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JOSE RAMON ALONSO PEREIRA INTRODUCAO A HISTORIA DA ARQUITETURA DAS ORIGENS AO SECULO XXI Sobre o Autor JOSE RAMON ALONSO PEREIRA 6 arquiteto graduado pela iscuela de Arquitectura de Madrid e catedritico de “Historia da Ar- quitetura e do Urbanismo” da Escucla de Arquitectura de La Coruna desde 1991, Ele combina o exercfcio da profissdo de arquiteto com a prética docente e de pesquisador. Autor dos livros Madrid 1898-1931 do corte a motrépoli (1985), Historia general de la arquitectura de Asiu- rias (1996), La Cindud Lineal (1998), Ingleses y espanoles: la arquitec~ tura de la Edad de Plate (2000), La Cran de Madrid (2002) e Roma Capital: invenciin y construccién de la ciudad moderna (2003). AM54i Alonso Pereira, José Ramén. Introdugéo a historia da arquitetura, das origens ao século XXI / José Ramén Alonso Pereira : tradugdo Alexandre Salvatera, ~ Porto Alegre Bookman, 2010. 384 p. ; 23m ISBN 97: ol 1. Arguitetura ~ Histiria, 1, Titulo. cpu 72 Gatalogacao na publicago: Renata de Souza Borges CRB-10/1922 CapiTULo 2 ] Ecletismo e Industrializagdo O problema do estilo no século XIX Ao se propor o estudo da composigao em arquitetura a partir de uma 6tica hegeliana — onde o passado explica os problemas do pre- sente —, 0 problema do cardter na arquitetura encontra um de seus fundamentos na histéria. O recurso romantico de se recorrer 3 his- téria como material de projeto leva a propor 0 problema do estilo, 0 estilo proprio do século XIX, e acarreta uma sequéncia que sai do classicismo roméntico e conduz a diversos historicismos ou revivesci- mentos, chegando até 0 ecletisimo © 0 nodernismo ou até a arquitetu- ra internacional do cosmopolitismro do fim do século. Por isso, apesar de a ruptura com o classicismo parecer nao mudar nada porque se continuam usando as mesmas formas, na verdade se produz uma mudanga radical, substituindo a confian- ga natural nesse repertério por uma simples convencao. Assim, do classicismo se passa ao neoclassicismo, 0 que mostra em seguida que o mesmo procedimento é aplicavel aos repertérios extraidos de outros periodos do passado. Isso produzird os sucessivos revivals: neogotico, neorromAnico, neobizantino, ete. eo estilo é a adaptagao de uma linguagem a um sistema espa- co-temporal concreto, no século XIX a separacao entre arquitetura e linguagem faz desta uma roupagem de algo que permanece embai- xo. O conceito de estilo — antes algo quase universal — se limita de forma implicita até ser considerado como uma mera forma decora- tiva que se aplica a um esqueleto portante genérico. [sso leva a uma dissociagao entre a linguagem e a composicao arquiteténica Nesse sentido, é exemplar 0 projeto do edificio do Parlamen- to de Londres (1837-1843), um dos melhores € mais académicos edificios britéinicos do século XIX concebido em linguagem classica por Charles Barry (1796-1860), ¢ que, por exigéncias simbélicas impostas pelo governo, se vé revestido de formas neogéticas, sem variar em absoluto a organizagao compositiva dos espagos internos nem dos volumes € massas de edificacao (Figura 21.1).'Temos, pois, um dos mais tipicos exemplos de historicismo medieval no século XIX envolvendo um dos melhores exemplos da composigao classica roméntica, 0 que evidencia sem rodeios 0 divércio entre composi- ¢40 e estilo no qual se encontra a arquitetura do século XIX 196 _INTRODUGAO A HISTORIA DA ARQUITETURA Loo = de! A ee 21.1. Barry, Potlamento de Londres, planta baixa ¢ corte Por outro lado, a rejeigio da cultura burguesa acarreta uma erfti- ca 8 produgio industrial expressa nos projetos historicistas