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Moacir Gadotti Educar para um Outro Mundo Possivel ‘580 Faulo, 2007, 1° edicso PUBLIJSHER Copyright © 2007 by Pubisher Brasil Catora Publisher Breil Rua Bruno Simon), 170, Pinneras, Sso Paulo ~ SP CEP: 05424050 Telefon: 11 5813-1636 ‘nal presil@uolcom bx ‘wu putisherbras.com be Editor Renato Rovai Capa e Projeto Gréfico Carolina Fernandes Fotos capa Jesus Carlos (Imagenlatina) Paulo Pepe Renato Rovat Revisao Mauricio Ayer (coordenador) Bia Rangel Annita Costa Malufe Dads interacionas de Catal P bs ialogagao na Pubicasto (CP) (Camara rasta do Lun, SP Brest (cacota, Poacir [car para um outro mundo possvel/ Mo ~~ S80 Paulo: Pubtsher Bras, 2007 “0 Forum Social Mundial como espaco de aprendizagem de uma nove cua palicae coro processo tnstomaay accueil Bibles 1 Educagio~ Fnaiaces e objets 2, Forum Social Munda 5. rganzesdes ndo-governamentals | Tio teat 00-370.115 Indice para catiogo cago para 9 esponsabi '5oH 978°85-85938-42-0 jade socal 570.115 indice preticio - Um novo passe adiante — Anténio Martins Primeiras interrogagées 1. Por que devernos mudar 0 mundo? 1.1. Tansformar 0 1isco em oportunidade aizagao 8 alterglabalizagao 1.2. Da antilot 2. Aquem interessa mudar o mundo? 2:1. Aforga aglutinadora do Pérurn Social Mundial de fazer police 5. 0 espinito do Forum: espace, processo € utopia critica 3. 0 que & esse outro mundo possivel? (0 que ha de novo no campo secialsta?’ (0 que produatram as utopias? Im outro mundo é possivel desde Js 4, Como construir esse outro mundo possivel? 4.1, Para que serve tomar 0 poder de assalto? 1.2. Um outro mundo & passivel sem tomar o poder 4.5. 0 que esperar dos partidos politccs? 4.4, go se muda o mundo sem um sonho '5. Espaco livre e ator politico oa Davos? 5.1. Como tomar @ FSM mais do que um contrapo sotade? 2. O formato incial do '5M estata realmente Consideragées finals ~ Educar para outros mundos po: Bibliogratia 6 ry 79 88 7 99 105 109 173 179 187 195, Prefacio Um novo passo adiante Antonio Martins : Langado em janeito de 2001, 0 Fi nen ‘um Social Mundial (FSM) trans. Pouco tempo, num elemento relevante da ps = aisagem po: nt mbm num ene nla Deze Iie epost do enon ods oa a € ago comum, multiplicaram-se, 5 locais, : litica do pl oe "g10nais, nacionais, tematicos, Em torno desses eventos, . clas sociais. Centenas de trabalhos académicos e dezenas de th ma Iuitos idiomas, tém sido publicados sobre o tema. Duss canactatein tornam a obra de Moacir Gadotti tinica e . comega as caracteristicas indlispensavek: visto histérica Educar para um Outro Mundo Possivel enxerg: além de sua superficie. Gadotti percebe qu Pee Politica. Um novo projeto emancipatério esta em gest — ap6s 0 period opaco em que fez sucesso. ‘i © sentido essencial di a0. Ele retoma, ahipstese do “fim da histéri ia idia de utopia. Os seres humanos tém o direito. de construir seu os amie atu nt ean obras repro as ee €stdo imersos, nem as injustigas que elas implicam. 4 Mas s6 Porque ela estd sendo, st ancipagao, prossegue Gadot '40 mesmo tempo, reinventada, Hi ti s rupturasen: Drojeto ut6pico que cor 0 ut6pico que comega a nascer e o que marcou a modernidade. tar” os nticleos : Peiaia le o basta “conquis: aparentes de seu poder (o Estado : a fibrica). E pre preciso Um novo passo adiante es e propor uma lgica social baseada em outros, ' de atividades paralelas que compoem a progra sa0 um festival exuberante das iniciativas em cenfrentar seus valor’ opostos. As centena: ‘agi dos Foruns Sociais ‘em todo o mundo, em favor desta mudanca. ‘curso, ‘Questiona-se a mercant tiva, organizar a producao direitos. Denuncia-se a “guet 1 0s paises sejam presididas pela forca paz ¢ de nao-violéncia ativa. Reconhe tilizagao da vida —e se prope, como alterna de riquezas com base na universalizagio dos xa infinita” dos BUA e a ameca de que as relagdes entr ese oferece, como ‘aida, difundir uma cultura de ese aerise dafamilia nuclear monogimica ~ se sugere a equidade de géneros, 0 respeito Tagos pessoais baseados no os de grandes desastres naturais ~ lizatorio, no qual a natureza seja vista como morada (na0 como re- curso) €0 ser humano como habitante (nao mais explorador) do plane: ta. Propoem-se, para a crise planetivia ede redistribuicao de riquezas em escala mundial. Diante da 1a todas as orientagdes sexuais, a valorizagao dos afeto ¢ na solidariedade. Apontam-se 0s ris- c se defende um novo paradigma dos Bstados-nagio, formas de democracia rise do dominio do Ocidente sobre o planeta ¢ dos riscos de “choque ie civilizacoes’, defende-se — e se pratica — 0 dilogo permanente ent cultura, nio apenas entre as aparéncias de seu poder x: A idéia de representacao politica esta em crise, Os Segunda rupt partidos sio eficientes para comandar a luta pela conquista do Estado por exemplo, para disputar eleigSes ou organizar a insurreigdo. Mas se a superagao do capitalismo exige propor novos valores ¢ criar pet tmanentemente novas rela¢Ges sociais, nto & preciso instrumentos que despertem os cidadios do automatismo de suas vidas cotidianas, eIhes mostrem a possibilidade de recrié-las. Estes instrumentos sio organizagbes auténomas voltadas para agoes transformadoras. Existem as centenas, em todos 0s paises. Assumem imiiltiplas formas: um movimento social que luta pela terra, wm grupo ambientalista que mobiliza contra a acio devastadora de uma transna- ional, uma rede feminista contra a violencia domeéstica ¢ pela liberda ide de orientacio sexual, um grupo de jovens de periferia que exige a criacao de telecentros ou promove a cultura do rap, uma associagio de consumidores dispostos a exigir seus direitos. As iniciativas si0 muito diversas, mas tém algo essencial em comum: ‘Anténio Martins existem para empoderar, converter em forga social a vontade de