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A Paternidade

de São Jose
PADRE JOSEPH MUELLER, S.J.

A Paternidade
de São Jose
A Paternidade de São José

Editor-chefe: José Henrique Naegele


Coordenação: Pablina Naegele
Tradução e Revisão: Leonardo de Paula
Capista: Pedro Diogenes e George Amin
Diagramação: Fabiana Mattos

Dados de catalogação da publicação


A Paternidade de São José/Padre Joseph Mueller, S. J.
Rio de Janeiro: Caritatem, 2020

ISBN: 978-65-86086-38-6

Autores cristãos – Catolicismo – Catequese – Doutrina católica


Espiritualidade – Oração – Moral cristã

1. Autores cristãos – Catolicismo – Catequese – Sacramento do Matrimônio


Doutrina católica – Pregação – Espiritualidade – Oração – Moral cristã
Índice para catálogo sistemático:
Vida cristã: Cristianismo: Doutrina católica: Espiritualidade

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– CARITATEM –
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Sumário

SÃO JOSÉ............................................................... 9

PREFÁCIO............................................................... 11

1. Introdução....................................................................... 13
I. Notas históricas sobre a devoção a São José........................ 13
II. O sentido da veneração religiosa......................................... 21
III. Literatura teológica sobre São José.................................... 24

2. O matrimônio entre Maria e José............................... 27

3. O matrimônio virginal de José.................................... 45

4. Objeções ao matrimônio virginal de Maria e José.... 63

5. A missão especial desse matrimônio......................... 75

6. Os bona matrimonii1.................................................... 87

7. A paternidade de São José........................................... 101

8. Os padres da igreja........................................................ 111


9. Os teólogos..................................................................... 123
10. Recapitulação................................................................. 139
11. Prerrogativas de São José............................................. 151
12. A ordem da união hipostática.................................... 163
13. A elevada dignidade de São José................................ 175
14. A eminente santidade de São José............................. 187
15. O patrocínio de São José.............................................. 203
16. A veneração devida a São José.................................... 211
Divina eloquia cum legente crescunt

Em Nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo:


Ó Senhor Jesus Cristo, abre meu coração para que pos-
sa ouvir e entender Tua palavra e fazer Tua vontade, pois
sou um residente temporário nesta terra. Não oculte Teus
mandamentos de mim, mas abre meus olhos para que possa
compreender as maravilhas de Tua lei. Dizei-me as coisas
ocultas e secretas de Tua sabedoria. Em Ti deposito minha
esperança, ó Deus meu, de que Tu iluminarás minha mente
e meu entendimento com a luz de Tua sabedoria, não apenas
para cultivar as coisas que estão escritas, mas para cumpri-
-las, para que não peque ao ler as vidas, obras e provérbios
dos santos, mas para que sirvam à minha restauração, ilumi-
nação e santificação, para a salvação da minha alma e heran-
ça da vida eterna. Pois Tu és a luz daqueles que residem nas
trevas, e de Ti vem toda boa obra e dádiva. Amém.

† S. João Crisóstomo
† Pater Noster

† Gloria
São José1

Protetor de seu Deus, ó José bondoso

Tu lhe guias, na humilde oficina, o andar

E a serrar, suas mãozinhas, ensinas, zeloso

Abrindo-lhe a porta, ao súplice olhar

Ó Artista, de humildes trabalhos, a vida

dos homens tu enches de encanto e beleza.

Eis o Filho de Deus a iniciar sua corrida,

Na infância feliz, dás-lhe paz, gentileza.

Do Calvário, lançou um olhar angustiado,

A um mundo que não entendeu a verdade;

José parecia ainda estar a seu lado,

Já morto, mas sempre um sinal de bondade.

(vide nota a seguir)


A Paternidade de São José

1. Versão livre do revisor para o poema original, em Inglês:


TO ST. JOSEPH
Protector of your God, good Joseph
Guiding His steps across the worn shop floor,
Teaching His little hands to hold the saw,
Opening at His beseeching glance the door.
Performer of the little tasks that grace
The life of men in little, lovely ways,
Starting the Son of God on His great road
With gentle, peaceful, happy childhood days.
From Calvary His anguished eyes could look
Upon a world which had not understood;
And yet He could remember-Joseph there,
Joseph, long dead, Joseph had been so good.

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Prefácio

As seguintes discussões teológicas sobre São José, o casto esposo da


Santíssima Virgem Maria e pai virginal de nosso Salvador, o Deus
feito homem, são substancialmente idênticas a uma série de discur-
sos proferidos pelo autor na Universidade de Innsbruck. Atendendo
a reiterados pedidos, torno-os, agora, públicos, com pequenas alte-
rações de pouca importância. Espera-se que esta obra, originalmente
destinada a teólogos e, portanto, redigida em linguagem teológica
um tanto técnica, possa ainda ser de interesse para outros homens e
mulheres instruídos, interessados em questões teológicas.

Que o livro contribua para uma devoção maior ao grande pa-


triarca, cuja posição no reino de Deus só é menor que a do próprio
Deus humanado e a de sua Bem-aventurada Mãe virginal.

O Autor.
1. Introdução

I. Notas históricas sobre a devoção a São José

A veneração a São José, o esposo virginal da Santíssima Vir-


gem Maria, Mãe de Deus, em sua essência e fundação, é tão antiga
quanto a própria Igreja, pois augusta posição e a dignidade do santo
patriarca são, como veremos, inconfundivelmente fundamentadas
nas Sagradas Escrituras, ou seja, nos Evangelhos. No entanto, como
muitas outras doutrinas e tradições da Igreja, passou por um pro-
cesso de desenvolvimento, algumas vezes peculiar, mas, no geral,
realmente maravilhoso. Joseph Seitz, em sua valiosa obra A venera-
ção a São José em seu desenvolvimento (1908)2, mostrou isso em deta-
lhes. É lamentável que ele não tenha ido além do Concílio de Trento;
uma continuação prometida por ele parece não ter sido publicada.
Outro relato histórico, mais breve, mas excelente, a sua maneira, foi-
-nos dado pelo renomado historiador Otto Pfülf, S.J.3. Ele rastreia o

2. Nota do revisor: Em Inglês, The Veneration of St. Joseph in It Historical


Development, sem edição em Português.
3. Em dois artigos em Stimmen aus Maria-Laach, vol. XXXVIII (1890).
Nota do revisor: Otto Pfülf (1856-1946) foi um sacerdote jesuíta, da
diocese de Speyer, na Alemanha, notável autor de biografias.
A Paternidade de São José

desenvolvimento [da devoção] desde a origem da Igreja até o final


do século XIX. Ambos os relatos são mais úteis para aqueles que de-
seja estudar o desenvolvimento histórico em detalhes. Ainda que o
objetivo das discussões seguintes não seja histórico, mas dogmático,
pode ser interessante e útil a nosso propósito se indicarmos e enfa-
tizarmos, sob a orientação desses dois autores, alguns pontos altos
desse desenvolvimento.

Nos primeiros três ou quatro séculos da Igreja, encontramos


poucos vestígios de uma evidente veneração a São José, algo tido
como estranho e muito comentado pelos oponentes dessa devoção.
Mas nesta veneração religiosa, como em todas as outras, é bom fa-
zer uma distinção entre veneração privada, em que um indivíduo,
talvez apenas em seu coração, reconhece e, cheio de admiração, con-
templa a elevada posição de São José no reino de Deus e sua grande
santidade; e veneração externa e pública, que encontra expressão em
devoções públicas comuns, dias de festa, altares e igrejas erguidas
em homenagem a São José.

A primeira, a veneração privada ou interior, certamente


existe desde a origem da Igreja; surgiu assim que os cristãos fiéis e
atenciosos se aplicaram à leitura piedosa e atenta dos Evangelhos,
especialmente os capítulos sobre a infância e a juventude de nosso
Salvador, e eles conheceram a personalidade augusta de São José; a
última, a veneração comum ou pública, poderia, por circunstâncias
exteriores, ser prejudicada, e foi isso que realmente aconteceu. Nos
primeiros séculos do cristianismo, era de primordial importância
que o Redentor, o Deus feito homem, fosse reconhecido e acredita-
do como uma pessoa divina, tarefa difícil para uma sociedade hu-
mana intelectualmente e moralmente depravada e, portanto, pouco
disposta e quase incapaz de aceitar os sublimes mistérios cristãos,
especialmente o nascimento virginal do divino Salvador por meio
de Maria, a Mãe de Deus. Portanto, dificilmente poderia ser evitado
que São José, que não era o pai natural do Redentor, ainda pudesse
ser facilmente considerado – como, frequentemente, o foi – como o

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Padre Joseph Mueller S. J.

pai natural, permanecesse em segundo plano, a fim de que a honra


de Deus feito homem e de sua Mãe virginal pudesse permanecer
intacta.

Outra circunstância pode ter contribuído para impedir que


uma veneração pública de São José se desenvolvesse durante os
primeiros tempos cristãos. Era o tempo da primeira expansão do
cristianismo e da cruel perseguição aos cristãos. Nesses tempos, era
natural que todas as outras grandezas e nobrezas humanas, mes-
mo que sobrenaturais, tivessem que dar precedência ao maravilho-
so heroísmo e à constância até a morte dos apóstolos e dos outros
mártires. Tais exemplos foram mais marcantes e atraíram a atenção
e despertaram a compaixão dos fiéis muito mais do que a grandeza
e a santidade, nobres em seu silencioso autossacrifício, mas menos
notáveis, do esposo da Mãe de Deus. Mais tarde, quando a religião
cristã já tinha se firmado e passado a permear a própria vida dos ho-
mens, a veneração de São José também começou a se desenvolver e
a se espalhar, especialmente na Igreja Oriental. No século III, encon-
tramos poucas evidências disso, mas no século IX, parece ter atingi-
do um alto nível de desenvolvimento em quase todos os lugares. O
fato de esse desenvolvimento ser praticamente restrito ao Oriente é
evidentemente explicado pela história da época.

Nos países ocidentais, a tempestuosa migração de povos ha-


via cessado e havia deixado para trás um grande monte de ruínas.
A necessidade urgente era civilizar e cristianizar as hordas bárbaras
que haviam invadido o centro e o sul da Europa e salvar da extinção
total e revigorar os romanos, derrotados como estavam, humilhados
ou quase destruídos. Não é de admirar que, nesse período tão tur-
bulento, fervilhante e quase recaído na barbárie, quase não haja do-
cumentos disponíveis que possam testemunhar qualquer devoção
pública a São José. Não havia imprensa e os tempos tempestuosos
não eram favoráveis ao ​​ desenvolvimento ou ao registro de devoções
religiosas. O mesmo vale para outras devoções e tradições que cer-
tamente existiam. A falta de documentos desse período não é, por-
tanto, suficiente, em nosso caso, para concluirmos que tal devoção

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A Paternidade de São José

não existia. Por último, o fato de que a veneração de São José, tan-
to na teoria quanto na prática, exigiu um tempo considerável para
se afirmar, desenvolver e difundir, esclarece quaisquer dúvidas, se
a considerarmos e a avaliarmos do ponto de vista dogmático. Ela
compartilha seu destino não apenas com outras devoções, mas com
outras tradições essenciais e até dogmas definidos da Igreja Católica.
Cito apenas a primazia do Romano Pontífice e a Imaculada Concei-
ção da Santíssima Virgem Maria, que emergiram pouco a pouco na
consciência geral da Igreja e na aceitação teórica e prática de todos
os seus membros, mas apenas no século XIX foram declaradas sole-
nemente pela Igreja como verdades reveladas. No entanto, quando
a missão supracitada foi cumprida e a religião cristã, após as devas-
tações dos invasores bárbaros, estava revivendo e florescendo nova-
mente, a veneração a São José também se tornou viva e, no século
XII, começou a lançar raízes mais fortes e profundas na vida cristã e
produziu flores e frutos abundantes. Isso foi especialmente devido
a dois dos maiores homens do século, o venerável abade Ruperto
de Deutz (1070-1129) e São Bernardo (1090-1153), que nunca se can-
saram de proclamar a grandeza e a santidade do santo patriarca e
promover sua veneração.

Desde então, essa devoção se desenvolveu mais e mais e se


espalhou para cada vez mais longe a cada século. O maior crédito
por isso deve se atribuído a vários extraordinários homens e mu-
lheres, teólogos e santos, como Pierre d’Ailly, Gerson (chanceler
da Universidade de Paris), São Bernardino de Sena (1380-1444),
Bernardino de Feltre (1439-1494), Bernardino de Bustis (1450-1513),
Tomás Caetano (de Vio), Sta. Teresa de Ávila, São Francisco de Sa-
les, São Vicente de Paulo, Santo Afonso de Ligório e outros mais. As
várias ordens religiosas, como os franciscanos, dominicanos, car-
melitas, jesuítas e redentoristas, competiam entre na veneração ao
santo patriarca e se empenharam por obter sua aceitação em todos
os lugares. A veneração a São José se espalhou de diocese a diocese
e começou a florescer inclusive nas missões em países estrangeiros.
Cortes reais, como os Bourbon, em Paris, e os Habsburgo, em Viena

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Padre Joseph Mueller S. J.

e Bruxelas, deram-lhe apoio sincero e ativo, tendo grande partici-


pação em seu crescimento4.

Este não é o momento de investigar seu desenvolvimento


mais profundamente, mas apenas uma fase merece destaque aqui,
no intuito de preparar o caminho para um melhor entendimento da
discussão dogmática a seguir, isto é, o maravilhoso avanço que a de-
voção conquistou desde o pontificado de Pio IX, ele mesmo um fer-
voroso devoto de São José que, quando elevado ao trono papal em
1846, imediatamente se dedicou a promover sua veneração em toda
a Igreja. Em 10 de setembro de 1847, Pio IX estendeu a toda a Igreja
a Festa do Patrocínio de São José, até aquele momento restrita a um
pequeno grupo de dioceses. Seus predecessores Pio VIII e Gregório
XVI já tinham enriquecido com indulgências a piedosa meditação
das sete dores e sete alegrias de São José; Pio IX ampliou essas in-
dulgências consideravelmente logo após o início de seu pontificado,
em 1º de fevereiro de 1847. Em 11 de junho de 1855, ele enriqueceu
com grandes favores espirituais a devoção diária a São José durante
o mês de março e, em 27 de abril de 1865, ele publicou um decreto
que tinha por objetivo ou efeito fazer o mês de março, por assim
dizer, equivalente ao mês de maio, visto que o mês de março seria
dedicado a São José, como o mês de maio é especialmente dedicado
à Santíssima Virgem. Com a aprovação e o encorajamento do papa,
a Confraria do Cordão de São José foi estabelecida em Verona, em 19
de março de 1860, que, logo, foi elevada por ele ao status de arqui-
confraria e beneficiada com muitas indulgências, sendo sua influên-
cia salutar difundida entre o clero e os fiéis. Outras iniciativas, mais
importantes e de maior alcance, serão mencionadas posteriormente.

O exemplo desse grande papa foi seguido por membros do


episcopado, encorajados e, algumas vezes, podemos supor, direta-
mente instigados por ele. Desse modo, sem mencionar os príncipes
da Igreja, vários sínodos provinciais (por exemplo, os de Viena, na

4. Conforme Plulf, loc. cit.

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A Paternidade de São José

Áustria [1858]; Praga, na Boêmia [1860]; Kalocsa, na Hungria [1862];


Baltimore [1866]; Nova Granada, na Colômbia [1868] e Bordéus, na
França [1868]) promulgaram decretos nos quais conclamaram os
fiéis a uma fervorosa veneração a São José, dando a entender, algu-
mas vezes, que abaixo da Mãe de Deus, São José merecia o primeiro
lugar em sua devoção. Uma expressão bem clara dos sentimentos do
episcopado católico daquela época, relativo à veneração a São José,
foram as postulações enviadas por eles à Sé Apostólica ou ao Concí-
lio Vaticano I, em que pediam por um aumento no culto litúrgico do
santo. A primeira petição tinha sido enviada à [Sagrada] Congrega-
ção dos Ritos em 1869 e levava a assinatura de muitos bispos, padres
e leigos, especialmente italianos, mas não foi sancionada, provavel-
mente porque o Concílio Vaticano seria convocado em breve. Outra
três petições foram propostas pelos próprios membros do Concílio.
Elas eram muito parecidas e, em considerável acordo, pediam ao
Concílio que declarasse, solenemente, São José o primeiro patrono e
protetor, abaixo da Santíssima Virgem, de toda a Igreja e que conce-
desse a ele, junto à Mãe de Deus, a mais alta veneração litúrgica. A
primeira petição foi assinada por 153 padres do Concílio; a segunda,
por 43 religiosos superiores gerais presentes; e a terceira, por 118
padres conciliares. A dispensabilidade de mais signatários não cau-
sou surpresa nem refletiu no conteúdo das petições, pois mal havia
começado a angariação de assinaturas quando a situação crítica na
Europa e o início da guerra franco-alemã causaram a suspensão do
Concílio. Assim, não foi possível coletar mais assinaturas e as peti-
ções não puderam ser respondidas. Eles não ficaram sem resultado,
no entanto. O que nos leva de volta a Pio IX.

O próprio papa respondeu a essas petições e satisfez a maior


parte de seus desejos, de fato, em todas as partes essenciais. Em seu
nome e sob suas ordens, em 8 de dezembro de 1870, um decreto da
Congregação dos Ritos foi publicamente lido durante os ofícios di-
vinos em três basílicas papais, a Vaticana, a do Latrão e Santa Maria
Maior, e nesse decreto, com especial referência às petições dirigidas
ao Concílio, o casto esposo da Santíssima Virgem, em consideração a

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Padre Joseph Mueller S. J.

sua elevada posição na Sagrada Família, era solenemente declarado


patrono de toda a Igreja Católica, e sua festa era elevada a duples5.
Não satisfeito com esse ato solene, no ano seguinte (em 7 de julho),
Pio IX enviou uma carta apostólica a todo o mundo católico, em que
repetia a proclamação do patrocínio de São José sobre toda a Igreja
Católica, divulgada nas basílicas romanas, e ainda estendia o culto
litúrgico do santo patriarca. Ele determinou que o Credo deveria
ser rezado na Missa nas festas de São José, que na oração A cunc-
tis6, imediatamente após o nome da Bem-aventurada Virgem Maria,
as palavras “com o Bem-aventurado José” deveriam ser inseridas e
que, igualmente, no Ofício Divino, o sufrágio em honra a São José
deveria ser rezado em sequência ao da Santíssima Virgem. Com es-
ses decretos, Pio IX coroou seu trabalho em propagar a veneração a
São José.

Os papas seguintes seguiram seus passos. Leão XIII, o grande


mestre na cátedra de São Pedro, em 15 de agosto de 1889, enviou
uma esplêndida encíclica ao mundo católico, para instruir os fiéis,
com autoridade apostólica, sobre a dignidade, o poder e a santida-
de eminentes de São José, que, como ele indicou, nesses aspectos,
ocupa o primeiro lugar abaixo da Mãe de Deus no reino de Deus.
Assim, ele esperava que a veneração ao santo e a confiança em seu
poder para ajudá-los lançassem raízes ainda mais profundas nos co-
rações dos fiéis. Ele também recomendou a dedicação, de modo es-
pecial, do mês de março a São José e convocou os bispos do mundo
a seguirem-no, o supremo guia e pastor da Igreja, em seus esforços

5. N. R.: Uma das maiores graduações das celebrações litúrgicas no


Missal Romano anterior ao Concílio Vaticano II. Significava dizer
que a Festa de São José teria duas Vésperas (para o Breviário) e
antífonas duplas, além de ser celebrada com mais solenidade, entre
outros detalhes.
6. N. R.: Oração presente na liturgia do Missal Romano pré-conciliar,
dedicada a solicitar a intercessão dos santos. Inicia-se com as palavras
A cuncti nos, significando, literalmente, “A todos nós”.

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A Paternidade de São José

por promover a veneração a nosso grande e amável santo. Leão XIII


tomou outra medida: em dois breves7 apostólicos, ele recomendou
afetuosamente a [Pia] Associação da Sagrada Família, que já existia
há algum tempo, e convidou todas as famílias católicas, no mundo
inteiro, a se associarem a ela e a se dedicarem à Sagrada Família de
Nazaré. No primeiro deles (de 14 de junho de 1892), ele chama São
José de cabeça visível da Sagrada Família e afirma que o ilustre san-
to representou a autoridade paternal para Jesus neste mundo. No
segundo (de 20 de junho de 1892), ele repetiu o convite e enriqueceu
a associação com muitas indulgências e privilégios, recomendando
e ordenando aos membros orações em que São José fosse invocado
como santo protetor de Jesus e Maria.

O santo sucessor de Leão, Pio X, que, no batismo, tinha rece-


bido o nome de José, não falharia em promover essa devoção. Por
decreto da Congregação dos Ritos, de 18 de março de 1909, ele apro-
vou a Ladainha de São José, que lhe havia sido proposta por muitos
bispos e superiores religiosos, mandou que fosse inserida nos livros
litúrgicos e recomendou-a para uso público e privado. O pontificado
de Bento XV trouxe outra distinção ao culto litúrgico do santo pa-
triarca. Sob suas ordens, a Congregação dos Ritos publicou um de-
creto (em 9 de abril de 1919) em que as missas de São José receberam
um novo e especial prefácio. Sob Pio XI, um decreto da Congregação
dos Rios (de 9 de agosto de 1922) adicionava, no rito da extrema
unção e nas orações litúrgicas pelos agonizantes, a invocação a São
José à da Bem-aventurada Mãe de Deus, e uma oração especial a São
José deveria ser dita em favor do moribundo. Declarações do mes-
mo papa em diversas ocasiões servem como testemunho de que, em
relação à devoção a São José, seus sentimentos estão em total acordo
com os de seus predecessores.

7. N. R.: O breve é documento papal assinado e referendado com a


impressão do Anel do Pescador, de comprimento, importância e
formalidade menores que os dos demais documentos pontifícios.

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Padre Joseph Mueller S. J.

Esse resumo é suficiente para nos mostrar a posição do magis-


tério da Igreja quanto à veneração as São José, como tem sido trans-
mitida com clareza cada vez maior, especialmente desde o início do
pontificado de Pio IX. Sendo essa a atitude das autoridades eclesiás-
ticas, era natural que o povo cristão se voltasse para essa devoção
com crescente entusiasmo. Especialmente desde o século XII, e par-
ticularmente a partir do Concílio de Trento e, depois, com o Concílio
Vaticano [I], a veneração a São José, sob a orientação do Espírito
Santo, tornou-se parte integrante da vida cristã, sempre crescendo
extensiva e intensivamente, de modo que, hoje, os fiéis colocam São
José, por causa de sua íntima conexão com o divino Redentor e a
Mãe de Deus, próximo a ela, sua virginal esposa, e lhe atribuem pre-
cedência sobre todos os outros santos, até mesmo os santos anjos, os
apóstolos e São João Batista. Desse modo, tornou-se realidade o que
o piedoso e erudito dominicano Isidoro Isolano, com visão proféti-
ca, predisse, que “em vista das grandes coisas que Deus havia feito
em São José, a santa Igreja Católica um dia aprovaria e promoveria
veneração pública e solene a São José; que haveria grande alegria na
Igreja militante, uma vez que sua sublime santidade e dignidade fos-
sem universalmente reconhecidas; que o Espírito Santo não falharia
em acender nos corações dos fiéis tal veneração ao santo que também
as autoridades eclesiásticas lhe dariam pública e solene expressão,
fundando mosteiros, igrejas e altares em honra a São José”8.

II. O sentido da veneração religiosa


De nossos breves comentários introdutórios, surge uma ques-
tão dogmática: a especial e distinta veneração que a Igreja Católica

8. Isidoro Isolano, O.P. Summa de donis S. Josephi (1514). Em Português,


Suma sobre os dons de São José. N. R.: Isidoro Isolano (14..-1528) foi
um sacerdote e teólogo milanês da Ordem dos Pregadores. Apesar
da data de 1514, atualmente se pode que a publicação mais antiga
da obra é de 1522.

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A Paternidade de São José

tem prestado a São José, especialmente desde o século X e intensifi-


cada a partir do Concílio de Trento e, principalmente, após o Concí-
lio Vaticano, está apoiada nas fontes da Revelação, e quais são seus
fundamentos dogmáticos mais profundos? O presente tratado é um
esforço para responder a essas questões. Durante o texto, todas as
questões mais importantes de relevância dogmática sobre São José
serão abordadas. O que se entende por “veneração religiosa”? Em
que consiste? Se por veneração, geralmente, se entende um respeito
e uma submissão à grandeza de outrem, então, a veneração religiosa
ou o culto religioso significa, em primeiro lugar, nada menos que a
homenagem ou a expressão de nosso respeito e submissão ao objeto
mais elevado, ao primeiro princípio e ao fim último de toda religião,
isto é, a Deus em Sua infinita grandeza, majestade e santidade. Em
segundo lugar, significa uma homenagem proporcional ou expres-
são de respeito e submissão àquelas pessoas que estão intimamente
e, na ordem atual, sobrenaturalmente conectadas a Deus, o objetivo
último de toda adoração e, portanto, de modo especial, têm uma
participação em Sua dignidade e santidade.

