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A Reforma Psiquiátrica No Brasil Uma (Re) Visão Grifadp
A Reforma Psiquiátrica No Brasil Uma (Re) Visão Grifadp
REVISÃO REVIEW
The psychiatric reform in Brazil: a (re)view
Alice Hirdes 1
Abstract This paper aims at contextualizing the Resumo Este artigo tem por objetivo contextuali-
Brazilian Psychiatric Reform by reviewing theoret- zar a reforma psiquiátrica brasileira, a partir da re-
ical and practical milestones in the country’s poli- visão dos marcos políticos, teóricos e práticos. Fo-
cies. Theses, dissertations, papers published in a da- ram pesquisadas dissertações, teses, artigos em bases
tabase (Scielo), books on the theme, and official doc- de dados (Scielo), livros sobre a temática e documen-
uments (conference reports, laws, bills) published tos oficiais (relatórios de conferências, leis, portari-
between 1990 and 2007 were studied. The results show as) de 1990 a 2007. Os resultados evidenciam os avan-
the advances and challenges of the Psychiatric Re- ços e desafios da reforma psiquiátrica, apontam para
form and point to the immediate need of a program a necessidade urgente da capacitação dos operadores,
for qualifying personnel; the need to use primary care, a utilização da atenção básica, particularmente a
mainly the Family Health Program; the need to fi- estratégia do Programa de Saúde da Família; o fi-
nance primary care; the adoption of the principles of nanciamento da atenção básica; a adoção dos prin-
the psychiatric reform; the need to individualize cípios da reforma psiquiátrica; a articulação trata-
treatment, psychosocial rehabilitation; integrated mento, reabilitação psicossocial; clínica ampliada;
care; and therapeutic project constructed collectively projetos terapêuticos individualizados, construídos
through the use of interdisciplinary and trans-disci- coletivamente, mediante abordagens inter/transdis-
plinary approaches, as well as constant assessment of ciplinares; e a avaliação das práticas em curso. Fina-
the current practices. It is also pointed out that Re- liza apontando que os projetos de reforma não são
form projects are not homogeneous, i. e., practices homogêneos, as práticas são executadas conforme a
happen according to the professionals’ theoretical concepção teórica dos trabalhadores de saúde men-
conception. This means that there are general guide- tal, ou seja, existem princípios orientadores gerais,
lines, but that they are subordinated to the specific mas que, em última análise, estão subordinados aos
settings where the practices are carried out. settings específicos onde ocorrem as práticas.
Key words Mental health, Primary care, Mental Palavras-chave Saúde mental, Atenção primária à
health services, Rehabilitation, Rehabilitation cen- saúde, Serviços de saúde mental, Reabilitação, Cen-
1
ters, Health services evaluation tros de reabilitação, Avaliação de serviços de saúde
Universidade Luterana do
Brasil, Unidade
Universitária de Gravataí.
Av. Itacolomi 3.600, São
Vicente. 94170-240
Gravataí RS.
alicehirdes@gmail.com
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Hirdes A
formações qualitativas no modelo de saúde e não serviços de saúde mental, traz a necessidade do
meramente de reorganização administrativa. deslocamento essencial da perspectiva da interven-
Para Amarante10, a produção de Basaglia foi e ção dos hospitais psiquiátricos para a comunida-
continua sendo um marco importante de referên- de; o deslocamento do centro do interesse somente
cia para os projetos de reforma psiquiátrica e para da doença para a pessoa e para a sua desabilidade
o redimensionamento atual da desinstitucionaliza- social e o deslocamento de uma ação individual
ção em psiquiatria. Coloca que “o projeto de de- para uma ação coletiva nos confrontos dos pa-
sinstitucionalização volta-se para a superação do cientes com seus contextos9.
ideal de positividade absoluta da ciência moderna Pela inquestionável importância que assume a
em sua racionalidade de causa e efeito, para voltar- produção prático-teórica basagliana, estas idéias e
se para a invenção da realidade enquanto um pro- conceitos deverão sempre estar presentes no coti-
cesso histórico”10. diano dos trabalhadores de saúde mental que se
espelham nos pressupostos da reforma psiquiá-
Princípios para a organização dos serviços trica. Igualmente, pensamos que estes conceitos
devem ser uma linguagem universal, acessível a
A seguir, citamos os princípios de Rotelli9 para todos os profissionais, técnicos e não-técnicos. Isto
um trabalho efetivo de desinstitucionalização. Pen- evitaria as “derrapagens” eventuais que porventu-
samos que estes indicam um caminho norteador, ra possam ocorrer.
que deveria estar presente na prática dos serviços O projeto de desinstitucionalização busca a re-
de saúde mental e, periodicamente, deveria ser con- construção do objeto (enquanto sujeito histórico)
sultado, para corroborar a prática executada com que o modelo tradicional reduziu e simplificou
a teoria e ver se há congruência e pertinência entre o (causalidade linear doença/cura – problema/solu-
desenvolvido e o anunciado. ção). Mas para alcançar este objetivo, faz-se neces-
Rotelli9 vê a desinstitucionalização como um sário que as novas instituições estejam à altura do
trabalho prático de transformação que contem- objeto que está em constante reconstrução na sua
pla: a ruptura do paradigma clínico e a reconstru- existência – sofrimento: esta é a base da instituição
ção da possibilidade – probabilidade; o desloca- inventada9.