cons- {ruin por meio de agdes diretas, novas relacdes sociais, Esta cultura nas. Gente fem alguma identidade com a antiga tradigSo anarquista, porque nfo transfere suas esperangas, cnergias e esponsabilidades para a con 4uista do Estado. Mas, ao contrério do anarquismo do século XIX, ela no rejeita as possibilidades de usar a instituigdes para construir novas Tclagoes soca, Porque os direitos precisam se tornareftivos, porque certas leis inibem a mercantilizacdo da vida e a s Porque certos governos sio muito mais sensive ténoma da sociedade, Teresi ruptura: A construgio de uma nova sociedade nio pode ser adiada para © momento da revolucéo ou d: Encias como a economia solidéria ou 0 soft Lima logica social pés-capitalista pode e precisa surgi, expandit-ve «ve desenvolver ainda quando as relagbes sociais hegemdnicas ato ue capi talistas. MilhOes de pessoas trabalham ho} numa cooperativa auténtica ou com selvageria capitalista, is que outros & agao au la vit6ria eleitoral. Experi- wave livre demonstram que je numa fabrica recuperada, luma rede de desenvolvimento de métodos colaborativos. Ao se repro- dlzitem, estas experiéncas difundem valores de solidariedade edn Para os direitos, ensinam a empreend solugdes dle informatica utilizando ler projetos coletivos nao voltados Paraaacumulacio egoista de riquezas, © pos-capitalismo tambén tilizagao do mundo ou “ relagbes capit se constréi quando evitamos a mercan- “libertamos” certos aspectos da vida social das. ‘alistas. No Brasil, por exemplo, os portadores de HIV t bem gratuitamente os medicame 4 Aids. Iss0 ¢ possivel da Fiqueza gerada pela sociedade para a garantia de um dneite ona Xo. Além de evitar dezenas de milhares de mortes, esta redistribuigao mostra que nao estamos condenados a vive Ciais baseadas no individualism, no célculo econdmico, na competigao exasperante de todos contra todos. Relagdes capitalistas © ps Por muito tempo. Vista desta nnho que marcou tanta; "tos antivirais que permitem controlar Porque se organizou a transferéncia de uma parte 1 sob a titania de relagaes so. apitalistas conviverio provavelmente Petspectiva, a revolucio social, este so 's Beragdes nos tltimos séculos, ganha uma nova Perspectiva. Ela nao se resume & “conquista” do Estado e da fibriea, Tor nase plural. As revolugdes, as grandes mudanas que produsinos na Um novo passo adiante Jsocaem ods ses aspects A cio de encom oda humanidade, a desmercantilizagio ea garantia de acesso de toe I cetgu, sxe, edacesso, 20 tabalho, ioternet, a umn tenda por Dera cover de amegurar urna vida digna. A mobilizagio cont es ado capaz de assegur mbit como =e st dua cla dep qese desde por eel a 1 as mulheres eos seres humanos de a condenagao da violéncia contra a nose combate aos mecanismos que transformam 0 pod Fee ern cabamdnomo capernetmsdedade Amalia daa ‘vas de democaia dita ¢ partiipatva A Iberdae oven sales dine pies nao no me do tempo do bem, por oy uma verte tid zo al Mas re Solus buns, © prazerde dscobrir oq i por rs das reagdes Z ”, por isso, invistveis; de identificar, sociais que se tornaram “naturais" e, p Cn 6 ue nos embrute nestas relagdes e em nds mesmos, 0 qu es doloroso ¢ demorado, mas sempre mos ao esforco paciente, as vezes dol estimulante, de transformacoes e autotransformagoes. | aparigao, Eérum Social Mundial parece prestes “dttonas camseo air dba, Coeo rel ipa ae ase defrontar com seu maior deba ups ane por um mundo nov, de moo quem se peream no solament, que + alimentem ums is otras, que produzam um mevimento defo planetério? Como impedir que as légicas da guerra, da a eda destruigio do planeta acabem a0, do esvaziamento da democracia e da destruic: a sleangadase se esquecendo do quant falta para transforma em reli oa rps apc, Eda aru Outro Mande Fost! obs alpen ogee dspcn ie esto per stato gue en maar =o perdeaons transformadora. coordenagao indispensavel para gerar forga trans! ae parr sane do livro de Moacir Gadotti intitula-se “Espag livre € ator politico’: As palavras expressam, ao mesmo tempo, uma po: lemica e a busca de uma saida. Um novo “ator politico” é a expressao chave cunhada por um grupo de intelectuais ¢ ativistas que passou a propor, a partir do Férum Social Mundial de 2005, uma critica con- servadora ao FSM © um retorno a certas concep¢bes que marcaram a esquerda nos séculos XIX e XX. Este grupo, cuja iniciativa mais importante foi o chamado Manifesto de Bamako, sustenta tres argumentos essenciais: 1) A diversidade sem hierarquia do Forum Social Mundi: contro folc6rico, uma feira cabtica de alternativas que jamais ameagarao ameaga transformé-lo num en © capitalismo; 2) Para superar este risco, seria preciso criar, a partir da diversidade, um “ator politico coletivo"; 3) A forma de fazé-lo € escolher campanhas prioritérias e tentar uni participantes nos FSMs. em torno delas, o conjunto dos Em janeiro de 2006, quando o FSM realizou-se pela primeira vez de forma decentralizada (ou “policéntrica”), no Mali (Bamako), Venezuela (Caracas) e Paquistio (Karachi), os partitirios dessas idéias lancaram ‘um conjunto de iniciativas visando a ampliar a rep a ampliar a repercussio de sua pro- Posta. Em Bamako, um grupo de cerca de cem pessoas (majoritaria mente int lectuais, mas também lideres de alguns movimentos sociais dirigentes de partidos comunistas) realizou, um dia antes do FSM, uma eunido a partir da qual seria redigido o Apelo que levow o nome da ci- dade — um documento extenso, que apresenta, em dez pontos divididos em dezenas de subitens, uma espécie d roteiro” para a construgio de Uma operasao complementar foi desencadeada em Caracas, dias depois. Os dois momentos de maior visibilidade mididtica do capttulo venezuelano do FSM foram encontros com Hugo Chavez, promovidos pelos proponentes do Apelo de Bamako e alguns