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Amor de Perdi¢do, de Camilo Castelo Branco > Estrutura da obra A obra & composta por vinte capitulos, antecedidos pela Introdugo e sucedidos pela conclusao. 'Na introdugao 0 narrador/autor dé inicio ao processo narrativo, Perante 0 acesso ao registo da condenacdo de Simao Botelho no cartorio, de cadeia da Relagao do Porto, propde-se a narrar a histéria do joven, que sintetiza na frase “Amou, perdeu-se e morreu mando’. Esta frase lapidar evidencia que o autor concebeu a estrutura da novela em fungo da sua personagem principal Na‘conclus&, para além do desfecho da intriga, o narrador/autor identifica Manuel Boteiho, ‘como sendo seu pai, clarificando, portanto, a relacéo de parentesco existente - 0 joven Simao Botelho era 0 seu tio paterno, Introducao (Amou) Simo vé a sua vizinha, Teresa, a janela, e apaixona-se. "Simao Botelho amava.” "Amava Sim&o uma sua vizinha.” "Da janela do seu quarto que ele a vira pela primeira vez, para amé-la sempre. Nao ficara ela incslume da ferida que fizera no coragéo do vizinho: amou-o também, e com mais seriedade que a usual nos seus anos. (Cap. I!) Desenvolvimento Por amor a Simao, Teresa recusa casar como seu. primo Baltasar, enfrenta o pai e decide entrar num convento. ‘Simao é vitima de uma emboscada, na qual é ferido e morrem dois criados de Baltasar. “E escusada a violencia, porque eu nao caso!” (Cap. IV) "Os homens vao atirar-Ihe...- disse o ferrador. Griteios daqui doutor que nao va para diante - Jé no 6 tempo... Ou 0 matem ou no 0 matem, quando voltarem s&0 nossos.” (Cap. VI) Teresa vai para o convento em Viseu. “Todavia, receando o velho algum incidente no espaco de tempo que mediava até se conseguirem as licencas, resolveu néo ter consigo Teresa, e solicitou a retencéo temporéria dela num convento de Viseu.” (Cap. Vill) _ ‘Simo mate Baltasar. “Baltasar Coutinho langou-se de impeto a Simo, Chegou a apertar-ihe a garganta nas mAos; mas depressa perdeu o (Perdeu-se) | vigor dos dedos. Quando as damas chegaram a interpor-se entre os dois, Baltasar tinha o alto do crénio aberto por uma bala, que Ihe entrara na fronte.” (Cap. X) Simao 6 preso. | "= Eundo fujo — tornou Simao, — Estou preso. Aqui tem as | minhas armas E entregou as pistolas." (Cap. X) ‘Siméo é condenado a forca. | “Ouviu o réu a sentenga de morte natural para sempre na | forca, arvorada no local do deli.” (Cap. Xi!) _ ‘Teresa vai para o convento_| “Teresa Clementina bem a viam transportada da escadaria de Monchique, no Porto. _| do templo onde caira, & liteira que a conduziu ao Porto.” | (Cap. xm | Siméo 6 condenado a0 *O meu tribunal estd preparando para ihe minorar a pena em degredo. ez anos de degredo para a india.” (Cap. XVI)_ Partida de Simo parao | “A 17 de marco de 1807, saiu dos cérceres da Relgao Simao degredo. Anténio Botelho, e embarcou no cais da Ribeira, com setenta @ cinco companheiros.” (Cap. XX) Concluséo | Morte de Teresa e de Simo, | "- Teresa...! Morreu?! (Morreu | - Morreu, além, no mirante, donde ela estava acenando. mando) | Entrou 0 comandante com uma lmpada, e aproximou-iha da respiragao, que ndo embaciou levemente o vidro. ~ Est mortol — disse ele.” (Cap. XX) > Sugestio biografica (Simao e Narrador) e construgao do hersi romantico ‘Amor de Perdiclo (1862). Uma das obras:primas do romance portugués do século XIX, 6 a mais célebre das novelas de Camilo. € apresentado pelo autor como a narrativa de um jovem que "amou, perdeu-se e morreu amando” (1. AS precisOes cronolégicas, os documentos citados e até as omiss6es e ignorncias reconhecidas pelo narrador autentificam o aspeto histérico e veridico do romance; o titulo mesmo cha 0 ambiente de fatalidade trégica.de acontecimentos ainda desconnecidos pelo leitor mas cujo.desentace esta apontado.