Você está na página 1de 5
FRIEDRICH NIETZSCHE A GAIA CIENCIA Traducao, notas e posfacio: i PAULO CESAR DE SOUZA : 1% reimpressdo COMPANHIA Das LETRAS tradugdo, notas e posfacio © 2001 by Paulo César Lima de Souza Titulo original: Die frébliche Wissenschaft. La gaya scienza ( 1882, 1887) Capa: Jodo Baptista da Costa Aguiar Preparacao: Carlos Alberto Inada Revisao: Helio A, Ribeiro Filbo Claudia Cantarin Carmen S. da Costa iéneia “Friedrich Wilhelm Nietasche ; madugio hots € posficio Paulo Césur de Sowa. — S30 Patilo das Letras, 200, Titulo original: Die Géhliche Wissenschale Is 85-359-01477 1 Filosofia adem, Titulo 01-4202 1.Alemanha : Filosofia 193 2. Filosofia alemi 193 1. Fldsofos slemaes 198 2002 Todos os direitos desta edicao reservados a EDITORA SCHWARCZ ITDA. Rua Bandeira Paulista, 702, cj, 32 4532-002 — sao Paulo — sp Telefone: (11) 3167-0801 Fax: (11) 3167-0814 www.companhiadasletras.com br Ich wohne in meinem eigenen Haus, Hab Niemandem nie nichts nachgemacht Und — lachte noch jeden Meister aus, Der nicht sich selber ausgelacht. Vivo em minha prdpria casa, Jamais imitei algo de alguém E sempre ri de todo mestre Que nunca riu de si também. Inscrigdo sobre a minha porta LIVRO v mediante a qual ela pareca iluminada pelo mais alto valor de modo a se tornar um bem pelo qual a pessoa luta ¢, em algu- mas circunstancias, da a propria vida, Na verdade. a segunda dessas invengdes € a mais essencial: a primeira. o modo de vida, normalmente ja existia, mas ao lado de outros ¢ sem cons- éncia de qual valor lhe era inerente. A importancia. 2 origi- ealidade do fundador de uma religiao mani! itual- mente no fato de que ele 0 vé, ele 0 escolhe. ele adi primeira vez para que serve e como pode ser inte: Jesus (ou Paulo), por exemplo, deparou com a vida da gente pequena numa provincia romana, uma vida mode: sa. atribulada: ele a interpretou, introduzindo-lhe sentido e valor — e, com isso, a coragem para desprezar q quer outro modo de vida, o calmo fanatismo de Herrenhut. secreta e subterranea confianga em si, que ndo para de cres- cer e enfim est4 pronta para “sobrepujar 0 mundo” (isto €, Roma e as classes elevadas de todo o Império). Bu ual- mente, encontrou esse tipo de pessoas, no caso dispersas em todas as classes e degraus sociais do seu povo. que por inerc sao boas e brandas (e sobretudo inofensivas), que. também por inércia, vivem na abstinéncia, quase que sem necessidades: ele compreendeu como inevitavelmente esse tipo de pessoa: com toda a vis inertiae[forga da inércia], teria de cair numa fe que promete evitaro retorno da fadiga terrena (ou sej2. do tra- balho, da acao em geral) — esta “compreensio” foi seu ger E propria de um fundador de religio a infalibilidade psicolo- gica no conhecimento de uma certa categoria média de almas, que ainda nao reconbeceramsua afinidade. E ele que as reine: logo, a fundag3o de uma religido sempre se torna uma demo- sada festa de reconhecimento. 354, Do “génio da espécie”. — O problema da consciencia (ou, mais precisamente, do tornar-se consciente) sO nos aparece quando comegamos a entender em que medida poderiamos passar sem ela: e agora a fisiologia e 0 estudo dos animais nos 1247) A GATA CIENCIA colocam neste comego de entendimento (necessitaram de dois séculos, portanto, para alcangar a premonitéria suspeili de Leibniz). Pois nos poderiamos pensar, sentir, querer, recor dar, poderfamos igualmente “agit” em todo sentido da palavra , nao obstante, nada disso precisaria nos “entrar na conscién cia’ (como se diz figuradamente). A vida inteira seria possivel sem que, po: im dizer, ela se olhasse no espelho: tal como, de fato, ainda hoje a parte preponderante da vida nos ocorre sem esse espelhamento — também da nossa vida pensante, sensivel e querente, por mais ofensivo que isto soe para um fil6sofo mais velho. Para que entio consciéncia, quando no essencial € supérflua? Bem, se querem dar ouvidos A minha Tesposta a essa pergunta e a sua conjectura talvez extravagan> te, parece-me que a sutileza e a forca da consciéncia est’io sem- pre relacionadas 4 capacidade de comunicagao de uma pe: soa (ou animal), e a capacidade de comunica¢ao, por sua ve) a necessidade de comunicagao: mas nao, entenda-se, que pre= cisamente o individuo mesmo, que € mestre justamente em comunicar € tornar compreensiveis suas necessidades, tam bem seja aquele que em suas necessidades mais tivesse de recorrer aOs outros. Parece-me que é assim no tocante a Tacas € correntes de geracdes: onde a necessidade, a indigéncia, , por muito tempo obrigou os homens a se comunicarem, a com= preenderem uns aos outros de forma rapida e sutil, ha enfim um excesso dessa virtude e arte da comunicacao, como uma fortuna” que gradualmente foi juntada e espera um herdeiro que prodigamente a esbanje (— os chamados artis do esses herdeiros, assim como os oradores, pregadores, escritores, todos