parceiros latino-ame- icanos. No primeiro deles, uma atividade para milhares de pessoas, 0 Presidente da Venezuela ecoou a tese principal do grupo, “alertando” para o risco de o Forum se transformar em algo folcl6rico e sem hie arquia. O segundo momento, a tiltima sessao da chamada “Assembléia dos Movimentos Sociais’, foi mais restrito. Chavez foi, mais uma vez, 0 centro das atengées. A ele, alguns lideres de movimentos sociais, previa- mente escolhidos, apresentaram, uma a uma, as “conclusbes” do traba- Um nove passe adiante tho realizado por seu setor, Cada relato era seguido por um comentério — um estimulo ora mais caloroso, ora menos; ima pergunta; ura reco- mendagio ~ do chefe de Estado. Gadotti 6 claramente simpatico a proposta de coordenar agoes ¢ langar desafios mais poderosos ao capitalismo. Mas ressalta, a0 longo de todo o seu livro, que as tentativas de fazé-lo retornando a tradiga0 emancipatéria que marcou a modernidade nao serdo eficazes pata co Jocar © sistema em xeque, nem capazes de entusiasmar ¢ mobilizar os suijeitos sociais que se retinem em torno do altermundialismo. ‘A hierarquizagio de objetivos, por exemplo, esta presa as idéias de hhomogeneidade, de representagao e de tentativa de “conquistar” as for talezas aparentes da dominagio capitalista. Basta ter participado de uma sinica edigio do Férum Social Mundial para perceber quea homogenei- Como definir dez ou vinte campanhas “principais” entre centenas ou milhares? zagao é inteiramente impossi Basta ter enxergado o que hi por trés de cada participante para com preender que, ainda que hipoteticamente impossive, seria um esforgo itil e patético, Acaso uma ONG dedicada & luta pela preservacao de ameacada de extincio abriria mao deste esforgo para se uma espécie nao estivesse entre as“dez dedicar a reforma ageira, caso sua campanha tnais”? Ou, invertendo 0 raciocinio: os sem-terra passariam a priorizat, digamos,a liberdade de orientagao sexual? Basta ser de fato favordvel a emancipagio social (ao invés d conta de que este 4s formas que ela assumiu no passado) para dar-se esforco insano seria também um desperdicio. Porque, a0 basear-se na a social do capitalismo, na agio transformadora auto noma e diversa de miltiplos sujeitos e na possibilidade de construir a em outros valores, a nova cultura po- desde ja uma sociedade basead: litica esta aberta a um tipo de coordenag4o muito mais rico, criativo, estimulante e vivo que o anterior. \V Um novo projeto emancipat6rio exige novas formas de coordenagao entre os que nele esto envolvidos. Sendo distintos os objetivos, assim sero também as relagbes, 08 métodos e os instrumentos. O jogo da dis ‘Anténio Martins putado oder éregido por uma gic de exluseshierarquiase verdades linicas Poder, mesmo que democrtico, significa autordade sobre. Nao Pode, portanto, ser exercido por todos. Para conquisté-lo e conservé-k $20 necessirios partidos politicos, ue, por definigao, epresemtam ume Parte da sociedad’ Hi sempre umn amino mais comet para poder a etc.) uma resolucao final de um congresso, uma proposta vencedor numa vota¢io, uma corrente mais esclarecid reas ae mais esclarecida, uma direcio, um dirigente Imai preparado que os demas. exercico requerido¢excolber (oi. famelhor, ser escolhido.) ca habilidade necessiria ade triunfar, : O esforgo para que uma nova lig 1 nova I6gica social desponte, se desenvalva, 40 contrério, sempre inclusive. E necessério estima fornimere possivel de pessoas para adoté-l eer Boss s para adoti-la, mostrar que ela se baseia em valo- = mais vangados,assegurar que ela aleance a massa critica necessria Ui ols de um soo a uma proposta viel. Se exa lgia€fan- 12 em valores como a solidatiedade, a paz, a igualdade e os direitos, io criar uma armadilha para proprio) o desenvolvimento derlaeseinstrumenton deine entio este esforco precisa incluir (para sentido: 0 consenso, a » 4 tejeigao a0 culto da personalidade, a estrutura cee herarquizasi,o*c6igo aber ~ ou seja, iberdade de apropriar-se sem énus do trabalho feito antes, adapté-o, lo e passé-lo adiante, patos ransformé: Horizontalismo, autonomia, solidariedade e cultura de paz nao sig- nificam, contudo, ingenuidade, nando on nillcam, contado, znem suposigao de que um mundo novo 7 do pela fre do pensamento postive. Abie camino para nergéncia de uma nova légica social exige estudo or ligencia coletiva — algo ainda mais eae necessério nam itl colina ‘momento em que P Sgotiveis 0 apetite do capitalsino por mercantlzar to ‘98 aspectos da vida e sua disposigio ps i ara recorrer violencia Um nove passe adiante Gadotti nao descreve, em Educar para um Outro Mundo Possivel, os caminhos para a articulagio deste novo projeto, Mas cle tem trabalhado, incessantemente em sua construcao, nos tiltimos meses. Treze anos apos « levante zapatista ¢ seis desde o primeiro Forum Social Mundial, pelo menos cinco tipos diferentes e coordenados de agges inovadoras pare- cem essenciais para que o altermundialismo dé um novo passo adiante: 1) Estimular a coordenagio horizontal e nao-hierérquica © a geragao ) Construit, a partir dos de sinergias entre as aces transformadoras valores contra-hegeménicos e da experiencia das agoes locais, propostas, de transformagao social em escala planetiria; 3) Criar me- ‘anismos horizontais de comunicagao que permitam ao Forum Social a fase de evento e passar & de processo permanente; 4) Mundial super nndlise da conjuntura Estimular 0 surgimento de miiltiplos centros mundial, que oferecam pistas sobre temas em torno dos quais seja mais urgente a formulagao de alternativas, e sobre regides do mundo esetores sociais entre os quais o altermundislismo tenha melhores condigdes de se expandir; 5) Consolidar a identidade da proposta altermundialista apresentando-a claramente como alternativa