embora pro Rio. Aí, depois, ela foi me buscar
com o meu cunhado. Minha irmã mais velha se casou. Foi me bus-
car lá, foi me buscar. Meu cunhado foi meu tutor, o marido da minha
irmã. Aí já vim pra cá. Eu deveria de ter mais ou menos, tô com se-
tenta, vou fazer setenta e sete... Então, naquela época, deveria de ter
uns doze... Treze para quatorze anos, que eu deveria de ter. Aí, aqui eu
comecei a trabalhar, trabalhei muito. Casa de família. Fazia de tudo
um pouco. Tudo, tudo, faxineira, era tudo. Depois eu me casei.
Maria Aparecida

Enquanto algumas mulheres conseguiram ensino superior, 9 finalizaram o ensino médio e


concluir a educação formal e alcançaram o en- 9 não chegaram a terminar o ensino fundamen-
sino superior, a maioria precisou interromper tal ou o ensino médio. Percebi durante as entre-
os estudos e começar a trabalhar, em razão da vistas que necessidade de trabalhar se configura
necessidade econômica. Considerando as 24 como o motivo principal do abandono da expe-
entrevistadas, apenas 6 conseguiram concluir o riência escolar.

Eu fiz até a quinta série. Naquela época não se estudava tanto


assim, era mais difícil, né? Não fui estudar mais e fui trabalhar. Tive
minha carteira assinada aos meus quatorze anos. Foi no laborató-
rio de Parque Medeiros, na Marquês 202, 203 mais ou menos. Em-
baladora né, embaladora aprendiz. Ah, eu fiquei lá, porque lá era
um lugar que você só trabalhava se fosse solteira, não trabalhava
casada. Aí trabalhei dos quatorze aos dezesseis e meio mais ou
menos que foi quando eu saí. Eles mandavam embora né, porque
eu me casei com dezessete.
Neuza Silva
149

Aí, pela dificuldade, porque chegou uma época que a gente não
tinha nem dinheiro pra comprar o material, eu precisava trabalhar
pra ajudar. Aí, eu parei de estudar pra trabalhar. Na Amaro Caval-
cante eu fiz até o segundo comercial básico, aí eu parei.
Maria Teresa

Fiz até a quinta série. Aí, depois, eu ia fazer ginásio, mas tinha que
pagar. E eu já era muito assim de casa, então, eu sabia a dificulda-
de que era, que meu pai tinha de botar comida dentro de casa e
ver minha mãe num tanque lavando roupa. Todo dia no tanque la-
vando roupa. Eu já tinha essa maturidade de ver o sacrifício. Fiquei
ajudando a minha mãe. Ajudava em casa. Ela lavava roupa, eu
passava. Dia de sábado eu entregava roupa o dia inteiro, ela fazia
aquelas trouxas. Ela fazia uma marca com aquela bolsa de crochê,
com aquela argola de vidro, não sei, né? Era uma bolsa aqui no
braço com uma trouxa, e outra aqui no braço. Eu chegava, saltava
na General Osório, que o ônibus só ía até a General Osório, e des-
cia, pegava a (rua) Gomes Carneiro e ia até lá em Copacabana.
Levar roupa, levava limpa e trazia suja. Depois, com quatorze anos,
aprendi a costurar. Fui pra uma aula de costura à noite.
Maria da Penha

Identifiquei no decorrer da pesquisa que as maneira deram suporte para que elas pros-
mulheres que conseguiram completar o en- seguissem nos estudos. Já outras interrom-
sino superior tinham apoio econômico e es- peram sua trajetória acadêmica e retornaram
trutural da família. Suas famílias de alguma após a fase adulta.
150

Eu até o segundo grau eu fiz lá em São Luís, no Colégio das Irmãs


Doroteias. E quando eu cheguei aqui no Rio, a princípio, eu iria pra
uma escola pública, porque a condição da minha mãe era outra,
né? Aí, como eu iria para o terceiro ano, o meu padrasto resolveu
assim: “Não, eu pago esse curso, você faz o terceiro ano junto com o
pré-vestibular”. Aí, eu fiz em Copacabana mesmo e passei pra Ben-
nett em Administração de Empresas. Tive que ir para Bennett e me
formei lá. E quando eu estava lá há alguns semestres, acho que era
cinco ou seis semestres que fiz na Bennett, eu fui trabalhar na PUC.
Aí, por que eu não fui cursar na PUC se eu podia estudar de graça?
Porque a PUC tem as religiosas e aí eu perderia cinco semestres.
Nelia Maria

Tenho o terceiro grau completo. Eu fiz Administração.