(..) R.A Lawton, “Amor de Perici. J.. Cicofel ie). Grade Diciondri de Literatura Portuguesa eda Teor Lilerdria, 1997, Lisboa: Iniciatvas Eaitoras, 247, * Deste texto pode-se concluir que’ '* Camilo Castelo Branco, preso na Cadeira da Relago do Porto, encontra 0 registo da ‘condeniagdo ao degredo de um tio paterno, Siméo Botelho. O autor apoia-se num dado real, a condenacéo de Simao, para, a partir dele, reconstruir os acontecimentos que levaram a0, desfecho dramatico; 7 ‘= Apresenca do narrador-autor @ 0 paralelismo que vai tecendo entre a desventura do seu tio Simo e a Sua propria vida so evidentes, por exemplo, na Introducéo e na Concluséo, nas referéncias & tia Rita, na alusdo & sua priséo e escrita da obra; +» Simao Botelho e 0 autor/narrador partilham o mesmo destino — ambos so presos pelo mesmo motivo: o amor, * Amou, perdeu-se e morreu amando. Esta expresso traduz o perfil e evolugao de Simo enquanto her6i romantico: a virilidade fisica e moral, a impulsividade; a rebeldia e a solidéio face a sociedade; os instintos violentos; a vivéncia de um amor transfigurador, que redime os erros; o dominio dos sentimentos sobre a razéo; 0 idealismo amoroso; a fimeza e a dignidade face & ameaca da forca e do degredo; a ideia de morte indissociavel da ideia de amor e encarada como saivacéo e transcendéncia, a forga do destino que o persegue. > Onarrador O narrador surge nesta novela como voz plena. E um narrador/autor em que sentimos poderosamente a presenga de Camilo. A introdugao aparecia como Prefacio na 1.* edigSo - ‘como sendo portanto responsabilidade direta do Esoritor (0 Prefacio, por indicagéo expressa de Camilo no manuscrito original, foi impresso na 1.* edigéo num tipo de letra diferente do utlizado no corpo do livro. Mais se reforcava assim o efeito de estar 0 Escritor dirigindo-se a0 ‘seu publico); por trés vezes ainda no texto Camilo identifica o narrado consigo proprio: = no Cap. Xi, a0 inserir a carta de sua tia Rita; ~no Cap. Xill, quando alude & sua estada na prisdo e feitura da novela; = nas linhas finais da Conclusdo, quando identifica Manuel Botelho como seu pai ‘Ao longo de todo a novela o narrador mantém sem quebra este estattuto ficcional - ele "6" a voz do Escritor, conta apaixonadamente a histéria, no se coibindo de condenar, elogiar - numa palavra, de vibrar com as personagens que cria e as situagbes em que as insere, + Narrador/autor — autodiegético Na introducéo, 0 narrador relata a hist6ria como sendo seu protagonista, assumindo a primeira pessoa como suporte da verdade que vai ser narrada. * Narrador nao participante — heterodiegético Nos vinte capitulos da obra, 0 narrador narra a histéria em que n&o participa como personagem. Utiliza a terceira pessoas e a veracidade dos factos. confirmada pelas datas, antecedentes familiares e circunsténcias das personagens. + Focalizagao ou pontos de vista do narrador - Focalizagao externa Através de uma focalizagao externa, o narrador, de forma objetiva e desapaixonada dé-nos acesso a # atos e situacdes; ¢ cartas; ¢ espagos; ¢ aspeto fisico das personagens. Focaliz O narrador assume uma posi¢éo demiurgica, néo deixa de penetrar no interior das Personagens, revelando as suas ideias e pensamentos (“Simao ficou pensando na sua espinhosa situagao. Deviam de ocorrer-the ideias afltivas (...)’, cap VIII) acéio omnisciente - Focalizagao interventiva Mesmo nao participando na histéria, o narrador emite opiniées e faz comentérios interventivos: ¢ apela a sensibilidade dos leitores (‘Dezoito anos!...E degredado da patria, do amor e da familial (...) E triste!", Introducéo); *acentua aspetos das personagens ou omite facto e situagbes, ‘A conjugagao destes tipos de viséo contribu para a verosimilhanga da narrativa, > Amor de Perdig&io como crénica da mudanga social A obra tem varios sentidos, segundo os angulos de que a encararmos. E um conflito entre 0. ‘amor e os preconceitos de pais inflexiveis, desumanos no seu orgulho. Um caso de rivalidade que, gerando o édio e a fome de vinganga, conduz ao crime. Um exempio roméntico do poder