para um planeta ameaga- do pela miséria, barbarie e devastacao e diferenciando-a claramente, a0 mesmo tempo, do projeto emancipatério anterior. O primeiro desafio é decerto, uma alternativa 20 caminho proposto pelo Apelo de Bamako. Além de ferir a diversidade que da vida aos Fé runs Sociais, simples escolha de um conjunto de campanhas “centrais’ nada acrescenta ao que centenas ou milhares de iniciativas jé haviam claborado. £, para usar um conceito feliz. de Boaventura de Souza San- tos, um exercicio de parasitismo da teoria sobre a pritica. Ou uma car catura do papel antes exercido pelas vanguardas, na qual estas mantém a intengio de dirigir 0s movimentos, a retsrica os cacoctes associados a este papel ~ mas jd no vio a frente e, sim, na retaguarda de quem st postamente deveriam orientar, CO esforgo de formulagio politica, do qual nenhum projeto emanci patério pode prescindit, precisa assumir, na nova fase, outro cardter. Se 0 objetivo nao éa conquista do poder, masa multiplicagdo de uma nova ‘Anténio Martins légica social, jé no se trata de priorizar algumas poucas iniciativas em relaglo as demais, mas de estimular a qualificasao permanente de todas clas. © jogo é mais complexo, mais intrincado e mais instigante que a antiga fungi de dirigir ~e tem a vantagem adicional de poder ser pra- ticado por um mimero sempre maior de parceiros Qualificariniciativas significa valorizé-las em sua especificidade e, a0 mesmo tempo, identificar meios de associé-las a outras, Ao articular. se, uma iniciativa nao perde forga nem sentido préprio. Ao contrério. ganhs apoio, visibilidade, comunicagao, idéias. Tomem-se, como exer. Plo, as campanhas que as comunidades que povoam o Parque Nacional do Jatt (Amazonas, Brasil) fezem, em conjunte com certas ONGs, para ~~ | Primeiras interrogagses movimentos que desejam mudar o mundo é ter clareza do que mudar convencer a maioria pela forga dos argumentos e pela pressio social — O que esse outro mundo posstvel? As coisas comegam a se complicar, Precisamos de respostas, mes- mo que provisbrias. Movimentos sociais ligados as causas ambient de direitos humanos, raciais,étnicas, de género, entre outras,estdo nos indicando o caminho: um mundo nao apenas produtivo, mas ambien talmente saudavel, social ¢ economicamente justo, com eqitidade de género ¢ etnia, Mas estamos longe de concretizé-lo em nossa vida coti- diana, mesmo porque uma madanga profunda na vida social esté asso ciada a uma mudanga profunda na vida econémica. Grandes interesses, econdmicos deverio ser contrariados. Como construir esse outro mundo posstvel? = Como nao se trata de um paraiso a ser conquistado, o outro mun- do possiveljéesté senco construido. Nao é uma utopia longingua. E um “inédito vide!’ citando Paulo Freire. Nao é um dado nem um produto, € um proceso, Mesmo porque esse outro mundo possivel ¢ feito de re ages ~ de novas relagdes ~ e nao de objetos. E nio se pense em tomar primeiro 0 poder para depois reconstrui-lo, Isso jé nao deu certo. bre o for E,no final, temos que tratar de uma iiltima interrogagio mato do Férum Social Mundial. O que é eo que poders vir ser 0 FSM: um espago livre ou um ator politico? Comecei a escrever esse livro inspirado na leitura das obras de Teivo Teivainen, membro do Conselho Internacional do Férum Social Mun dial. Fe tem insistido que nao dé para entender 0 processo do Férum Social Mundial como um processo politico sem levar em conta a sua di- mensio pedagégica (Teivainen, 2006, p. 260). Teivo inspira-se tanto no fil6sofo ativista italiano Antonio Gramsci, quanto no educador Paulo Freire, para os quais as relagoes de podler sio sempre relagbes pedago- gicas. Toda relagdo de hegemonia € uma relagdo pedagégica, sustentava Gramsci, Toda relagdo pedagégica & necessariamente politica, insistia Freite. Em toda relagao politica ha necessariamente uma relacio pedagé: gica. Entender o FSM como um processo politico de mudanga implica entender o FSM como um processo pedagégico, um processo pedagogi o de aprendizagem da mudanga. © novo milénio comegou em Porto Alegre. Em janeiro de 2001 co: ‘megou uma grande caminhada por um outro mundo possivel. O langa- ‘mento do Férum Social Mundial mostrou que nao estamos determina- dos a viver num mundo insolidario. Algo novo nasceu em Porto Alegre: @ crenga na construsio de um outro mundo possivel. O propésito deste livro € mostrar como 0 processo de construgio desse outro mundo pos- sivel € um processo eminentemente educativo, Néo da para entender a aslo transformadora do Forum Social Mundial sem compreendé-lo em sua dimensio pedagégica Por que devemos mudar o mundo? mos 0 di tro Eduardo Galeano Entendo a palavra geradora ou transformadora como o que une as Dessous, ndo fisicamente, mas espiritualmente. E é bom que se entenda esse “espiritualmente” como uma “mao invisvel” transcendental. E um espirito imanente a capacidade humana de sonhar outros mundos pos- siveis, $6 a acao e a reflexdio humanas podem mudar 0 mundo. O mun: Ima construgdo histérica, humana. Como o mundo foi construtdo, See Por que devemos mudar 0 mundo? le pode ser desconstrufdo e reconstrufdo.A esperanga de mudanga nao estd na auto-regulacao de nenhum espirito sobrenatural, mas na for- ‘ma como 0s seres humanos constroem coletivamente seu futuro, uma issao histérica da humanidade como um todo ¢ nao a missao de um gujeito ou de uma classe social ‘O mundo é 0 que € € 0 que esté sendo: condicionamento ¢ possibi- lidade. Muitos morreram acreditando nisso. Pensavam, ¢ ainda pensam, {que podem mudar o mundo. Marx deve servir de inspiragao para a revo- Justo necessdria de hoje, Mas precisamos retomar a dialética lendo-a sob uma outra ética. A ética da esperanga e do didlogo. Marx deve ser lido cousadamente, enfrentando as mistficagdes fetiches que