Essa definição deixa claro que a dignidade e santidade das


pessoas a quem o culto religioso é tributado devem ser não apenas
o motivo, mas também a norma ou medida do culto religioso. E evi-
dencia, ainda mais, a diferença essencial e a distância insondável
entre a adoração devida a Deus e dirigida a Ele somente, chama-
da pelos teólogos latria, e aquele culto ou veneração que dirigimos
àquelas criaturas a quem Deus exaltou e honrou, os anjos e santos:
o culto de dulia. Pelo mesmo princípio, prestamos à Mãe de Deus
um culto ou veneração chamada hiperdulia que, por um lado, por
sua própria natureza, está imensamente abaixo da latria e, por outro
lado, supera a veneração prestada aos outros santos, tanto quanto
sua própria dignidade e santidade excede a de todos os anjos e san-
tos. Portanto, para determinar e medir o alcance e extensão que deve
ter nossa veneração a São José, teremos que determinar e considerar
não apenas sua própria santidade sobrenatural, mas também sua
relação com a obra da Redenção e sua posição no reino sobrenatural

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Padre Joseph Mueller S. J.

de Deus, e a elevada dignidade que daí lhe resulta. Essa posição


do santo patriarca no reino de Deus é determinada, em seu caráter
distintivo, primeiro por suas relações íntimas com o divino Reden-
tor e Sua imaculada Mãe e com a Igreja, que incorpora os efeitos
e a continuação do trabalho da redenção; em segundo lugar, pelos
maravilhosos privilégios resultantes dessas relações. Essas relações
e esses privilégios nos foram apresentados, direta ou indiretamente,
por revelação divina e, portanto, fornecem o fundamento dogmático
para a veneração específica devida a esse grande santo. A partir de-
les, como trataremos detalhadamente neste livro, as reivindicações
especiais de nosso santo sobre nossa veneração especial serão com-
preendidas como uma necessidade lógica. Como uma visão preli-
minar do presente tratado, apresentamo-las aqui em sua sequência
sistemática:

1. A existência de um verdadeiro matrimônio entre Maria e


José.

2. As características peculiares desse matrimônio, seu pro-


pósito, sua função e seu fruto.

3. A paternidade de São José relativa ao menino Jesus.

4. Detalhada explicação dos aspectos negativos e positivos


da natureza dessa paternidade.

5. A paternidade de São José nos escritos dos Padres e dou-


tores da Igreja do século VIII até o presente.

6. Os privilégios de São José resultantes de seu matrimônio


e paternidade, especialmente sua incorporação, quanto à
chamada ordem hipostática, na humanidade de Jesus e de
Maria.

7. Sua dignidade pessoal e sua santidade.

8. São José, patrono da Igreja.

9. A veneração a São José devotada pela Igreja: protodulia.

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A Paternidade de São José

III. Literatura teológica sobre São José

A literatura teológica sobre São José não é, obviamente, tão


extensa e abundante quanto a sobre sua santa esposa, a Santíssima
Virgem Maria. A antiguidade cristã não nos legou discussões deta-
lhadas, muito menos uma abordagem sistemática, sobre São José.
Nos escritos de alguns dos Padres [da Igreja] e escritores eclesiásti-
cos nós encontramos menções ocasionais e comentários sobre esse
santo, muito estimulantes por sua perspicácia teológica e profun-
didade. A inteligência de Santo Agostinho, de modo especial, per-
cebeu e entendeu a posição de São José e sua conexão com Jesus e
Maria, como alguns outros teólogos, antes ou depois dele. Todavia,
contribuições valiosas ao estudo de nossa personagem são encon-
tradas nas obras de vários outros Padres, como [Santo] Efrém [c.
306-373], [São João] Cristóstomo [c. 347-407] e [São] Jerônimo [c. 347-
420]. Teremos ocasiões de citá-los e discuti-los no decorrer dos pró-
ximos capítulos.

Da mesma forma, os grandes teólogos medievais falharam em


produzir alguma exposição sistemática detalhada dos ensinamentos
teológicos sobre São José, ainda que certas questões, algumas vezes,
tenham recebido um tratamento mais detalhado. Perto do fim da
Idade Média, alguns teólogos escreveram obras abrangentes sobre
São José, como Pierre d’Ailly9, que escreveu o Tratado sobre as hon-
ras de São José10. Isidoro Isolano, mencionado anteriormente, deixou
um extenso trabalho sobre os dons de São José, muito retórica e pou-
co sistemática, mas rica em conteúdo. Um famoso acadêmico, bem

9. N. R.: Pierre d’Ailly (1350-1420), cardeal, teólogo, filósofo, professor,


cartógrafo e astrônomo francês. Notável na luta contra as heresias de
seu tempo, bem como os abusos na Igreja, além de ter escrito cerca
de 170 obras.
10. N. R.: A Treatise on the Honors of St. Joseph, sem tradução para o Por-
tuguês.

24
Padre Joseph Mueller S. J.

conhecido por sua devoção a São José, John Gerson11, o chanceler da


Universidade de Paris, pregou um sermão no Concílio de Constan-
ça, em 1414, sobre a Natividade da Santíssima Virgem Maria, em
que, propositalmente, acrescentou grande número de questões teo-
lógicas relativas a São José. Ele também publicou um livro de me-
ditações populares sobre São José, em Francês, e um extenso poema
épico em sua honra intitulado Josephina. Teologicamente, contudo,
esses dois livros dificilmente acrescentam alguma coisa nova ao fa-
moso sermão que acabamos de mencionar.

Após o Concílio de Trento, a teologia sobre São José inques-


tionavelmente fez decisivos progressos em vários aspectos. Mencio-
namos, em primeiro lugar, Suárez12, que escreveu um meticuloso e
sistemático tratado sobre nosso santo, tanto no aspecto positivo quan-
to no especulativo. Scheeben diz desse tratado: “O melhor relato do
que pode ser verificado teologicamente, com mais ou menos certe-
za, sobre a dignidade, a posição e as qualidades de São José é encon-
trado em Suárez, cuja orientação os melhores escritores ascéticos (e
teológicos) têm seguido em nossos tempos”13. Em seguida, Théophi-
le Raynaud14 merece atenção, pois em sua famosa Diptycha Mariana

11. N. R.: Jean Charlier de Gerson (1363-1429), cardeal, teólogo, filósofo,


educador, pregador e poeta francês, cognominado Doctor christia-
nissimus.
12. The Mysteries of the Life of Christ (Paris ed., 1860), XIX, disp. 6, 7, 8.
N. R.: Em tradução livre, Os mistérios da vida de Cristo, sem edição em
Português. Francisco Suárez (1548-1617), sacerdote jesuíta, filósofo e
jurista espanhol, tido como um dos maiores escolásticos após Santo
Tomás de Aquino. Apelidado Doctor Eximius.
13. Dogmatik, III, nº 1586. N. R.: Matthias Joseph Scheeben (1835-1888),
sacerdote, escritor, teólogo e místico alemão. Declarava que o obje-
tivo prático de sua teologia era “fazer os cristãos sentirem-se felizes
a respeito de sua fé”.
14. Théophile Raynaud (1583-1663), sacerdote jesuíta, teólogo e escritor,
professor francês.

25
A Paternidade de São José

habilmente discute algumas questões relativas a São José, rejeitando


corajosa e decididamente todos os exageros e fantasias infundadas,
ainda que, ocasionalmente, vá longe demais em suas típicas críticas
mordazes. Outro contemporâneo de Suárez, o padre Morales, escre-
veu uma extensa obra: Capítulo I de Mateus sobre Cristo, a Santíssima
Virgem e seu legítimo Esposo15. Como a obra de Isolano, esta contém
material valioso em um tratamento difuso, porém mais sistemático
e crítico. São famosos dois sermões de Bossuet16 sobre São José que
atraíram grande atenção na época e, do ponto de vista teológico, ainda
merecem. Pode-se mencionar mais um teólogo da época pré-Vaticana,
Sedlmayr17, cuja Theologia Mariana possui uma Quæstio em 17 artigos
sobre São José, dando um claro e sólido tratamento ao tema.

Após o Concílio Vaticano [I], um número considerável de


monografias, não somente ascéticas, mas também teológicas, surgiu,
abordando, mais ou menos minuciosamente, a posição de São José
no reino de Deus e sua sobrenatural dignidade e santidade. Mesmo
os compêndios de Teologia dogmática, periódicos e comentários das
Escrituras agora, normalmente, dão mais atenção ao nosso santo que
antes. Algumas das monografias pretendiam oferecer uma funda-
mentação teológica às postulações que, como dissemos anteriormen-
te, foram apresentadas ao Concílio Vaticano ou à Sé Apostólica18.

15. No original, Chapter I of Matthew on Christ, the Blessed Virgin, and her
True Spouse, sem edição em Português.
16. N. R.: Jacques-Bénigne Bossuet (1627-1704), bispo, orador, teólogo
e escritor francês, um dos principais defensores do absolutismo dos
reis por direito divino.
17. N. R.: Virgil Sedlmayr (1690-1772), monge beneditino, professor de
Filosofia e Teologia e escritor alemão.
18. Confira, especialmente, as seguintes: C. Mariani. La Primauté de S.
Joseph (1897) e De cultu S. Joseph amplificando (1908); Joseph Bover.
De cultu S. Joseph amplificando (1926); G. M. Picirelli. S. Giuseppe nell’
ordine presente de la divina providenza (1897).

26
2. O matrimônio entre
Maria e José

Para prestar contas de toda a sobrenatural dignidade e santidade de


São José, temos que considerar, em primeiro lugar, sua união ma-
rital com Maria, a Virgem Imaculada e Mãe de Deus, e acima de
tudo, temos que provar, a partir das fontes da Revelação, a verda-
de fundamental seguinte: entre Maria e José existiu um verdadeiro
matrimônio, no sentido próprio da palavra. Portanto, São José foi,
verdadeiramente, o esposo da Mãe virginal de Deus.

A verdade está inequivocamente contida nos Evangelhos.


Por uma necessidade psicológica, conclui-se, pelos fatos atestados
pelos evangelistas, que José e Maria moravam juntos em uma casa,
um fato bem sabido de todos os seus parentes e conhecidos. Nas
mentes dos judeus da época, os requisitos de decoro marital e cas-
tidade conjugal eram tais que pessoas adultas de sexos diferentes
externas à família não podiam viver juntas sob o mesmo teto, convi-
vendo, a menos que estivessem casadas e, portanto, fossem marido
e mulher. Assim, que Maria e José, a partir de certa data, estavam
vivendo juntos era algo de conhecimento comum. José tinha rece-
bido Maria “para si”, em sua casa, e dali em diante passou a cum-
prir fielmente seus deveres como esposo e Maria fez o mesmo como
esposa. Juntos, eles foram a Belém para ser registrados; eles foram
juntos a Jerusalém, nos dias de festa prescritos na Lei, fugiram para
A Paternidade de São José

o Egito, quando perseguidos por Herodes, e, depois de retornarem,


viveram juntos em Nazaré. Em vista disso, temos que concluir que
Maria e José estavam ligados um ao outro por um casamento legal:
eles eram, de fato, marido e mulher. Do contrário, vivendo juntos no
meio de seu povo, eles correriam risco de severa censura, desprezo
público, perseguição e punição, mas nenhum traço disso é encon-
trado no relato evangélico. Jesus era considerado por todos como o
filho legítimo de Maria e José, mesmo pelos fariseus e escribas, que
bisbilhotavam todos os detalhes da vida de Jesus e teriam atacado
cruelmente nosso Senhor e seus santos pais se a menor mancha pu-
desse ser detectada na relação entre Maria e José. Assim, a união de
Maria e José foi universalmente reconhecida como um matrimônio
verdadeiro e genuíno.

Além disso, essa mesma verdade é assegurada pelos evan-


gelistas em termos claros: José é chamado o “esposo” (homem) de
Maria, e Maria a “esposa” de José. Vemos em Mateus 1, 16: “Jacó
gerou José, esposo de Maria, da qual nasceu Jesus, que é chamado
Cristo”; 1, 19: “José, seu esposo, que era homem justo”; 1, 20: “José,
filho de Davi, não temas receber Maria por esposa, pois o que nela
foi concebido vem do Espírito Santo”; 1, 24: “recebeu em sua casa
sua esposa”; Lucas 2, 5: “... para se alistar com sua esposa Maria...”.
Nenhum outro termo ou descrição é usado na Sagrada Escritura
para designar a relação entre Maria e José.

Gratuita e insustentável é a objeção levantada já pelos he-


reges do primeiro e segundo séculos, a saber, que os evangelistas
se adaptaram à opinião e ao linguajar dos judeus contemporâneos
que acreditavam e, portanto, diziam que Maria e José eram marido
e mulher, embora não fossem, e, portanto, Jesus era o filho legítimo
de José, o carpinteiro. Como os Padres frequentemente defendiam,
as palavras e afirmações das Sagradas Escrituras inspiradas devem
ser consideradas em seu sentido literal, desde que isso não leve a
conclusões absurdas ou ímpias, as quais, em nosso caso, estão bem
fora de questão, ou seja, a suposição de um matrimônio verdadeiro

28
Padre Joseph Mueller S. J.

e real de forma alguma envolve qualquer coisa que pareceria incon-


gruente ou ímpia, mas, como veremos mais adiante, a encarnação
do Filho de Deus na Virgem Maria é muito bem compatível com
a união de Maria e José por um casamento virginal. Além disso, a
objeção dos hereges de que as expressões “marido” e “mulher” são
meras adaptações ao modo de falar dos judeus daquela época já foi
bem rebatida por Santo Agostinho: “Quando o evangelista estava
registrando suas próprias palavras ou as de outro homem, podería-
mos imaginar que ele era livre para falar de acordo com a opinião
corrente entre os homens, mas quando um anjo estava se dirigindo a
outra pessoa, poderia ele ter falado, contra seu próprio conhecimen-
to e o do outro, conforme a “opinião de outros homens” e não de
acordo com a verdade objetiva, quando lhe disse: “Não tenhas medo
de receber Maria, tua esposa?”1.

Mais uma objeção contra nosso argumento sobre o uso


das palavras “marido” e “esposa” pode surgir do fato de que
duas vezes Maria é chamada “prometida”2 de José, o que po-
deria dar a crer que Maria permaneceu apenas comprometida
com José sem, de fato, tornar-se sua esposa. No entanto, essa
objeção também pode ser respondida de modo não menos efi-
caz e direto: é verdade que os judeus, pelo menos na época de
Cristo, faziam uma distinção, como nós fazemos hoje, entre
noivado e casamento, mas a distinção judia era fundada em
uma base bem diferente da cristã. De acordo com a visão judai-
ca, com o noivado (erusin) já se dava toda a essência do matri-
mônio, enquanto a união completa como um casal (missuin) só
se realizava com a introdução da noiva na casa do noivo. Por
essa razão, a infidelidade de um dos noivos era considerada
adultério formal e punida como tal. Isso é evidente em Dt 22,

1. Adv. Julianum, livro V, nº 47 (PL, 44, 811).


2. N. R.: Isso ocorre porque, no texto original em Inglês, é utilizada a
expressão espoused wife nesse ponto e, anteriormente, nas citações
de Mt 1, 18 e Lc 2, 5.

29
A Paternidade de São José

22.29, em que tal caso de infidelidade é considerado adultério


e punido como tal. O mesmo é claramente indicado no fato
de que, entre os judeus, o chamado “noivado” só poderia ser
dissolvido como um matrimônio completo ou consumado, ou
seja, por uma certidão de divórcio. Portanto, Scheeben salien-
ta, corretamente, que esse tipo de “noivado” entre os judeus
poderia ser chamado precisamente de “matrimônio”3. A partir
disso, as palavras de Mt 1, 18 antequam convenierent (“antes de
coabitarem”) devem ser entendidas como “antes de ela viver
na casa dele”, não como “antes de eles consumarem o matri-
mônio”.
Esses dois argumentos vindos dos Evangelhos podem
ser reforçados por um terceiro: São José, repetidamente, é cha-
mado, nos Evangelhos, de pai de Cristo, e Maria e José são
chamados de pai de Cristo, como em Lc 2, 33: “Seu pai e sua
mãe estavam admirados das coisas que dele se diziam”; Lc
2, 48: “Meu filho, que nos fizeste? Eis que teu pai e eu andá-
vamos a tua procura, cheios de aflição”; Lc 2, 27: “E tendo os
pais apresentado o menino Jesus”; Lc 2, 41: “Seus pais iam to-
dos os anos a Jerusalém”; Lc 2, 43: “Ficou o menino Jesus em
Jerusalém, sem que seus pais o percebessem”. Inconfundivel-
mente e sem qualquer restrição, José é chamado pai de Jesus
tanto quanto Maria é chamada Sua mãe, e os dois juntos os
pais de Jesus. José, portanto, era pai em sentido real, não me-
ramente suposto. Quando a Escritura diz “Jesus... era tido por
filho de José”4, isso exclui apenas a ascendência natural por
José, mas não impede outra, real, paternidade. O único fun-
damento para chamar José, verdadeiramente, o pai de Jesus
está no fato de que ele era, realmente, esposo de Maria, a Mãe
de Deus. Qualquer outra explicação, se examinada minuciosa-
mente, será considerada insatisfatória. Assim, novamente, nós
nos deparamos com a existência de um matrimônio real entre
Maria e José.

3. Dogmatic, III, nº 1582.


4. Lc 3, 23.

30
Padre Joseph Mueller S. J.

A justificativa precisa de como essa união marital entre


Maria e José incluiu uma verdadeira e superior paternidade
de José sobre o menino Jesus será apresentada posteriormen-
te, quando tratarmos dessa paternidade mais plenamente. Por
agora, apenas um pequeno destaque basta: na presente ordem
das coisas, conforme a ordem de Deus, a benção dos filhos deve
ser condicionada à existência de um matrimônio real, portanto,
mesmo o menino Jesus, Deus feito homem, deveria surgir e ser
o fruto de um matrimônio, mas um matrimônio virginal.
Com isso, podemos concluir nossa argumentação partin-
do da palavra inspirada por Deus e passar ao testemunho da
tradição.

Também a tradição, se cuidadosamente examinada, nos vai


fornecer total apoio ao ensinamento católico. Nos primeiros tempos
do Cristianismo, a existência de um matrimônio real entre Maria e
José foi totalmente negada e ferozmente atacada por Juliano, o pe-
lagiano5, que baseou sua argumentação na falsa premissa de que a
união sexual era um elemento essencial do matrimônio. Santo Agos-
tinho refutou-o efetivamente em seu livro Adversus Julianum Pelagia-
num. Fora dessa obra, no entanto, e de modo geral, não encontramos
uma doutrina clara e uniforme dos Padres e dos escritores eclesiás-
ticos contra Juliano e outros que se opunham à ideia de um verda-
deiro matrimônio entre Maria e José, principalmente em escritores
anteriores a [Santo] Ambrósio. Estes são frequentemente ambíguos,
para dizer o mínimo, em seu modo de tratar a relação entre Maria e
José, e não se pode negar que alguns deles parecem se opor à ideia
de um matrimônio real entre Maria e José, se levarmos suas expres-
sões ao pé da letra. Isso não nos surpreende quando descobrimos
que ainda faltava um conceito claro do que é a essência do matri-
mônio. Para aqueles escritores, conforme a opinião predominante
naquela época, o casamento estava, de algum modo, inseparável

5. Juliano de Eclano (c. 386-c.455) foi um bispo italiano, famoso por


liderar os hereges seguidores do pelagianismo no século V.

31
A Paternidade de São José

de sua consumação, presente ou futura, portanto, eles não podiam


conceber uma ideia clara de um matrimônio virginal, ou seja, um
contraído, mas nunca consumado. Todos eles rejeitaram enfatica-
mente a existência de qualquer relação carnal entre José e Maria,
antes ou depois da concepção e nascimento de Cristo, mas falharam
em decidir claramente se o significado dos termos da Escritura in-
dicava um matrimônio verdadeiro. Eles chamam São José o noivo
da Santíssima Virgem e pensam que expressões como “marido” e
“mulher” devem ser interpretadas como meras denominações, não
significando, neste caso, um matrimônio real, mas designadas para
fazê-lo parecer um e, assim, ocultar e proteger o mistério daque-
la santa união. Encontramos linguagem semelhante em alguns dos
primeiros escritores, incluindo alguns dos mais importantes Padres
[da Igreja], como Tertuliano, Orígenes, [São] Basílio, [São João] Cris-
tóstomo, Epifânio, [Santo] Efrém, [São] Cirilo de Jerusalém, [Santo]
Hilário, [São] Pedro Crisólogo e [São] Gregório Magno.

Apesar disso, dificilmente seria justificável dizer que


esses Padres e escritores eclesiásticos eram oponentes convic-
tos e intransigentes a um matrimônio real entre Maria e José.
Na falta de uma ideia clara de um matrimônio virginal, ou
um matrimonium ratum non consummatum, eles realmente não
abordaram esse tema ou não entenderam o ponto em questão.
Com grande probabilidade, se não certeza, podemos, portan-
to, determinar como principal motivo de forma ambígua, se
não capciosa, de falar o fato de que eles visavam, em primeiro
lugar, a excluir qualquer relação conjugal entre Maria e José
e que eles não entendiam ou consideravam suficientemente a
diferença essencial entre um simples noivado, no sentido cris-
tão, e o noivado na lei judaica, que era praticamente uma en-
trega [de si] em matrimônio e, portanto, um matrimônio real.
Uma mudança começa a surgir com [Santo] Ambrósio,
apesar de que mesmo depois dele houve escritores que usa-
vam a mesma linguagem confusa dos antigos. Santo Ambró-
sio, como sabemos, antes de sua conversão, ocupava uma alta
posição no governo romano e, portanto, podemos ter certeza,

32
Padre Joseph Mueller S. J.

tinha um abrangente conhecimento da lei romana. Isso pode


tê-lo levado a investigar completa e precisamente a questão
de se existiu ou não um verdadeiro matrimônio entre Maria e
José. Ele se convenceu de que tal matrimônio, válido confor-
me os princípios da lei, existiu e defendeu isso na linguagem
clássica que posteriormente foi adotada parcialmente pela lei
canônica. Vejamos algumas passagens.
Em seu comentário sobre o Evangelho de São Lucas6, ele
questiona por que, de acordo com o sábio plano de Deus, nosso
Senhor deveria nascer de uma virgem prometida em casamen-
to a um homem. Sua resposta revela, inquestionavelmente,
que ele considerou a união entre Maria e José um matrimônio
real: “Os divinos mistérios são, de fato, ocultos, e conforme as
palavras dos profetas, não é fácil para o homem conhecer o
plano de Deus. Todavia, pelos outros atos e preceitos de nosso
Senhor e Salvador, nós podemos entender que também estava
mais de acordo com o plano divino ser escolhida para gerar
o Senhor uma jovem prometida a um homem. Mas por que
ela não ficou grávida antes de seu noivado? Talvez para que
não se diga que ela concebeu em adultério. E a Escritura de-
monstra claramente que ela seria tanto desposada como vir-
gem: uma virgem, significando claramente que ela estava livre
de qualquer relação com um homem; desposada, para que ela
não fosse arrasada pela infâmia da virgindade violada, cuja
profanação o fato da gravidez parece indicar.
Depois (no nº 3), Santo Ambrósio apresenta outra razão
para nosso Salvador ter sido concebido e nascido de uma vir-
gem desposada, o que, novamente, mostra que, para Santo
Ambrósio, a Santíssima Virgem estava unida a José por ma-
trimônio no sentido próprio da palavra: “Uma razão não me-
nos importante é que a virgindade de Maria deveria ser oculta
ao conhecimento do príncipe deste mundo, para que quando
ele a visse desposada, não pudesse suspeitar do filho que dela
nasceria (ou seja, ele não reconheceria na criança o salvador
do mundo, que, conforme a profecia de Isaías, seria o filho de

6. Livro II, nº 1.

33
A Paternidade de São José

uma virgem; para Ambrósio e alguns outros Padres, ele deve-


ria permanecer ignorância sobre isso por um tempo). Que isso
foi planejado para enganar o príncipe deste mundo, as pró-
prias palavras de nosso Senhora o indicam”. Santo Ambrósio
fala mais claramente em outras duas passagens. No mesmo
livro (nº 5), ele diz inconfundivelmente: “Não se perturbe por
a Sagrada Escritura chamar Maria de esposa, pois isso não a
priva da virgindade, mas o contrato matrimonial legalmente
realizado estabelece o estado matrimonial. Em suma, ninguém
pode rejeitar uma esposa que não tenha sido tomada por es-
posa; portanto, aquele que planejava dispensá-la reconheceu,
em vista disso, que já a tinha tomado por esposa”. De modo
similar e, se possível, mais claramente, ele afirma, em outra
parte: “Não te perturbe quando se diz que José tomou sua es-
posa e partiu para o Egito, porque uma mulher desposada por
um homem é chamada esposa. Pois quando o matrimônio é
celebrado recebe o nome de casamento. Não é a perda da vir-
gindade que constitui o matrimônio, mas o contrato matrimo-
nial. Finalmente, assim que a donzela se une, pelo ato legal, ao
homem, o matrimônio começa a existir, não quando ela se une
a ele em coabitação (sexual)”7.
Santo Agostinho, o grande discípulo e filho espiritual de
Santo Ambrósio, adotou, desenvolveu e aperfeiçoou o ensina-
mento de seu mestre. Duas razões o levaram a uma profunda
investigação sobre o matrimônio entre Maria e José. A primei-
ra foi a observação de que já naquele tempo havia um número
considerável de casais tão avançados na graça da perfeição que,
por consentimento mútuo, em honra de Cristo, praticavam a
continência e, assim, seguiam o exemplo de Maria e José. Então,
surgiu a questão sobre se esse estilo de vida ainda incorpora-
va as características essenciais de um matrimônio e, portanto,
poderia reivindicar o nome do casamento, no sentido próprio.
Santo Agostinho nos fala sobre isso em um de seus sermões
(sermão 51) e responde à pergunta da seguinte maneira:

7. De inst. virgin., cap. 6, nº 41.

34
Padre Joseph Mueller S. J.

“Não é verdade que, por José não ter se unido carnal-


mente à Mãe do Senhor, ele não era pai, como se fosse a paixão
que fizesse a mulher esposa de um homem, não o amor conju-
gal. Prestem atenção, amados irmão. Em algum momento, no
futuro, o Apóstolo de Cristo vai declarar à Igreja: ‘Importa que
os que têm mulher vivam como se não a tivessem’8. Conhece-
mos muitos entre vós que, adiantados na graça, em nome de
Cristo e com mútuo consentimento, se abstêm dos prazeres
carnais, mas, de modo algum, negam ao outro seu amor conju-
gal. Quanto mais o primeiro é restringido, mais o segundo au-
menta nele. Será que os que levam tal vida não estão casados
porque não exigem do outro uma dívida física? Contudo, ela é
submissa ao marido, como é conveniente9, e tanto mais se tor-
na quanto mais casta é; e ele, por sua vez, ama verdadeiramen-
te sua esposa e, como está escrito, em ‘honra e santidade’10,
como coerdeira da graça11, assim como Cristo amou a Igreja12.
Portanto, uma vez que há união e existe o matrimônio, e este
não deixa de existir quando aquela não se realiza [a união,
especificamente carnal] – o que poderia ocorrer ilegalmente,
é claro, entre pessoas não casadas –, alguém poderia desejar
que todos vivessem dessa forma. Porém muitos não podem.
Desse modo, que ninguém separe aqueles que podem levar
essa vida, nem por esse motivo recusem o nome de marido e
mulher àqueles que estão unidos, embora não na carne, mas
em seus corações”.