de Augus tus Pugin e John Ruskin, expostos em seus respectivos livros: Contrasts e The Seven Lamps of Architecture. Essas obras levam A busca de um desenho alternativo e ao movimento Arts and Crafts (Artes e Oficios) para a reforma das artes aplicadas, constituido por William Morris a partir de 1888, que, além de suas obras concretas de arquitetura ¢ de desenho, teré uma forte influéncia tedrica e urbanfstica. Os historicismos do século XIX "Tilvere canacatiation may cepresentarive da urquiteriina dawteile XIX seja 0 aparecimento de uma cultura historicista produzida pela apropriagac de arquiteturas muito diferentes, geografica e histori- camente dispersas. \ incorporagao do conhecimento hist6rico aos projetos leva a uma concepgaa de certa forma ideoldgica da arquitetura, embora petinita acrescenti, Goin teit deceritiviems, wing Aliagao estilts tiea a cada ideologia e a cada programa arquitetdnico, Assim, cada uma das diferentes linguagens se v6 sustentada por ideias diferen- tes cujo significado varia conforme o pais e 6 momento. De iiuneinrandloge § forme wane o neoelassinisnresedend- ficou com o periodo revolucionirio da Republica e com 0 Império na Franga, 0 neogético — considerado por Chateaubriand como o Carituo 21 EcLeTisMO E INDUSTRIALIZACAO 197 “génio do cristianismo” — serd identificado com a arquitetura pés- revoluciondria da Restauragao. Isso nao impede a continuidade da opgao classicista, que evo- lui da racionalidade formal de Karl Friedrich Schinkel 20 monu- mentalismo de Gottfried Semper, e que tem seu melhor exemplo na formalizacao historicista de uma Atenas neo-helénica como capital do novo reino da Grécia, construida por reis e arquitetos alemacs, entre estes tiltimos Leo von Klenze (Figura 2|.2). O meio-termo classicista também se manifesta na forma de integrar o ferro a arqui- tetura urbana com cxemplos destacados como os de Gare du Nord (1861), de Jacques-Ignace Hittorf, ea Biblioteca de Sainte-Gene- vieve (1850; Figura 21.3), de Henri Labrouste, ambas em Paris. 21.2 Klenze ¢ outros, érea ceniral da nova Atenas concebida como exem- plo de historicisma neo-helénico. am A i 21.3 Labrouste, Biblioteca de Sainte-Geneviéve, Paris. 198 INTRODUCAG A HisTORIA DA ARQUITETURA 21.4 Catedral neo- gética de Séo Patricio, Nova York 21.5 Covadonga, primeira das catedrois burguesas espanholas. Por outro lado, a aparente oposigdo radical aos ideais acadé- micos € seu significado religioso — com independéncia de outros ideais conjunturais — difunde o historicismo medieval, ¢ em especial o representado pela igreja gética, cujas altas naves se identificam romanticamente com a espiritualidade religiosa, de forma que em meados do século XIX o gético — com alguma derivagdo romanica ou bizantina — é aceito em todo 6 mundo como a modalidade natu- ral da arquitetura eclesidstica. Ainda que as primeiras edificagdes neogéticas se restrinjam a. um desejo arqueolégico minoritério, aos poucos 0 medievalismo adquire carater proprio dentro da cultura do século XIX, dando sentido a um historicismo distanciado de evoea jes romanticas € literarias que tem como melhores exemplos as catedrais burguesas construidas nos diferentes bairros da Paris de Haussmann ou da Londres vitoriana; ou as de Sao Patricio (Figura 21.4) e Votiva, em Nova York e Viena, respectivamente; ou as quatro grandes catedrais espanholas da Restauragao: a Almudena, em Madri; a Sagrada Fa- miflia, de Barcelona; a do Pais Basco, em Vit6ria; e Covadonga, em Astiirias (Figura 21.5) — cujas implantagées evidenciam seus sig- nificados simbélicos. Sua onda de expansao dé um auge inusita- do & construcao