Neuza Carcerere

Não me lembro quando eu voltei a estudar, não. Aí, fiquei estudan-


do a noite, supletivo. Quando terminei o antigo segundo grau, que
hoje em dia chamam de ensino médio, eu não estudei mais. Voltei a
estudar em 2001 porque eu fui trabalhar em um colégio na Gávea,
que hoje em dia não existe mais. E por estar trabalhando em um co-
légio e ver a evolução das pessoas, senti a necessidade de ser igual
eu fui fazer a faculdade, voltei a estudar e me formei em Pedagogia.
Rosane Caetano

Eu tenho o terceiro grau completo. Serviço Social.


Edna de Souza
151

No que se refere ao campo profissional, a Durante as entrevistas, pude perceber o quan-


maioria das mulheres entrevistadas trabalham to a figura feminina é central nas famílias e, por
ou trabalharam em áreas correlatas ao serviço conseguinte, na comunidade. Quando pergun-
doméstico. Elas sustentam suas famílias como tei sobre as referências femininas, elas citaram
trabalhadoras domésticas, auxiliares de servi- mães, avós e lideranças comunitárias. Isso por-
ços gerais, ou mesmo executando atividades la- que, segundo suas próprias memórias, as atitu-
borais que remetem ao cuidado com o próximo, des de acolhimento e promoção de afeto, partem
tais como enfermagem ou cuidadoras de idosos. de uma premissa que migra do seio familiar e
Uma grande parte dessas profissionais não con- se expande para a comunidade. Seja na defesa
seguiu concluir o ensino médio, porque houve árdua contra as remoções ou na organização
a necessidade de ingressar no mercado de tra- das atividades festivas, o protagonismo das mu-
balho. Já aquelas que trabalham em funções lheres aparece de forma unânime. Dona Elza,
administrativas, terminaram o ensino médio ou mãe da Emília e da Edna, era conhecida pela co-
ingressaram no ensino superior. munidade por causa das feijoadas, organizações
Quando questionei se havia algum progra- de festas e acolhida a comunidade. A Emília de
ma de saúde ou assistência jurídica direcionada Souza é uma figura central por sua incansável
para o público feminino na região do Horto, a luta pela permanência do Horto. Neuza Carce-
maioria respondeu que não ouviram falar sobre rere é outra referência por participar desde o
o assunto e se existe algum projeto nesse sen- início da AMAHOR. Dona Maria Garrincha é
tido, nunca tiveram conhecimento ou acesso. lembrada como a rezadeira que cuidava dos mo-
Elas relataram que, às vezes, aparecem agen- radores e moradoras do Conjunto Habitacional
tes de saúde da Clínica da Família, mas que não Dona Castorina, o conhecido Balança.
existe um programa voltado exclusivamente
para a saúde da mulher.
Recentemente, surgiu um grupo de mulhe-
res que se reúne para participar de um curso de
corte e costura, promovido pela Associação de
Moradores do Horto – AMAHOR. Percebi que
o curso em questão se tornou um novo espaço
de convivência feminino, onde, além da troca de
saberes sobre moldagens e todo o conhecimento
que envolve a arte de costurar, é possível cons-
truir uma rede de afeto e acolhimento mútuo
entre mulheres.
152

Olha, eu vou citar Emília, porque Emília pra mim é assim fora do
comum! Já falei pra ela várias vezes ‘’Olha, meu espelho é você. Eu
te admiro muito! Não tome isso como inveja porque eu não gosto
dessa palavra, não tem no meu dicionário isso, no meu vocabulá-
rio”. Tenho a Emília como espelho, como uma pessoa que luta. En-
tão, eu vejo a Emília, a Neuza (Carcerere) também, minha vizinha
que é da associação também, uma pessoa que está sempre lutan-
do, batalhando, sempre corre atrás. ‘’Olha avisa fulano, fala com
ciclano”. Eu acho bacana! Eu acho até que deveria ter mais pesso-
as, mais moças, mais pessoas lutando lá na frente, né? Mas...
Bernardete Costa