Temos aqui Santo Agostinho afirmando claramente a existên-


cia de casamentos verdadeiros que não são consumados, e particu-
larmente do matrimônio virginal entre José e Maria.

8. I Cor 7, 29.
9. Col 3, 18.
10. I Ts 4, 4.
11. I Pd 3, 7.
12. Ef 5, 25.

35
A Paternidade de São José

Outra ocasião para abordar essa questão foi oferecida a Agos-


tinho pelas heresias pelagiana e maniqueísta, com seus erros relati-
vos à concupiscência, ao casamento e à virgindade, que tiveram de
ser refutados e a posição cristã apresentada e defendida. Isso levou
a uma discussão sobre o casamento virginal de Maria e José. O in-
telecto de Agostinho resolveu a questão com sua perspicácia ma-
gistral típica. Seu argumento principal para um virginal, mas real,
matrimônio entre Maria e José é baseado em Mt 1, 20, em que Maria
é, explicitamente, chamada esposa de José. Ele, então, apoia a argu-
mentação sobre as várias designações adotadas para chamar Maria
esposa de José, já apresentadas em detalhes. Mas vamos ouvir suas
próprias palavras:

“Se os casados, livremente e com mútuo consentimento,


escolhem evitar satisfazer os desejos carnais, o vínculo matri-
monial entre eles não é perdido em consequência – bem longe
disso! Ao contrário, será tão forte, tão firme esse acordo, um
acordo que será mantido com ainda mais amor e concórdia,
não na união dos corpos, mas na harmonia de dois corações
batendo em uníssono. Logo, não há falsidade no que o anjo
disse a José: ‘Não temas receber Maria por esposa, pois o que
nela foi concebido vem do Espírito Santo’. Ela é chamada es-
posa desde que prometeu fidelidade a ele, embora este não
lhe fosse íntimo carnalmente, nem jamais o seria; e o nome de
“esposa” não perdeu seu significado ou tornou-se falso por
nunca ter havido, nem haveria, qualquer relação carnal. Essa
virgem era, para seu esposo, uma fonte de alegria ainda mais
santa e maravilhosa por ter se tornado mãe sem intervenção
de um homem, diferindo dele em relação à prole [Jesus], mas
totalmente semelhante a ele em fidelidade mútua. Em vista
dessa fiel união, ambos poderiam reivindicar ser chamados os
pais de Cristo, não somente Maria, como Sua mãe, mas tam-
bém José, como Seu pai, assim como ele era chamado o esposo
de Maria, embora ele fosse as duas coisas não na carne, mas
em espírito. Os dois – ele, pai de Cristo em espírito; ela, Sua
mãe também na carne – eram pais de Sua humildade, não de
Sua majestade; de sua fraqueza, não de sua divindade. Mas

36
Padre Joseph Mueller S. J.

como ela se tornara mãe sem intervenção de um homem, eles


certamente não poderiam, juntos, ser chamados pais de Cristo,
mesmo de Sua forma de escravo, a menos que tivessem sido,
embora sem relação carnal, marido e mulher. Portanto, quan-
do a genealogia de Jesus teve que ser investigada, a linha de
descendência tinha que chegar a José, a fim de que o sexo mas-
culino, o mais forte, não fosse tratado com desrespeito; e, ao
mesmo tempo, a verdade não foi afetada, porque tanto José
quanto Maria eram da descendência de Davi, da qual foi pro-
fetizado que Cristo viria”13.

A essa argumentação das Escrituras, Santo Agostinho acres-


centa, resumidamente, uma premissa teológica desenvolvida por
ele mais completamente em outros lugares: “Portanto, todas as três
bênçãos do matrimônio são encontradas nos pais de Cristo: descen-
dência, fidelidade, sacramento, ou seja, indissolubilidade. A des-
cendência nós reconhecemos no próprio Senhor Jesus; a fidelidade
deles, porque não houve adultério; o sacramento, porque não houve
divórcio” (cf. capítulo 6 infra).

Como o próprio Santo Agostinho relata, essa sua argumenta-


ção sobre Mt 1, 2 foi atacada pelo pelagiano Juliano. Ouçamos sua
refutação a uma das objeções de Juliano:

“Você diz que ele parecia, aos olhos dos homens, um


esposo, e você deseja que nós entendamos que a Sagrada Es-
critura, quando o chama esposo de Maria, fala desse modo de
acordo com o que os homens pensavam sobre ele, não pelo
que ele realmente era. Bem, vamos admitir que o evangelista
pudesse ter falado dessa forma, ‘conforme a opinião dos ho-
mens, desde que ele estivesse apresentando as próprias pa-
lavras ou as de uma terceira pessoa’: como poderia um anjo,
conversando solitariamente com José, indo contra seu próprio
conhecimento e o conhecimento daquele a quem estava se di-

13. De nupt. et concup., livro I, cap. 2.

37
A Paternidade de São José

rigindo, ter falado ‘de acordo com a opinião dos homens’ e não
de acordo com os fatos verdadeiros, quando lhe disse: ‘Não
temas receber Maria por esposa’? Ademais, por que a genea-
logia tinha que ser atribuída a José, exceto pelo fato de que o
sexo masculino tem precedência? Eu já tratei disso no livro ao
qual o teu deveria ser uma resposta. Mas você receou até mes-
mo tocar nesse assunto. Contudo, quando o evangelista Lucas
(3, 23) diz que nosso Senhor era “tido como filho de José”, ele
o faz porque Jesus era considerado pelas pessoas como filho
natural de José. Foi para eliminar essa falsa crença, não para
negar que Maria era, de fato, esposa de José, contradizendo,
portanto, o testemunho do anjo”14.

Assim, em Santo Agostinho, o maior doutor da Igreja, nós


encontramos um firme apoiador da crença de que José e Maria eram
casados no sentido próprio da palavra. Apesar de tudo isso, apesar
de sua grande autoridade, a atitude dos escritores teológicos dos
séculos seguintes, até a ascensão da Escolástica, permaneceu obs-
cura ou vacilante. As razões para isso eram as mesmas que haviam
causado uma atitude semelhante nos primeiros Padres e escritores
eclesiásticos. Isso parece dever-se principalmente ao conhecimento
insuficiente das leis judaica e romana sobre o matrimônio. Portanto,
vemos até homens distintos como o venerável Beda, Rábano Mau-
ro15 e outros se aproximando mais ou menos dos ensinamentos de
[Santo] Ambrósio e [Santo] Agostinho, até apelando para sua auto-
ridade, mas sempre ficando aquém de chegar a uma solução clara
da questão. Foi só quando a Escolástica avançou e sua influência se

14. Contra Julianum, livro V, nº 47 (PL, 44, 810).


15. N. R.: São Beda (c. 673-735), monge beneditino, teólogo, linguista e
tradutor inglês. Notável historiador de sua terra e difusor dos textos
dos primeiros Padres. É o único Doutor da Igreja oriundo da Grã-
-Bretanha; Rábano Mauro (c. 780-856), monge beneditino, teólogo,
filósofo, escritor e entomologista alemão. Famoso por ter composto
o hino Veni Creator Spiritus.

38
Padre Joseph Mueller S. J.

fez sentir que os ensinamentos de Ambrósio e Agostinho tiveram


algum progresso real e, apesar de objeções ocasionais, finalmente
encontraram uma aceitação universal. Basta citar alguns escritores
representativos do período. Nossa primeira testemunha a merecer
reconhecimento é Ruperto de Deutz, abade beneditino. Esse teólo-
go, cuja importância deve ser mais apreciada, mesmo na atualidade,
seguindo o exemplo de Agostinho, aclama São José como o verda-
deiro esposo da Santíssima Virgem Maria e como pai do Senhor:

“‘Jacó gerou José, o esposo de Maria, da qual nasceu


Jesus, que é chamado Cristo’. Ao chamar José o esposo de Ma-
ria, ele [o evangelista] lhe dá um grande, e verdadeiro, nome,
porque se ele é o esposo de Maria, é também o pai do Senhor...
Mas não apenas o evangelista chama José esposo de Maria,
pois antes dele um anjo havia feito o mesmo, quando chamou
Maria a esposa de José: ‘José, filho de Davi, não temas receber
Maria por esposa’. Ó, real e santo matrimônio, um matrimônio
celestial, não terreno. Pois como e em que eles estavam uni-
dos em matrimônio? Ambos tinham uma só mente e a mesma
fidelidade mútua. Só a corrupção carnal estava ausente. O
apóstolo, portanto, pôde dizer, verdadeiramente: ‘O primeiro
homem, tirado da terra, é terreno; o segundo veio do céu’16;
não como se Jesus Cristo, nascido de Maria, tivesse descido do
céu na carne e, como alguns hereges propõem, apenas passado
por Maria, como por um canal, mas porque a união de Maria e
José, como suas vidas inteiras, era celestial – era o Espírito San-
to a gerá-los, de modo que já viviam como que no céu. O amor
conjugal de um pelo outro e Ele próprio [o Espírito Santo],
reinando supremo em seus corações, havia confiado essa es-
posa a esse esposo e, enquanto formava um corpo humano no
ventre da Virgem, encheu o coração desse homem com amor
paternal pelo Filho que nasceu”17.

16. I Cor 15, 47.


17. In Matth., livro I, nº 568 (PL, 168, 1319).

39
A Paternidade de São José

Também Hugo de São Vitor18 adotou uma posição decidida


em favor de um matrimônio real entre Maria e José. Inclusive, ele
tentou explicar, especulativamente, pelo método escolástico, como
foi possível, para Maria, contrair um matrimônio válido, apesar de
sua resolução, ou voto, de virgindade perpétua19. Nós abordaremos,
brevemente, mais adiante, a questão dessa compatibilidade. Por ora,
vamos ouvir o quão enfaticamente ele mantém sua tese:

“Ela era, então, cônjuge e esposa; ela também era verda-


deiramente virgem e não abandonara sua decisão de perma-
necer uma virgem. Declaramos, portanto, que ela era uma vir-
gem desposada; declaramos que ela era uma esposa, embora
uma virgem; declaramos que, como mãe e virgem, ela sempre
manteve intacto seu voto de virgindade, e que a duradoura
glória da castidade reinou sempre lado a lado com a pureza da
esposa e a honra da maternidade. Contemple agora e olhe para
essa virgem, nossa donzelinha tão casta, em sua pureza singu-
lar, sua beleza extraordinária, sua impecabilidade sem igual...
Independentemente de como tenha ocorrido (isto é, como Ma-
ria imaginou ser compatível um voto de castidade perpétua
ao estado de esposa), nunca devemos duvidar que a Santíssi-
ma Virgem Maria, por razões definidas e bem fundamentadas,
depois de ter jurado virgindade perpétua ingressou no santo
estado do matrimônio sem mudar sua resolução de permane-
cer virgem, para que ela pudesse, honestamente, reivindicar o

18. Hugo de São Vitor, C.R.S.A. (1096-1141), filósofo, teólogo e cardeal


alemão. Renomado autor místico da Igreja na Idade Média, sendo
mais famoso dos teólogos antes de Santo Tomás. Destacou-se imen-
samente por sua extensa produção literária voltada à educação.
19. N. R.: Ainda que não haja, nas Sagradas Escrituras, qualquer men-
ção ao fato de a Santíssima Virgem ter feito um voto de virgindade,
essa crença existe desde os primeiros séculos da Igreja. Muitos
autores piedosos passaram a afirmar o mesmo, por associação, a
São José, para reforçar a ideia de um matrimônio virginal entre
ambos.

40
Padre Joseph Mueller S. J.

título de esposa, mantendo, ainda assim, a integridade do voto


de virgindade até o fim”20.

Contudo, ao mesmo tempo em que Ruperto de Deutz e Hugo


de São Vitor apoiavam, tão devotadamente, a existência de um ma-
trimônio real entre Maria e José, uma voz discordante foi ouvida
novamente. Não menos famoso era o oponente: o grande canonista
Graciano21, autor do Decretum Gratiani, que faz parte do antigo Có-
digo de Direito Canônico. De acordo com ele, não apenas o consenti-
mento mútuo em contrair o matrimônio, mas também a consumação
são requisitos essenciais de um matrimônio válido. No entanto,
embora sua opinião tenha sido aceita por vários outros canonistas,
a tendência da ciência teológica já tinha tomado a direção oposta,
então, decididamente, a visão de Graciano tornou-se insustentá-
vel. Não apenas mestres de Dogmática, como Pedro Lombardo22,
se levantaram contra ele, mas também outros, incluindo canonis-
tas, como Rolando Bandinelli, o futuro Alexandre III [c. 1100-1181],
que, como papa, decidiu algumas questões matrimoniais em uma
direção oposta à visão de Graciano, concordando com Hugo de
São Vitor e Pedro Lombardo. Com o passar do tempo, a oposição a
Graciano ficou tão forte que, no começo do século XIII, a contro-
vérsia a respeito do matrimônio de José e Maria foi praticamente
resolvida e o ensinamento do “Mestre das sentenças”, Pedro Lom-
bardo, foi geralmente aceito. Todos os grandes teólogos dos séculos
XII, XIII e XIV – Santo Alberto, Santo Tomás, São Boaventura, [João
Duns] Scott etc. – sustentaram-no e o consideraram obrigatório, e

20. De B.M. Virg., cap. 1 (PL, 176, 867).


21. N. R.: João ou Francisco Graciano, um famoso monge jurista e pro-
fessor de Teologia, vivo entre os séculos XII e XIII, cuja biografia,
curiosamente é envolta em grande mistério, em contraste com sua
grande influência sobre o direito canônico.
22. Pedro Lombardo (séc. XII), monge, teólogo e professor italiano.
Renomado comentador da teologia cristã de sua época.

41
A Paternidade de São José

assim tem sido desde então. Uma única exceção, nos tempos mo-
dernos, foi Joseph Freisen, que em sua História da Lei Canônica sobre
o Matrimônio23, se manifestou favorável a uma visão similar à de
Graciano, mas sua opinião recebeu pouca atenção dos teólogos e foi,
em geral, rejeitada.

Concluindo essa argumentação da tradição, vamos ouvir o


que Bento XIV diz sobre o caráter teológico da doutrina de que o
matrimônio de Maria e José era um casamento válido, no sentido
próprio da palavra24:

“Independentemente do que possamos pensar daqueles


teólogos (anteriores ao Concílio de Trento) que, por alguma
razão particular, defendiam que não houve um matrimônio
verdadeiro entre Maria e José, agora, todavia, tal negação não
poderia escapar à censura de [ser considerada uma] temeri-
dade. O cardeal Capisucchi escreve: ‘Tal opinião deveria ser
considerada precipitada, para dizer o mínimo, desde que toda
a Escolástica, com seus líderes, o Mestre das sentenças e o
Doutor Angélico, são unânimes em sua afirmativa, e os pró-
prios Padres [da Igreja], quando bem compreendidos, dizem
a mesma coisa’25. ‘Para dizer o mínimo’, são as palavras dele,
enquanto Suárez considera heresia negar o matrimônio real
entre Maria e José. E essa censura é categoricamente defendida
por Theóphile Raynaud”26.

Quando, de acordo com Bento XIV, Suárez chama a nega-


ção desse matrimônio uma heresia, enquanto outros teólogos a

23. N. R.: No original, History of Canon Law on Marriage, sem edição em


Português. Josef Freisen (1853-1932), sacerdote, teólogo, professor
universitário e canonista alemão.
24. De festis B.V.M., cap. 1, nº 2.
25. Controv., 14, seção 9.
26. Diptych. Mar., VII, 45.

42
Padre Joseph Mueller S. J.

considerariam meramente uma declaração temerária, as duas cen-


suras, ao contrário do que aparentam, diferem apenas em aparência,
não na realidade. Pois se considerarmos como fidedignas apenas as
doutrinas que estão claramente contidas nas fontes da Revelação, ou
seja, nas Escrituras e na Tradição, e, além disso, tenham sido formal-
mente definidas pela Igreja como questão de fé, então, a existência
de um matrimônio real entre Maria e José não é um dogma. Mas se
consideramos como pertencentes ao depósito da fé também aque-
las doutrinas que estão claramente contidas nas fontes da Revela-
ção e, embora não formalmente definidas, são ainda universalmente
ensinadas e cridas na Igreja, a existência desse matrimônio é, sem
dúvida, uma parte da fé católica; e é isso o que Suárez parece ter
em mente, já que ele não fez referência a qualquer definição dogmá-
tica. Seria ainda mais correto chamar essa doutrina, simplesmente,
de uma questão de fé porque não o são somente aquelas doutrinas
suficientemente propostas a nós como dignas de crença, tanto que
foram definidas solenemente como dogmas, mas também aquelas
claramente contidas nas Sagradas Escrituras e na Tradição e que são,
atualmente, ensinadas pela viva voz da Igreja. O fato de que, por
algum tempo, não se chegou um acordo universal sobre o assunto
não faz diferença. É suficiente que, já há séculos, esse acordo tem
existido e que seja moralmente, não matematicamente, universal.
Também Leão XIII, em sua encíclica sobre São José, fala desse matri-
mônio como um fato que não pode ser posto em dúvida, mas é con-
firmado pelas Sagradas Escrituras e, portanto, revelado, e sobre esse
fato, quanto a sua origem, ele identifica outros grandes privilégios
de São José, sua elevada dignidade e sua indicação como patrono da
Santa Igreja.

43
3. O matrimônio virginal
de José

Nas páginas anteriores, consideramos que a união da Mãe de Deus


e São José foi um verdadeiro matrimônio, no sentido próprio da
palavra. Nossa argumentação tinha, é claro, que ser extraída prin-
cipalmente das fontes da Revelação, das Escrituras e da tradição.
No decorrer desta discussão, especialmente quando os Padres e os
teólogos foram invocados, ocasionalmente, encontramos referências
ou alusões a características peculiares e em detrimento desse matri-
mônio, particularmente a característica especial que investe esse ma-
trimônio com uma excepcional dignidade santificada e um esplen-
dor sobrenatural: seu caráter virginal. É isso o que vamos examinar,
agora, mais de perto, sua adequação, sua nobreza e outras questões
relacionadas terão que ser discutidas. Não ignoramos esses temas,
pois esse matrimônio é o fundamento da santidade e dignidade so-
brenaturais de São José, e essa dignidade e santidade, por sua vez,
são o motivo e determinam o modelo e a extensão da veneração que
devemos prestar a São José.

O presente capítulo será especialmente dedicado a provar


que o matrimônio de Maria, a Mãe de Deus, com São José foi um
matrimonium ratum non consummatum: foi um matrimônio virginal.

Essa doutrina está obviamente contida na Sagrada Escritura:


Lucas 1, 26-38 e Mateus 1, 18-25.
A Paternidade de São José

No Evangelho da anunciação (Lucas, capítulo 1) as palavras


de maior importância para nosso propósito são as da Santíssima Vir-
gem (v. 34): “Como se fará isso, pois não conheço homem?”. Essa é
a resposta de Maria à mais sublime e maravilhosa mensagem que
o Céu jamais enviou a qualquer habitante desta terra. Por essas pa-
lavras, a Virgem, tão prudentíssima quanto humílima, de modo
algum tentou evitar a tarefa que Deus Todo-poderoso tinha estipu-
lado para ela. Mas ela não pode ver ou entender como as palavras do
anjo serão realizadas nela; de algum modo, ela tinha um sentimento
de perplexidade e inquietação que a levou a fazer essa ansiosa per-
gunta. Mas por que essa inquietação? Ela mesma nos conta: “Pois eu
não conheço homem”. Até agora, ela guardava ciosamente sua vir-
gindade; é evidente que ela estava determinada a preservá-la para
sempre. Mas isso [sua postura] não pode ser justificada a não ser que
ela estivesse convencida de que o Senhor Deus havia concedido sua
aprovação e bênção a sua resolução. Caso contrário, estas palavras
“Como se fará isso, pois não conheço homem?” não teriam sentido.
Sua pergunta “Como” estaria deslocada se ela, apesar de virgem até
aquele momento, ainda assim estivesse disposta a cumprir as condi-
ções que, na ordem natural, resultavam na maternidade. Devemos
concluir, portanto, que ela estava impassivelmente decidida a per-
manecer virgem para sempre e que ela estava convencida de que
Deus Todo-poderoso tinha aprovado e abençoado sua resolução. E
os teólogos, desde [Santo] Agostinho e [Santo] Tomás se justificam
por encontrar nessas palavras da Santíssima Virgem uma indicação
de que ela tinha consagrado sua virgindade a Deus por um voto.
Santo Agostinho diz:

“Já antes de Cristo ser concebido, Ele tinha escolhido


uma virgem consagrada a Deus para se tornar Sua mãe. Isso
é indicado pela resposta dela ao anjo que lhe tinha trazido a
mensagem: ‘Como se fará isso, pois não conheço homem?”.
Ela não falaria desse modo se não tivesse prometido a si mes-
ma a Deus como virgem. Contudo, como tal voto ainda não
era permitido pelo costume judeu, ela foi prometida em casa-
mento a um santo homem, que não iria roubar aquilo que ela

46
Padre Joseph Mueller S. J.

havia consagrado a Deus, mas, em vez disso, iria protegê-la


contra os ataques das outras pessoas. De fato, mesmo se ela
tivesse dito apenas: ‘Como se fará isso’, sem acrescentar ‘pois
não conheço homem’, mesmo nesse caso ela certamente não
teria perguntado como poderia dar à luz seu filho prometido
se tivesse casado com a intenção de consumar o matrimônio.
Ademais, Deus poderia ter escolhido, ou melhor, pode ter sido
que Deus ordenou que ela permanecesse virgem, para que o
Filho de Deus pudesse receber dela a forma de servo de um
modo digno e maravilhoso. Como ela deveria ser o exemplo
das santas virgens do futuro e as pessoas não deveriam ser
levadas a pensar que só ela tinha que ser uma virgem privile-
giada por se tornar mãe sem intervenção de um homem, ela,
portanto, consagrou sua virgindade a Deus antes que soubesse
como iria conceber, de modo que em um corpo mortal nesta
terra a vida celestial pudesse ser reproduzida por causa de um
voto, não por causa de um mandamento; porque era uma es-
colha de amor, não algo aceito sob coação. Quando, portanto,
Cristo desejou nascer de uma virgem, que tinha decidido per-
manecer virgem para sempre antes de saber quem iria nascer
de si, Seu propósito era antes louvar a santa virgindade que
impô-la. E assim, Ele desejou que mesmo naquela mulher de
quem Ele recebeu Sua natureza humana, a virgindade seria
uma livre escolha dela mesma”1.

Claramente, Santo Agostinho enfatiza, assim, a liberdade da


Virgem Maria em prometer sua virgindade: não coagida, não força-
da, mas uma escolha voluntária.

Como Santo Agostinho, também Santo Tomás sustenta que


Maria tinha feito um voto de virgindade; todavia, ele pensa que o
voto era somente condicional, a princípio, mas, no fim, definitivo:

“Eu respondo que, como disse anteriormente, as obras


de perfeição merecem mais louvor quando realizadas em

1. De virg., cap. 4.

47
A Paternidade de São José

cumprimento de um voto. A virgindade era um notável atri-


buto de fundamental importância na Santíssima Virgem,
como ficou claro pelas explicações apresentadas (em artigos
anteriores). Todavia, como sob a Antiga Lei, tanto a mulher
como o homem eram obrigados, pelo dever, a gerar filhos, já
que o verdadeiro culto a Deus deveria ser propagado por meio
da propagação da raça, até que Cristo nascesse daquele povo,
acredita-se que a Mãe de Deus não havia feito o voto de virgin-
dade absolutamente, antes de ser desposada por José; embora
desejasse fazê-lo, subordinou sua vontade ao agrado de Deus.
Depois, porém, tendo recebido um esposo, como os costume da
época exigia, juntamente com ele, ela fez o voto de virgindade”2.