de edificios religiosos neogéticos na Europa e na América, a qual deseja identificar com seus novos temples a nova espiritualidade religiosa do século XIX. Por outro lado, a multiplicidade de significados do historicismo faz com que, jd em meados do século, Viollet-le-Duc possa entender a arquitetura gética como o paradigma do racionalismo construtivo, e enfoque assim tanto seus trabalhos de restauragiio como suas te- orias ¢ seus projetos ideais, cam sua conseguinte influéncia pratica. A margem do historicismo gético, sao raros os medievalismos de outra origem formal, sendo, em, geral, de tipo arabizante € cor- respondente a obras efémeras. Seu melhor exemplo foi a antiga Praga de Touros de Madri (1873), projetada por Capra e Ayuso em um neonmdgjar que originou uma escola. Sintese castica do Isla e do Ocidente, 0 valor simbélico que o neomudéjar representa na Espanha é, por sua vez, estimulo para a revisdo e a expressio construtiva da arquitetura, 0 que se evidencia de modo particular na Gatalunha, cujo sistema de abdbadas catalas, desenvolvido pelos homens da Renascenga local, torna realidade 0 racionalismo construtivo de Violet e vem a ser normalizado e tipici- zado por Guastavina, que 0 estende para outras regides. De qualquer maneira, podemas dizer que toda esta gama his- toricista, urbana ¢ burguesa encontra seu melhor exemplo no Ring de Viena (a partir de 1859), cujo conjunto de edificios gregos, g6- ticos, renascentistas e barrocos (como o Parlamento, a Prefeitura, a Opera, os Museus de Belas Artes e Historia Natural, ou a am- pliagao do Paldcio Imperial, obras estas de Semper) passa quase diretamente pelo ecletismo (Figura 21.6). Capituto 21 EcteTisMo & INDUSTRIALIZACA 21.6 O Ring de Viena, um onel urbano concebide come assento das prin- cipais amenidades ¢ equipamentos do capital da Austria e paradigme da arquiteture historicista europeic, O ecletismo do século XIX O uso da historia da arquitetura como instrumento de projeto nao fica limitado a recuperacdo de estilos passados, ¢ ao historicismo assincrdnico ou revival se une, no dltimo tergo do século, um his- toricismo sincrénico e heterodoxo: 0 ecletismo (do grego eceklein, “escolher”), que mostra as possibilidades infinitas do manejo livre de linguagens e formas histéricas diversas. A histéria permitia fazer comparagoes e, portanto, revalorizar. Em consequéncia, desaparece a unidade do gosto, dando lugar & possibilidade de que varias linguagens convirjam em uma mesma arquitetura, o que, definitivamente, transforma essa mesma varie- dade em uma nova linguagem, diferente de seus componentes e com autonomia molecular prdpria. O problema do estilo aceita a sobreposi¢aio de estilos; porém, dado que o ponto de partida nao € constante, 0 ecletismo do século XIX dificilmente pode ser classi- ficado por estilos Assim, ao lado do ecletismo de base medieval conviverd ou- tro de inspiracao classica — ou melhor, renascentista -, cheio de elementos de origem italiana ¢ francesa, que — com os nomes de estilo segundo império ou, mais tarde, estilo beaux-arts — dominaré em todo o mundo ocidental nas tiltimas décadas do século XIX. A obra emblemitica desse ecletismo do século XIX € a Opera de Paris (1861-1875), arquitetura-espetaculo de Charles Garnier (1825-1898) ¢ corporificacao espléndida do Segundo Império fran- cés (Figura 21.7). O edificio combina um marco para a 6pera com um marco para a exibigao social, de forma que a sala ocupa somen- te dez por cento da superficie do edificio, enquanto 0s espacos de convivio ¢ exibigdo (os saldes e foyers, e, sobretudo, a escada princi- pal) predominam fisica ¢ simbolicamente sobre 0 conjunto, alean- cando niveis de teatralidade verdadeiramente bartocos, expressos 199 200 _Intropucao A HisTORIA DA ARQUITETURA 21.7 Charles Garnier, teatro da Opera de Paris, paradigma do ecletismo do sécule XIX: corte longitudinal esquemético e planta baixa do pavimento principal. formalmente em uma linguagem que, em palavras do préprio arqui- teto, “nao corresponde a nenhum dos estilos antigos conhecidos: € um estilo novo, o estilo Napoleao HU” Por outro lado, sua implantagio — foco perspective de uma grande avenida especialmente aberta que rasgour 0 tecido histérico de Paris — mostra uma atitude orgulhosa de dignidade urbana que nao vai se reduzir 4 Opera parisiense, mas que faz com que cada edificio pablico ou privado seja concebido como um objeto monu- mental, perceptivel ¢ contemplavel Nesse processo, os arquitetos costumam tentar manter em suas composigdes um equilfbrio racional inspirado em Durand, nao obstante a diversidade linguistica que cada uma de suas obras pode manifestar, adaptando as tradigdes arquiteténicas ao desafio dos novos materiais ¢ tipologias Par outra lado, as forgas sociais encontraréo sua melhor ex- pressao nas formas ecléticas dos anos finais do século XIX — in- clusive até 0 inicio do século XX — como estilo oficial dos edificios ptiblicos ¢ de todos aqueles que pretendem ter uma representativi- dade na cidade, usando esse ecletismo orgulhoso ¢ chamativo para consolidar a imagem das capitais europeias e americanas. A Exposigio Universal sediada em Paris em 1889 marca 0 apogeu desse ecletismo e, de certa forma, 0 apogeu do proprio sé- culo XIX, cujos fundamentos em seguida serao pastos em crise O esforco para manter unidas as experiéncias dentro do marco historicista ou eclético se esgota, e isso traz consigo a importacao e difusdo de modelos ¢ formas exéticas, cosmopolitas e modemistas. Capituo 21 Eclerismo € INoUSTRIALIZACAG 201 Apesar de todas as suas conquistas arquitetOnicas — ou talver exa- tamente por elas —, nos anos imediatos a virada do século em toda 2 Europa se manifesta uma sensagao de esgotamento cultural por parte do ecletismo, apesar de que ele ainda sobreviverd no inicio do século XX. Mas para isso sera necessério redefinir ¢ depurar seus ele. mentos formais, incorporando-os a esfera dos ideais cosmopolitas. Os fenémenos modernistas e cosmopolitas Chamamos de Modernismo a expre Europa cosmopolita do século XIX tenta assumir. Ainda que em alguns pafses haja um movimento renovador, em geral ele nao pas de um formalismo vistoso, mas superficial, que, na maioria das ve- zes, oferece pouco mais do que algumas formas epidérmicas, uma ornamentacao retérica ou um vocabuldrio misto de elementos fan- tasticos, naturalistas e romanticos, que somente resultam em uma nova maneira de decorar as forma das sob uma profusio de clementos moadernos O Modernismo nao é um estilo unitario, ¢ as diferengas de de- nominagao (Art Nouveau na Franga ¢ na Bélgiva, Modern Style na Inglaterra, Jugendstil na Alemanha, Sezession na Austria, ¢ Liberty na Itélia) afetam 0 fendmeno e 0 conceito que dele se tem em cada pats. A nismo, em geral, é uma sintese cosmopolita com muitas variantes. Em todo caso, seu ponto de referéncia é 0 ant nouveau franco- belga, com seu estilo orginico ou floreado, exemplificado pela Casa do Povo de Bruxelas (1894; j4 demolida}, de Victor Horta, ou pelas esta- cdes do metré parisiense (1900), de Hector Guimard (Figura 21.8). 