Minha mãe Emília, Beta, Neusa, minha vó que já faleceu, mas que
continua atuando de alguma forma, que todo mundo sempre
lembra de alguma coisa que ela fez, das coisas que ela falava, dos
conselhos que ela dava, sempre uma pessoa que lembro. Minha vó
pra mim é uma mãe, a mãe de todos. Parecia a Iemanjá do Horto.
Ela cuidava de todo mundo, entendeu? Sempre foi muito guerreira,
sempre foi muito acolhedora, sempre foi muito braba também, por-
que ela era braba, né Beta? Mas, assim, uma pessoa maravilhosa,
um coração maravilhoso, uma mãezona pra todo mundo, não só
pra minha mãe, pros meus filhos. Mas, ela marcou a história do
Horto, não tem uma pessoa aqui no Horto que não saiba quem
foi minha vó. Ela é, tipo assim, eu acho que ela é uma referência
no Horto, que todo mundo conhece a Elza, todo mundo fala da tia
Elza, todo mundo gosta, gostava, gosta da tia Elza, não gostava,
gosta ainda. Então, eu acho que ela foi de grande valia pra história
do Horto também, que ela foi casada com meu avô. Meu avô veio
pra cá, trabalhava no Jardim Botânico também. Meu avô traba-
lhava no Ministério da Agricultura, trabalhou muitos anos dentro
153

do Jardim Botânico. Então, ela junto com o meu avô fez a nossa his-
tória aqui no Horto.
Janaína Gama

A dona Maria Luíza, a mãe dela, a mãe, a avó. Porque são mulheres
que a gente sabe que criaram seus filhos, educaram, lavando roupa
lá naquele... Ali tinha um tanque. Era uma guerra, pelo que eu me
lembro, lavar roupa ali do lado da birosca. Tinha um cara, tinha que
revezar para lavar roupa, tinha cuidar dos filhos, porque os maridos
gostavam dos bailes, iam pros bailes. Então, eu acho que eram mu-
lheres que vieram pra cá e praticamente fundaram isso daqui.
Luiza Barcelos

Foram referência porque viram a gente desde pequeno.


Tetê Santos

A gente sempre teve respeito aqui.


Deyse Serra

E outra coisa. Aqui a gente sempre teve respeito. A Lúcia aqui é mais
velha. Se um filho meu fizer malcriação para ela, a gente vai pegar
e vai botar dentro de casa, entendeu? Tem que respeitar! Os idosos
passavam, a gente tinha que cumprimentar e falar direito porque
nossos pais e avós pegavam a gente. Tinha respeito!
Luiza Barcelos

Senão o idoso chegava e falava “passei pelo seu filho e ele não
falou comigo”
Maria Lucia
154

Porque você vê hoje em dia, tem muitas crianças que já não tão
fazendo isso. Estão desacatando o idoso, os mais velhos, entendeu?
Então, são pessoas de referência que educaram os filhos e a gente
respeitava essas senhoras: Maria Garrincha; a mãe da Rosália, era
rezadeira. Se precisava, levava lá para Dona Olinda poder rezar a
gente, todo mundo levava, entendeu? São pessoas que marcaram
muito. Maria Garrincha, mãe da Francilina Romualdo.
Luiza Barcelos

Também era uma pessoa participativa, estava ali! Precisava, ela


estava sempre na atenção.
Ana Cristina

Tinha umas senhoras aqui que deixaram a sua marca, né? E refe-
rências boas que a gente tem saudades delas, entendeu?
Luiza Barcelos

Toda essa construção feminina é fundamen- cimento na região ocorreu a partir de relações
tal para a perseverança da comunidade em de trabalho. O lugar outrora desvalorizado foi
continuar no local. As ameaças de remoção são transformado em um excelente espaço de con-
confrontadas pelo ânimo de luta e permanên- vivência por essas desbravadoras, guerreiras,
cia destas mulheres que são “chefes de família” que junto com suas famílias construíram uma
e administradoras das suas casas e da comuni- comunidade pacífica em harmonia com a natu-
dade. A resistência não tem sido um processo reza. Apesar do cansaço de anos à frente des-
fácil. Resistir à criminalização dos moradores é se processo de luta por permanência, elas não
uma tarefa hercúlea, principalmente quando se estão dispostas a abandonar suas memórias, vi-
tem a consciência que a ocupação e o estabele- vências e histórias.
155