São Boaventura tem a mesma opinião:

“Por três motivos é conveniente que a Santíssima Vir-


gem tenha feito o voto de virgindade. O primeiro é que [ela]
seria uma morada digna do Filho de Deus. Já que a sabedoria é
“uma efusão da luz eterna, um espelho sem mancha da majes-
tade de Deus, em que mancha alguma pode se insinuar”3, era
adequado para Ele ser concebido por uma virgem imaculada
não apenas no corpo, mas até em sua mente e em sua vontade
inabalável, e a perfeita pureza de vontade é assegurada pelo
voto de castidade. O segundo motivo é que ela deveria ser um
exemplo de virgindade imaculada para as mulheres. Assim
como Deus deu Cristo como modelo para os homens, Ele deu a
mãe e Cristo para as mulheres; e considerando o quanto o voto
de virgindade merece ser louvado e imitado, ela deveria viver
toda a vida sob esse voto. O terceiro motivo é que deveria ser
seu privilégio que nela fosse encarnada toda a nobreza, toda a
santidade. É impensável que qualquer outra mulher a supere

2. Suma teológica, IIIa, q. 28, a. 4.


3. N. R.: O santo misturou os versículos 24 e 25 do capitulo 7 do Livro
da Sabedoria. A tradução apresentada aqui tenta se aproximar do
texto bíblico, para facilitar o reconhecimento.

48
Padre Joseph Mueller S. J.

de alguma forma. Pelo contrário, Aquele que a fez adornou-a


também com o privilégio de toda a nobreza, de modo que,
como a amou acima de todos os outros [seres], ela também
poderia ser mais santa e mais amável que todos os outros. Por
essa razão, mesmo desconsiderando sua maternidade divina,
ela merece nossa honra e amor acima de todos os santos; e, cer-
tamente, o Espírito Santo, cuja inspiração impulsionou outros
a fazerem esse voto, não deixaria de fazer o mesmo com ela”4.

Suárez escreveu:

“Essas palavras não indicam qualquer dúvida de sua


parte, mas indicam claramente não apenas que a Santíssima
Virgem estava decidida a “não conhecer homem”, mas que ela
se sentia tão comprometida e impedida a esse respeito que ja-
mais poderia fazê-lo legalmente. Pois, embora ela não conhe-
cesse homem até então, e estivesse decidida a não fazê-lo daí
em diante, esse fato dificilmente seria motivo bastante para
essa pergunta ansiosa ‘Como se fará isso’, se ela ainda tives-
se a liberdade de fazer o que lhe agradasse quanto a isso. Ela
poderia responder que era livre para conhecer um homem e
conceber um filho. Logo, essas palavras ‘Eu não conheço ho-
mem’ devem significar: ‘Eu não tenho permissão conhecer um
homem; não é mais uma questão de minha própria escolha’.
Dessas palavras, também Santo Agostinho concluiu que Maria
tinha feito um voto”5.

Por essa argumentação, Suárez mostra claramente que deve


ter sido um voto que impediu Maria de ter relações carnais; [o que
foi] aceito por Deus, já que ela não tinha nenhuma ordem a esse res-
peito e, portanto, nenhuma outra obrigação.

Até agora, consideramos o casamento virginal de Maria e


José principalmente no que diz respeito a Maria; mas, em nossa

4. In IV, d. 30, a. 1, q. 2.
5. D. 6, s. 2, a.s.

49
A Paternidade de São José

discussão, o caráter virginal daquele casamento também foi estabe-


lecido da parte de São José, pelo menos indiretamente. Vamos, no
entanto, examinar esse lado da questão um pouco mais de perto.
Quando Maria falou estas palavras: ‘Como se fará isso, pois não co-
nheço homem?’, ela já estava comprometida com São José, pois o
Evangelho a chama de virgem prometida a um homem chamado
José. Então, a Virgem mais pura e mais prudente nunca teria consen-
tido nesse noivado, a não ser por uma revelação do alto, ou por sua
familiaridade com o caráter de São José, ou se, por um acordo mútuo
com ele, ela se tornara absolutamente convencida de que sua virgin-
dade consagrada não seria posta em risco pelo casamento dela, mas
estaria ainda mais protegida e segura. Portanto, somos forçados a
concluir que São José também era e permaneceu virgem e, em suma,
que o matrimônio de José e Maria era um matrimônio virginal.

[Duns] Scott diz pertinentemente:

“Da acusação do anjo a São José: ‘Não temas receber


Maria por esposa’6, concluímos, sem sombra de dúvida, que
também Maria, antes de seu noivado, recebeu uma instrução
semelhante, seja por meio do anjo ou diretamente do próprio
Deus: ‘Não temas receber José, um homem justo, como teu es-
poso; pois eis que o Espírito Santo o dará a ti como guardião e
testemunha de tua virgindade. Ele também, por sua vez, vive-
rá em continência e, de muitas maneiras, estará ao teu serviço
para proteger tua virgindade”7.

Além disso, quão estranha à mente de São José deve ter sido
qualquer intenção de consumar seu matrimônio antes da concep-
ção virginal de Maria, pode ser deduzido de seu doloroso embaraço
quando ele soube que sua noiva estava esperando uma criança, seja
qual for a explicação que prefiramos como causa de sua ansiedade!

6. Mt 1, 20.
7. In IV Sent., dist. 30, 9.2.

50
Padre Joseph Mueller S. J.

Ainda mais claramente, temos o caráter virginal desse casa-


mento revelado em Mt 1, 25: “E ele não a conheceu até que ela deu
à luz seu filho primogênito”8. Temos aqui a afirmação positiva da
Sagrada Escritura de que São José “não conhecia” a Virgem, ou seja,
não tinha relações carnais com ela antes do nascimento de seu pri-
mogênito, nosso Senhor Jesus Cristo.

Porém vários hereges do Cristianismo primitivo, bem como


posteriormente, abusaram do mesmo texto, no esforço de provar
justamente o oposto. Da sentença “até que ela deu á luz seu filho
primogênito” eles argumentam: Consequentemente, de acordo com
o evangelista, José a conheceu, pelo menos, depois, já que a negativa
“não a conheceu” é limitada ao tempo anterior ao nascimento do
primogênito dela; ademais, o termo “primogênito” é, certamente,
uma indicação de que houve outros filhos de José e Maria depois de
Jesus.

Ambas as objeções, contudo, acabaram tendo pouca ou ne-


nhuma importância e têm sido refutadas com sucesso desde os
tempos dos Padres, especialmente por São Jerônimo. Quanto à pri-
meira objeção, o propósito do evangelista não pode ser esquecido:
seu maior esforço, sem dúvida, era demonstrar, de modo impressio-
nante, o caráter sobrenatural da concepção de Cristo e de seu nasci-
mento pela Virgem Maria; por essa razão, ele estava especialmente
comprometido a falar do que aconteceu, ou não aconteceu, quanto
ao nascimento de Cristo. Não estava no mesmo nível de importân-
cia, para esse propósito, abordar a relação entre Maria e José após o
nascimento virginal do Filho divino.

Consequentemente, a explicação da palavra “até” por nossos


objetores se mostra equivocada. Dizer que José “não a conheceu até

8. N. R.: É mais comum encontrarmos, atualmente, esse trecho tra-


duzido como “E, sem que ele a tivesse conhecido, ela deu à luz seu
filho”. No entanto, como a escolha das palavras é indispensável para
a argumentação, respeitamos o texto original.

51
A Paternidade de São José

que ela tenha dado à luz seu filho primogênito”, de maneira alguma
afirma que ele o fez depois. Com a partícula “até”, a Sagrada Escritu-
ra, em vários lugares, apenas pretende dizer o que até o tempo espe-
cificado [algo] aconteceu ou não; de maneira alguma se compromete
com o tempo que se seguiu. Para mostrar o uso bíblico dessa palavra
“até”, citaremos alguns exemplos já usados por São Jerônimo em
sua resposta a Helvídio9:

“Em Is 46, 4 (São Jerônimo cita conforme a Septuagin-


ta), o Senhor diz: ‘Permanecerei o mesmo até vossa velhice’.
Acaso Ele deixará de ser, quando eles tiverem envelhecido?
No Evangelho, nosso Salvador diz a Seus apóstolos: ‘Eis que
estou convosco todos os dias, até o fim do mundo’10. Talvez
Ele deixe Seus discípulos após o fim... E também está escrito:
‘Cristo deve reinar até que ponha todos os Seus inimigos de-
baixo de Seus pés’11. Será que Ele deixará de reinar quando
eles estiverem sob Seus pés? Pelo contrário, Ele reinará mais
completamente, daí em diante”12.

Qualquer mente que seja justa, pura e, acima de tudo, sen-


sível a elevados valores morais e religiosos, teria como certo que
São José, a quem as Sagradas Escrituras chamam enfaticamente de
homem justo (no sentido de um homem perfeito), nunca violaria e
profanaria com luxúria sensual aquele santuário, o ventre da santa
virgem santificado para sempre pelo Deus feito homem. Essa linha
de raciocínio já foi usada pelos Padres para enfrentar os ataques de
Helvídio, por exemplo, Santo Ambrósio13 e São Jerônimo:

9. N. R.: Autor cristão do século IV, sobre o qual a única referência


conhecida é, justamente, a resposta de São Jerônimo a sua objeção
à virgindade perpétua da Virgem Maria.
10. Mt 28, 20.
11. Cf. I Cor 15, 25.
12. Nº 6 (PL, 23, 189).
13. De inst. virg., chap. 6.

52
Padre Joseph Mueller S. J.

“Por que, pergunto, São José se conteve até o nascimento


da criança? Helvídio responderá: Porque ele ouviu o anjo di-
zer: ‘O que nela foi concebido vem do Espírito Santo’. Muito
bem! Esse homem, então, que confiou tão firmemente em um
sonho que, em consequência disso, não se atreveu a tocar em
sua esposa; esse mesmo homem, depois de saber pelos lábios
dos pastores que um anjo do Senhor tinha vindo do céu e lhes
dissera: ‘Não temais; eis que vos trago uma boa nova que será
de grande alegria para todo o povo: hoje vos nasceu na cida-
de de Davi um Salvador, que é Cristo, o Senhor’14 e que com
esse anjo, uma multidão da milícia celeste, então, entoou um
canto de louvor: ‘Glória a Deus no mais alto dos céus e paz
na terra aos homens de boa vontade’; esse José, que tinha vis-
to Simeão abraçou o menino e proclamou o louvor: ‘Agora,
Senhor, deixai vosso servo ir em paz, segundo vossa palavra,
porque meus olhos viram vossa salvação’; que viu a profetiza
Ana, os Magos, a estrela, Herodes, os anjos; que, em suma, ti-
nha ouvido e visto coisas tão maravilhosas, esse homem teria a
audácia, pergunto, de violar um templo de Deus, uma morada
do Espírito Santo, a Mãe de seu Senhor?”15.

Na mesma linha, escreve o autor do Opus imperfectum: “Como


ele se atreveria a fazer tal coisa depois de saber que ela se tinha tor-
nado o templo do Filho unigênito de Deus? Como um homem tão
religioso como ele, se não o tinha feito antes, iria fazê-lo depois?”16.

E São Gregório Magno diz: “José não ousaria conhecer Maria


depois de ter descoberto o mistério de nossa redenção que havia
começado no ventre dela”17.

14. Lc 2, 10.
15. Adv. Helv., nº 8 (PL, 23, 190).
16. PG, 56, 635.
17. Mor., livro VIII, nº 89 (PL, 75, 856).

53
A Paternidade de São José

São os mesmos argumentos que encontramos nos teólogos.


Gerson apresenta como razão da continência de São José antes do
nascimento de Jesus “sua reverência por um mistério tão grande”
e acrescenta: “Portanto, nos é dado claramente a entender que ele
também não a conheceu após o nascimento de Cristo, porque o mes-
mo motivo foi ainda mais insistente depois”. E Caetano observa en-
faticamente: “A menos que nossa mente tenha se tornado imbecil,
será impossível não ver que, depois de conhecer e ver tantas coisas
maravilhosas, Maria e José sequer pensaram em relações carnais”.

A outra objeção, baseada no termo “primogênito”, não terá


maior importância, a não ser que o uso comum da palavra naquela
época, especialmente no idioma da Bíblia, seja levado em conta.
São Jerônimo já tinha apelado para esse uso quando rebate o he-
rege Helvídio assim: “O primogênito não é apenas aquele depois
de quem outros nasceram, mas também aquele antes de quem nin-
guém nasceu”18. Parece bem possível que o evangelista pretendesse
enfatizar exatamente esse ponto, a fim de evitar qualquer suspeita
de que Maria pudesse ter sido viúva antes de se casar com José e,
assim, descartar qualquer possível dúvida sobre a perpétua virgin-
dade de Maria. Além disso, São Jerônimo chama a atenção para a
Lei, segundo a qual todo primogênito era consagrado ao Senhor e
tinha que ser redimido, e então ele diz:

“A palavra de Deus define o primogênito como todo o


que abre o ventre. Caso contrário, se ele fosse o primogênito
seguido por irmãos, os sacerdotes também não poderiam rei-
vindicar os primeiros frutos, já que outros frutos ainda não
tinham sido produzidos. [...] Não devem as próprias letras da
Escritura criar línguas para me acusar de ignorante e dizer que
um primogênito é aquele que abre o ventre, e não aquele que
também tem irmãos?”.

Essa questão é tratada, depois, de modo semelhante por teólo-


gos e exegetas católicos como [Santo] Alberto Magno, [Santo] Tomás,

18. Adv. Helv., nº 10.

54
Padre Joseph Mueller S. J.

Suárez e Maldonado19 e por alguns modernos, como Knabenbauer20


e Schanzch21. Para citar apenas Santo Tomás22:

“É costume das Escrituras chamar primogênito não ape-


nas aquele que é seguido por irmãos, mas também aquele que
nasceu primeiro. Caso contrário, se somente fosse um primo-
gênito o que é seguido por irmãos, também os primeiros frutos
não teriam que ser dados a Deus de acordo com a lei, enquanto
outros furtos não tivessem sido produzidos. Mas não é assim,
pois, conforme a lei, os primeiros frutos tinham que ser resga-
tados dentro de um mês”23.

Quando alguns oponentes tentaram insultar a castidade de


São José, indicando seu íntimo contato diário com Maria e a familia-
ridade que deve ter resultado disso, essa insinuação já era ressentida
e habilmente refutada pelos Padres e primeiros teólogos. Todos eles
enfatizam a sempre perfeita modéstia de conduta da Santíssima Vir-
gem, sua pureza incomparável e sua beleza, cujos atrativos físicos
eram tão eclipsados pelo brilho de sua bela alma que era mais susce-
tível de despertar em quem a visse um amor e um desejo por essas
virtudes, em vez de um desejo de colocá-las em perigo, prejudicá-las
ou destruí-las. Já Santo Ambrósio insistia: “Ela era tão cheia de gra-
ça que não apenas preservou sua própria virgindade, mas também
transmitiu a mesma honraria a outras pessoas a quem visitou”24.
Assim como [Santo] Tomás, [São] Boaventura e Suárez, Gerson diz:

19. N. R.: João Maldonado (1533-1583), jesuíta, teólogo e exegeta espa-


nhol do período da Contrarreforma.
20. N. R.: Joseph Knabenbauer (1839-1911), jesuíta, teólogo, escolástico
e exegeta alemão.
21. N. R.: Possivelmente Paul Schanz (1841-1905), sacerdote, teólogo,
pensador e professor alemão.
22. Suma teol., IIIa, q. 28, a. 3.
23. Nm 18, 16.
24. De inst. virg., cap. 7, nº 50 (PL, 16, 319).

55
A Paternidade de São José

“José era um homem justo, e as ânsias do pecado esta-


vam nele contidas ou extintas, como deveria ser, para que a
beleza de Maria e a familiaridade diária com ela não se tornas-
sem um escândalo e sua ruína. Em consequência disso, por sua
vida e contato diário com ela, ele não foi instigado à paixão,
mas inspirado pelo amor à castidade, e isso se deveu não ape-
nas ao controle das ânsias (da concupiscência) em si mesmo e
da virtude e do mérito de Maria, mas também a seu comporta-
mento refinado e sempre autodisciplinado”25.

Objeções como as que acabamos de discutir não levam em


consideração a alta posição de São José, inclusive na ordem sobre-
natural, nem todos os dons da graça derramados sobre ele para
prepará-lo para isso [sua missão]. Mas uma vez que essa elevada
dignidade seja admitida e devidamente apreciada, estaremos pron-
tos para concordar com a opinião agora quase unânime, de que São
José não apenas viveu com Maria em casamento virginal, mas tam-
bém preservou sua virgindade por toda a vida.

Já na antiguidade cristã, essa opinião teve eminentes apoiado-


res. São Jerônimo a exprime enfaticamente, dirigindo-se a Helvídio:

“Você diz que Maria não permaneceu para sempre vir-


gem. Mas eu afirmo ainda mais que isso, a saber, que também
José permaneceu virgem por [causa de] Maria, de modo que
um filho virginal nasceu em um matrimônio virginal. Pois, se
não pode existir fornicação em um homem tão santo, e se as
Escrituras não sabem nada sobre um segundo casamento de
José e foi era muito mais um protetor e guardião para ela do que
um marido, parece lógico que aquele que por direito é chama-
do de pai de nosso Senhor permaneceu virgem com Maria26.
Pode-se concluir que Santo Agostinho compartilhou essa opi-
nião a partir de sua comentário contra Juliano: “Mesmo depois

25. Sermão da Nativ. B.V.M., 3.


26. Adv. Helv., nº 19.

56
Padre Joseph Mueller S. J.

que ele [José] soube que a santíssima virgem tinha sido aben-
çoada por Deus com um filho, ele não procurou outra esposa,
pois, de qualquer forma, nem a teria procurado por esposa,
caso não se sentisse obrigado por lei a fazê-lo”27.

[E São] Pedro Damião:

“Você não sabia que o Filho de Deus valorizava tanto a


integridade do corpo que desejou tornar-se homem não por
meio de um matrimônio o mais honroso possível, mas de uma
virgem inviolável? E para que não bastasse a virgindade de
sua mãe, a crença da Igreja é que também era virgem aquele
que Ele pensava ser Seu pai”28.

Nos tempos medievais, essa opinião parece ter sido geral-


mente aceita. Desde o século XII, o termo “virgem” aparece repe-
tidamente em conexão com São José, em um sentido não idêntico,
é verdade, mas semelhante ao que é aplicado à Virgem Maria. Por
exemplo, Pedro Comestor29 diz: “Com a Virgem, ele permaneceu
virgem”. E Pedro Riga30: “Aquele homem obedeceu às ordens di-
vinas, regozijando-se por pertencer a uma virgem e permanecer
virgem com a Santíssima Virgem”.

27. Livro 5, nº 48.


28. Sobre o celibato dos sacerdotes, cap. 3 (PL, 145, 384).
29. N. R.: Pedro “Comestor” (c. 1100-1179), teólogo, historiador, escri-
tor e professor francês. Seu apelido significa “Devorador”, por sua
paixão voraz pelos livros. Famoso por sua Historia Scholastica, um
comentário da história sagrada desde a Criação aos Atos dos Após-
tolos, voltado para estudantes.
30. N. R.: Pedro Riga (c. 1140-1209), cônego e poeta francês, reconhecido
por sua obra Aurora, um comentário sobre a Bíblia, com ênfase em
interpretações alegóricas ou morais.

57
A Paternidade de São José

Daí em diante, veremos essa doutrina (da virgindade perpé-


tua de São José) adotada pelos grandes teólogos, como São Alberto
e Santo Tomás.

Santo Alberto defende que José, como Maria, fez um voto de


virgindade e castidade. Para mostrar quão digno e necessário isso
era, ele enfatiza a estreita conexão que José tinha com as mais santas
pessoas, Jesus e Maria:

“Ele tinha se decidido pela castidade perpétua. Caso


contrário, teria sido imprudente temeridade para si mesmo,
se contaminado, tocar o corpo do Redentor ou aquele espelho
perfeito de pureza, o corpo da santíssima mãe dele, como diz
Isaias (52, 11): “Purificai-vos, vós que carregais os vasos do
Senhor”. Oza31, ao estender a mão para a arca de Deus e segu-
rá-la foi morto inesperadamente, pois estava contaminado por
sua esposa; no entanto, a arca prenunciava apenas vagamente
a santidade de Maria. Como José poderia ter ousado se ocupar
de Jesus e Maria com a mancha da lascívia em sua alma? Em
Êxodo 19, 10.15, os filhos de Israel foram avisados para lava-
rem suas vestes e não se aproximarem de suas esposas, antes
que o Senhor lhes aparecesse em meio a fogo e fumaça. Quão
mais fortes não devem ser as razões, para um voto de casti-
dade perpétua, para aquele que com as próprias mãos pode
tocar a própria flor da castidade? Finalmente, por que razão a
divina Sabedoria teria escolhido um impuro para servir como
testemunha e protetor da Mãe de Deus?”32.

[Diz] Santo Tomás:

“Acreditamos que, como a mãe de Jesus era virgem, São


José também era, porque Jesus a recomendou, uma virgem, a

31. II Sm 6, 7.
32. Em Mt 1, 18.

58
Padre Joseph Mueller S. J.

um virgem, não apenas no final de sua vida (São João), mas


também no princípio (São José)”33.

[E] São Bernardino de Siena:

“Embora sob a obrigação de ter uma esposa (para se casar),


ele manteve seu desejo e resolução de permanecer virgem”34.

Gerson:

“Como convinha que Maria fosse resplandecente com


toda a pureza, também era de se esperar que ela sempre tives-
se um marido distinto por sua pureza e que com ela, sempre
Virgem, continuaria virgem. Mesmo que ambos fossem igual-
mente distintos por sua linhagem real, Maria jurou virgin-
dade, e José, como os teólogos nos dizem, fez o mesmo. Esse
voto não é obstáculo para um verdadeiro matrimônio... e nesse
casamento também encontramos descendência, fidelidade,
indissolubilidade”35.

Toledo:

“Se a Virgem foi confiada a João por causa de sua virgin-


dade, não era menos apropriado que a Virgem fosse dada em
casamento a um homem que era virgem; ao contrário, parece-
ria ainda mais adequado. Para João, ela foi dada como mãe, e
esse título exclui toda suspeita de algo impróprio. Mas a Jo-
seph foi concedida como esposa, um título que poderia suge-
rir a existência de relações conjugais, especialmente porque a

33. N. R.: O texto original liga esse trecho à citação bíblica de Mt 12,
47, sobre a mãe e os irmãos de Jesus. Contudo, parece mais lógico
relacioná-la a Jo 19, 26-27, em que Jesus entrega Maria Santíssima
ao discípulo amado.
34. Sermão sobre São José.
35. Sermão da Nativ. B.V.M., 3.

59
A Paternidade de São José

Santíssima Virgem estava em sua juventude na época de seu


casamento, mas não no tempo da Paixão. Então, para colocar
sua castidade acima da suspeita, a Virgem tinha que ser dada
a um virgem. Este ponto deve ser mantido”36.

Salmerón:

“Cristo, o Senhor, queria ser nutrido e criado somente


em meio à pureza virginal; sim, José não era apenas virgem,
mas Deus havia extinguido nele todo o fogo da concupiscên-
cia, para que, com toda decência e santidade, pudesse estar
com a mais justa donzela, a Virgem Maria, e dia e noite convi-
vesse com ela com bastante familiaridade”37.

Para citar pelo menos um dos mais destacados teólogos dos


tempos modernos, Scheeben:

“Que José, como Maria, sempre foi virgem antes e de-


pois do casamento, não foi estabelecido dogmaticamente e não
pode ser estabelecido dessa maneira. Mas pode ser facilmente
presumível, tendo em vista, por um lado, a elevada vocação de
José e sua analogia com a do discípulo virginal que, por causa
dessa mesma qualidade, foi admitido em uma relação seme-
lhante de familiaridade com Jesus e Maria; e por outro lado,
porque o matrimônio de José e Maria exige também de sua
parte um voto de virgindade, um voto que, por sua vez, indica
que toda a sua vida foi regida pelo ideal de pureza virginal”38.

36. In Luc., cap. 1. N. R.: Francisco de Toledo Herrera (1532-1596), sa-


cerdote jesuíta, cardeal, teólogo e exegeta espanhol do período da
Contrarreforma.
37. Vol. III, trat. 19. N. R.: Afonso Salmerón (1515-1585), teólogo e erudito
exegeta bíblico espanhol do período da Contrarreforma. Foi uma
dos primeiros a integrada a Companhia de Jesus.
38. Dogmatik, III, 489.

60
Padre Joseph Mueller S. J.

Essa observação de Scheeben, de que a virgindade perpétua


de São José não é provada nem comprovável dogmaticamente, pode
significar apenas que não temos testemunhos bíblicos que se rela-
cionem direta e explicitamente a esse ponto e que não há sobre isso
uma tradição geral vinda da antiguidade; não que não possa, no en-
tanto, ser deduzido logicamente dos dados fornecidos pelas Escri-
turas e pela tradição. De fato, ele próprio afirma que certos fatos,
confirmados pelas Escrituras, por exemplo, o casamento entre José
e Maria, estabelecem uma presunção segura para essa virgindade.

Como conclusão, pode valer a pena reunir e declarar deta-


lhadamente as chamadas rationes convenientiæ ou epigentiæ que os
Padres e, mais tarde, os teólogos aduzem, mais ou menos explicita-
mente, a favor da virgindade de São José. Essas razões, juntamen-
te com o que agora se tornou o consenso universal dos teólogos,
estabelecerão um terreno suficientemente seguro para fundamentar
nosso caso. Ao mesmo tempo, confirmam a presunção exigida por
Scheeben.

As considerações a seguir, portanto, se não houver preconcei-


to e não for dada muita atenção ao assunto, mostrarão como é im-
provável, mesmo impensável e impossível, que São José não tivesse
essa prerrogativa de virgindade perpétua.