mento da ênfase no processo de “cura” para a “in- Os projetos de atendimento surgidos nos últi-
venção de saúde”; a construção de uma nova polí- mos anos têm de saída a recusa do modelo sinto-
tica de saúde mental; a centralização do trabalho mático em benefício da criação de uma clínica psi-
terapêutico no objetivo de enriquecer a existência quiátrica renovada, deslocando o processo do tra-
global; a construção de estruturas externas total- tamento da figura da doença para a pessoa doente.
mente substitutivas à internação no manicômio; a Nestes novos espaços, as ações antes centradas nos
não-fixação dos serviços em um modelo estável, sinais e sintomas, na classificação dos diferentes
mas dinâmico e em transformação; a transforma- quadros nosográficos, em suma, na medicaliza-
ção das relações de poder entre a instituição e os ção da loucura, passam a ter outro enfoque, que é
sujeitos; o investimento menor dos recursos em o de falar de saúde, de projetos terapêuticos, de
aparatos e maior nas pessoas. cidadania, de reabilitação e reinserção social e, so-
Além destes aspectos, o autor refere o cuidado bretudo, de projetos de vida11.
como elemento-chave para transformar os modos
de viver e sentir o sofrimento do “paciente” em sua Os Centros de Atenção Psicossocial
concretude, no cotidiano; a mobilização de todos e demais serviços substitutivos
os atores envolvidos – técnicos e pacientes –, isto
irá produzir comunicação, solidariedade e confli- De acordo com dados do Ministério da Saúde,
tos, ingredientes fundamentais para a mudança das existem no país 918 CAPS em funcionamento, 120
estruturas e dos sujeitos; a promoção da capacida- deles voltados, exclusivamente, ao atendimento de
de de auto-ajuda e de autonomia das pessoas; o dependentes de álcool e drogas. Os CAPS, os 475
enriquecimento das competências profissionais e serviços residenciais terapêuticos e os 350 ambula-
dos espaços de autonomia e decisão; a demolição tórios, ao lado dos 36 Centros de Convivência e
da compartimentalização das terapias (médica, Cultura e do Programa de Volta para Casa e Inclu-
psicológica, social, farmacológica, etc.); a valoriza- são Social pelo Trabalho, compõem a rede extra-
ção da dimensão afetiva na relação terapêutica, de hospitalar que substitui, aos poucos, o atendimento
figuras não profissionais no campo, utilização de prestado pelos hospitais psiquiátricos, no Brasil12,13.
esforços sociais e; a liberdade é terapêutica9. O maior número de CAPS por 100 mil habi-
Dentre os princípios para a organização dos tantes localiza-se na Região Sul – Rio Grande do
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teoria, de uma prática e de uma ética, mediante o mental para um contexto comunitário, a vontade
estabelecimento de um acordo político. Saúde men- política para a implantação de estruturas substi-
tal e PSF implicam transformações profundas nas tutivas à internação será crucial e, concretamente,
práticas do Estado, em todos os seus níveis27. irá redimensionar novos espaços para o sofrimen-
to psíquico, a partir da produção de uma nova
cultura de saúde/doença mental e das relações es-
Considerações finais tabelecidas neste campo. Entretanto, estas ações
devem transpor a centralização das ações no mo-
Muitos avanços ocorreram com as experiências de delo biomédico, na doença, através de uma abor-
desinstitucionalização. Entretanto, pensamos que, dagem que articule tratamento, reabilitação psi-
a despeito de muitos serviços que trabalham sob a cossocial, clínica ampliada e projetos terapêuticos
égide da reforma psiquiátrica em nosso país, há a individualizados.
necessidade de constantemente redimensionarmos Cabe destacar a necessidade de investimento na
o olhar para as práticas em curso, para que aos instrumentalização dos profissionais para alavan-
novos serviços correspondam as balizas propos- car a inclusão do cuidado à saúde mental no Siste-
tas, no nosso caso, o referencial da reforma psi- ma Único de Saúde, com vistas à reversão do mode-
quiátrica italiana. Há que lembrar, também, que lo assistencial. A inserção das ações de saúde men-
os dispositivos como os Centros de Atenção Psi- tal no PSF perpassa fundamentalmente a capacita-
cossocial (CAPS) deverão se constituir como luga- ção e apropriação de conceitos de clínica ampliada
res de passagem; do contrário, sem esta revisão e dos profissionais para a mudança do paradigma.
crítica, a tendência dos novos serviços que traba- A reforma psiquiátrica brasileira, através da cri-
lham no contexto da reforma psiquiátrica poderá ação dos novos dispositivos em saúde mental, as-
encaminhar-se para a institucionalização. Para que sim como através da inserção das ações de saúde
isto não ocorra, torna-se crucial a instrumentali- mental na saúde pública, possibilita novas aborda-
zação dos trabalhadores de saúde e de saúde men- gens, novos princípios, valores e olhares às pessoas
tal, a sensibilização dos gestores de saúde e a per- em situação de sofrimento psíquico, impulsionan-
manente preocupação com a qualidade dos servi- do formas mais adequadas de cuidado à loucura
ços oferecidos. no seu âmbito familiar, social e cultural. Os proje-
A inserção das ações de saúde mental no PSF tos de reforma não são homogêneos, as práticas
constitui-se em estratégia adotada pelo Ministério são executadas conforme a concepção teórica dos
da Saúde. A ênfase das ações de saúde mental no trabalhadores de saúde mental. Concluímos, enfa-
território constitui-se na própria essência da de- tizando que existem princípios orientadores gerais,
sinstitucionalização da psiquiatria. Para que efeti- mas que, em última análise, estão subordinados
vamente haja o deslocamento das ações de saúde aos settings específicos onde ocorrem as práticas.
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