sua doutrina criaram a0 longo de mais de 150 anos de sucessos ede fracassos. O planeta Terra esta sendo transformado pela maneira como o set humano esté produzindo e reproduzindo sua existéncia, pela nossa ma- neira de viver neste pequeno espaco. Ea maneira como vivemos é incul ‘ada também pela educagio, pelo que escolhemos pensar, pelos valores que cla transmite. Falo como educador: se a educagao pode influenciar na maneira como vivemos, ea pode ter um peso na mudanga de rumos. Vejamos quantos somos. A Terra tem 5 bilhées de anos. Estima-se que as primeiras espécies vivas tenham aparecido neste planeta por volta de 2 bilhoes e meio a 3 bilhoes de anos atris, Apenas hi 10 milhoes de anos podemos situ ar nosso ancestral comum, Ha 10 mil anos surgiu, no Oriente Médio, ‘ agricultura, mudando o modo de vida como os seres humanos pro dduziam ¢ reproduziam a sua existéncia, De nomades, os seres humanos passaram a viver mais fixamente, em alguns lugar e povoaram a Terra, Chegaram a 1 bilhdo em 1830, empurrados pela era industrial. Dela para cé este nimero nao cessa de crescer vertiginosamente, pondo em risco planeta, que pode suportar um mimero limitado de seres humanos. Em 1930, cem anos depois, a populayao dobrou: 2 bilhdes. Bastaram 30 chegar a 3 bilhdes (1930). Em 1975 alcangamos a cifra de 4 bilhoes. Em 1987, 5 bilhdes. Atualmente somos 6 bilhdes (Moura, 2004, p. 16). O Relatério da ONU Estado da Populagio Mundial 2001 estima que em 12 bilhoes,o limite maximo suportavel para o planeta. anos p 150 serernos 10,9 bilhoes ¢ que devemos chegar no ano 2100 a 3 crescimento dever-se-4, sobretudo, a contribuigao dos estados “em desenvolvimento”. (© maior problema é que vivemos de forma muito desigual. Os dados sio conhecidos de todos: préximoa 1 bilhao de pessoas vivem com menos de um délar por dia e 1,8 bilhao vivem com apenas dois délares por dia Isso significa que para a metade da humanidade a vida é insustentavel. E um modo de produgio e de reprodugéo da vida que produz a morte. E tum modo de vida que s6 beneficta 1,6 bilhao de pessoas em 6 bilhoes. Is0 levou Anthony Giddens (1995) a afirmar que a sociedade atual se caracte- riza pela “mudanga no perfil de rico’, isto é, se antes os homens estavam sujeitos aos desastres naturais,& fom al esté as epidemias, homem al sujeito a riscos criados por ele mesmo, entre eles, os riscos ambientais. A poluigao da égua, por exemplo, jé é causa de 80% das internagdes hospi talares nos paises pobres. A digua é um indicador importante da qualidade de vida humana e da sustentabilidade planetiria, 1. Transformar 0 risco n oportunidade A injustica no mundo ve despertando muita indignagdo e muit rebeldia. Mas nao basta estarmos indignados, berrat, gritar, nem para sermos ouvidos. Nao basta rugir para mudar a ordem das coisas, Con tra quem e o que éessa indignagio? F contra um sistema que metade da humanidade a pobreza, um terco a miséria, 800 milhoes “condena a desnutrigao e 1 bilhao ao analfabetismo; que deixa 1,5 bilhao sem acesso a gua potivel e 2 bilhdes sem luz elétrica; que concentra a riqueza e a terra, fazendo com que 400 biliondrios disponham de uma renda anual superior a de 45% da populagio mais pobre (2,6 bilhoes de pess } que banaliza a violéncia aos lireitos humanos; que gera 0 desemprego estrutural, a exclusdo social e a inseguranga nas grandes metrépoles; que justifica a depredagio ambiental pelo imediatismo do lucro” (Dutra, 2005, p.3). Mas nao basta denunciar. £ preciso traduzir nossa indignagao em priticas propositivas. Um relatério' coordenado pelo economista Je firey Sachs, diretor do Instituto da Terra, da Universidade de Columbia (BUA), entregue ao secretério-geral das Nag6es Unidas, Kofi Annan, no dia 17 de janciro de 2005, sustenta que a fome, a pobreza e a miséria no mundo poderiam acabar em uma década, se os paises ricos fizessem um, pequeno esforgo nessa diregao e aumentassen a ajuda que dio aos pa- {ses pobres. Milhoes de mortes poderiam ser evitadas. Bastaria 0 acesso sr dgua potivel e a sistemas de saneamento adequados. Desse relat6rio participaram 265 especialistase sua conclusao é clara: o mundo atual é injusto,o sistema nao funciona, é preciso uma mudanga de rumos. [Ni sei se a ONU sera capaz. de conduzir esse processo de mudanga, s governos tém feito muitas promes estampadas em intime- ros documentos. As “Metas do Milénio’, aprovadas por 191 pafses da (ONU em 2000, séo um belo exemplo, As Nacoes Unidas assumem como meta até 2015: 1) acabar com a fome ¢ a misérias 2) dar educagao basica de qualidade para todos: 3) promover a igualdade entre sexos e a valorizagao da mulhe 4) reduzir a mortalidade infantil 5) melhorar a saiide das gestantes; 6) combater a Aids, a maliria e outras doeng: 7) promover a qualidade de vida e o respeito ao meio ambiente; ¢ 8) todo mundo trabalhando pelo desenvolvimento. problema com essas declaragbes é que elas ndo pre para cumprir essas promessas ., quando prevéem, os meios nao sio co- locados em pritica. Normalmente, as grandes declaragies governamen- lais ¢ intergovernamentais, multilaterais, sd0 esquecidas, nao apenas pelo pablico, mas por quem as elaborou. Hoje 0 mundo seria muito melhor se apenas a Declaragio dos Direitos Humanos da ONU, de 50 vesse sido cumprida, como sustentou José Saramago em pronunciamento enviado ao FSM 2003 de Porto Alegre. Em geral, essas grandes declaracoes nao tocam na estrutura de privilégios da socieda- de que impede a justica social e a igualdade. E preciso pressionar os governos que se comprometeram com as “Metas do Milénio” para que ‘cumpram suas promessas i Por que devemos mudar mundo? PMoacir Gadott © que precisa mudar ¢ 0 modelo capitalista neoliberal responsivel pela concentragio de renda e pela desigualdade. Segundo Gaudéncio Frigotto, o projeto