Roda de memória com as


mulheres do Horto.
156

Eu penso que tem uma senhora que morava ali, que ela morreu
com cem anos. Tem dois anos que ela morreu. A Record foi na casa
dela nessa época, passou até na televisão, nós assistimos. Ela falou
na televisão e nós vimos daqui. Ela falou que a gente só iria sair
daqui pro caixão. Realmente, ela morreu, saiu de casa pro caixão,
morreu em casa. Ela foi criada aqui e o marido também. Ela traba-
lhou no Jardim Botânico. Quer dizer, ela morreu com cento e dois
anos. Ela foi carregada por aquele negócio. Quando eu saí pra ir no
mercado, eu vi aquele corpo saindo, fiquei num estado de nervos.
Voltei pra casa chorando, entrei, todo mundo perguntando o que
foi, eu falei, “ela tá saindo agora morta, no carro.” Quer dizer, ela
falou pra repórter da Record que só ia sair dali no caixão. Eu falo
também! Só vou sair daqui no caixão! Não vou sair! Poxa, mexendo
com a gente aqui! A gente não incomoda ninguém, aqui é calmo,
não tem nada. Aqui as pessoas ficam na rua até três, quatro horas
da manhã, não tem nada! O meu neto fica três horas da manhã
na rua, na festa do vizinho. Eu saindo daqui, Deus me livre! O dia
que falar a senhora vai ter que ser despejada’”, não sei nem se vou
aguentar, como vou agir, porque eu não sei não.
Vera Lúcia

Acho que nós devemos brigar pelos nossos direitos. Acho que aqui
eu tenho direito total, porque isso aqui já é nosso. Como diziam: a
minha casa é a minha vida. E eu falei, foi até a primeira vez, pra
uma rádio aí, em uma entrevista. Eu falei: a minha casa é a minha
vida. Então, acho que o motivo maior, porque você tem que ter uma
identidade, um local pra você morar, pra chamar de seu. E isso
aqui é nosso! Só depende da boa vontade, entender. Eles já enten-
deram. Saber que é nosso eles já sabem. A parte financeira grita
muito, preconceito também. Abrir a janela, e dar de cara com po-
157

bre, deve doer tanto, né?! Quero ver quando morrer... Nós, operários,
juntamos pra construir o prédio. E, pela nossa condição financeira,
nós somos impedidos de morar, habitar. Você não imagina... Por-
que na hora que o Jardim Botânico precisava construir... de mão de
obra, né... de gente pra colocar a mão na massa, nós servíamos. É
igual você construir uma escola, e depois seu filho não poder estu-
dar lá, porque sua condição financeira não permite, né?
Neuza Carcerere

Então, nós merecemos respeito. O que eu acho primordial, em qual-


quer questão, em qualquer coisa que vá fazer, é o amor. Se a pes-
soa tiver amor ao próximo, ele vai dar um jeitinho, sabe?! Tem uma
reunião, alguma coisa, mas que não nos trate como animais. So-
mos seres humanos, iguais a eles, e merecemos ser respeitados. Por
quê? Na verdade, eu falo da parte do 2040 pra cá. Nós conserva-
mos tudo. Nós guardamos isso aqui. Se nós não estivéssemos aqui
e estivesse tudo abandonado, isso seria um espaço de viciados.
Poderia ser boca de fumo. Então, aqui, mesmo sendo dito como co-
munidade, eu vejo isso aqui é um lugar onde pessoas, que nasce-
ram e moram aqui, estão preservando isso daqui. Porque isso aqui
era um campo de futebol. As pessoas brincavam aqui, tinha ma-
lha, a gente podia sentar no campo. (Funcionários do Jardim Botâ-
nico) Botaram entulho aqui. Nós não somos invasores. Uma pessoa
que mora em um lugar há sessenta anos, tem uma vida aqui, não
é invasor. Nasci, cresci, casei, tive filhos e netos, tudo aqui nessa
casa. A minha neta mais velha tem vinte e dois anos, e a mais nova
três. Eu tenho um filho de quarenta e três anos, que é o mais velho,
e a mais nova de trinta e um. Vamos tentar resolver as coisas da
melhor forma, para que ninguém saia machucado. Porque existem
158

pessoas aqui, como a mãe dela, a Dona Antônia. Meu Deus, quan-
do tinha festa aqui, festa junina, a mãe dela botava barraca de
doce. Era lindo! Não me esqueço disso. Nós éramos felizes. Era onde
colocaram esses entulhos ali.
Regina Antônia