0 alegre ¢ esteticista que a a construtivas habituais, mascara- im, conforme a situagao social e cultural de cada nagao, o Moder- 21.8 Guimard, estagée do Bastilha no metré de Paris, paradigma do art nouveau (demolida) GEO A HISTORIA DA ARQUITETURA Diferente do Art Nouveau, 0 Modern Style anglo-saxtio que Charles Rennie Mackintosh protagoniza revela a influéncia de William Morris eo Artes ¢ Oficios, projetando-se ao mesmo tempo sobre a América do Norte, onde abarca um amplo territério que vai do desenho de Tiffany a arquitetura de Louis Sullivan, com exem- plos singulares tanto em edificios comerciais como 0 Auditorium Building (1889; Figura 21.9), passando pelo shingle style e pelo craftsman movement, todos muito relacionados com as primeiras arquiteturas de Frank Lloyd Wright. Como uma sintese inteligente das duas posigécs se destaca a Sezession, que agrega a importancia compositiva e metodolégi- ca da escola de Viena (a Wagnerschule) a personalidade ¢ a obra de Oto Wagner e de seus discipulos: Olbrich, Pleenik, Hoffmann, entre outros. A transcendéncia de sua contribuigao a arquitetura moderna pode scr exemplificada no edificio da Caixa Econdmica dos Correios de Viena (1904), obra de Wagner, um trabalho assom- brosamente moderno, realizado com extrema clareza compositive e formal, e com uma economia de meios dificilmente igualada por qualquer outra obra de sua época (Figura 21.10) O Modernismo catalao também se destaca como uma sintese original do racionalismo, naturalismo e medievalismo, que teve seu inicio na Exposicéo Universal de Barcelona de 1888. 21.9 Adler e Sullivan, Edificio Auditorioum, Chicago, corte longitudinal e planta baixa. CarituLo 21 Ecuetismo € INDUSTRIALIZACAO 203 No Modernismo, a maior transcedéncia se encontra, sem divida, na oposigio dialética entre as atuagdes de Lluis Doméne- ch Montaner (1850-1923) e de Antoni Gaudi (1852-1926) como exemplos embleméticos da Kunshwerkbund (“obra de arte integra- dora”) e da Gesamtkunstwerk (“obra de atte total”), respectivamen- te, e de sua preocupagao pela integrugdo day artes. Assim, enquanto as obras de Gaudf —o pakicio Giiell, as casas Mild e Batll6 (Figura Ecgnomice do Gon 21.11), © Parque Gtiell, ou a Catedral da Sagrada Familia ~ reali- sigs de Viena, planta zam essa integracao artistica a partir da pessoa do autor, o Castelo baixa. dos Trés Dragoes, 0 hospital de Sao Paulo ou o Palacio da Masica Catala (Figura 21.12), de Domenech, a demonstram até mesmo no carter intrinseco da prépria obra. ultima € uma obra totalmente modernista, tanto por sua tansparéncia espacial como pela decoragio curvilinea, naturalista e policromatica, onde artes maiores e artes aplicadas se integram na totalidade artistica da obra, fazendo uin importante esforga no campo das artes decorativas, que aumenta a repercusszio do Modernismo e sua contribuigéio & arquitetura moderna. Ao lado da obra artistica ou de autor, ndo se pode esquecer a presenca anénima de um modernis- mo discreto e difuso - que em muitas ocasides se reduz a pouco mais do que um detalhe floral, um elemento de metal ondulado ou um azulejo colorido — que vai se estender e difundir capilarmente, fazen- do a arquitetura cosmopolita chegar até os rincdes mais distantes. 21.10 Wagner, Caixa 21.11 Gaudi, Casa Baill6, no Poseo de Revolucdo Industrial e arquitetura Gracia, Barcelona, O forte impacto da Revolugao Industrial se faz sentir de maneira especial na arquitetura, onde ndo somente mudam os procedimen- tos construtivos e técnicos, como se alteram decisivamente as exi- géneias arquitetdnicas, ampliando os problemas urbanos e as trans formagdes da paisagem. No chamado séeulo da industria ¢ do progresso, « aplicagao téc- nica dos avangos cientificos leva a novas aplicagdes ¢ a novas veng6es revoluciondrias: a maquina a