neoliberal caracteriza-se por trésestratégias articula das e complementares: a) a desregulamentagao: sustar as leis e normas que regulam os ditei- tos dos trabalhadores; 'b) a descentralizagao:transferéncia de responsabilidad do estado para (08 cidadaos, que compram servigos em lugar de gozarem de direitos; ©) a privatizagao: entrega ao mercado do comando da economia Segundo Frigotto, “a idéia-forga balizadora do idedrio neoliberal é a de que o setor publico (estado) é responsivel pela crise, pela ineficién cia, pelo privilégio, e que o mercado e o privado sao sinénimos de efi- ciéncia, qualidade e equidade. Desta idéia-chave advém a tese de estado minimo e da necessidade de zerar todas as conquistas sociais, como 0 direito a estabilidade de emprego, 0 direito a satide, educagao, trans Portes piblicos et. Tudo isso passa a ser comprado e regido pela alidade, a idéia de estado minimo sig- fio unicamente para os interesses da Logica das leis do mercado, Na nifca 0 estado suficiente e n reprodugao do capital” (Gaudéncio Frigotto, opud Gentili, 1995, p. 83). ‘A quase totalidade das economias do mundo caminha nessa dite que coloca a questao da natureza do estado e, sobretudo, se € possivel mudar 0 mundo por meio do estado. ~ Por qite devernas mudar 0 mundo? A resposta a essa pergunta jé estava muito clara no manifesto dos ‘movimentos sociais no final da primeira edigio do FSM de 2001 em Porto Alegre: porque a globaliza¢ao neoliberal “reforca um sistema se- xista, excludente e patriarcal’,“desata o racismo, continuidade do verda- deiro genocidio de séculos de escravidao e colonialismo, que destrufram as bases civilizatorias das populagdes negras da Africa”, porque “destr6i © meio ambiente, a satide e as condigées de vida do povo™. Devemos madar 0 mundo por muitas raz6es. Porque o mundo em Por que devemos mudar 0 mundo? que vivemos € um mundo onde muitos morrem de fome e muitos mor ‘rem de tanto comer. Uns morrem de subnutrigao e outros morrem por doengas causadas pelo excesso de comida, Devemos mudé-lo porque 0 sstoque de comida existente hoje no mundo daria para saciar @ forme de todos, Devemos mudar 0 mundo porque é um mundo injusto e de sigual. Dados divulgados por relatérios internacionais, principalmente da ONU, do Unicef, da OMS, da FAO e da Unaids, demonstram as sritantes desigualdades sociais, causadoras de sofrimento e morte de rmilhées de pessoas hoje no mundo: 0 19% mais rico do mundo percebe arenda equivalente aos 57% mais pobres. diferenga entre paises ticos @ pobres aumentou desde o comeso dos anos 90. A cada sete segundos ‘morre uma crianga de fome. O capitalismo que produziu essa realidade é-um sistema perverso de dominagao politica e exploracao econdmica que precisa ser superado, Necessitamos de uma economia solidaria que nao coloque o merca do livre e 0 lucro como 0 centro de tudo. As relagoes, recursos naturais, bens puiblicos, conhecimento, educagao e, sobretudo, os seres humanos 16 de comida que todos nao devem estar sujeitos ao mercado livre. Nac 6s seres humanos precisam. Precisam de dignidade, de poder para deci dir sobre sua existéncia, Precisam de autodeterminacio. “0 capitalismo cria a ilusio de que as oportunidades sio iguais para todos, a ilusio de que triunfam os melhores, os mais trabalhadores, 0s mais diligentes, ‘05 mais ‘econdmicos’(..). No entanto, a situagao de partida sempre ncia, entre desigual, porque 0 préprio capitalismo, a prépria concor empresas e entre homens, recria permanentemente assimetrias entre os homens eas empresas” (Mello e Novais, 1998, p. 581-2). Precisamos de um outro modo de produzir e reproduzir nossa e téncia no planeta. O modo capitalista nos levara ao desastre. Um outro mundo é necessério. E temos necessidade dle crer na sua possbilidade Uma outra globalizagao é possvel e necesséria A globalizagio capitalista é uma “fabula” como afirma Milton Santos (2000), na medida em que © mundo nao foi globalizado para a maio- ria das pessoas. assim que os “globalistas” querem que o vejamos. Na verdade ela é“perversa” para a grande maioria dos seres humanos. Para maioria das pessoas a globalizacao é apenas uma ilusto, uma fantasia pensar que todos estamos globalizados. Temos ailusio de que estamos osc ‘nos comunicando com todo © mundo ¢ que nds fazemos parte da glo~ palizagao. Mas 0 mundo sé esté realmente melhor para as grandes cor poragdes. A globalizagao capitalista s6 chega a poucos, muito poucos, ‘Como sustenta Zygmunt Bauman (1999), © conceito central da glo- balizasao & 0 de mobilidade. Para ele a globalizacio capitalist dividiv ‘o mundo entre aqueles que podem mover-se de um lado para outro, dde um pais para outro, os globalizados, e os que nao podem mover- se, que esto fixos em seus lugares, 0s nao-globalizados, que precisam fixar-se onde estdo para recolher 0 lixo dos que se foram. © quadro sombrio: de um lado esté 0 isolamento dos “globais” que querem sua liberdade total de movimento ¢, de outro, o isolamento dos “locais’ mobilizados cada ver. mais em seus locais de vida, dos quais possuem cada vez menos o controle. Isso acontece tanto para as pessoas quanto para os estados. O estado-nagao € fraco diante do capital Seo estado- nagio coloca algum problema para o capital, o capital se move para outro territério mais favordvel. “Se a nova extraterritorialidade da eli: te parece uma liberdade intoxicante, a territorialidade do resto parece cada vez menos com uma base doméstica ¢ cada vez mais com uma prisio” (Bauman, 1999, p. 31). Fala-se em “aldeia global” e pensa-se logo qu realmente informadas. As distincias s6 foram encurtadas para poucas pessoas. © mundo ni é realmente de todos. Fle nio esté a0 alcance las as pessoas #0 de todos. As diferengas séo profundas entre as pessoas. Nao estamos tunidos. O