As pessoas têm que ter consciência, independente da sua condição


social, do seu grau de instrução, religião, que o direito de cada um
tem que ser respeitado, o espaço. As pessoas têm que entender, que
todos têm direito à terra. Isso é um direito incondicional. Deus fez um
espaço adequado para todos! As pessoas têm que respeitar o direi-
to do próximo. Essa coisa do rico achar que pobre não pode morar
no mesmo bairro que ele, isso é ignorância e egoísmo. Se morrer, ele
vai pro mesmo lugar do pobre. As pessoas têm que ter consciência
dessa coisa de achar que eu tenho mais direito, porque eu tenho
condições. Isso é muito relativo, porque, nessa vida, ele tem o direito
de utilizar um bem que ele tem. Um bem que Deus lhe permitiu ter
hoje. Então, quando ele morrer, não vai levar nada daquilo. Então,
não adianta bater no peito e dizer que eu tenho dinheiro, que sou
rico! Morreu, acabou. Então, as pessoas têm que ser mais solidárias,
respeitar mais ao próximo, pra termos uma convivência melhor. Por
que nesse mundo há tanta tristeza, violência contra os pobres? Não
querem servir aqueles que precisam... De repente, hoje ele tem a
permissão de usufruir muito… Tem que saber que foi permitido… Tem
que ser inteligente… Que essa permissão poderá vir em outros tem-
pos. É um ciclo. Nada acaba. Morreu, não acaba, alguma coisa vai
continuar. Temos que pensar em doar mais, ser mais solidário, pra
ver se a gente consegue amenizar o sofrimento do mundo.
Emília de Souza
159

Nelia Maria

Maria dos Anjos Maria da Penha


160

Nem sempre ter é poder. Acho que as pessoas têm que ter consci-
ência do seu papel, do que ele pode, até onde ele pode ir... O seu
papel aqui na terra. E, hoje, estão muito distorcidos... estão pensan-
do muito em si. Tá muito dividido. O poder está do lado do outro. Te-
mos que unir as pessoas! A violência tá crescendo por causa disso...
Porque as pessoas que têm estão se afastando das que não têm
poder. E isso está isolando, as pessoas estão ficando mais isoladas.
Então, acho que as pessoas têm que pensar na sua forma de viver.
Temos dentro do nosso país uma Constituição, que dizem ser avan-
çada, mais avançada do mundo, que diz a questão do direito à
moradia, que todos têm direito. Acho que tem que fazer valer o que
está na Constituição. Tem que ser aplicado. Na teoria isso é tudo
muito bonito, mas na prática não está sendo respeitado. Acho que,
quando a sociedade entender que esse não é o caminho pra con-
duzir o mundo, as coisas vão ficar melhor. Todos vão ter seu direito,
seu espaço, a garantia de ter seu cantinho, sua tranquilidade... É o
mais importante pra todo mundo.
Edna de Souza

Sinceramente, acho isso um absurdo, até porque eles não têm um


espaço certo para alocar todo mundo, né?! E tem muitas pessoas
aqui. Nem digo por mim, as pessoas mais velhas, que já estão aqui
por muitos e muitos anos. Fazem essa retirada de repente. Nem
todo mundo tem uma condição financeira, né, ou um outro espa-
ço! A gente já mora aqui há tantos anos... Criei meus filhos... Vejo
meus sobrinhos aí... Poxa, acho que tem que permanecer! Já está
aqui há tantos anos! Por que fazer uma retirada dessas, repenti-
na? A nossa moradia é o nosso lar. Não temos que desistir. Tem
que lutar, lutar até o fim. Não podemos perder as nossas moradias.
Temos que lutar, ter muita força, ter fé. Lutar, correr atrás sim. Acho
161

um absurdo isso, mas espero que as pessoas, assim como eu, não
desista. Não pode desistir. Correr atrás, lutar, ser firme. Ter aquele
propósito e, enfim, não pode desistir!
Maria dos Anjos