vapor, motor das indiistrias € forca dos barcos e locomotivas; o alto-forno de coque, que permite abastecer o mundo na era do ferro ¢ do cimento; ou o dinamo, que gera eletricidade ¢ torna possivel a rede ptiblica de eletricidade, 0 telégrafo e o telefone A Europa ingressa na segunda metade do século XIX acordan- do para a vida moderna. Os arrebatamentos Iiricos e os ideais do espirito progressista ¢ liberal do comego do século sao sucedidos por gostos mais materialistas. O progresso deixa de se vincular aos 8 " 21.12 Domenech, direitos e as liberdades, e se materializa e mede em canais, locomo- Palacio da Musica Ca- tivas, projetos urbantsticos, bondes, rede publica de eletricidade, tala, Barcelone. entre outros. E esse novo espirito progressista que, com suas nuances eclé- ticas € contradigées internas, se fixa no panorama europeu em 204 Iwreooucko A HisTORIA 04 ARQUITETURA meados do século, quando os fundamentos socineconémicos e ar- quitetOnicos fixados anteriormente aleangam seu adequado desen- volvimento e manifestagac. ingularmente, 0 mesmo ocorre no campo do urbanismo ou dos ideais urbanos. Nesta ordem, « locomotiva ¢ a rodovia revolucionam os sis- temas de comunicagées urbanos e interurbanos, permitem niveis de intercambio antes impossiveis de se imaginar, definem as novas portas da cidade ¢ obrigam a reordenar o trétego desta; e, como con- sequéncia, alteram direta ou indiretamente as necessidades © as formas de vida urbana ¢ de sua arquitetura Nesta mesma ordem de coisas, as redes piblicas urbanas — primeiro de gas e, em seguida, de eletricidade — permitem a ilu- minagiio de ruas ¢ pragas, © com isso a vida noturna das cidades, convertendo Paris —c, por extensao, todas as grandes capitais — em ville lumiére (cidades iluminadas). Por sua vez, essa mesma rede publica, incorpotada aos interiores, revoluciona a vida doméstica. Quase ao mesmo tempo, Siemens constréi seu primeiro cleva- dor elétrico (1881), generalizando a invengio hidréulica de Elisha Otis (1853), que permite a edificagao em altura e torna possivel o aparecimento de novas tipologias edificatérias (industriais, comer- ciais e residenciais) o, finalmente, dos grandes arranha-céus cons- truidos pelos arquitetos da chamada Escola de Chicago nas tiltimas décadas do século, restahelecendo nitidamente nos Estados Unidos. a polémica entre engenharia ¢ arquitetura, assim como as relacdes recipracas entre o ecletismo e a industrializagao. Finalmente, 0 telégrafo ¢ o telefone revolucionam as comuni- cagdes e fazem com que, paralelamente, se volte a imaginar a cidade em fungao da méquina, da circulagio e dos transportes. Assim, a ci- dade linear de Soria, a cidale motorizada de Hénard, ou as propostas de cidade industrial de ‘Tony Garnier ou de cidade nova de Sant’Elia so consequéncias dltimas da Revolugio Industrial ¢ exemplos de um urbanismo que pretende ser cientifico, racional e progressista Mas 0 impacto da Revoluede Industrial ndo se limita a esses progressos técnicos, ¢ tem como principais projetos os novos mate- riais e a industrializacto da construciio. O material sempre havia sido um dado do projeto, ¢ sua dispo- nibilidade local havia dominado a acquitetura do tijolo ou da pedra. O marmore do Pentélico ateniense ou o travertino romano deter- minaram suas formas classicas; 0 granito de Guadarrama, a forma do Escorial; 0 arenito de Salamanca e 0 caledrio parisiense, snas respectivas formas histéricas. Somente em algumas ocasides € para pequenas joias de arquitetura os materiais foram importados, sem- pre valorizados por sua raridade. Porém, agora, pela primeira vezna historia, o material