transfigurante do amor: desordeiro, dado as piores companhias, Simao toma-se um homem, digno, com uma sensibilidade de poeta. (...) Camilo teria querido denunciar uma sociedade cegamente vinculada ao preconceito aristocratico do pundonor A critica aos pre itos aristocraticos ‘A obra Amor de Perdigo foi escrita na segunda metade do século XIX (1861), época que evidencia, por um lado, uma “sociedade aristocrética e fradesca’ com caracteristicas que, definiam a aristocracia antes de 1832-¢, por outro, uma sociedade burguesa'com bases de. Constitucionalismo, ‘A mentalidade dos pais de Simao e de Teresa, a sua atuagao e preconceitos evidenciados refletem a decadéncia da sociedade que representam — uma nobreza e uma burguesia decadentes que se opéem ao povo que, nesta obra, configura os valores auténticos e instintivos. Acritica de Camilo a esta sociedade que se rege por principios como o estatuto sociel, o poder econémico, as conviceSes/dogmas, em detrimento da dimenso humana é evidenci ar Simo/Teresa que deseja viver diferentemente, assumindo uma outra forma de mundo. ‘Tendo como horizonte a mudanga social, Camilo denuncia a ¢ sociedad repressiva visivel na relacdo paisifilhos, mostrando 0 confito de mentalidades - ais repressivos e inflexiveis que se opdem a felicidade dos filhos (cf. Autoritarismo de Tadeu de Albuquerque, por exemplo, o casamento por conveniéncia, a restric&o & ago das mulheres); + lgreja enquanto instituigo que age de acordo com a sociedade por interesse, promovendo a clausura das jovens mais rebeldes (aliés, 0s vicios e a corrupgao dos conventos sao bem ssalientados ao longo da obra); ¢ juslica e a sua arbitrariedade através da parcialidade revelada nos julgamentos, em que @ classe social ou a influéncia de determinadas figuras podem determinar o desfecho; > Oamor-paixio (...) O.amor 6 promovido a categoria de sagrado - 6 normalmente trégico ¢ redime pelo soffimento e expiagdo — levando quase sempre & morte fisica ou psicolbgica. Ha a nogao de que 0 amor é eterno perante a morte e uma constante reivindicagao dos direitos do coragao face as instituig6es e estruturas socioeconémicas repressivas, particularmente as familiares, A intriga amorosa desenvolve-se e fortalece-se, assim, num mundo de violéncia e de. arbitrariedades. As personagens dos amantes surgem quase sempre dilaceradas entre tendéncias opostas, como o amor e 0 édio, 0 amor e 0 orgulho, o amor @ a honra ou o pundonor. $40 personagens dominadas pelo destino, que ndo conseguem alterar.(...) Deste texto pode concluir-se: + 0.amor em Amor de Perdi¢ao 6 um amor sentido mais do que vivido. E um amor de herdis que protagonizam cenas dramaticas — é um amor-paixéo de novela romantica; + amor 6 assumido como um valor sagrado que entra em conflto com a realidade e arrasta as personagens até & morte. Os herbis amam e sofrem até & morte que aparece como a tinica Via para a consumagao do amor. O sofrimento é, portanto, elemento integrante do amor permitindo 0 autoconhecimento e a elevagao espiritual, - ‘¢ 0 amor aparece como um sentimento absoluto e arrebatador que provoca tensées nos sujeitos envolvidos e o seu isolamento do mundo real. E 0 caso do par amoroso Simao/Teresa que, face a oposigo das familias, aspira & concretizagao do seu amor na morte. E uma conquista espritual que redimensiona o verdadeiro ser. Apaixdo avassaladora que une Simao e Teresa leva-os a fatalidade, & morte, > Aconcentracao temporal da ago ‘© tempo é cronolégico @ continuo. Os acontecimentos so datados, mas hé uma delimitagao imprecisa. A aco decorre entre 0 final do século XVIII @ 0 inicio do século XIX. Capitulo | 1779/1801 ‘Abrange os antecedentes da ago, mas o tempo é delimitado imprecisamente. O inicio da novela datada de 1779, mas logo sugerida uma época anterior. O ritmo narrativo & répido e a nog&o cronoldgica de tempo nitida. A ago decorre em seis anos 1801: Simao tem quinze anos, 1803: Teresa escreve uma carta a Simo, dizendo-Ihe que o seu pai a ameaga com a ida para © convento. 