Olha, eu confesso que eu tenho muita força pra fazer tudo para
que a gente continue, mas a gente sabe que a gente tá lutando
contra gente muito poderosa e isso às vezes dá uma derrubada na
gente, sabe? De achar que de repente a gente pode passar aqui na
frente e isso aqui não vai mais existir. Isso dói e a gente sabe que a
gente não ocasiona nenhum dano ambiental, muito pelo contrário,
você faz uma missa ali, você vê vegetação a sua volta. E até por-
que a gente sabe que eles vão visar o lucro vão destruir isso tudo,
eles não estão preocupados com o verde, eles não estão! A preocu-
pação deles é dinheiro mesmo! Infelizmente, a humanidade fica
cega, a ganância cega muito a humanidade e parece que tudo se
esvazia dentro da pessoa em termos de amor pelo lugar, pelo lado
humano mesmo e isso tudo parece que morre dentro dessas pes-
soas que vem pro Jardim Botânico (Nélia se emociona). É tão ób-
vio que eles tem interesse né? A gente tá aqui nesse pedacinho de
chão... Por que essa investida toda em cima da comunidade? Eles
tem interesse, eles vão ter a contrapartida deles. Essa vizinha, quan-
do a gente fez um DVD sobre a história do Horto, disse assim: “me
deixa aqui no meu pedacinho de chão”.
Nelia Maria

Minha filha é minha vida que está aqui, minha vida. Acho que eu
tinha sete anos quando morei lá no Grotão, meu pai com tanto
sacrifício fez lá de pau-a-pique. Aqui de tijolo, pagou pra construir
essa casa, aí vim morar aqui. Aqui tem braço do meu pai, suor de
162

lavar roupa da minha mãe! Eu acho que eu tenho que lutar até o
fim pra garantir isso aqui, porque aqui tem suor dos dois, tanto do
meu pai como da minha mãe. Minha mãe lavando roupa pra fora,
quando cresci um cadinho que já podia andar na rua, eu ajudava
levando a roupa, levava limpa e trazia suja. Enquanto tiver luta e
falar vamos em tal lugar, eu vou, eu estou junto. (emocionada).
Maria da Penha

Minha raiz tá aqui, né? Assim, de tudo, porque não é uma casa que
eu vim morar. Eu nasci, meu avô construiu com a minha avó e não
foi rápido porque ele trabalhava, minha avó também trabalhava
e sei lá, demorou. Ele só fazia (a casa) aos finais de semana, as fol-
gas, quando ele tava em casa, ele vinha pra cá, fazia, tinha um ou
dois amigos que ajudavam. Então, demorou sim, três, quatro anos
pra conseguir levantar a casa. Meu pai nascido e criado na casa,
eu também, agora meus filhos, não me vejo, não atrapalho. Por
que tirar se não está atrapalhando? A gente não está desmatando,
a gente não está poluindo. Eu tô com trinta e dois, meu pai tá com
sessenta e um, meu avô morou na casa sei lá quantos anos. Então,
minha casa tem por baixo uns setenta anos! Meu avô foi tempo que
ele construiu mais o tempo que ele morou com a minha avó sem ter
filhos, nessa brincadeira deve ter sido quase dez anos, construção e
ele morar sem ter filhos, porque meu pai é o do meio, tenho uma tia
mais velha, acho que agora ela está com setenta três. Vamos dizer
que durante esses sete anos, foram três, quatro anos sem filhos, se-
tenta anos. Poxa, meus amigos estão aqui, estudei aqui, tudo aqui,
em qualquer hipótese, nem que seja na casa do amigo, mas é pra
cá que eu vou voltar! Aqui que eu conheço todo mundo, aqui que eu
to acostumada, não tem porque voltar pra não ficar.
Shamyra Ferreira
163

Carolina Pires entrevista


Maria da Penha

Carolina Pires entrevista


Nélia Maria Vasconcelos
164

Ao escrever estas linhas, percebi quão trans- nar trechos que sintetizassem a importância das
formadora foi esta pesquisa não somente em mulheres na construção do território e que cou-
termos de compreensão política e de mundo, bessem em apenas um livro. Sou grata por esta
mas também no âmbito da construção de minha oportunidade e confiança concedidos para par-
subjetividade. Muitas lições foram aprendidas ao ticipar deste lindo trabalho. Agradeço a equipe,
ouvir as histórias e praticar o exercício de uma que me confiou esta difícil tarefa, pelas inúmeras
escuta atenta e solidária. Fiquei emocionada em trocas e especialmente pela paciência no proces-
diversos momentos, até porque as trajetórias so de confecção. Sinto-me honrada em escrever
muitas vezes se encontraram com a minha his- essa história construída por mulheres tão poten-
tória pessoal e familiar. Minha total gratidão e tes. Foi um período de aprendizado intenso para
admiração a cada participante que cedeu seu pre- todas e todos nós envolvidos na pesquisa. Decidi
cioso tempo para colaborar com esta construção acrescentar aqui os depoimentos das assistentes
coletiva. Recebi muito amor, carinho, atenção e de pesquisa do Horto, Bruna Ribeiro e Nataly Al-
espero que esta produção esteja à altura de todo ves, estudantes do ensino médio, pois eles reve-
afeto trocado durante este processo. lam parte da dimensão deste trabalho:
Colhi material suficiente para escrever ao me-
nos uns três livros, porém, foi necessário selecio-