passa a ser um problema de arquitetura. Os progressos técnicos determinam 0 aparecimento de novos materiais ¢ novas técnicas de construgao. Endo podemos nos es- Carituco 21 EcteTisMo € INDusTaiaLizacao 205 quecer da revoluedo no uso dos sistemas cerdmicos que o sistema de abobadas catalis representa — porque utilizar materiais tradicio- nais nao significa fazer arquitetura tradicional — ou da revolugio que 6 concreto armado gerard apés 0 inicio do século XX. No entan- to, a contribuigdo mais expressiva do século XIX é 2 arquitetura do ‘ferro (Figura 21.13 e 21.14) A arquitetura industrial Galgando-se sobre a primeira industrializagio, na segunda metade do século XIX se desenvolve uma forte aceleracdo econdmica cujo impacto rapidamente se torna visivel e que deixa uma profunda marca na arquitetura do século XIX. Trata-se de um processo mui- tas vezes enrustido, pois, enquanto as novas técnicas ¢ as novas ne- cessidades impoem solugécs radicalmente diferentes, uma tradigao cultural exacerbada no periado eclético mantém os hibitos estilis- ticos © os confunde com as novas contribuigdes. Essa coincidéncia deliberada entre ecletismo e industrializagao condiciona, por sua vez, a visio da arquitetura, obrigando-a a redefinir seu territorio. Isso acontece de tal forma que, em 1888, Mariano Belmds (1850-1916), cabeca do grupo progressista espanhol, chega a es- tender o campo profissional a “tanto uma ponte como um estabe- lecimento de ensino; tanto uma rua como uma bolsa de valores ow um banco; tanto a restauragao de um monumento como o abas- tecimento de Agua; ¢ tanto a expansdo de uma cidade como uma ferrovia, um hospital, uma escola, uma fabrica de moedas, ou um reservatdrio de dgua” E ainda que a maioria dos arquitetos nao chegue a assumir 0 manifesto de Belmds em toda a sua radicalidade, acontece que, em maior ou menor grau, todos se veem estimulados pelo grande desa- fio que a Revoluego Industrial langa sobre a arquitetura, obrigando- aa redefinir seu campo de atuagao. A primeira resposta a esse desafio é a arquitetura do ferro, as- sim chamada pela relevincia que este material adquire como ele- mento estrutural ¢ compositivo. As tecnologias do ferro — primeiro perfis soldados, depois laminados; primeira perfis rebitados, depois soldados—favorecem as novas exigéncias ¢ os novos programas que um mundo em pleno desenvolvimento industrial impoe Nao somente as pontes, fabricas, depésitos ou estagdes de- mandam novas estruturas. A mesma arquitetura urbana ¢ civil que © emprega tanto em seus teatros, quiosqtes ou estufas como na substituigdo das paredes extemas portantes de scus edificios por colunas de metal fundido que sustentam vigas mestras de madeira, também possibilita 0 aparecimento de edificagdes transparentes, muito adequadas para os locais comerciais da burguesia, para a qual o ferro é 0 simbolo da época industrial ¢ meio de sua expres- sdo arquitetonica. 21.13 Deialhe de consirugd em ferro. 21.14 Detalhe de construgo em con- creto, 206 IntRoDUgAd A HISTORIA CA ARQUITETURA Entendida a arquitetura do ferro como arquitetura modular. surgem edificios inteiros construfdes com pecas pré-fabricadas de ferro, combinadas com elementos da industria tradicional, come a Bolsa de Amsterda, ou especialmente com a indtistria de vidro, como os mercados de Santo Antonio e do Borne em Barcelona, ow os mercados j4 demolidos de Les Halles em Paris ou de La Cebada ¢ Los Mostenses em Madri, espléndidos tanto por sua propria exe- cucdio como por sua implementagiio urbana. Junto a essas edificages, se destacam as Exposi¢des Univer- sais, onde a arquitetura ocupou o lugar