Esse santo patriarca havia sido escolhido e destinado pela Pro-


vidência divina a passar muitos anos de sua peregrinação terrestre
na mais próxima e íntima companhia com as mais augustas e santas
pessoas, Jesus e Maria. Ele era, de fato, o esposo da Virgem Mãe de
Deus e, portanto, no verdadeiro sentido, pai do Deus feito homem,
Jesus, além de chefe da Sagrada Família e, consequentemente, seu
representante e protetor oficial. Para poder cumprir essa tarefa su-
blime, José foi, sem dúvida, dotado por Deus de todos os auxílios
necessários da graça. Mas a Mãe de Deus era a Virgem mais pura, a
Rainha das virgens, a virgem por excelência: sem o menor prejuízo
de sua virgindade, ela concebeu e deu à luz o divino Menino Jesus;
ela manteve livre da menor sombra de mancha sua virgindade, que

61
A Paternidade de São José

havia consagrado a Deus por seu próprio livre arbítrio. Além disso,
ela era a Virgem mais prudente, que nunca se comprometeria com
São José se não soubesse de antemão, seja por meios naturais ou
sobrenaturais, que seu santo esposo também sempre fora e, além
disso, estava determinado a permanecer sempre virgem.

E o menino Jesus, o Deus feito homem, que deveria redimir a


humanidade, entrou neste mundo temporal para também restaurar
à virgindade seu lugar legítimo e honrado. Ele mostrou abertamente
Seu amor especial pelas almas virgens, assumindo Sua natureza hu-
mana e sendo concebido e nascido de uma Virgem inviolada. Para
Seus apóstolos, Ele escolheu homens que deixariam tudo por Sua
causa e, pelo menos depois de seu chamamento, levariam uma vida
de continência. Seu discípulo mais amado era São João, que era e
sempre permaneceu virgem; a quem foi permitido descansar a ca-
beça no peito de seu Mestre quando este, na Última Ceia, instituiu
o sacramento de Seu amor; e a cujo cuidado e custódia, da árvore
da cruz, antes de entregar seu espírito ao Pai, Jesus confiaria sua
própria mãe; a Virgem mais pura para o virginal discípulo amado.

Quando a devida consideração é dada a todos esses fatos vi-


sivelmente significativos – o alto valor atribuído à virgindade por
Jesus e Maria, a eminente dignidade de São José por causa de sua
associação mais íntima com nosso Salvador, o Deus feito homem,
que era virgem, e com a Virgem Mãe de Deus – não pareceria mui-
to improvável, uma completa anomalia, se apesar de tudo isso, São
José também não participasse dessa prerrogativa de virgindade per-
pétua? Desse modo, aconteceu que essa crença na virgindade perpé-
tua de São José chegou finalmente a sua aceitação geral pela teologia
católica e pela alegre e disposta fé do povo católico.

62
4. Objeções ao matrimônio
virginal de Maria
e José
Em nosso capítulo anterior, esforçamo-nos por provar a existên-
cia de um verdadeiro matrimônio entre Maria e José e, de maneira
geral, explicar sua natureza. Também apresentamos a evidência da
perpétua virgindade de São José. Restam, no entanto, duas dificul-
dades que devem ser resolvidas ou esclarecidas antes que seja possí-
vel um entendimento completo dessa santa união. Dar essa solução
é o objetivo do presente capítulo.

Contra o ensino católico, o herege Helvídio e seus seguido-


res insistiam, na antiguidade cristã, e mais tarde, em nossos dias,
os protestantes e racionalistas, que em diversos lugares do Novo
Testamento são designados vários apóstolos ou discípulos de Cristo
como “irmãos do Senhor”. Portanto, deve ter havido outros filhos de
um casamento anterior de São José; de qualquer forma, a virgindade
perpétua de São José é questionável. Essa objeção já tinha sido reba-
tida pelo estudo especializado e o sarcasmo incisivo de São Jerôni-
mo, que a refutou em sua obra Contra Helvídio. Teólogos posteriores
também lidaram com o tema. Entre os mais recentes, destacam-se
[a obra de] Meinertz, O livro de Tiago e seu autor nas Escrituras e na
tradição1 (parte I), na [publicação] Biblische Studien, vol. X, e [a de]

1. N. R.: No original, Der Jakobusbrief und sein Verfasser in Schrift und


Überlieferung, de Max Meinertz, publicado em 1905, sem edição
A Paternidade de São José

Durand, A Infância de Jesus Cristo, de acordo com os Evangelhos Sinópti-


cos, seguida de um estudo sobre os irmãos do Senhor2. Para nosso propó-
sito, uma explicação mais curta será suficiente para uma refutação.

É um fato bem conhecido e inegável que, na linguagem das


Escrituras, não apenas irmãos e irmãs verdadeiros, ou seja, filhos
reais dos mesmos pais, podem receber esse nome. Assim, no Antigo
Testamento, Abraão e Ló são chamados irmãos, embora fossem tio e
sobrinho; o mesmo com Labão e Jacó; assim também os parentes do
rei Ocozias se chamavam irmãos do rei, embora nem todos fossem
irmãos no sentido estrito do termo3.

É, portanto, uma falácia evidente, pelo fato de que, no Novo


Testamento, alguns apóstolos ou discípulos do Senhor são chama-
dos irmãos de Jesus, a conclusão de que eles têm os mesmos pais
ou [sejam filhos dos] pais de nosso Senhor, e que, assim, o caráter
virginal do casamento de Maria e José ou, pelo menos, a virgindade
perpétua de São José seja questionada. Não é apenas uma falácia,
mas um erro total, pois por outras passagens do Novo Testamento
fica evidente que aqueles “irmãos do Senhor” não são seus irmãos
no sentido natural da palavra, mas outros parentes próximos, ou
seja, primos. Quando Jesus estava pregando em Nazaré, o povo da
cidade chamou os seguintes homens “seus irmãos”, de acordo com

em Português. Max Meinertz (1880-1965) foi um sacerdote polonês,


teólogo, professor e renomado estudioso do Novo Testamento.
2. N. R.: No original, em Francês, L’Enfance de Jésus-Christ d’après les
Évangiles synoptiques , suivie d’une étude sur les frères du Seigneur, publi-
cado em 1908, sem edição em Português. Alfred Durand (????-????),
jesuíta e escritor francês, conhecido por sua tradução comentada do
Evangelho segundo Mateus.
3. Cf. Gn 14, 16; 24, 48; 29, 12.15; Lv 10, 4; II Rs 10, 13. Mais exemplos
são dados por São Jerônimo. N. R.: Muitas traduções atuais das
Sagradas Escrituras passaram a adotar o termo “parente” em lugar
de “irmão” para evitar interpretações equivocadas.

64
Padre Joseph Mueller S. J.

Mateus 13, 55: Tiago, José, Simão, Judas; de acordo com Marcos 6, 3,
com uma mudança na sequência: Tiago, José, Judas, Simão.

Mas na história da Paixão de nosso Senhor, tanto em Mateus


(27, 56) quanto em Marcos (15, 40), encontramos um Tiago e um José
como filhos de uma Maria que (de acordo com João 19, 25) era irmã
de Maria, mãe de Jesus, então, ambos devem ser, evidentemente, os
mesmos Tiago e José elencados há pouco entre os “irmãos de Jesus”;
e se esta Maria sob a cruz deve ser identificada pelos nomes de seus
filhos, estes já devem ter sido nomeados ou conhecidos antes. Além
disso, nas listas de apóstolos (Mateus 10, 3; Marcos 3, 18; Lucas 6, 15;
Atos 1, 13), o mesmo Tiago tem o sobrenome “(filho) de Alfeu” (=
Cléofas; cf. João 19, 25 e Marcos 10, 40), assim como é chamado por
Marcos (na passagem mencionada) Tiago Menor, para distingui-lo
de Tiago Maior, filho de Zebedeu. Por fim, São Judas, em sua epísto-
la (cap. 1), denomina-se o “irmão de Tiago”. Assim, uma cuidadosa
comparação dos dados pertinentes das Escrituras revela que esses
“irmãos de Jesus” são na verdade filhos de Alfeu Cléofas e Maria
mencionados acima. Se eles ainda são chamados de “irmãos de Je-
sus”, são apenas no sentido mais amplo de parentes próximos: são
primos de Jesus.

A outra suposição, de que eles eram filhos de José de um ca-


samento anterior, não tem pingo de apoio nas Escrituras Sagradas.
Pelo contrário, é refutada pelos mesmos textos que examinamos;
está em contradição com a narrativa bíblica do início da vida de nos-
so Salvador; nenhum vestígio é encontrado lá de quaisquer “irmãos
de Jesus”, nem mesmo naquelas passagens onde são narrados even-
tos em que a presença e a participação de quaisquer verdadeiros
irmãos de Jesus seriam simplesmente inevitáveis. São Jerônimo co-
menta sobre esta questão:

“Alguns escritores conjeturam os ‘irmãos do Senhor’


como filhos de José com outra esposa, seguindo essa alucina-
ção de escritores apócrifos, e propõem uma mulher fictícia,
chamada Melca ou Esca. Nós, no entanto, como escrevemos

65
A Paternidade de São José

em nosso tratado contra Helvídio, entendemos que os irmãos


do Senhor não são filhos de José, mas primos-irmãos do Sal-
vador, filhos de Maria, tia de nosso Senhor, dos quais se diz
que ela era mãe de Tiago Menor, José e Judas que, como lemos
em outras partes do Evangelho, foram chamados irmãos do
Senhor. Que primos às vezes eram chamados irmãos, toda a
Escritura dá testemunho”4.

Ainda mais conflitante com a Sagrada Escritura, não apenas


com o relato da anunciação, mas também com a cena da crucifica-
ção (João 19, 25–27) é a suposição de que os “irmãos de Jesus” eram
filhos naturais de Maria, a mãe de Deus: “Junto à cruz de Jesus es-
tavam de pé sua mãe, a irmã de sua mãe, Maria de Cléofas, e Maria
Madalena. Quando Jesus viu sua mãe, e perto dela o discípulo que
amava, disse a sua mãe: ‘Mulher, eis aí teu filho’. Depois, disse ao
discípulo: ‘Eis aí tua mãe’. E dessa hora em diante o discípulo a le-
vou para sua casa”. Mas como Jesus poderia ter enviado Sua mãe
para longe dos próprios filhos, confiando-a a um discípulo, um ente
querido, é verdade, mas sem qualquer relação de sangue; confiou-a
a ele como se fosse seu único filho (como o texto original sugere),
para ser protegida e cuidada por ele – com total desconsideração dos
próprios filhos dela?

Vários Padres notaram o significado de tudo isso. Santo Hilário:

“Alguns homens totalmente depravados têm a dificul-


dade de afirmar, em apoio à própria opinião, que foi declarado
que nosso Senhor tinha vários irmãos. Mas se estes tivessem
sido filhos de Maria... ela, na época da Paixão, nunca seria de-
signada como mãe ao apóstolo João, pois o Senhor disse tanto
a Sua mãe ‘Mulher, eis aí teu filho’ e a João ‘Eis aí tua mãe’;
pois assim Ele deixou em Seu discípulo Seu próprio amor filial
para confortar a que agora estava sozinha no mundo”5.

4. In Matth. 12: 40, 50.


5. In Matth., cap. 1.

66
Padre Joseph Mueller S. J.

Santo Ambrósio:

“E o próprio Senhor, enquanto pendurado na cruz, dei-


xou claro (que sua mãe sempre fora virgem), quando disse a
sua mãe: ‘Mulher, eis aí teu Filho”; depois, ao discípulo: ‘Eis
a tua mãe’. E a mãe e o discípulo deram testemunho, pois a
partir daquela hora o discípulo a levou para sua casa. Com cer-
teza, se ela conhecesse carnalmente seu marido, nunca o teria
deixado, nem ele, um homem justo, jamais teria permitido. E
como nosso Senhor poderia ter causado essa separação como
Ele fez, pois, de acordo com Suas próprias palavras, ninguém
pode sentir falta de sua esposa, exceto por causa da imoralida-
de”6 (Santo Ambrósio aqui parece supor que São José ainda
estava vivendo na época da crucificação: uma opinião geral e
merecidamente abandonada em tempos posteriores).

São Pedro Crisólogo: “Se Maria Santíssima tivesse tido outros


filhos, Cristo na cruz, na hora de Sua morte, não daria Sua mãe a
um discípulo, não a confiaria a alguém que não fosse membro da
família”7.

Está, portanto, fora de qualquer questão. Os “irmãos de Je-


sus” mencionados no Novo Testamento não eram nem filhos do
casamento de Maria e José, nem filhos de um casamento anterior
de São José. São Jerônimo, refutando essa objeção, como fez com
as outras, de maneira magistral, e não se pode negar, amargamente
sarcástica, já indicou que ela teve origem em algumas histórias fan-
tásticas de escritores apócrifos.

A segunda dificuldade que precisa ser esclarecida, se desejar-


mos entender corretamente esse casamento entre Maria e José, é ine-
rente ao próprio assunto: algo como um casamento virginal é possível?
Será que um “matrimônio virginal” não é, em si, uma contradição?

6. In Luc., livro II, nº 4.


7. Sermão 48.

67
A Paternidade de São José

Para responder a essa pergunta da maneira mais clara e concisa pos-


sível, nos esforçaremos por provar a seguinte proposição: Um ma-
trimônio virginal não envolve contradição; pelo contrário, o status
marital e a virgindade perpétua, mesmo que a última seja consa-
grada por um voto, podem coexistir nas mesmas pessoas (marido
e mulher).

Algumas observações sobre a natureza do casamento e sobre


o voto de virgindade abrirão o caminho para nosso argumento.

a) O que é matrimônio? Qual é seu elemento essencial? O ma-


trimônio tem sua base tanto na lei natural quanto na lei divina po-
sitiva. Pode ser definido como a união permanente, moral e jurídica
do homem e da mulher, com base em um contrato, com o objetivo,
em primeiro lugar, de geração e educação dos filhos; em segundo
lugar, com a finalidade de ajuda mútua e controle racional do ins-
tinto sexual.

O fim primeiro e primário do matrimônio, portanto, é a


procriação e a educação dos filhos, e, por meio disso, a preserva-
ção e o aumento da raça, como Deus disse a nossos primeiros pais:
“Crescei e multiplicai, enchei a terra e submetei-a”8. Mas como o
homem e a mulher, sendo sexualmente diferentes, também têm
necessidades diferentes, até o homem depende da mulher, os
mais fortes dependem dos mais fracos. Se a mulher olha para o
homem em busca de proteção, o homem olha para a mulher bus-
cando cuidado e atenção da esposa. Portanto, ajuda e assistên-
cia mútuas são o segundo fim do casamento: “Façamos-lhe uma
auxiliar que lhe seja semelhante”. Após a queda do homem, um
terceiro fim deveria ser servido pelo casamento: por sua própria
natureza, o casamento se tornou um remedium concupiscentiæ, isto
é, serviu como controle racional do instinto sexual, que se tornou
uma concupiscência desordenada devido ao primeiro pecado. O

8. Gn 1, 28.

68
Padre Joseph Mueller S. J.

Apóstolo se refere a isso quando diz: “Considerando o perigo da


incontinência, cada um tenha sua mulher”9 etc.

Nossa definição de matrimônio, embora expressada em pa-


lavras diferentes, é substancialmente a mesma apresentada no Ca-
tecismo Romano, a definição clássica desde os tempos de Pedro
Lombardo: O matrimônio é a união conjugal entre homem e mulher,
contratada entre duas pessoas qualificadas, que os obriga a viverem
juntos por toda a vida.

As seguintes observações e distinções ajudarão a mostrar


mais claramente algumas implicações de nossa tese.

1. O fim tríplice do matrimônio, conforme nossa defini-


ção, é o finis operis, o fim objetivamente inerente ao próprio
matrimônio, para o qual ele tende por sua própria natureza,
embora, devido a algum obstáculo, nem todos os três possam
ser alcançados todos os casos. Deve-se distinguir desse tríplice
fim natural o finis operantis, o objetivo imediato que as pessoas
que se casam têm em mente, seu motivo subjetivo. Este último,
na mente das pessoas, pode ser idêntico ao triplo fim intrín-
seco a todo casamento, ou pode ser diferente, por exemplo, o
desejo de melhorar a condição econômica ou agradar os pais
ou superiores, desde que seja compatível com o fim primário.
Não é preciso dizer que qualquer um dos três objetivos seria
suficiente como motivo legal. Assim, a necessidade de prote-
ção ou ajuda, ou o desejo de, legalmente, exercer a função se-
xual seria suficiente como motivo para contrair um matrimô-
nio válido. Tampouco é necessário que o objetivo primário, a
procriação, seja conscientemente pretendido, desde que nada
seja feito ou planejado positivamente que seja contrário a esse
objetivo primário.
2. Também deve ser feita uma distinção clara entre o ato
de se casar e o status marital, isto é, a união permanente de

9. I Cor 7, 2.

69
A Paternidade de São José

homem e mulher. O primeiro é um ato jurídico transitório,


um contrato pelo qual são concedidos direitos permanentes e
aceitos deveres permanentes. Esses direitos e deveres formam
o vínculo matrimonial, o elemento essencial do casamento. O
que esses direitos e deveres são o Apóstolo nos diz: “O mari-
do cumpra seu dever para com sua esposa e da mesma forma
também a esposa o cumpra para com o marido. A mulher não
pode dispor de seu corpo: ele pertence a seu marido. Da mes-
ma forma, o marido não pode dispor de seu corpo: ele perten-
ce a sua esposa”10, ou seja, as partes dão uma à outra o direito
sobre seus corpos para aqueles atos que são necessários para
a geração [da prole] e pelos quais eles se tornam o princípio
adequado de geração. Santo Tomás explica nossa distinção de
maneira clara e concisa: o matrimônio não é o consentimento
(o contrato) em si, mas a união efetuada por esse contrato das
duas pessoas voltadas a um propósito11.
3. A consumação do matrimônio, isto é, o uso real do
direito à relação conjugal, não pertence à essência do casamen-
to. Pressupõe, antes, sua existência, a fim de ser legítimo, e
concede ao matrimônio apenas o tipo de perfeição que alcan-
ça ao atingir seu objetivo principal, também conforme Santo
Tomás12.
4. O direito à relação conjugal não é tal que possa ser
exercido à vontade, a qualquer momento e sob quaisquer cir-
cunstâncias. Às vezes, seu uso pode ser interrompido ou im-
pedido não apenas por causas físicas, mas também por razões
morais, sem prejuízo do vínculo matrimonial.
5. A fertilidade real também não é um elemento essencial
do casamento, pois um casamento verdadeiro e válido pode
existir entre pessoas estéreis ou idosas que, embora sejam ca-
pazes de manter relações, não são capazes de gerar filhos.

10. I Cor 7, 3-4.


11. Suma teol., supl., 9.45, a. 1, ad 2.
12. Suma teol., IIIa, q. 29, a. 2.

70
Padre Joseph Mueller S. J.

6. Certos deveres – a) viver em comum; b) ao usar o direi-


to matrimonial, não obstruir, por ação positiva, o fim primário
do casamento; c) quando abençoados com filhos, dar-lhes uma
educação adequada – não fazem parte da essência matrimo-
nial, mas são consequências necessárias de todo matrimônio
ou, pelo menos, de todo matrimônio fértil.
7. As observações anteriores justificam nossa afirmação
de que a essência do matrimônio consiste unicamente no vín-
culo moral-jurídico permanente que, por meio de direitos e de-
veres mútuos, une marido e mulher em um princípio legítimo
e adequado de geração [da prole]. Essa também é a visão de
Santo Tomás e, com ele, dos teólogos em geral. Eles distin-
guem explicitamente o ato transitório pelo qual o casamento
é contratado e o vínculo jurídico-moral permanente pelo qual
marido e mulher são formalmente unidos: o primeiro é a cau-
sa efetiva do casamento, o segundo, o elemento constitutivo
formal13.
8. Por fim, o matrimônio é, essencialmente, um vínculo
espiritual, pois consiste em direitos e deveres que são coisas
espirituais, embora possam se referir, também, a coisas ma-
teriais.

b) Tendo considerado a essência do casamento, devemos dar


uma breve atenção ao voto de virgindade. O que, em geral, é um
voto? É uma promessa feita a Deus pela qual um homem se obriga
a fazer algo agradável a Ele. O voto de virgindade, portanto, é a
promessa deliberada feita a Deus, e pelo amor d’Ele, de abster-se de
todo e qualquer prazer sexual, seja lícito, como dentro do casamen-
to, ou ilegal. Enquanto a observância da fidelidade conjugal é uma
questão de justiça, o voto, sendo um ato de adoração, pertence à
virtude da religião, e sua violação é um ato de sacrilégio.

Então, a Santíssima Virgem e São José estavam verdadeira-


mente unidos em um matrimônio válido. Por outro lado, a virgindade

13. Ibid., supl., 9.44, a. 1; 9.45, a. 1; 2.52, a. 2.

71
A Paternidade de São José

perpétua assegurada por um voto, não apenas da Virgem Maria, mas


também de São José, é um fato que não pode ser seriamente duvidado.

Surge, portanto, a questão de como esse voto pode ser conci-


liado com um contrato de casamento válido, a virgindade perpétua
com um vínculo duradouro. Pode parecer que eles simplesmente
não podem coexistir nas mesmas pessoas, especialmente se, além
disso, a virgindade perpétua tiver sido mutuamente condicionada
quando o contrato foi firmado. Pois, pelo casamento, o marido e a
esposa têm o direito e, sob certas condições, o estrito dever de ter re-
lações conjugais; por outro lado, pelo voto reconhecido no contrato
de casamento, tal direito e tal dever parecem anulados.

Para superar essa dificuldade, precisamos primeiro recordar


a distinção que fizemos entre o tríplice fim intrínseco a todo matri-
mônio válido e o fim subjetivo das partes contratantes. Esse objetivo
triplo não precisa ser, também, o motivo subjetivo e formal das par-
tes envolvidas; por exemplo, se seu único motivo impulsionador no
casamento fosse o de obter ajuda e assistência mútuas, ou o desejo
de receber a graça sacramental, sem qualquer intenção, no entanto,
de obstruir positivamente o objetivo principal, seu casamento seria,
sem dúvida, válido e lícito.

Além disso, temos que distinguir o direito e o uso do direi-


to: o direito pode existir sem nunca ser usado. Um homem pode
ter o direito de residir em determinada casa sem fazê-lo. O mesmo
acontece em nosso caso: o direito à relação conjugal pode existir sem
nunca ser exercido. Um casal, depois de casado, pode decidir, de
comum acordo – que fique claro, um acordo obrigatório apenas em
virtude da fidelidade –, nunca consumar o matrimônio. Mas se eles
podem fazê-lo após o casamento sem destruir seu caráter essencial,
também podem fazer o mesmo acordo ao contrair um matrimônio
sem pôr em risco a validade de seu contrato. Nos dois casos, eles
reteriam o direito à relação sexual, mas, por acordo mútuo, assumi-
riam a obrigação – de fidelidade às promessas feitas, não uma obri-
gação de justiça formal – de não fazer uso de seus direitos.

72
Padre Joseph Mueller S. J.

Semelhante a isso, se não idêntica, é a condição de marido


e mulher que, depois ou antes do casamento, com consentimento
mútuo, fizeram o voto de virgindade. Pelo matrimônio, todos os di-
reitos conjugais essenciais são investidos neles; esses direitos não
são anulados ou revogados, apenas suspensos por uma obrigação
do voto de não consumar o casamento, ou seja, de não exercer o di-
reito adquirido, sendo essa obrigação fundamentada em um voto e,
portanto, na virtude da religião e não da justiça, no sentido formal.
Portanto, se esse casal, em contravenção a seu voto de virgindade,
tivesse relações sexuais um com o outro, não seria um pecado contra
a justiça nem uma fornicação, mas um pecado contra a virtude da
religião, um sacrilégio. Mas se qualquer uma das duas pessoas o fi-
zesse com uma terceira pessoa, seria não apenas um sacrilégio, mas
também adultério e pecado contra a justiça.

Dissemos que um acordo envolvendo uma obrigação de fi-


delidade de não consumar o casamento, ou um voto mútuo de vir-
gindade resultando em uma obrigação de virtude religiosa, não é
incompatível com o direito jurídico, adquirido pelo casamento, à
relação conjugal. Pois aqui não há conflito de direitos, ambos exi-
gindo justiça, mas apenas a suspensão de um direito existente por
meio de uma obrigação adicional decorrente de outra causa. Alguns
teólogos, é verdade, iriam mais longe e defenderiam que um acordo
para não usar o direito de matrimônio não revogaria o direito em si,
mesmo que o acordo visasse vincular-se à justiça estrita. Outras au-
toridades, no entanto, firmemente se opõem a essa visão. Algumas
breves observações podem ser permitidas e devem ser suficientes
sobre essa questão especial.

Diríamos que a existência contínua do direito à relação conju-


gal e a obrigação de justiça adicionada a ele por um pacto de abster-se
dela são contraditórias e não podem coexistir nas mesmas pessoas:
elas se excluem, assim como “sim” e “não” se excluem como res-
posta à mesma pergunta. É difícil ver como os oponentes dessa vi-
são podem invocar, em defesa de sua opinião, a distinção entre um

73
A Paternidade de São José

direito e o uso desse direito; pois o direito à relação conjugal não é


um direito de posse do (ou direito de propriedade sobre o) corpo de
outrem, mas o direito de usá-lo. O direito de propriedade e o direito
ao uso podem muito bem ser separados por um contrato (obrigató-
rio na justiça); mas como o direito de usar pode ser contratualmente
separado do que é, em si, um mero direito de usar? Observe a di-
ferença entre os direitos de propriedade (por exemplo, sobre uma
casa ou fazenda e o direito de caçar em propriedades pertencentes
a outra pessoa). O direito matrimonial é, evidentemente, um mero
direito de uso, não um direito de posse ou propriedade; caso contrá-
rio, não seria uma violação da justiça se um homem fraudasse sua
esposa pela mutilação de um membro.