Participar deste projeto foi uma experiência maravilhosa, conhecer


a história dessas pessoas, entender todo o processo que passaram
até agora, todas as lutas diárias, processos de violência, resistência,
resiliência, protestos e luta por moradia. Esse projeto é muito im-
portante para viabilizar a causa, mostrar para as pessoas toda a
história do Horto, promover conhecimentos, mostrar que são seres
humanos como quaisquer outros, lutando pelo seu direito de ter
uma casa digna. Obrigada por essa oportunidade única.
Bruna Ribeiro
165

Eu amei participar da pesquisa porque conheci mulheres com his-


tórias fascinantes e tomei conhecimento do que está acontecendo
no Horto. Essa pesquisa nos permite visualizar a situação dos mora-
dores e não invasores, como a mídia diz, além de conhecer como o
Horto e o Balança surgiram e por isso há grande importância nela.
Nataly Alves

Algumas entrevistadas também opinaram


sobre como se sentiram ao dar a entrevista ou
ainda sobre o papel e a importância da pesquisa
para a comunidade do Horto.

Muita gente não conhece a história do Horto. Você passa às vezes,


é uma história, você está no ônibus e falar não na sua totalidade,
mas falar! Não vou dizer em todos os lugares, mas, em vários luga-
res você entra e as pessoas falam “ah, você mora onde? Lá onde vo-
cês invadiram, né?” E outras pessoas falam “Não, aquele lugar tem
história”. Então, tem pessoas que conhecem a história e tem pesso-
as que não conhecem. Muita gente conhece a história, mas tem
quer ser mais divulgado, ser bem mais visitado para conhecerem
as pessoas daqui para não ficarem dizendo besteira. Até porque é
uma área que a criminalidade é zero, né?
Rosane Caetano
166

Pra quem vai ler, que veja com outros olhos a comunidade do
Horto, que tente saber um pouquinho da história, como a gente
chegou aqui, para que essas pessoas que deram a vida pelo par-
que, hoje em dia sejam adjetivados por invasores e estarem sendo
tratados dessa forma tão cruel, de querer tirar sem direito a nada.
Até porque a gente não quer casa em outro lugar não! A gente
quer continuar aqui, a gente sabe que a gente protegeu a área,
isso daqui tinha tudo pra ter se tornado em um favelão. A popu-
lação do Horto se não fosse constituída, esse lado esquerdo somos
todos da mesma situação, se não fosse beirando a rua, e servindo
de segurança para essa área aqui, me diz se não tinha? Antes isso
aqui era visto como subúrbio da zona sul. A própria Globo fez uma
novela que tinha uma mulher que ela queria ser da classe alta,
mas quando ela dizia que morava no Horto, diziam “Ah, naquele
bairrozinho xinfrim”! As amigas dela de classe alta falavam. Então,
era visto assim como subúrbio da zona sul e de uma hora pra ou-
tra a elite foi chegando ali pra área de preservação ambiental. E
foram querendo tirar a gente do campo de visão deles, então isso
é muito covarde, você que chegou ali, aquilo é novo é recente, né.
Então, isso é recente, leiam, procure saber mais da história, como
aconteceu e não vejam a comunidade como invasora até porque
nós não somos e nunca fomos. Nós somos os protetores disso aqui,
essa é a grande verdade. Quem chegou pra cima da gente foi o
parque que colocou o portão aqui atrás do orquidário, veio colocar
aqui. Já colocou duas casas pra dentro, coloca uma grade ali colo-
ca meia dúzia de casa pra dentro. Então, eles que estão vindo pra
cima da comunidade, por que que o certo era querer a área toda
se eles podem se expandir nos 89% restante. É covarde isso, covarde
é não querer o pobre aqui mesmo entendeu.
Nelia Maria
167