revoluciondrio e estrelar, algo de se esperar, devido & sua imensa oportunidade. Iniciadas em Londres em 1851, 0 melhor exemplo de Expo- sigio Universal é 0 Palacio de Cristal (demolido), edificio paradig- matico construfde por Joseph Paxton como uma enorme estufa cuja superficie volume correspondiam ao dobro daqueles do Parla mento britanico, evidenciando, sem diwvida, a nova magnitude da industrializagao, em contraste com as edificagées e instituigdes tra- dicionais (Figura 21.15). Analogamente seu fechamento com vidro representavam projetos avangados para a industria da época por meio de um sistema pré-fabricado muita simples com base em poucos elementos modulados ¢ repetitivos: vigas mestras, pilares, trelicas, etc O Palacio de Cristal logo se transformou no modelo arquite- tonico para exposigdes posteriores, as quais — em uma espécie de corrida da engenharia — nao somente buscarao sistemas de constru- cdo répida, mas também uma arquitetura de prestigio baseada nos alardes tecnolégicos derivados da invengao de novos espagos ¢ da cobertura de vaos cada vez maiores. 21.15 Joseph Paxton, Paldcio de Cristal, Exposigae Universal de 1851, Londres. Carituco 21 Ecterismo’é Inp) Esses avangos técnicos e espaciais culminam, em 1889, na Galeria das Méquinas, obra de Dutert ¢ Contamin, na Exposigao Universal de Paris, um fantastico espaco cuja estrutura vencia um vao de 115 metros e que tinha proporgdes tao grandiosas que a levaram a ser chamada de uma obra de arte “tio bela, tio pura, fo original e to elevada como um templo grego ou uma catedral (Figura 21.16). Nessa mesma Exposigtio Universal de 1889 se construiu o monumento por exceléncia da Revolugao Industrial: a torre ffel, um auténtico menir moderno que se eleva 300 metros em relagdo ao solo de Paris (ver Figura 2.4). struturalmente, a torre €uma pirdmide esbelta, formada por quatro treligas independen- tes de ferro unidas no topo, cuja curvatura responde aos esforcos impostos pelo vento; essas quatro estruturas resistentes parecem suportadas por falsos arcos de meio ponto, que, na verdade, so jam as contradigdes uma mera concessao ao modismo e evidence do momento. Por ultimo, se deve fazer referéncia 4 arquitetura funcionalista e de uso especificamente industrial que geralmente aparece sem preocupacoes estilisticas ¢ que se difunde pelos distintos centro industriais europeus e americanos nestes anos. Nesses castelos da indiistria — como corretamente se deno- minam —, em sua simplicidade formal e racionalidade construti- va, muitas vezes se percebem as mais claras sensagdes espaciais, correspondentes & mais pura arquitetura atemporal. Basta citar os conjuntos recentemente reciclados das docas portuérias de Lon- dres ¢ Liverpool, na Gri-Bretanha, ou de Hamburgo, na Alemanha; ou 0s centros industriais de Lille, na Franca, ou de Manchester, na Inglaterra (Figura 21.17); ou, j& na Espanha, as induistrias catalas 21.16 Dutert e Contamin, Galeria das Méquinas, Exposigao Universal de 1889, Paris. 208 Inraopucdo A Historia DA ARQUITETURA 21.17 Croqui de Schinkel com as fébricas e as docas de Manchester, 1826. abandonadas e as edificagoes mineiras nas encostas dos vales astu- rianos, com sua ritmica sucessao de médulos e elementos puristas. Em varios locais, ainda hoje encontramos muitas obras anénimas abandonadas nos antigos centros industriais, as quais mostram, em suas cascas vazias, 0 verdadeiro impeto da Revohugao Industrial do éculo XIX na Europa e nos Estados Unidos a extraordinaria ri- queza tipolégica, construtiva ¢ patrimonial de um século de pro- gressos,

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