Como pode, então, por um acordo, surgir uma obrigação vin-


culativa na justiça de não usar esse “direito de usar” sem destruir o
próprio direito? Parece-nos que essa dificuldade é insolúvel. Feliz-
mente, não precisamos resolvê-lo para justificar o casamento virgi-
nal de Maria e José: nossa própria explicação dada neste capítulo é
totalmente suficiente, como os defensores das últimas opiniões men-
cionadas terão que admitir.

74
5. A missão especial
desse matrimônio1

No plano divino, o propósito especial desse matrimônio era forne-


cer as condições sob as quais a Encarnação deveria ocorrer.1

Até agora, consideramos três aspectos do casamento entre


Maria e José: 1. Que era um matrimônio verdadeiro e válido; 2. Que
foi ratificado, mas não consumado; 3. Que, embora um matrimônio
verdadeiro e válido, não era incompatível com o estado e o voto
de virgindade. Ainda existem três outras coisas relacionadas a esse
casamento que exigem consideração especial: 1. A razão desse ma-
trimônio ou a missão providencial que esse casamento teve que rea-
lizar; 2. Como os três bona que os teólogos, desde Santo Agostinho,
atribuem a todo matrimônio válido são real, e ainda mais perfeita-
mente, verificados nesse casamento; 3. A maravilhosamente elevada
posição a que São José foi elevado por essa união conjugal com a
Mãe de Deus. Essas três considerações têm uma influência impor-
tante no objetivo que estabelecemos para este livro.

No presente capítulo, perguntamos: Qual é a missão sublime


ou quais são as razões desse matrimônio? Quando falamos aqui de
razões, não queremos dizer razões ou causas externas que possam

1. Este capítulo é, basicamente, um comentário da Suma teol., IIIa, 9.29,


a. I.
A Paternidade de São José

ter contribuído para sua realização, como um desejo por parte dos
pais da Santíssima Virgem ou o conselho dos sacerdotes no tem-
plo, a cuja tutela, segundo uma tradição antiga, Maria fora confiada;
pois, em relação a essas coisas, apenas conjecturas são possíveis, ne-
nhuma afirmação positiva. Tampouco a alta reputação que o status
marital recebia entre os judeus quando abençoado com a prole teve
uma influência decisiva sobre Maria e José. Para eles era um casa-
mento virginal. Não obstante o alto valor atribuído ao casamento, há
vários exemplos no Antigo Testamento que mostram que a continên-
cia e a virgindade eram consideradas algo agradável a Deus. Desse
modo, as pessoas casadas, antes de terem que se aproximar da Ma-
jestade divina na realização de ritos religiosos, por exemplo, sacerdo-
tes presidindo as cerimônias no templo, eram obrigadas pela lei a se
abster de relações conjugais. Afinal, parece plausível o suficiente que
Maria e José deveriam estar agindo de acordo com uma revelação ou
inspiração do alto quando entraram nesse casamento, que deveria ter
uma relação tão íntima com a encarnação do Filho de Deus. Devemos,
portanto, esforçar-nos acima de tudo para descobrir e entender qual é
o papel desse casamento no plano da divina Providência.

As Escrituras quase não apresentam pistas. Mas os Padres e,


mais tarde, os grandes escolásticos da Idade Média direcionaram
sua busca para essa mesma questão, a estreita conexão desse matri-
mônio com a Encarnação, para encontrar e determinar suas razões.
Entre os Padres que merecem menção especial estão [Santo] Inácio,
Orígenes, Eusébio [de Cesareia] (historiador da Igreja), [Santo] Hi-
lário, [Santo] Epifânio, [Santo] Ambrósio, [São João] Crisóstomo,
[São] Jerônimo e [Santo] Agostinho. Santo Tomás, coletando e sis-
tematizando a maioria das descobertas dos Padres, mostra que, em
um triplo respeito, era muito apropriado que o Filho de Deus fosse
concebido e nascido de uma virgem desposada; que Ele, portanto,
entrou neste mundo temporal em um casamento verdadeiro e real.
Santo Tomás também discutiu com notável lucidez outras questões
cognatas que são úteis para um estudo do mistério da Encarna-
ção: por exemplo, por que o Filho de Deus deveria ser concebido
e nascido de uma mulher da raça de Adão; por alguém que era e

76
Padre Joseph Mueller S. J.

permaneceu virgem antes, durante e após a concepção e nascimento


de Cristo; por alguém da linhagem de Davi etc. Como essas questões
estão além do escopo de nossas discussões, nos limitamos ao ponto
que nos interessa aqui: a adequação, ou mesmo a necessidade moral,
de que o Filho de Deus nascesse de uma virgem desposada, ou que
Ele aparecesse na terra como o fruto sobrenatural do matrimônio
virginal entre Maria e José. Declaramos os motivos apresentados por
Santo Tomás2 e acrescentamos algumas explicações, na medida em
que sejam consideradas necessárias ou úteis.

“Era apropriado que Cristo nascesse de uma virgem despo-


sada; primeiro, por Sua própria causa; segundo, pelo amor de sua
mãe; terceiro, por nossa causa”.

“1º. Por causa do próprio Cristo. Podemos apresentar quatro


razões: a primeira é que Ele não deveria ser rejeitado pelos incrédu-
los como um filho ilegítimo. Por isso, [Santo] Ambrósio diz: ‘Que
culpa poderia ser atribuída aos judeus e a Herodes se eles pareces-
sem perseguir alguém nascido de adultério?’”.

Para entender a importância total dessa primeira razão apre-


sentada por Santo Tomás, basta lembrar quão pouco preparados os
judeus e pagãos contemporâneos de Cristo estavam para aceitar,
com fé sincera e humilde, um mistério tão singular e maravilhoso
como o nascimento virginal do Salvador. Eles certamente O con-
siderariam [um filho] ilegítimo e teriam descarregado ignomínia e
desonra sobre Ele. A sabedoria da Providência divina, portanto, es-
colheu encobrir o mistério desse matrimônio como sob um véu até
o momento em que, por meio dos milagres de Jesus e especialmente
de Sua ressurreição e ascensão, judeus e pagãos estivessem prepara-
dos para abrir suas mentes também para a mensagem da misteriosa
e maravilhosa entrada do Salvador neste mundo visível. Eusébio já
enfatizara esse ponto quando disse:

2. Ibid.

77
A Paternidade de São José

“O tempo adequado para revelar esse mistério não po-


deria chegar até que Cristo ressuscitasse dos mortos e subisse
ao céu; até que a fama d’Ele como a Palavra de Deus se espa-
lhasse pelo mundo, as nações fossem chamadas e as profecias
divinas foram cumpridas, de modo que o evento deu prova
visível de sua veracidade”3.

“A segunda razão foi que sua genealogia poderia ser rastrea-


da da maneira habitual, ou seja, pelos ancestrais do sexo masculino.
Portanto, [Santo] Ambrósio diz: “Aquele que veio ao mundo teve
que ser registrado de acordo com os costumes do mundo. Mas para
isso é necessário um homem, pois é o homem que representa (a dig-
nidade) a família no Senado e em outros tribunais de registro. Ve-
mos o mesmo no uso das Escrituras, onde o destaque é sempre dado
à descendência masculina”4. O aspecto significativo aqui é que, es-
pecialmente entre os judeus, a genealogia sempre é traçada na linha
masculina. Portanto, se Maria não tivesse sido casada com um ho-
mem, a descendência davídica de Jesus não poderia ter sido estabe-
lecida; teria permanecido em dúvida e até mesmo obscurecida. Mas
uma vez que o prometido Redentor não podia permitir que uma
sombra caísse sobre Seu nascimento, e conforme as profecias que Ele
deveria ser “o Filho de Davi”, Maria, a mãe de Jesus, teve que se unir
em casamento com um homem da casa de Davi.

“A terceira razão foi a proteção do recém-nascido, para que o


diabo não tentasse feri-lo ou impedi-lo. Por isso, [Santo] Inácio diz
que Maria foi desposada por um homem para que a forma de nasci-
mento de Cristo fosse mantida em segredo do diabo”. A força dessa
terceira razão foi questionada ou negada por alguns teólogos, por
exemplo, [Duns] Scott, Maldonado e Natalis Alexander5. Entretanto,

3. Questions on the Gospels, I, 6. N. R.: Em tradução livre, Perguntas sobre


os Evangelhos.
4. In Luc, cap. 3.
5. N. R.: Natalis Alexander ou Noël Alexandre, O.P. (1639-1724),

78
Padre Joseph Mueller S. J.

teve seus apoiadores em vários Padres e outros escritores antigos,


como Orígenes, [São] Basílio, [São] Jerônimo, [São João] Crisóstomo,
[Santo] Ambrósio e [São] Bernardo e, por esse motivo, merece, pelo
menos, atenção respeitosa. Que [tal razão] não é desprovida de toda
a probabilidade, se corretamente entendida e não superenfatizada,
as seguintes considerações podem mostrar.

Estava nos planos da Providência de Deus que o Filho de


Deus encarnado atravessaria todos os estágios da infância e juven-
tude, até que, atingindo a idade adulta, deveria fazer o sacrifício de
Sua vida no altar da cruz. Também Sua missão messiânica e Sua di-
vina filiação deveriam tornar-se conhecidas e reconhecidas primei-
ramente no círculo íntimo de Seus amigos e discípulos escolhidos e
somente então, e gradualmente, pelo público em geral. O príncipe
das trevas também só deveria tomar consciência gradualmente, e
não muito antecipadamente, para que fosse impedido de atacar com
muita força o pequeno rebanho da igreja nascente.

É verdade que Deus, em Seu poder, poderia tê-lo mantido


sob controle pela força. Mas a Providência divina, dispondo todas
as coisas não apenas poderosamente, mas também gentilmente, pre-
feriu manter o segredo da maravilhosa concepção e nascimento do
Salvador do inimigo por um tempo. Os meios para esse fim podem
muito bem ter sido o casamento da Virgem com São José, que, como
dissemos, era como um véu para esconder o mistério de olhos inde-
sejáveis. Que o diabo, estritamente falando, fosse fisicamente capaz
de tomar consciência disso, é inegável; mas ele não é onisciente, e a
sabedoria de Deus certamente poderia ordenar condições e circuns-
tâncias para que a concepção e o nascimento virginais permaneces-
sem desconhecidos pelo inimigo sem interferência em seus poderes
naturais. Se assim entendida, a terceira razão apresentada por Santo
Tomás não pode ser considerada insignificante.

sacerdote, teólogo, historiador e professor francês.

79
A Paternidade de São José

“A quarta razão foi para que Jesus fosse nutrido por José, que
é, portanto, chamado Seu pai, como Seu pai nutrício”. Essa razão
é clara. O Filho divino, que em Sua vida mortal compartilharia co-
nosco todas as fraquezas e necessidades de nossa natureza humana,
para ser como nós também nesse aspecto, precisaria de alguém que
o alimentasse, o guardasse e, se necessário, defendesse, deveres que,
por natureza, pertencem ao chefe e ao pai da família. Portanto, era
apropriado, mesmo moralmente necessário, que Maria fosse despo-
sada por um homem que, por esse matrimônio, se tornasse pai de
seu filho, não de fato no sentido físico, mas um verdadeiro pai, con-
tudo, de maneira mais alta e mais nobre, como veremos mais adian-
te. E quão fiel e constantemente São José cumpriu esses deveres, nós
o sabemos pelos Evangelhos: foi ele quem deu ao menino o nome de
Jesus, como havia sido ordenado pelo anjo; ele O apresentou a Deus
no templo, de acordo com a Lei; ele O salvou das garras do rei Hero-
des, levando-o ao Egito; com Maria, depois de visitar o templo, ele
voltou em pesarosa busca pelo Menino aparentemente perdido; era
aquele cujos desejos e instruções regiam a casa em Nazaré, e o Filho
divino estava sujeito a ele, assim como à santa Mãe, como indica
claramente a Sagrada Escritura.

2º O segundo grupo de razões (três) nos conta por que esse


matrimônio era do interesse de Maria, a Virgem Mãe. “Primeiro,
ela deveria ser salva da punição prevista em lei por adultério ou
gravidez ilegítima, isto é, para que ela não fosse apedrejada como
adúltera”, como [São] Jerônimo explica. Esta razão, também, é cla-
ra: a Santíssima Virgem teria sido alvo de suspeita, pelos judeus,
de delinquência sexual e, como ela não tinha meios de defesa que
pudessem valer contra eles, teria sido apedrejada até a morte se sua
suposta delinquência tivesse ocorrido com um homem casado ou
solteiro: “Se não se tiverem comprovado as marcas de virgindade da
jovem, esta será conduzida ao limiar da casa paterna, e os habitantes
de sua cidade a apedrejarão até que morra, porque cometeu uma
infâmia em Israel, prostituindo-se na casa de seu pai”6.

6. Dt 22, 20-21.

80
Padre Joseph Mueller S. J.

Em segundo lugar, que ela pudesse ser preservada da infâ-


mia, sobre o que [Santo] Ambrósio afirma: “Ela foi desposada para
não ser marcada com o estigma da virgindade violada, já que seu
ventre seria considerado um sinal de corrupção moral”. Com a bri-
lhante e imaculada pureza e santidade do divino Filho, a de Sua mãe
está necessariamente conectada. Portanto, para manter sua santida-
de acima de toda suspeita, o matrimônio com São José estava previs-
to. Qualquer mancha ligada à concepção e ao nascimento de Cristo
seria totalmente irreconciliável com a santidade ou providência de
Deus. Teria deixado os corações dos homens relutantes em seguir
o plano de redenção de Deus, poderia tê-lo frustrado. Ademais, o
amor singular de Deus pela Virgem imaculada não podia permitir
que sua absoluta liberdade de todo pecado, o da lascívia, sobretudo,
pudesse ser questionada de forma alguma. É o que Santo Ambrósio
quer dizer quando escreve: “O Senhor preferiria que algumas pes-
soas tivessem dúvidas sobre Sua origem do que sobre a pureza de
Sua mãe. Pois ele sabia quão sensível era a modéstia da Virgem e
quão delicada era a reputação de uma mulher pura, e Ele não acre-
ditava que a crença em Sua origem deveria ser construída à custa da
desonra de Sua mãe”.
Terceiro, para que ela pudesse ter os serviços de São José,
como Jerônimo declara. O que dissemos acima sobre o Filho se apli-
ca de maneira semelhante à mãe. Ela também não estava livre das
fraquezas nem acima das necessidades de nossa natureza humana.
Dificuldades e tristeza também eram sua porção na terra. Muito an-
tes da tragédia do Calvário, ela começara a ser a Mãe das dores,
porque era a verdadeira mãe do Homem das dores. Ela também pre-
cisava de um provedor, um guardião e defensor, e ninguém melhor
poderia ser encontrado que um esposo com o coração e a solicitude
amorosa de São José.
3º. Santo Tomás apresenta várias razões pelas quais esse ma-
trimônio foi o mais adequado para o nosso bem, na medida em que
o matrimônio virginal de Maria e José trouxe algumas grandes van-
tagens à nossa fé e à moral cristã. Ele escreve da seguinte maneira:

81
A Paternidade de São José

“Primeiro, que Cristo nasceu de uma virgem está provado


por José ter sido testemunha. Por isso, Ambrósio declara: ‘A teste-
munha mais confiável de sua pureza é o esposo que, certamente,
se ressentiria da infidelidade e poderia vingar a desonra se ele não
tivesse consciência do mistério’”. Em nome de nossa crença na con-
cepção e nascimento virginais de nosso Salvador, não poderíamos
desejar uma testemunha mais competente e confiável que São José. E
devemos isso ao seu matrimônio virginal com Maria. Como observa
Santo Ambrósio, São José, como esposo, certamente sentiria profun-
damente qualquer desonra causada pela infidelidade de sua esposa.
Além disso, o quão longe ele estava de qualquer ideia de consumar
seu casamento é claramente demonstrado por sua preocupação, se
não consternação, quando percebeu que sua esposa tão pura estava
grávida. O alívio veio a sua alma somente quando, em um sonho
profético, um anjo do céu apareceu e lhe disse para animar-se: “José,
não temas receber Maria por esposa, pois o que nela foi concebido
vem do Espírito Santo”7. Assim, o próprio testemunho de São José é
corroborado por um mensageiro enviado pelo próprio Deus.

O valor deste testemunho de São José é adequadamente ilus-


trado por São Bernardo, comparando-o com a fé do apóstolo Tomé,
a princípio fraca e hesitante, mas depois mais ousada e forte: “Como
Tomé primeiramente duvidou, mas depois se tornou uma testemu-
nha corajosa e firme da ressurreição de nosso Senhor, também José,
tendo se casado com a Virgem e, portanto, vivendo em estreita asso-
ciação com ela, habilitou-se a ter uma vida santa enquanto ela estava
sob seus cuidados, tornando-se uma confiável, e a principal, teste-
munha da pureza de Maria... Eu, como um homem fraco, quanto à
ressurreição, primeiramente teria acreditado em Tomé, que primeiro
duvidou e hesitou; depois eu acreditaria em Cefas, que ouviu e acre-
ditou de uma vez; e da mesma forma, em relação à continência da
mãe, eu acreditaria no esposo que a guardava e cuidava dela, mais
do que na própria Virgem, quando, em defesa dela, ele convocasse

7. Mt 1, 20.

82
Padre Joseph Mueller S. J.

sua própria consciência sem culpa para testemunhar”8. Mas, agora,


nós já estamos entrando na próxima razão dada por Santo Tomás.

“Em segundo lugar, assim as palavras da Virgem Mãe se tor-


nam mais credíveis quando ela garante sua própria virgindade. Por
isso, Ambrósio diz (em obra citada): ‘Mais credibilidade deve ser
dada às palavras de Maria, pois não há motivo para mentira. Uma
mulher grávida solteira poderia, provavelmente, tentar se descul-
par por uma mentira, mas uma mulher casada não tem motivo para
mentir, pois sua maternidade é uma recompensa e a coroa da gló-
ria de seu casamento’”. Santo Tomás acrescenta: “Essas duas razões
servem para fortalecer nossa fé”. De fato, elas servem. Pois São José,
testemunhando a virgindade de Maria, confirma para nós a própria
afirmação dela, contida na pergunta: “Como se fará isso, pois não
conheço homem?”.

No entanto, também sua afirmação em seu próprio nome,


mesmo considerada isoladamente, é bastante confiável e irrepreensí-
vel. Pois, se ela permanecesse solteira e engravidasse, as pessoas tal-
vez se sentissem justificadas em suspeitar que ela estivesse mentindo
para esconder sua culpa. Mas como ela estava casada, certamente
não havia necessidade de uma mentira para se desculpar. Afinal, não
há desgraça para uma mulher casada em tornar-se mãe; ao contrário,
é uma bênção, uma honra e uma alegria para os pais. Ninguém conta
uma mentira, a menos que tenha uma razão para fazê-lo.

“Uma terceira razão é que aquelas virgens que, por falta de


cautela, trazem desgraça para si mesmas, não deveriam ter perdão.
Como Ambrósio declara: ‘Não era adequado que donzelas com má
reputação pudessem dizer, como desculpa, que a mãe do Senhor pa-
recia ser [uma jovem de] má fama’”. Essa razão pode ser tida como
uma pista de quão cuidadosamente uma alma virgem evitaria tudo
que pudesse macular sua reputação de pureza, já que, para proteger
o bom nome da Mãe Santíssima, a divina Providência dispôs para

8. Hom. 2 super “Missus est”.

83
A Paternidade de São José

ela essa santa união com São José, para que desde o princípio, ne-
nhuma suspeita pudesse surgir contra ela.

“Quarta razão: porque esse casamento significa toda a Igre-


ja que, apesar de virgem, é casada com um homem, Cristo, como
diz Agostinho”9. Aqui, Santo Tomás nos apresenta esse matrimônio
como um símbolo da Igreja, que é uma virgem, mas, como esposa de
Cristo, está dando-lhe cada vez mais filhos. De fato, todo casamento
cristão tipifica essa união da Igreja, porém com menos perfeição que
essa, porque somente Maria se tornou mãe permanecendo sempre
virgem.

“Quinta razão. Pode haver até uma quinta razão para a Mãe
do Senhor ser desposada e virgem ao mesmo tempo: porque assim,
em sua pessoa, tanto a virgindade quanto o matrimônio são hon-
rados, para confundir aqueles que menosprezariam um ou outro
estado”. De fato, por esse matrimônio virginal, não apenas a virgin-
dade, mas também o status marital e, com ele, a família, são honra-
dos e consagrados. Doravante, a sagrada união de Maria e José, a
Sagrada Família de Nazaré, tornou-se o protótipo ideal da família
cristã. Encontramos nela pai, mãe e Filho inseparavelmente ligados
pelos laços sagrados do amor conjugal, parental e filial. Que torre
de força esse casamento sagrado e essa família ideal foram contra os
hereges da antiguidade e, sob a providência de Deus, serão contra
os ataques insidiosos dos propagandistas modernos do amor livre
– muitas vezes significando, assim, um instinto animal bruto! Isso
traria a desintegração do casamento e da família e, assim, minaria os
próprios fundamentos da sociedade humana, uma ameaça que deve
ser evidente não apenas para o fiel cristão, mas para todo homem
consciente que ainda tem algum senso moral. Os papas de nossos
tempos, em suas encíclicas e decretos, têm chamado repetidamente
a atenção para esse perigo e têm incentivado e recomendado como
um meio eficaz de lutar contra isso a devoção à Sagrada Família.

9. De s. virgin., cap. 12.

84
Padre Joseph Mueller S. J.

Até agora, pesquisamos e estudamos em poucos detalhes as


razões apresentadas por Santo Tomás e os Padres para mostrar quão
apropriado e desejável era o matrimônio virginal de Maria e José. À
luz dessas razões, esse matrimônio é considerado em sua íntima co-
nexão com a encarnação do Filho de Deus e sua missão messiânica.
Seu grande propósito era fornecer as condições nas quais o eterno
Filho de Deus poderia tornar-se membro, ou melhor, o chefe da raça
humana, de maneira honrosa e condizente com Sua dignidade.

Esse matrimônio não existiu apenas para servir à própria En-


carnação, mas também a seu principal objetivo, a Redenção e a apli-
cação de seus frutos, uma vez que ajuda a fortalecer e nutrir nossa
fé, encoraja e estimula um modo de vida verdadeiramente cristão e,
principalmente, destaca-se como o modelo mais bonito e mais no-
bre do casamento e da família cristãos. Por tudo isso, temos para
com São José, o casto esposo da Santíssima Virgem, uma dívida de
gratidão que perde apenas para a que devemos ao próprio Cristo,
o Filho de Deus, e a sua imaculada Mãe. E, por tudo isso, podemos
adivinhar, de alguma forma, a imensa dignidade, a grandeza de São
José. Mas disso, falaremos mais adiante.

85
6. Os bona matrimonii1

Nos dois capítulos precedentes, nós apresentamos e respondemos


duas perguntas, ambas indispensáveis para um entendimento cor-
reto desse matrimônio de Maria, a Virgem imaculada, e José, seu
casto esposo. No capítulo 4, vimos que a virgindade de Maria e José
não era impedimento para um matrimônio real e válido entre eles.
No último capítulo, examinamos mais de perto as razões ou o pro-
pósito peculiar desse matrimônio e, arrisco acreditar, nos convence-
mos de que essa santa união foi preparada pela sábia providência de
Deus precisamente em vista da Encarnação e do papel que esse ma-
trimônio teria em sua adequada execução. Isso parece bastar como
uma explicação para esse matrimônio e como evidência suficiente
para mostrar que São José era, no sentido próprio e completo da
palavra, o verdadeiro esposo da Virgem Mãe de Deus. Assim, ele já
aparece na atmosfera de sua elevada dignidade sobrenatural, mere-
cendo uma veneração de nossa parte, como nenhuma outra criatura
reivindica ou pode reivindicar, exceto apenas a augusta Rainha do
céu. No entanto, para completar o quadro e aprofundar nossa com-
preensão do assunto, acrescentaremos outra consideração ao que já
dissemos.1

1. N. R.: Expressão latina que significa os “princípios/objetivos/fins


do matrimônio”.
A Paternidade de São José

Essa consideração também servirá como uma introdução


aos capítulos seguintes, nos quais explicaremos e discutiremos com
mais profundidade a paternidade de São José. Esse privilégio único,
a paternidade de São José sobre o menino Jesus, forma, por assim
dizer, o ponto central de nosso tema.

No presente capítulo, o que chamará nossa atenção é, es-


pecialmente, uma declaração de Santo Agostinho encontrada em
vários de seus escritos. Diz respeito ao casamento em geral, mas
particularmente ao matrimônio de Maria e José.

Assim ele escreve:

“Todos os bonum nuptiorum são alcançados no matrimô-


nio dos pais de Cristo: descendência, fidelidade e sacramento.
Houve uma descendência, como sabemos, o próprio Senhor
Jesus; fidelidade, porque não houve adultério; sacramento,
porque, no homem decaído, isso [a relação carnal] não poderia
existir sem o resultado do pecado, a repugnante concupiscên-
cia carnal; e Aquele que deveria ser sem pecado, desejou ser
concebido sem essa concupiscência, para ser concebido não
na carne pecaminosa, mas à semelhança da carne pecadora;
para mostrar também, pelo mesmo sinal, que toda carne gera-
da pela relação conjugal é pecadora, logo, o único que não foi
gerado assim não poderia ter uma carne pecadora”2.