4 1804: Sim&o é preso, Tem 18 anos. 1805-1807: Simao encontra-se preso (20 meses na priséo e decorrem mais seis meses antes de partir para a india, degredado), 17 de marco de 1807: Siméo parte para a india. 28 de margo de 1807: Simao morre. ‘A datacdo dos acontecimentos continua. O ritmo narrativo & ainda acelerado e resulta da conjugagao de diferentes processos: #0 recurso aos didlogos, que permitem criar uma coincidéncia do tempo de ago com 0 tempo de discursos; #0 foco narrativo na movimentac&o das personagens e nos seus gestos (0 narrador no se perde em consideragées), ‘a utilizagao das carias, pois 0 narrador evita, assim, 0 aprofundamento psicolégico dos seus protagonistas. A medida que a ado se aproxima do desfecho, a passagem do tempo 6 menos nitida, Tal ogo parece identificar-se com 0 sentimento das personagens de que a realizagao do seu ‘amor no ocorreré num tempo terreno, mas antes num tempo etemo. > Relagdes entre personagens Simao Botelho Teresa de Albuquerque ‘* nobreza de alma + beleza fisica ‘shonra + condigdo social elevada — “fidalga” ‘s sentimento de dignidade na defesa dd seu | + delicadeza de sentimentos amor + paixo por Siméo — 0 amor como tinica + liberdade essencial a sua integridade razo para viver pessoal determinago — recusa casar com Baltasar, ‘s representa o heréi roméntico ~ antissocial, | seu primo arrebatado, poeta e transformado pelo'amor | « coragem~enfrenta 0 pai Baltasar Coutinho Mariana + beleza; + mulher do povo; + desenvoltura resolugao de problemas.e decisées tomadas; + carinho pelo pai (Joao da Cruz); ‘¢ amor incondicional por Sim&o; + abnegago e sofrimento; + poder intuitive — profecia; + intermedidria entre Simao e Teresa Jogo da Cruz + popular (atitudes e linguagem expressiva); + auténtico; + anti-heréi— simultaneamente bondoso, grato, corajoso e violento; + Protetor de Simao. Baltasar + orguiho; + prepoténcia; + insensibilidade perante 0 sofrimento dos outros; + manipulacdo do pai de Teresa; ‘+ manipulacdo do pai de Teresa; # pelos seus defeitos, faz sobressair a dignidade de Simo; + representa os valores socials instituidas; Tadeu de Albuquerque e Domingos Botelho + inflexibiidade nas suas decisées; # orgulho; + representam os preconceitos socials — preferem perder os flhos a perder @ sua dig social; + Tadeu de Albuquerque representa os falsos valores da aristocracia, > Linguagem e estilo A linguagem e 0 estilo de Camilo Castelo Branco na obra Amor de Perdigéo caracterizam-se pelos seguintes aspetos: # coexisténcia de uma linguagem cultalerudita ou mesmo retéricas em que predominam os Periodos longos, com uma linguagem mais popular, corrente e dinémica com periodos curtos, expressées de cariz popular ou castigo, + linguagem adaptada a caracterizagéo das personagens (por exemplo, natural em Mariana ou Joao da Cruz, mais cuidada e estiizada em Simao e Teresa); + linguagem poética, sobretudo nas cartas; ‘+ presenga de metaforas ao servigo da intensificagdo dos sentimentos: ‘ presenca da ironia na critica social, + conciséo dos diélogos; ¢ uso recorrentes de vocabulério dos campos semanticos de amor, dor, morte, sofrimento; + construgéo frésica com pouca subordinaggo; + relevancia do uso expressivo do verbo; + utilizagao do pretérito perfeito e do pretérito imperfeito que permite um relato mais rapido e conciso, = Os didlogos Os didlogos em Amor de Perdic&o so aco, pois derivam para os pontos essenciais da intriga, Hé varios tipos de didiogo com a fungéo de: + informar sobre determinadas circunstancias, + fazer a expansdo sentimental; + permitir a confrontacdo; + comunicar decisées tomadas. Os didlogos sao também importantes na caracterizag&o das personagens porque o narrador, através deles, transmite.as diferentes visGes do mundo e as diferentes sensibilidades dos protagonistas.

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