Eu me senti bem, você me deu liberdade pra eu falar. É claro, quan-


do falou pra eu dar uma entrevista eu tava meia cabreira, fiquei
meio assim né, “ai, meu Deus, o que será?, e tô eu, tô pra lá, tô pra
cá, não tirava o foco da entrevista. (Todos riram) Mas, graças a
Deus foi uma beleza. Você é maravilhosa. Porque eu pensei que
fosse uma pessoa assim, meia coisa (metida), né? Que fosse fazer
umas perguntas assim e não desse liberdade pra eu me abrir. Você
deu. Você foi de muita paz, um sorriso maravilhoso. Então você me
deu uma liberdade de falar tudo, tô falando ó.
Maria da Penha

Foi, foi (importante). Lembrei de quando minha irmã nasceu, a


outra, eu tinha seis anos. Aí, minha mãe tava vindo do hospital
com ela no colo, e eu Papai, papai, mamãe tá chegando do hos-
pital com o neném. Eu caí ali, ralei meu joelho comecei a chorar,
tinha seis anos. Meu pai fazia banquinho, colocava lá dentro pra
eu lavar a louça, fazia roupa pra mim, porque ele era alfaiate, pra
irmã e a minha outra irmã né, fazia tipo assim jardineira. A gente
era criança né, podia botar até sem blusa, ele fazia banquinho pra
mim lavar a louça, pra ajudar, eu era mais velha, fazia tudo, fazia
docinho pra ele, tinha um jardinzinho aqui na frente da casa, goia-
beira, com mamão, fazia doce. Bananeira era aqui, a gente não
comprava banana, a gente pegava o cacho de banana, antiga-
mente não tinha muita, era melhor do que agora né?
Vera Lúcia
168

Gostaria de dizer que estamos sendo muito injustiçados com essa


especulação! O Horto está assim, e não é, eles mentem também,
anuncia invasores e a maioria não sabe a história. Nós não somos
invasores! Eu, por exemplo, fui nascida e criada aqui, vou fazer ses-
senta e dois anos, a minha mãe veio pra cá com nove anos e mor-
reu com oitenta e quatro. Então, não tem invasor aqui, o pessoal
tem que procurar saber direitinho a história e não julgar, né?
Sheila Vieira

Considerando todas as vozes femininas aqui Horto e toda a minha admiração pela luta tra-
colocadas, faço coro aos pedidos dessas incrí- vada por mulheres guerreiras, que não se cur-
veis mulheres para que você busque conhecer vam aos desmandos do poder público aliado aos
a história da comunidade. Durante muitos anos, interesses privados. Termino essa escrita afir-
uma opinião pública contrária à permanência mando que a luta continua enquanto o coração
dos moradores e moradoras no local foi fomen- dessas mulheres e seus descendentes pulsarem!
tada por uma mídia tradicional que, monopoliza O Horto fica!
os meios de comunicação, está interessada nos
lucros trazidos pela especulação imobiliária e
assim publica matérias que tem por objetivo cri-
minalizar as pessoas que lá residem, chamando-
-as de invasoras.
Hoje, a permanência do Horto significa o res-
peito e a efetivação da cidadania de trabalhado-
res e trabalhadoras, que cederam os melhores
anos das suas vidas para construir e manter o
Parque do Jardim Botânico, além de criar um
ambiente saudável, de respeito à natureza e
convivência pacífica. Resta aqui os meus since-
ros desejos de permanência à comunidade do
169

Referências
CARNEIRO, Sueli. “Enegrecer o feminismo: a situ- JESUS, Carolina Maria de. Quarto de Despejo:
ação da mulher negra na América Latina a partir Diário de uma Favelada. 1ª ed, São Paulo: Francis-
de uma perspectiva de gênero”. In: ASHOKA co Alves, 1960.
EMPREENDIMENTOS SOCIAIS; TAKANO
CIDADANIA (Orgs.). Racismos contemporâneos. PACE, ngela F.; LIMA, Marluce O. Racismo
Rio de Janeiro: Takano Editora, 2003. p. 49-58. Institucional: Apontamentos Iniciais. Artifícios.
Revista do Difere - ISSN 2179 6505, v. 1, n. 2,
HALE, Charles R. What is Activist Research? dez/2011. Disponível em: http://www.artificios.
Items (Social Science Research Council) 2(1-2):13- ufpa.br/Artigos/a%20angela%20pace%20rev.pdf
15. 2001.
170
171

Organização

Rede de Museologia Social Museu


do Rio de Janeiro
do Horto
Museu Sankofa
Memória e História
da Rocinha

Realização

Patrocínio

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