Este dito de Santo Agostinho sobre os três bona matrimonii tor-


nou-se um axioma teológico. Encontramo-lo em Santo Tomás3 e, de-
pois, em muitos outros teólogos. Com algumas mudanças verbais,
até o Concílio de Florença adotou-o como seu. “O primeiro bonum
matrimonii é a descendência, a ser gerada e educada para o serviço
de Deus; o segundo, a fidelidade, que cada parte deve observar em
relação à outra; o terceiro, a indissolubilidade do matrimônio”4.

2. De nupt. et concup., livro l, cap. 11, nº 3.


3. Suma teol., IIIa, q. 29, a. 2; na 4ª, d. 30, q. 2, a. 2.
4. Decr. pro Armenis (Denz., nº 702).

88
Padre Joseph Mueller S. J.

Qual é o significado dessa declaração e como é verificada no


matrimônio virginal de Maria e José?

1. A bênção que é aqui chamada sacramento não deve ser en-


tendida como graça sacramental; o casamento de Maria e José não
era um sacramento do Novo Testamento, pois este ainda não existia.
Santo Agostinho, por uma figura de linguagem (metonímia), chama
de sacramento o que, no Novo Testamento, é um efeito, principal,
do sacramento do matrimônio, a saber, sua indissolubilidade. É evi-
dente que a indissolubilidade, esse vínculo indestrutível, é concreti-
zada perfeitamente no casamento de Maria e José. De fato, por uma
dispensação especial da Providência divina, esse matrimônio teve
que servir a um propósito importante ligado à encarnação do Filho
de Deus, e as duas partes eram as mais sagradas entre os homens:
José é enfaticamente chamado pelas Escrituras “um homem justo” e
Maria, “cheia de graça” e “bendita entre as mulheres”.

Não é possível, portanto, que eles sequer tenham pensado


brevemente em romper esse vínculo, uma vez que estavam certos
de que ele havia sido decretado e forjado pelo próprio Deus. A dú-
vida que, com a permissão de Deus, constrangeu São José por um
momento, foi rapidamente aliviada pelo anjo e serviu apenas para
tornar esse vínculo duplamente seguro. Também ajudou a confir-
mar nossa crença tanto no caráter virginal desse matrimônio quanto
no nascimento virginal do Salvador, assim como as dúvidas do des-
crente Tomé estavam, de acordo com o plano de Deus, destinadas a
fortalecer a fé dos outros apóstolos e dos fiéis desde então.

2. O segundo bonum, a fidelidade, nada mais é do que a fide-


lidade conjugal mútua e o amor dedicado e desinteressado pelo ou-
tro, sem diminuição, até a morte. Isso também estava perfeitamente
presente neste matrimônio sagrado. Não podemos esperar plena-
mente conceber e abranger em nossos pensamentos quão verdadei-
ro, profundo, forte e abnegado era esse amor sublime e casto dessas
duas santas pessoas que se pertenciam tão plena e exclusivamente, a
fim de que o grande desígnio de Deus pudesse ser realizado. Nada

89
A Paternidade de São José

poderia enfraquecer esse amor, pois era forte como a morte. E assim
sustentados por esse amor até que a morte (de São José) os separou,
eles enfrentaram juntos, com serena coragem e fortaleza, dificulda-
des e tristezas que, na sábia providência de Deus, deveriam compar-
tilhar: a difícil jornada para Belém, a dureza de coração de seu povo,
a fuga para o Egito e a amargura do exílio etc. Mas, acima de tudo,
a fidelidade conjugal no caso de Maria e José é provada mais clara-
mente pelo fato de manterem sem mancha em sua impecabilidade
a pureza virginal que haviam prometido um ao outro. Conhecendo
sua vocação sublime à qual Deus os chamara, eles não podiam pen-
sar em agir de outra maneira. O matrimônio de Maria e José pode,
portanto, reivindicar as duas bênçãos da indissolubilidade e fideli-
dade perfeitas como nenhum outro casamento jamais poderia.

3. Mas o terceiro bonum, a descendência, também é confirma-


do como uma bênção desse casamento? O menino Jesus, o Deus feito
homem, pode ser considerado como fruto do casamento?

Para responder a essa pergunta não exatamente fácil, vamos


consultar novamente Santo Agostinho, que apresentará, pelo menos,
a abordagem correta para sua solução. Ele destacou repetidamente
que o prazer sensual, naturalmente conectado à função sexual e sus-
cetível de sair do controle da razão, não pode ser considerado essen-
cial para o casamento, muito menos que a relação conjugal. Quanto
mais completamente a concupiscência carnal é excluída, mais o
vínculo do amor espiritual predomina; quanto mais o casamento se
aproxima daquele elevado estado de vida, a virgindade, tão mais
perfeito e nobre se torna; e se fosse possível obter seu fim primário
sem essa união carnal, seria o casamento perfeito, ideal. Esse ideal
é realizado no matrimônio de Maria e José. Mas apresentemos uma
ou duas passagens de Santo Agostinho para termos acesso a suas
próprias palavras:

“Portanto, se nossos pais tomassem esposas e tives-


sem relações conjugais com elas por nenhum outro motivo,
a não ser gerar filhos, teria sido uma grande alegria para eles

90
Padre Joseph Mueller S. J.

se pudessem ter filhos sem esse ato carnal; pois, a fim de ob-
ter filhos, eles não foram levados a isso pela devassidão, mas
foram induzidos por um senso de dever. José, então, não era
pai porque, sem concupiscência carnal, obteve um filho? Deus
proibiu que a castidade cristã pensasse isso, se nem os judeus
o fizeram”5.

Em outra passagem do mesmo sermão, Agostinho diz:

“Se José tivesse sido excluído da genealogia de nosso


Senhor, ele poderia ter protestado: ‘Por que me excluís? Por
que essa genealogia, ascendente e descendente, não partiu de
mim?’. Talvez lhe fosse dito: ‘Porque não o geraste por meio
do ato carnal’. Mas ele responderia: ‘E ela se tornou mãe d’Ele
por um ato carnal?’. O que o Espírito Santo operou, Ele o fez
nos dois. ‘José era um homem justo’, afirma o Escritor Sagra-
do. Portanto, marido e mulher eram justos. E o Espírito Santo,
apoiado na justiça de ambos, deu o Filho aos dois; mas naque-
la relação que deveria gerar o Filho, Ele atuou para que o Filho
também nascesse para o esposo. Portanto, o anjo disse a ambos
que deveriam dar o nome à criança, para que a autoridade pa-
rental dos dois encontrasse reconhecimento”6.

Passagens semelhantes são encontradas em outros lugares


nas obras de Santo Agostinho.

Das passagens citadas, pelo menos uma coisa é clara: na visão


de Santo Agostinho, o divino menino Jesus é fruto do casamento de
Maria e José, não no sentido natural, é claro; mas o que, nesse aspec-
to, faltava a esse matrimônio, foi suprido de maneira sobrenatural
pela operação do Espírito Santo. E para receber essa operação sobre-
natural do Espírito Santo, tanto Maria como José, esposa e esposo,
haviam se colocado devidamente dispostos por sua santidade.

5. Sermão 51.
6. Ibid.

91
A Paternidade de São José

Escutemos, agora, o que Santo Tomás diz a esse respeito:

“A prole é chamada de bonum matrimonii não apenas na


medida em que é gerada pelo casamento, mas também como
concebida e criada no matrimônio. E dessa maneira essa prole
(o Senhor Jesus) era fruto desse casamento, não da primeira
forma. No entanto, um filho nascido de adultério, ou um filho
adotivo, criado durante o casamento, não é um bonum matri-
monii porque o casamento não é, por sua natureza, ordenado
para a criação de tais filhos; ao passo de que o matrimônio de
Maria e José foi especialmente ordenado para o fim de que
nele a prole fosse recebida e criada”7.

Essas palavras de Santo Tomás indicam claramente que Jesus


é a descendência desse matrimônio. Billot8, seguidor da abordagem
de Santo Tomás para esse assunto, conclui sua explicação com a ob-
servação pertinente:

“Assim, este matrimônio não tem par entre todos os ou-


tros. Pois o casamento, em sua primeira instituição, prenuncia-
va, por assim dizer, o futuro mistério da Palavra de Deus en-
carnada; os casamentos no Novo Testamento o imitam como
uma imagem imita seu modelo, mas o casamento dos pais de
Cristo realmente recebeu a própria Palavra encarnada quan-
do desceu do céu, nutriu-a fielmente e a introduziu ao mundo
dignamente”9.

Finalmente, ouçamos Suárez, cuja competente abordagem


teológica sobre São José foi altamente elogiada, como vimos, por
Scheeben:

7. In IVa, d. 30, q. 2, a. 2 e 4.
8. N. R.: Louis Billot (1846-1931), sacerdote jesuíta, teólogo, professor e
devotado tomista francês. Conhecido por ter sido o único a renunciar
ao status cardinalício no século XX.
9. De Sacr., II, tese 35.

92
Padre Joseph Mueller S. J.

“Por seu casamento com a Virgem Maria, José tornou-se,


de certo modo, senhor do corpo dela, pois, como diz São Pau-
lo, a esposa não tem autoridade sobre o corpo, mas o marido.
Assim, ocorreu que o fruto do corpo virginal pertencia a José.
Como diz a antiga lei romana: ‘O que cresce ou for construído
na terra de outra pessoa pertence ao dono da terra’. Assim,
se milagrosamente uma nascente surgir no jardim de alguém,
ela pertencerá àquele que é dono do jardim. Quando, portan-
to, a terra virgem concebeu pela bênção do Senhor, o fruto da
bênção pertenceu a José, de quem era a terra, o que estava pre-
figurado nas bênçãos do patriarca José10. Ademais, pelo víncu-
lo matrimonial, os dois, marido e mulher, tornam-se um, por
assim dizer; pois, enquanto por meio da união carnal eles se
tornam uma carne, pelo próprio vínculo matrimonial, eles
se tornam um coração e uma alma. Por isso é que eles têm do-
mínio comum do que possuem, e, consequentemente, aquilo
que pertence a um pertence também ao outro”11.

Se agora resumirmos e combinarmos essas três explicações,


que são praticamente idênticas, de qualquer forma, e incluirmos al-
gumas observações para completar nossa apresentação, será possí-
vel formar uma ideia bastante adequada de como o divino menino
Jesus era, de fato, o verdadeiro, embora milagroso, fruto do matri-
mônio de Maria e José.

Como vimos em nosso último capítulo, o matrimônio virginal


de Maria e José havia sido ordenado por Deus em vista da Encarna-
ção, para que pudesse ocorrer em condições adequadas. Para esse
propósito, tinha que ser um casamento de verdade. Um casamen-
to aparente, um pseudocasamento, nunca poderia funcionar; como
uma mentira, teria sido absolutamente indigno de Deus e, portanto,
impossível. O Filho eterno de Deus, então, teve que ser concebido
por uma virgem desposada; Ele teve que nascer em seu matrimônio.
Isso foi ainda mais necessário porque:

10. Dt 33, 13-16.


11. Dogmatik, III, 489.

93
A Paternidade de São José

“Deus, desde o início, quando criou o primeiro homem e


mulher, condicionou a bênção da prole ao casamento e santi-
ficou o matrimônio, dali em diante, como o manancial de toda
a vida humana futura, para que Ele não se afastasse dessa nor-
ma moral, que Ele próprio estabelecera, mesmo quando uma
concepção virginal devesse ocorrer, na qual a cooperação físi-
ca de um homem estivesse absolutamente fora de questão”12.

Dirijamos nossa atenção, por um momento, a esse fenômeno


sobrenatural, a concepção virginal. Na ordem natural para a origem
de uma nova vida humana, são necessários três fatores. O fator pri-
mário é a primeira causa de todo ser, Deus. Ele coopera aqui, não
apenas como sempre faz em preservar todos os seres em sua exis-
tência e cooperar com toda a atividade de Suas criaturas, mas neste
caso, da produção de uma nova vida humana, Ele atua como o Cria-
dor da nova alma espiritual. Somente Deus Todo-Poderoso pode
trazer à existência uma alma espiritual e infundi-la no feto organi-
zado, preparado pelo único princípio orgânico, os pais. O homem
e a mulher, portanto, são o fator secundário por meio de sua união
sexual, na qual a célula germinativa feminina é fertilizada pela célu-
la masculina, tornando-se um feto humano que, pela alma criada e
infundida por Deus, se torna um ser humano vivo. Assim, na ordem
natural, a vida humana é propagada, novos seres humanos passam
a existir, a atividade natural dos pais sendo meramente preparatória
ou propícia à ação criativa de Deus.

No caso de que estamos falando, a miraculosa concepção do


Filho divino pela Virgem Maria, evidentemente o fator secundário,
o humano, não poderia funcionar da maneira natural usual; no en-
tanto, não foi totalmente dispensado. O fator feminino no devido
tempo produziu a célula germinativa feminina; mas, em vez de ser
fecundado de maneira natural pela ação do homem, ela, com um ato
sobrenatural de perfeita obediência, preparou-a para a ação divina

12. Grimm. History of the Childhood of Jesus. 2 ed. p. 192. N. R.: Sem edição
em Português.

94
Padre Joseph Mueller S. J.

do Espírito Santo, por meio da qual foi fertilizada, despertada por


uma alma humana e, ao mesmo tempo, hipostaticamente unida com
a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade. Ela fez isso quando, a
convite do próprio Espírito Santo, e iluminada e apoiada por Sua
graça, com humilde e completa submissão à vontade de Deus, pro-
feriu aquelas tremendas palavras que deveriam renovar o mundo e
iniciar uma nova ordem sobrenatural: “Faça-se em mim segundo a
tua palavra”.

Mas, em tudo isso, houve alguma cooperação da parte do ou-


tro fator criado, São José. Em alguma coisa ele contribuiu para que
sua esposa virgem pudesse se tornar a Mãe de Deus? Certamente.
Sua contribuição era sua própria pureza, sua união virginal com a
Virgem mais pura, aquela união resplandecente em sua santidade
sobrenatural, pela qual ele, juntamente com sua esposa, tornaria
possível que o eterno Filho de Deus pudesse ser concebido e nascer
por uma virgem e, assim, vir a este mundo de uma forma que não
fosse indigna de Sua própria inefável pureza e santidade. Além dis-
so, José fez o que o mensageiro celestial lhe havia ordenado e tomou
consigo sua esposa, a Virgem tão maravilhosamente abençoada por
Deus, e, daí em diante, passou a se dedicar a guardá-la e servi-la e
ao bendito fruto de seu ventre.

Essa cooperação de São José tinha apenas caráter dispositi-


vo, mas, em valor, não era apenas igual, mas incomensuravelmente
superior a um mero ato natural de fertilização, e era o único tipo de
cooperação adequado o suficiente quando o mistério da Encarnação
estava para ser realizado. Finalmente, os dois argumentos de Suárez
citados há pouco devem ser lembrados. Primeiro: de acordo com
as palavras de São Paulo e um princípio de lei geralmente aceito,
o marido tem direito sobre o corpo da esposa em relação às fun-
ções sexuais pelas quais se origina a nova vida humana; portanto,
a descendência legal pertence não somente à esposa, mas também
ao marido, mesmo que não tenha havido cooperação física da parte
dele. Segundo: eles são uma só carne através do ato conjugal, mas é
por meio do próprio vínculo matrimonial que se tornam um coração

95
A Paternidade de São José

e uma alma; por essa razão, o que é concebido e nascido da esposa


nasce não apenas da esposa, mas também do marido: é fruto do ma-
trimônio. Consequentemente, também Jesus nasceu do matrimônio
virginal de José e Maria. Ele pode e deve ser chamado o fruto desse
casamento.

“Uma virgem concebe o Espírito Santo, mas uma virgem


desposada por José: para ele, portanto, no matrimônio que ha-
via contraído com ele, ela gerou o Filho pelo qual o Senhor
Deus tinha santificado seu ventre. Se toda criança, embora
nascida de maneira comum, por um processo fisiológico natu-
ral, ainda assim permanece como um presente do céu, aquele
que concede essa ‘bênção’ pode concedê-la de maneira excep-
cional em um matrimônio sem exigir a cooperação física do
casal favorecido? Em ambos os casos, marido e mulher se re-
gozijam com a bênção que Deus lhes concedeu... Essa verdade,
o direito incontestável do Céu de fazer com que um israelita
se torne pai sem seu poder gerativo funcionando, mas com
todas as consequências resultantes do relacionamento paren-
tal – uma verdade cuja importância é mais bem revelada no
nascimento do Messias – já havia se tornado familiar há muito
tempo à mente israelita, e isso propositalmente e de maneira
impressionante. Foi o casamento levirato que também serviu
a esse propósito, e precisamente por esse motivo, ele teve um
papel tão importante na continuação das famílias israelitas e
até na genealogia do próprio Messias. É verdade que a união
de Maria e José não era um matrimônio levirato, mas foi espe-
cialmente por causa das razões que motivaram esse casamen-
to, que a ideia do levirato foi implantada tão profundamente
no de Israel. O mesmo Deus da aliança deles, que tem poder
para dar um filho a um israelita falecido, que não pôde de for-
ma alguma cooperar, dá um filho ao ‘esposo’ de uma Virgem,
que ainda vive, mas também nunca tocou em sua esposa virgi-
nal. Um israelita poderia perguntar então: Seria a criança que
o Céu concedeu à esposa de José durante a vida dele menos
filho verdadeiro de José do que se ela tivesse sido deixada viú-
va e sem filhos, tendo que dar-lhe um filho por meio de um

96
Padre Joseph Mueller S. J.

matrimônio levirato após sua morte? Em nenhum dos casos


José gerou o filho; no entanto, em ambos, é o poder soberano
de Deus que concede a bênção da paternidade aos israelitas de
uma forma que está além dos poderes naturais... O essencial,
em ambos os casos, é a liberdade soberana de ação de Deus.
Portanto, era lógico que o anjo dissesse a José que ele deveria
usar o direito envolvido na paternidade: dar à criança o nome,
esse nome expressivo da misteriosa vocação da criança”13.

Concluiremos com uma passagem de Scheeben, que concor-


da plenamente conosco ao explicar o fruto do casamento virginal e,
portanto, da paternidade, de São José. Suas palavras, em linguagem
mais escolástica que as de Grimm, são as seguintes:

“É evidente que a conexão entre o matrimônio de Maria


com José e a maternidade virginal dela deve ser pensada não
como algo meramente extrínseco ou acidental, mas como uma
relação intrínseca e orgânica. Como resultado, esse matrimô-
nio não apenas supera todos os outros em dignidade e santi-
dade, mas, precisamente como casamento, tem uma perfeição
própria, especialmente no que diz respeito às duas ‘bênçãos’
importantes de um matrimônio: descendência e ‘sacramento’.
Em relação à primeira, esse casamento tem isso em comum
com todos os outros casamentos, ter sido destinado por Deus
como seu autor e, portanto, de maneira intrínseca e essencial,
para possibilitar o nascimento da prole. Mas, diferentemente
de qualquer outro casamento virginal, foi privilegiado, sem
prejuízo de sua virgindade, por compartilhar com um casa-
mento consumado a bênção da fecundidade, porque nela os
cônjuges eram realmente abençoados com uma prole a ser
criada por eles; e embora essa prole não tenha sido gerada por
eles por meio da relação carnal, ela poderia pertencer, na inten-
ção de seu progenitor divino, a ambos os pais humanos como
se fosse deles por sua união espiritual, não menos do que se
tivesse sido fruto de um união carnal. Além disso, esse matri-

13. Ibid., p. 122, e em Unity of the Gospels, p. 244.

97
A Paternidade de São José

mônio superou todos os casamentos não virgens nisto, que seu


fruto era especial e absolutamente santo e que, quando ambos
os pais, a fim de obter esse fruto, se entregaram em conjun-
to como esposos virginais à vontade de Deus, sua cooperação
foi de uma ordem muito superior à envolvida na união carnal
para o nascimento natural da prole. A indissolubilidade é uma
característica que diferencia o vínculo matrimonial e o coloca
acima de qualquer outro vínculo que une um ser humano a
outro. Essa bênção consiste no fato de que, pela vontade de
Deus, uma pessoa está tão ligada e vinculada à outra que, as-
sim, forma um todo indissolúvel; e cada uma delas, em união
com a outra pessoa, é como um órgão pertencente a Deus, de
que Ele toma posse para prestar um serviço em conjunto com o
outro. Esse vínculo se torna tão mais perfeito quanto mais san-
to for o serviço a Deus para cujo desempenho as duas pessoas
estão unidas (e mais perfeito se torna o domínio de Deus sobre
eles, pela virtude e pelo propósito com que uma pessoa toma
a outra para si), mais perfeitamente elas se tornam um órgão
pertencente a Deus e, como resultado, podem ser atrair mu-
tuamente a Deus por sua união. Mas em ambos os aspectos,
a união de Maria e José excede toda comparação, não apenas
com todas as uniões pré-cristãs ou não cristãs, mas também
com todos os matrimônios cristãos, da mesma forma que seu
propósito, que Cristo nascesse e fosse criado nele, ultrapassa
o propósito dos outros casamentos, de geração e procriação
de meros seres humanos destinados a se tornarem membros
de Cristo (e da mesma forma como Maria é, em um sentido
elevado, mais um órgão de Deus e membro de Cristo do que
as outras pessoas se tornarão órgãos e membros d’Ele pelo
batismo)”14.

As explicações apresentadas neste capítulo devem bastar


para mostrar como o menino Jesus é o furto do matrimônio virginal
de Maria e José. Elas foram planejadas, também, como foi dito, para

14. Dogmatik, III, nº 1579-1581.

98
Padre Joseph Mueller S. J.

preparar o caminho para a explicação da paternidade de São José


sobre o menino Jesus, que é o tema central deste livro. Mas como
essa paternidade de São José é baseada inteiramente em seu matri-
mônio virginal com a Santíssima Virgem Maria, a existência desse
casamento tinha que ser demonstrada primeiro, antes de podermos
explicar e provar a reivindicação de São José pelo glorioso título:
“pai de Jesus”.

99
7. A paternidade
de São José

Para um completo entendimento da discussão em que agora en-


traremos, é importante ter em mente as conclusões a que chegamos
até agora, porque elas são pressupostas como a base dos capítu-
los seguintes. Nós vimos até então, e nos convencemos, acredito,
que Maria e José foram unidos em um real e válido matrimônio,
sem qualquer prejuízo de sua virgindade, que ambos tinham con-
sagrado a Deus; ademais, que esse virginal e santo matrimônio foi
preparado pela onisciente providência de Deus completamente em
vista da encarnação de Seu Filho eterno, para que pudesse ocorrer
de forma digna e respeitável, para cujo propósito esse matrimô-
nio serviu perfeitamente. Por fim, em nosso último capítulo, nós
mostramos como os três bono que, desde Santo Agostinho, os teó-
logos geralmente tem definido como propriedades características
do casamento (descendência, fidelidade e indissolubilidade), se
cumpriram de modo eminente e, claro, sobrenatural: até a bênção
da posteridade esteve presente, já que o menino Jesus, que é Deus
e homem, foi o fruto desse matrimônio. Assim, nós preparamos o
terreno para a discussão seguinte da paternidade de São José sobre
o divino menino Jesus.

A primeira questão, agora, é: o que é, realmente, a paternida-


de de São José ou que tipo de paternidade ela é?
A Paternidade de São José

1. São José é, normalmente, chamado de pai nutrício de Jesus, um


nome certamente apropriado, de alguma forma, e bem merecido. Não
pode haver qualquer dúvida de que ele, fielmente, fez o seu máximo
para atender a todos os desejos de Jesus; ele O sustentou com comida,
vestuário e moradia. Tanto quanto estava em seu poder, José O prote-
geu de dano corporal e desconforto. Ele O resgatou das conspirações
do cruel Herodes. Ele O instruiu no ofício que ele mesmo exercia e, daí
por diante. Não podemos imaginar nenhum tipo de serviço que José
não prestaria a Jesus, se necessário e possível, com amor e solicitude
paternais. Mas esse cuidado paternal que ele concedeu ao menino Jesus
não é suficiente para justificar a relação jurídica existente entre Jesus e
José, bem como não explica como o Menino era, realmente, o fruto do
matrimônio virginal de Maria e José; ele não constitui um elemento es-
sencial dessa paternidade: é apenas um resultado ou uma função dele.

2. Alguns teólogos chamariam São José de pai adotivo do Fi-


lho divino, mas essa designação não é apenas insuficiente e inade-
quada como positivamente inapropriada, porque se baseia em uma
incompreensão do termo. Por adoção, da parte de um pai, ou de
uma mãe, se ela mesma pode agir legalmente, entendemos tomar
ou receber como filho uma criança estranha ao adotante, isto é, não
pertencente á família por nascimento. Porém, como vimos, o menino
Jesus não era, de modo algum, um estranho para São José: como des-
cendência sobrenatural do matrimônio de Maria e José, Ele já per-
tencia à família. Além disso, o senso comum ordinário nota o quão
incongruente é a ideia de adoção de uma pessoa bem-nascida por
uma de baixa classe e, ainda mais, da adoção de uma pessoa divina
por uma pessoa humana.