capitalismo, inculcando 0 culto ao consumo competitivo de objetos, nos desagrega tante a idéia de uma “cidadania planetaia”:“O capitalismo tem sido um 's mercantiliza, nos desvincula, tornando dis programa para a mercantilizagao de tudo, Os capitalistas ainda no o implementaram totalmente, mas jécaminharam bastante nessa ditey40, com todas as consequéncias negativas que conhecemos. O socialismo deve ser um programa para a desmercantilizagao de tudo, Daqui a 500 anos, se trilharmos esse caminho, possivelmente ainda nao o teremos percorrido totalmente, mas poderemos ter avangado muito nessa dite- Gao” (Wallerstein, 2002, p.36) AAlguns poderiam objetar que estamos equivocados ao focar 0 mo delo capitalista como a tnica causa de todos esses males. Poderfamos talver fazer uma distingao entre o capitalismo e a sua I6gica. Mas isso Por que devemos mudar 0 mundo? nao resolveria a questo, Continuaria sendo o capitalismo. & verdade, ‘6 problema nao esta no capital produzido pelas maos e mentes dos trabalhadores através da hist6ria. O problema esta no capitalismo, isto 6, na logica capitalista de apropriagio e de acumulagio do capi- tal, orientada pela exploragio econdmica e pela dominagao politica Em tiltima instincia, é 0 modo capitalista de produzir ¢ reproduzir a nossa existéncia no planeta e sua logica que esté em causa. Quando falamos em capital, entendemos hoje o modo capitalista de produzir ce reproduzir a existéncia ‘ho combatet 0 neoliberalismo, Paulo Freire refere-se & luta entre a ética do mercado” e a “ética do género humano” (Pedagogia da auto: nomia), uma ética particular versus uma ética planetéria, universal, de todos 0s seres humanos ¢ nao s6 de alguns. Como falamos de uma ética, também podemos falar de uma légica: uma “l6gica do mercado” versus ‘uma “logica do gtnero humano”, uma légica voltada para as necessida- des do capital ¢ uma légica voltada para as necessidades humanas, Pau- Jo Freire ao trabalhar com uma “teoria da consciéncia optessora” para além do capital, nos estéindicando o caminho, Para mudar é necessério riar uma outra teoria, uma outra Logica, para além da légica do capital edo mercado, para reinventar o capital ¢ 0 mercado’ Entao, 0 problema nao € combater © capital, a riqueza construida pela humanidade, mas criar uma nova légica. Sem diivida, nao se pode superar o capitalismo sem apresentar a viabilidade de um outro modo de produzir e reproduzir nossa existéncia’. Aqui, o que vale é a alterna: tiva e nao a pura negagao de um sistema, como veremos adiante. Entio, ‘© problema nao seria nem o capitalismo nem o mercado. Ele estaria na Moacr Gadott nossa incapacidade de produzir alternativas praxicas com uma outra légica. O problema esté na légica que preside a unidade do capital ¢ do mercado, Para mudar 0 modo pelo qual os homens hoje pro- duzem € reproduzem a sua existéncia, o modo capitalista, é preciso mudar a légica que preside esse modo de existir humano, Nao se trata de extinguir o capital, a riqueza ¢ 0 mercado que a faz circular. Trata-se de fazer circular a riqueza com uma outra légica: da légica da concentragio da riqueza para a logica da sua desconcentragao. Da logica da competigao, que comanda o mercado livre, para a 16 gica da cooperagao, que comanda o mercado solidario. $6 pode- ‘mos revolucionar 0 nosso modo de existir no planeta interferindo nna I6gica, no espirito invisivel do capital. Gastar todas as nossas energias combatendo 0 capitalismo é inatil. Passamos muito tempo combatendo 0 “sistema” capitalista. Quanto mais 0 combatermos sem alternativas, mais cle se fortalecerd; quanto mais combatermos o sistema capitalista sem outra légica, mais ele fortalecera a sua 16- gica, mais manhas e artimanhas ele encontraré para se defender. Ele s6 pode ser transformado, superado, pela introdugao de uma outra Logica, com alternativas econdmico-politico e socialmente viaveis. B 6 que nos tem ensinado nossa “velha” dialética George Soros (1999) afirma em seu livro A crise do capitalismo ue, se quisermos encontrar a solidariedade, a compre: paixio, nio devemos procurar no mercado. Gostaria de dizer que ele esti equivocado. Ele esta considerando apenas um tipo de mercado um tipo de economia. Ele esta pensando apenas no modo como 0 mercado livre esté funcionando hoje, dentro de uma logica da consci- éncia opressora. O mercado pode ser regido por uma outra légica. O mercado também pode ser solidério. Pode sim existir uma economia . © mercado nao foi inventado pela mao invisivel de um deus que o fez necessariamente excludente ¢ petvetso, Ele foi inventa- solidari do pelos homens ¢ tudo 0 que foi inventado por eles, por eles pode ser reinvetando. Ele foi construido socialmente e pode ser socialmente reconstruido, sob um outro olhar, sob uma outra légica, uma Iégica solidaria. Somos seres incompletos e inconclusos. Por isso, podemos desconstruir e reconstruir © que fazemos. Desenvolvemos uma eco- rnomia do capital. Precisamos construir uma “economia do trabalho” (cf. Coraggio, 2004), © problema esté em nés, que, aprisionados por uma ligica linear, nao temos tido a oportunidade de aprofundar nossas alternativas desse outro mundo possivel que desejamos construir. Temos medo de pen- sar radicalmente diferente do que estamos acostumados a pensar. Para construir 0 outro mundo possi nao podemos fazer economia da nossa capacidade de ousar. Precisamos de doses cavalares de ousadia Precisamos nos expor ao ridiculo sublime de pensar alternativamente. Mais do que conhecer, precisamos pensar. “Conhecer € apropriar-se intelectualmente de um campo dado de fatos ou de idéias que consti- tuem o saber estabelecido. Pensar é desentranhar a inteligibilidade de uma experiéncia opaca que se oferece como matéria para o trabalho de reflexio para ser compreendida e, assim, negada