eles pessoas que sempre vém no final de uma longa cadeia, “frutos tardios” na melhor acepcdo do termo, e, como foi dito, por natureza esbanjadores), Supondo que esta observa- (40 seja correta, posso apresentar a conjectura de que a cons- ciéncia desenvolveu-se apenas sob a pressdio da necessidade de comunicagdo— de que desde 0 inicio foi necessiria e titil apenas entre uma pessoa e outra (entre a que comandaea que obedece, em especial), e também se desenvolveu apenas em Propor¢ao ao grau dessa utilidade, Consciéncia é, na tealidade, apenas uma rede de ligag4o entre as pessoas — apenas como (248) LIVRO v tal ela teve que se desenvolver: um ser solitario e predatério nado necessitaria dela. O fato de nossas ag6es, pensamentos, sentimentos, mesmo movimentos nos chegarem a consciéncia — ao menos parte deles —, € conseqitiéncia de uma terrivel obrigagao que por longuissimo tempo governou o ser huma- no: ele precisava, sendo o animal mais ameacado, de ajuda, Prote¢ao, precisava de seus iguais, tinha de saber exprimir seu ‘puro e fazer-se compreensivel — e para isso tudo ele neces- sitava antes de “consciéncia” isto é, “saber” o que lhe faltava, ber” como se sentia, ‘saber” o que pensava. Pois, dizendo-o mais uma vez: o ser humano, como toda criatura viva, pensa continuamente, mas nao o sabe; o pensar que se torna cors- ciente € apenas a parte menor, a mais superficial, a pior, diga- mos: — pois apenas esse pensar consciente ocorre em pala- vraS, OU Sejd, em signos de comunicagdo, com o que se revela a origem da prépria consciéncia. Em suma, o desenvolvimen- to da linguagem e o desenvolvimento da consciéncia (ndoda razao, mas apenas do tomar-consciéncia-de-si da razao) an- dam lado a lado, Acrescente-se que nao s6 a linguagem serve de ponte entre um ser humano e outro, mas também o olhar, 0 toque, 0 gesto; o tomar-consciéncia das impressdes de nos- Sos sentidos em nés,a capacidade de fixd-las e como que situa- las fora de nds, cresceu na medida em que aumentou a neces- sidade de transmiti-las a outros por meio de signos.O homem inventor de signos é,ao mesmo tempo, o homem cada vez mais consciente de si; apenas como animal social o homem apren- deu a tomar consciéncia de si — ele 0 faz ainda, ele 0 faz cada vez mais. — Meu pensamento, como se vé, € que a conscién- cia nao faz parte realmente da existéncia individual do ser humano, mas antes daquilo que nele é natureza comunitaria gregaria;*que, em conseqiiéncia, apenas em ligac4o coma uti- lidade comunitdria e gregaria ela se desenvolveu sutilmente, ¢ que, portanto, cada um de nés, com toda a vontade que tenha de entender a si proprio da maneira mais individual possivel, de ‘conhecer a si mesmo’ sempre traz A consciéncia justamen- te 0 que nao possui de individual, o que nele é “médio” — que nosso pensamento mesmo € continuamente suplantado, diga- mos, pelo carter da consciéncia — pelo “génio da espécie” [249] A GAIA CIENCIA que nela domina — e traduzido de volta para a pe: TSpeces aria. Todas as nossas acGes, no fundo, sao pessoais de ra incomparvel, tinicas, ilimitadamente individuais. =. duvida; mas, tao logo as traduzimos para a consciénca, parecem mais s . Este € 0 verdadeiro fenomena Pperspectivismo, como ez o entendo: a natureza da com cia animal ocasiona que 0 mundo de que podemos aes: nar conscientes seja sé um mundo generalizado, vul do”— que tudo 0 que se torna consciente por isso = torna-se aso, ralo, relativamente tolo, geral, signo, marcy rebanho, que a todo tornar-se consciente esta relacionads grande, radical corrupgao, falsificacao, superficializacao = neralizacao. Afinal, a consciéncia crescente é um pena quem vive entre os mais conscientes europeus sabe até uma doenga. Nao é, como se nota, a oposicao entre sujeito = jeto que aqui me interessa: distingao deixo para os cos do conhecimento que se enredaram nas malhas da gx tica (a metafisica do povo). E menos ainda é a oposicio fendmeno e “coisa em si”: pois estamos longe de “conheces suficiente para poder assim separar Nao temos nenhum oa, para o conhecer, para a “verdade”: nds “sabemos” (ou creme ou imaginamos) exatamente tanto quanto pode ser s/f) = interesse da grege humana, da espécie: e mesmo 0 que aqui <= chama “utilidade” é, afinal, apenas uma crenga, uma images Cao ¢, talvez, precisamente a fatidica estupidez da qual um Ge pereceremos. 355. Aorigem do nosso conceito de ‘conbecimento”. —Esta xp cacao eu encontrei na rua; ouvi alguém do povo dizer: “Ele me. reconheceu” —: entao me perguntei: 0 que entende mesmo © povo por “conhecimento”? o que quer ele, quando quer “cone cimento”? Nao mais do que isto: algo estranho deve ser reme- tido a algo conhecido*E nés, filésofos — ja entendemos mas do que isso, ao falar de conhecimento? © conhecido, isto € aquilo a que estamos habituados, de modo que nao mais nos: [250]

Você também pode gostar