enquanto experi éncia imediata. Conhecer & tomar posse. Pensar ¢ trabalho de reflexao. (© conhecimento se move na regio do institudo, o pensamento, na do instituinte” (Chaut, 1984, p. 60). Podemos agora, com mais facilidade, entender por que um outro mundo é necessario, Basta apelar para os fatos, para o institufdo. Sa bemos até qual é esse outro mundo possivel, pensando no avesso do mundo em que vivemos. Mas precisamos de muito mais ousadia no momento em que construirmos as alternativas. Porque elas rompem com 0 nosso modo cotidiano de pensar. © capitalismo mundializado nao opera a favor da maioria da po pulacao do planeta. Ele nao representa nenhuma alternativa para to- dos: “a alternativa s6 pode vir das lntas empreendidas contra esse sis tema pelas classes populares e pelos povos que sio vitimas dele (...). Trata-se de construgdes novas e nao de reconstrucao (remake) do que foram no pasado. As realidades novas impdem respostas novas, mais abertas e mais radicais do que foram anteriormente” (Amin ¢ How: tart (orgs.), 2003, p. 393-4), Segundo Samir Amin e Frangois Houtart, respectivamente Presidente e Secretério-Executivo do “Férum Mun: Por que devemos mudar 0 mundo? Poocir Gadotti dial das Alternativas”, as alternativas estio surgindo da construgio de aliangas entre 05 de camponeses que se opdem ao agribusiness, das lutas dos cidados .gmentos das classes trabalhadoras, dos movimentos, pela democratizaczo real, dos “povos do Sul” e de outras frentes como a das mulheres, das populagécs indigenas, dos sem-documento etc. 0 objetivo é um “sistema mundial novo”; pluralista.“O projeto de uma res: posta humanista ao desafio da mundializagao inaugurado pela expansio capitalista nao é ut6pico. Ele é, 0 contrério,o tinico projeto realista pos sivel, no sentido de que o prekiidio de uma transformagao em sua diregi0 devera reunir rapidamente for¢as sociais poderosas em todas as regides do mundo, capazes de impor sua logica. Se hd tuma utopia, no sentido banal ¢ negativo do terme, trata-se antes da utopia do projeto de uma gestdo do sistema reduzido a sua regulagao ‘espontinea’ pelo mercado mundial A verdadeira questio éa de saber em que medida as lutas empreendidas no curso dos tiltimos anos terdo permitide fazer avancar os movimentos sociais nessas diregGes. As convergéncias atuais, estamos convencidos, po- dem contribuir amplamente para isso” (Idem, p. 396). Uma outra globalizagio possivel devera tocar em pontos funda- mentais que sustentam 0 sistema atual, como as questoes da divida externa, do crescimento da pobreza frente & concentragio de renda, das fontes de energia, principalmente do petréleo, da égua, do meio ambiente, da guerra. Esses pontos precisam ser tratados nio s6 sob ‘© ponto de vista econémico, mas também em sua dimenséo social, politica e cultural William Fisher ¢ Thomas Ponniah (2003), com base nas discussbes ocorridas nos Péruns, apontam para uma nova agenda global de al ternativas que deveria incluir os seguintes pontos:a aboligao da divida Por que devemos mudar © mundo? ‘externa dos paises pobres*; 0 controle de capitais e impostos internacio- pais para a redistribuigdo de riquezas; a moratéria contra a OMC para reorientar 0 comércio internacional; o controle piblico das empresas transnacionais; a defesa dos direitos dos trabathadores; 0 desenvolvi- mento de um setor de economia solidaria; a criagdo e exter temas de satide e de educagao paiblicos e universais; a soberania alimen. tar; a democratiza identidade dos povos; a defesa dos direitos dos emigrantes e combate a0 \¢40 dos meios de comunicagao de massa; a defesa da trifico de pessoas; o desarmamento; os direitos humanos integrais e a criagdo de novas instituicées internacionais de governanga global 1.2. Da antiglobalizacao a alterglobalizac A globalizagio € 0 pice de um processo de internacionalizagao do capital impulsionado pelas novas tecnologias, principalmente as tecno: Jogias da informacio. O mercado globalizou-se. Portanto, a globaliza (io tem uma face nico-tecnolégica e uma face politica. Uma no esta da outra. desvinculad ‘A midia freqiientemente refere-se aos grandes movimentos al mundistas, chamando-os de “antiglobalistas". Todav nao é bem as- sim: "os protestos contra a globalizagao nao a globalizacao, Os manifestantes classificados como adversétios da globalizacio difi cilmente, de maneira geral, merecem esse rétulo, que seus protestos podem ser considerados um dos mais globalizados do mundo con. temporineo. Os manifestantes em Seattle, Melbourne, Praga, Quebec eoutras partes nao sdo apenas garotos locais, mas homens € mulheres de todo o mundo que se dirigem aos lugares dos eventos a fim de fazer queixas de alcance global” (Amartya Sen, 2001, p. 8). Podemos dizer que a antiglobalizacio parece querer jogar fora com Oo capitalismo também a riqueza ea tecnologia. Mas nao se trata de jogar fora a riqueza construida pela humanidade, Como adverte Amartya Sen a Moc Gadott (2001, p. 8). "a questao central, direta ou indiretamente, é a desigualda- de, O principal desafio se relaciona a desigualdade de uma maneira ou de outra entre os paises efou dentro deles. As desigualdades relevan tes incluem disparidade de afluéncia, mas também assimetias desco- munais em poder politico, econdmico e social. Uma questao crucial & como dividir os ganhos da globalizagao entre os patses ricos e pobres € entre os diferentes grupos dentro desses paises”, Entdo, nao basta set antiglobalista. E preciso ser altermundista. As vezes tem faltado “bom senso” (Gramsci) na luta antiglobalista. Tem faltado também “cuidado” podemos pagar muito caro por isso, desperdigando mais uma opor tunidade histérica, (© Porum Social Mundial esté num momento crucial de sua existén-

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