Em apoio ao parecer aqui rejeitado, não será necessário ape-


lar para a autoridade de Suárez e de Santo Agostinho, citado por ele,
pois esse apelo revela uma compreensão incorreta de suas palavras.
Suárez escreve o seguinte:

“Agostinho acrescenta outra razão para esse nome (‘pai’)


nestas palavras: ‘O fato de ele não haver gerado [o Menino]

102
Padre Joseph Mueller S. J.

não é motivo para negar a São José o direito de ser chamado


pai de Cristo, pois ele poderia muito bem ser pai também de
alguém que não tivesse sido gerado por sua esposa, mas ado-
tado’. Pois por adoção, mesmo alguém que é um completo es-
tranho se torna um filho e aquele que o adota é chamado, e de
certa forma se torna, um pai. E José, quando sem sua interven-
ção sua esposa gerou um filho por meio do poder do Espírito
Santo, aceitou-O como seu próprio amado filho recebido de
Deus, e de certo modo adotou-O, de modo que Jesus se tor-
nou seu filho e, de maneira mais nobre e perfeita que qualquer
outra. A menos que prefiramos dizer que Cristo escolheu José
para Seu pai e, por assim dizer, fez a Si mesmo seu filho”1.

Evidentemente, nem Santo Agostinho nem Suárez falam,


aqui, de adoção no sentido próprio da palavra; eles consideram que
o divino Filho não era, de modo algum, um estranho para José, mas
eles dizem aqui, por insinuação, o que já falaram em outra parte cla-
ramente: que Ele foi dado por Deus a Maria e a José como o fruto de
seu matrimônio virginal.

3. Alguns escritores mais modernos nomeiam São José o pai


legal de Jesus. Mas mesmo esse nome, comum entre os judeus, com
seu significado específico no costume do Antigo Testamento, falha
completamente em fazer justiça à relação peculiar de São José quan-
to ao menino Jesus. Entre os judeus, um homem já falecido sem fi-
lhos era designado pai legal em relação aos filhos que um irmão
sobrevivente gerasse para ele por meio de sua esposa. Mas em nosso
caso, entre José e Jesus claramente não existe tal relação: Maria não
era uma viúva quando Jesus nasceu e ela não teve outro esposo após
a morte de São José , então, faltam todos os aspectos necessários
para a paternidade legal. Existe, portanto, um tipo de analogia en-
tre São José e um pai legal: como um pai legal tem um filho gerado
por seu irmão por meio da ex-viúva, assim para José, por meio da
ação sobrenatural do Espírito Santo, o menino Jesus foi concebido e

1. Vol. XIX, d. 8, s. 1, nº 4.

103
A Paternidade de São José

nascido de sua virginal esposa. Grimm, que dá grande importância


a essa analogia e a usa habilmente em sua harmonização da história
da revelação, admite, no entanto, que isso não constitui São José o
pai legal de Cristo2.

4. Por fim, temos a famosa passagem na Sagrada Escritura


em que São Lucas (3, 23) fala de “Jesus tido por filho de José”. Daí,
São José é frequentemente chamado o pai putativo de Jesus. Mas
essa designação não é um nome dado a José pelo escritor sagrado,
cuja intenção é meramente dizer que os judeus daquele tempo pen-
savam que José era o pai de Jesus, mas erroneamente, visto que eles
acreditavam que ele era o pai natural. Logo, o uso dessa expressão
para definir a paternidade tão distintamente atribuída a São José em
outras partes da Sagrada Escritura é injustificável, se não absurda, e
contrária ao que a Escritura indica, como nós mostraremos por seus
textos posteriormente.

Dito tudo isso, a questão permanece aberta, sobre em qual


sentido a Sagrada Escritura chama São José o pai de Jesus ou em que
a paternidade de José realmente consiste.

5. Vejamos agora se a própria Escritura nos oferece, ao me-


nos, algumas pistas para resolver o problema. Aqui, imediatamente,
nossa atenção é detida pelo impressionante fato de que, no Novo
Testamento, São José é nomeado simplesmente “o pai de Jesus” sem
qualquer outra qualificação, e não apenas pelos judeus, que, erronea-
mente, pensavam ser ele o pai natural de Jesus, mas também pelos
autores inspirados e, o que é ainda mais significativo, pela própria
Maria, a Mãe de Deus, a Virgem prudentíssima, a Sede da sabedoria,
que, certamente, possuía total ciência de tudo o que se relacionava
à relação entre si mesma e José, e entre José e o bendito fruto de seu
ventre. O evangelista chama José o pai, e Maria e José os pais de
Jesus: “Seu pai e sua mãe estavam admirados das coisas que dele se

2. Unity of the Gospels, p. 244.

104
Padre Joseph Mueller S. J.

diziam” (Lc 2, 33); “Seus pais iam todos os anos a Jerusalém para a
festa da Páscoa” (Lc 2, 41). E a própria Mãe de Deus disse ao Filho,
quando O reencontrou no templo: “Meu filho, que nos fizeste? Eis
que teu pai e eu andávamos a tua procura, cheios de aflição” (Lc 2,
49). Assim, tanto o autor inspirado quanto a Virgem prudentíssima
chamam José, simplesmente, de “pai de Jesus”. Portanto, José deve
ser, tanto quanto possível, de uma forma elevada, além de verda-
deira e própria, o pai de Jesus. E Suárez diz: “Os nomes dados de-
liberadamente a uma coisa normalmente revelam sua natureza ou
as qualidades em que são baseadas. Logo, quando o Pai eterno quis
compartilhar Seu próprio nome com esse homem, Ele indicou com
bastante clareza a elevada dignidade a que o elevou quando, por
esse nome, confiou a ele tanto o ofício e, em um sentido mais amplo,
a responsabilidade de um pai”3.

Podemos concluir, portanto, que Deus, em Sua sábia provi-


dência, tinha destinado José a se tornar um pai para Jesus em todos
os aspectos, o quanto fosse possível, com a única exceção da concep-
ção natural. Mas como José poderia ser investido com essa paterni-
dade? A única explicação possível que nos resta, porém suficiente,
deve ser encontrada no fato de que o divino Filho foi dado por Deus
tanto a Maria quanto a José como fruto de seu matrimônio virginal.
Na injustificada designação de São José como o pai, e de ambos, Ma-
ria e José, como os pais de Jesus, parece-nos que há uma inequívoca
confirmação do que nos esforçamos por apresentar no último capí-
tulo: que o menino Jesus era, verdadeiramente, o fruto do matrimô-
nio virginal deles. Por isso, São José é o pai de Jesus em virtude de
sua união virginal com a Virgem puríssima: nesse casamento Jesus
foi concebido e nasceu, foi dado por Deus como fruto desse matri-
mônio, e não a Maria, somente, mas também a José, ambos coope-
rando, sob a ação de Deus, dispositivamente para a produção desse
fruto, cooperação pertencente à ordem sobrenatural, isto é, por meio
de sua virgindade, que eles tinham consagrado a Deus; por meio de

3. Vol. XIX, d. 8, a. 1, nº 3.

105
A Paternidade de São José

seu matrimônio virginal, em que eles, mutuamente, confiaram sua


virgindade um ao outro para ser preservada; por meio de sua entre-
ga incondicional à santa vontade de Deus. E como, assim, a Virgem
Maria, cheia de graça, é vista como a verdadeira mãe do Verbo en-
carnado, São José aparece de forma análoga, mas não idêntica, como
Seu pai.

À luz dessa explicação, nós proporcionamos um entendi-


mento profundo de outras passagens da Sagrada Escritura ligadas
à relação entre Maria e José ou entre ela e o bendito fruto de seu
ventre, especialmente a passagem de Mt 1, 20 ss. Quando São José
foi profundamente testado pela descoberta de que sua esposa esta-
va grávida, desconhecendo que o Filho de Deus tinha se encarnado
no ventre virginal dela, um anjo do Senhor apareceu-lhe em sonho,
dizendo: “José, filho de Davi, não temas receber Maria por esposa,
pois o que nela foi concebido vem do Espírito Santo. Ela dará à luz
um filho, a quem porás o nome de Jesus, porque Ele salvará Seu
povo de seus pecados”4.

Por essas palavras, São José recebeu o entendimento de que


a Virgem Mãe de Deus não deixara de ser sua esposa em conse-
quência do fato maravilhoso que havia acontecido, mas que ela e seu
divino Filho tinha sido, pelo contrário, de uma forma nova, dados e
confiados definitivamente a ele como marido e pai. É por isso que o
anjo disse: “Ela dará à luz um filho, a quem porás o nome de Jesus”.
Conforme essas palavras do anjo, a união marital de Maria e José é
inseparavelmente conectada com a paternidade de José sobre o me-
nino Jesus. Anteriormente, o anjo Gabriel havia dito a Maria: “Não
temas, Maria, pois encontraste graça diante de Deus. Eis que conce-
berás e darás à luz um filho, e lhe porás o nome de Jesus”5. Desse
modo, a ordem dada a José é a mesma dada a Maria: dar o nome ao
Filho. Mas se esse é um direito e dever dos pais, tanto do pai como

4. Mt 1, 20-21.
5. Lc 1, 30-31.

106
Padre Joseph Mueller S. J.

da mãe, vemos que o próprio Deus, por meio de Seu anjo, fez sa-
ber que José era e permaneceria pai da Criança, que, com Sua mãe,
agora estava definitivamente confiado ao cuidado paternal de José.
E com essa paternidade, naturalmente, todos os direitos e deveres
correspondentes lhe foram conferidos. Isso não significa, entretanto,
que José primeiro se tornou o pai de Jesus somente por meio dessa
revelação e da ordem transmitida a ele pelo anjo, mas a paternidade
que já era sua por virtude da miraculosa concepção de sua virginal
esposa era, agora, revelada a ele e solenemente confirmada. Como
se vê, essa interpretação da paternidade conduz as várias passagens
pertinentes da Sagrada Escritura a um acordo harmonioso.

Acrescentemos, porém, mais uma prova. A genealogia de Cris-


to apresentada a nós nos Evangelhos é totalmente favorável a uma
paternidade real de São José. O propósito dessa lista genealógica,
especialmente em Mateus, era mostrar que Cristo veio à terra como
filho e herdeiro de Davi, como as profecias do Antigo Testamento
tinham prometido. A linhagem é traçada até “José, esposo de Maria,
da qual nasceu Jesus, que é chamado Cristo”. No entanto, para essa
prova ser conclusiva, era necessário que José, como o verdadeiro
esposo da Virgem Mãe, tivesse, em virtude de sua verdadeira pa-
ternidade, também os direitos de pai sobre o Filho de Maria, assim
como este, em virtude da verdadeira filiação, também tivesse todos
os direitos de filho em relação a José, como seu pai. Isso também é
mais bem enfatizado por Grimm:

“A fim de que o filho de Maria, embora sendo filho de


uma virgem, tivesse uma justa reivindicação à filiação do es-
poso de Maria, de modo que, consequentemente, ele, como
descendente de Davi, pudesse obter, como é óbvio, todos os tí-
tulos legais e reivindicações de herança que José possuía como
descendente de Davi, o modo pelo qual a Encarnação deveria
ocorrer havia sido parte do plano divino desde o início, e nós
encontramos no relato do Evangelho, precisamente por essa
razão, a Virgem desposada por José ‘da casa de Davi’. O Mes-
sias é o filho e herdeiro de Davi, de modo que ele tem o estrito

107
A Paternidade de São José

direito ao trono de seu pai e à soberania sobre Israel, sendo


assim, Ele irá estabelecer o trono de Davi, reinar como Rei em
Israel em subjugar seus inimigos. Essa é uma verdade que a
leitura dos profetas tinha incutido profundamente na mentali-
dade religiosa de Israel, e seu cumprimento é inaugurado pela
aparição do Anjo. Nós podemos mensurar a importância do
fato de que Gabriel, com sua mensagem, foi enviado a uma
virgem ‘desposada’, quando declaramos assim: Maria não se
tornará mãe por meio da ação do Espírito Santo cobrindo-a
com Sua sombra, sem o nascimento milagroso de seu filho,
tornando seu ‘esposo’ o pai da criança. Para perceber a lógica
estrita dessa conexão real, devemos ter em mente os conceitos
jurídicos que, segundo a lei mosaica, regiam a relação entre
pessoas comprometidas [desposadas] e casadas. Segundo es-
ses conceitos, não há diferença entre noiva e mulher casada no
que diz respeito à respectiva relação com noivo e marido”6.

Temos visto que nossa interpretação da paternidade de São


José baseada em seu matrimônio virginal com a Mãe de Deus se
harmoniza perfeitamente com os textos da Escritura que tratam do
assunto, e que esses textos, por sua vez, parecem oferecer um argu-
mento sólido em favor de nossa interpretação ou, pelo menos, uma
forte confirmação das outras provas que descrevemos neste capítulo.

6. Concluímos com alguns comentários sobre uma questão


ligada ao nosso assunto, porém em um aspecto mais formal: qual
nome é mais adequado a essa paternidade de São José, da forma
como a provamos e a interpretamos? Na primeira parte deste capí-
tulo, trouxemos algumas explicações e, de acordo com elas, vários
nomes sugeridos para essa paternidade, mas como eles se provaram
insatisfatórios, a questão do nome permanece aberta.

Até agora, mesmo os teólogos que, em geral, concordam com


nossa interpretação falharam em concordar em um nome. Pelo fato

6. History of the Childhood of Jesus, I, p. 122 ss.

108
Padre Joseph Mueller S. J.

de essa paternidade ser tão única e miraculosa, não é fácil, de fato,


encontrar um nome adequado. Cornélio a Lápide7 sugeriu pater ma-
trimonialis, isto é, “pai casado”, porque ele é o pai do menino Jesus
pelo fundamento jurídico de seu matrimônio com a Mãe de Jesus.
Mas esse título também não parece satisfatório o bastante, porque
todo pai que, de fato, gerou um filho em um casamento legal é um
pai “casado”. De fato, São José era o esposo legal da Virgem Mãe,
e o menino Jesus era a prole ou fruto de sua santa união, mas não
tinha sido gerado por José; logo, o sinal distintivo da paternidade de
São José não é indicado, nem mesmo insinuado, no nome “pai casa-
do”. O termo “pai casado e virginal” poderia, de fato, responder ao
propósito de uma descrição acurada dessa paternidade, mas é difícil
uma expressão receber aceitação geral. Resta a expressão singela:
Pater virgo ou pater virgineus, isto é, “pai virginal”. Contra esse títu-
lo, o padre Hormaeche, S.J.,8 apresentou sua objeção com o funda-
mento de que São José não era pai meramente por ser virgem. Mas
parece-nos que essa objeção não tem valor, pois também poderia ser
levantada contra chamar Maria “Virgem Mãe”. Ademais, São José
era e é pai de Jesus porque estava unido em matrimônio virginal
com a Mãe de Deus, e essa união tinha sua razão de ser no propósito
a que iria servir e realmente serviu: a encarnação do Filho de Deus;
e também porque o menino Jesus era, como foi explicado, a prole, o
fruto desse matrimônio. Além disso, o nome “pai virginal” contém,
implícita ou virtualmente, também a ideia de pai “casado”, pois sem
seu matrimônio virginal com a Mãe de Deus não haveria possibili-
dade de ele se tornar, verdadeiramente, o pai de Jesus, e como indi-
camos no capítulo anterior, essa união era um pré-requisito e uma
predisposição necessária, a causa dispositiva, para a encarnação do
Filho de Deus no ventre virginal de Maria, a Mãe de Deus. De fato,
nós adotamos também o nome “Virgem Mãe” para designar a Mãe

7. Em Mt 1, 16. N. R.: Cornélio a Lápide (1567-1637), sacerdote jesuíta,


teólogo, exegeta, professor universitário e escritor flamenco.
8. No periódico espanhol Estudios Ecclesiasticos, de 1927.

109
A Paternidade de São José

de Deus, sem mencionar seu casamento. Por que no caso de São José
o nome “pai virginal” seria inadmissível não conseguimos perceber.
De todos os nomes sugeridos, esse nos parece o mais apropriado.

Nossa interpretação da paternidade de São José, contudo,


pode parecer a alguns que chega muito perto de colocar São José em
par com a própria Virgem Maria, criando, assim, uma nova dificul-
dade. Por ora, esta breve afirmação basta: o corpo do divino Filho foi
formado somente da pura carne e sangue de Sua mãe, prerrogativa
dela que São José não compartilha de forma alguma, de modo que
sua diferença essencial já é evidente.

110
8. Os padres da igreja

Temos explicado a paternidade de São José sobre o menino Jesus


indicando que ele era pai fundado em sua união virginal com Maria,
a Virgem imaculada. Como esse matrimônio existiu apenas para o
papel que deveria cumprir relativo à encarnação do Filho eterno de
Deus, o Filho divino foi concebido por Maria nesse matrimônio e
nascido nele, e foi dado não apenas a Maria, mas também a José.
Assim, tanto Maria quanto José, por sua união virginal, pelo casto
amor espiritual de um pelo outro, por seu amor a Deus e sua incon-
dicional entrega à santa vontade d’Ele, cooperaram, como causas
dispositivas para a encarnação do Filho de Deus no ventre de Maria;
e como a Santíssima Virgem é, assim, a mãe do Verbo encarnado,
também José é, de um modo análogo, o pai de Jesus. Ademais, no
último capítulo, vimos que essa interpretação tem um fundamento
sólido na Escritura e, sozinha, explica as passagens pertinentes da
Escritura harmoniosamente. Neste capítulo, vamos considerar a po-
sição dos Padres da Igreja quanto a essa questão.

Um teólogo moderno, C. Mariani, que explica a paternidade


de São José da mesma forma que nós, e que publicou um valioso es-
tudo sobre esse assunto1, apresenta citações de vários Padres, como

1. De cultu S. Joseph amplificando.


A Paternidade de São José

[Santo] Efrém, [São] Jerônimo e [Santo] Agostinho, e então comen-


ta: “Isso é os Padres e doutores da Igreja dos séculos II, III, IV e V
pensavam sobre a paternidade de São José. Mas após aquela época,
a partir do fim do século V e durante os próximos dois séculos, his-
tórias apócrifas e lendárias representaram São José como um ancião,
como um viúvo, como pai nutrício, adotivo ou putativo. Nós deve-
mos, portanto, voltar à venerável antiguidade”.

Infelizmente, em um exame mais atento, o assunto não parece


tão favorável à nossa tese, como poderíamos imaginar. De qualquer
forma, não se pode pensar em uma doutrina unânime dos Padres
sobre essa questão, nem durante aqueles quatro séculos nem depois.
Além disso, duas de suas citações de [Santo] Efrém parecem dificil-
mente conclusivas. De fato, sobre a questão da paternidade de São
José, bem como sobre a questão de seu verdadeiro matrimônio com
Maria, a maioria dos Padres não teve êxito em elaborar uma teoria
clara. A razão para isso se deve em parte à grande influência que os
escritos apócrifos ainda tinham naquele período, e em outra parte
ao fato de que os Padres eram especialmente forçados a defender a
virgindade perpétua de Maria contra os hereges que abusaram do
nome de “pai” aplicado a José para sustentar seus ataques.

Ideias mais claras, porém, foram apresentadas por alguns dos


Padres, especialmente pelo grande [Santo] Agostinho, cujos escritos
sobre esse tema e sobre outros marcaram uma época e realmente
estabeleceram os fundamentos da teologia Josefina. De todo modo,
ainda que ele tenha penetrado o mais profundo interior da questão,
suas ideias não receberam a atenção merecida. Apenas muito lenta-
mente sua influência começou a se fazer sentir, mas após o Concílio
de Trento, um crescente número de teólogos as aceitou, principal-
mente após Suárez ter adotado os pontos principais e, com alguns
adendos, apresentou-as de um modo claro para o entendimento.
Outros teólogos aprofundaram a doutrina e os pronunciamentos de
Pio IX e Leão XIII ajudaram, pelo menos indiretamente, a fazê-la
mais bem conhecida e aceita.

112
Padre Joseph Mueller S. J.

1. Ouçamos, agora, o grande mestre, Santo Agostinho, de


quem já citamos alguns destaques sobre os três bonum matrimonii,
destaques que têm relevância também na questão atual. Das pala-
vras do Evangelista2 e de Maria, em que Maria e José são chamados
pais de Jesus, ele argumenta o seguinte:

“‘Seu pai e sua mãe estavam admirados das coisas que


dele se diziam’. Portanto, quando o evangelista nos diz que
Cristo nasceu da Virgem Maria, mas sem relações carnais com
José, por que ele chama José de pai d’Ele? A menos que tenha-
mos razão quando dissemos que José era o esposo de Maria
por meio da união matrimonial apenas, sem qualquer relação
carnal, e que, logo, ele era mais intimamente o pai de Jesus
pelo fato de Jesus ter nascido de sua esposa, do que se o tivesse
adotado. Portanto, é claro que ele usa a expressão ‘tido como
filho de José’ apenas por causa dos que acreditavam que Ele
tinha sido gerado por José, como os outros homens o são por
seus pais”3.

Aqui nós temos uma declaração inquestionável de Santo


Agostinho de que Cristo é chamado, legitimamente, de filho de José,
ou José o pai de Cristo, porque Cristo foi concebido e nascido de Ma-
ria, a virgem desposada por José, embora ela não tenha concebido
por meio dele, mas pelo Espírito Santo. Em outras palavras, Agosti-
nho declara que São José é o pai de Cristo por direito de matrimônio,
e coloca sua paternidade muito acima da paternidade por adoção.

Em outra parte, Santo Agostinho diz o seguinte:

“Mas quando o Rei de todas as nações nasceu, ali a digni-


dade da virgindade teve início na mãe do Senhor, pois a ela foi
concedido ter um filho sem perder a virgindade. Ora, havendo
um matrimônio, e um matrimônio virginal, entre Maria e José,

2. Lc 2, 40 ss.
3. De consensu Evang., livro II, nº 3 (PL, 23, 1072).

113
A Paternidade de São José

o fruto casto do ventre dela também não poderia pertencer, de


maneira casta, ao marido? Pois assim como ela era esposa, ain-
da que casta, também ele era esposo igualmente casto. E assim
como ela era mãe sem perder sua castidade, ele também era
pai sem perder a dele. Portanto, quem diz que José não deve
ser chamado pai por não ter gerado um filho vê na procriação
dos filhos meramente o desejo carnal, não o amor mútuo de
duas almas. O que os outros homens conquistaram por ação
carnal, José conquistou de forma muito mais nobre por meio
do amor espiritual”4.

Isso significa que em José era um amor casto e espiritual, em


vez do desejo carnal, que agiu e gerou frutos no fruto desse matri-
mônio virginal, o divino menino Jesus. Santo Agostinho ilustra essa
ideia por dois exemplos, a seguir:

“Pois também os que adotam filhos geram de modo mais


casto, por meio do amor, aqueles que não podem gerar na car-
ne. Considerai, irmãos, pelos direitos de adoção, como um ho-
mem se torna filho de alguém que não o gerou fisicamente: a
vontade do que adota é mais potente que a natureza de um
que gera. Portanto, José deve ter sido pai, e pai no mais alto
grau”5.

Como Santo Agostinho entende a última frase? O que ele


quer dizer é isto: como em uma adoção um ato de vontade e amor
toma o lugar da procriação, com o desejo sensual que a acompanha,
então, com São José, foi sua vontade ou seu puro e casto amor que
substituiu a relação carnal, portanto, ele era pai e, de fato, pai no
sentido mais alto, mesmo no mais alto grau.

Como segundo exemplo para ilustrar seu ponto de vista, San-


to Agostinho remete aos patriarcas do Antigo Testamento:

4. Sermão 51, nº 26 (PL, 38, 348).


5. Ibid.

114
Padre Joseph Mueller S. J.

“Também por mulheres que não eram suas esposas por


matrimônio homens geraram filhos, e estes eram chamados fi-
lhos naturais. Mas os filhos de suas esposas eram preferidos
sobre aqueles, embora no que se refere à procriação não haja
diferença. Por que, então, os últimos são preferidos a outros,
a menos que seja porque o amor da esposa por quem os filhos
são gerados é um amor casto? O que importa aqui não é o ato
carnal, que é o mesmo em ambas as mulheres. A que, portanto,
a esposa deve sua superioridade, senão ao seu sentimento de
fidelidade, seu afeto esponsal, seu amor mais sincero e casto?
Assim, se um homem pudesse ter filhos de sua esposa sem
relação carnal, não deveria ele aceitá-los com mais prazer, por
ser ela mais casta e mais amada por ele?”6.

Aqui, Santo Agostinho defende, sem dúvida, que no matri-


mônio virginal de Maria e José, o lugar do ato carnal, com seu amor
sensual, foi tomado por seu elevado, espiritual e santo amor, e que
se deve a esse amor o miraculoso fruto de seu matrimônio, perten-
cente a ambos, a José, Seu pai, e a Maria, Sua mãe.

Esse pensamento absorveu tanto a mente de Santo Agostinho


que ele o abordou uma vez mais no mesmo sermão (nº 30):

“Como Maria foi mãe sem concupiscência carnal, então


José foi pai sem relação carnal. Tracemos a linha genealógica,
ascendente ou descendente, por meio dele e não o deixemos
de fora sob o pretexto de não ter havido relação carnal. An-
tes, sua imensa pureza responde por sua paternidade; caso
contrário, a própria Virgem Maria pode nos reprovar. Pois ela
mesma não colocou seu próprio nome antes do de seu espo-
so, mas disse: ‘Teu pai e eu andávamos à tua procura, cheios
de aflição’. Opositores perversos, portanto, deveriam evitar
fazer o que a casta esposa não fez. Logo, incluamos José na
contagem as gerações porque, se ele era esposo em castidade,
também foi pai em castidade. E, mesmo, demos preferência

6. Ibid.

115
A Paternidade de São José

ao homem sobre a mulher, conforme a ordem natureza, bem


como a lei de Deus. Pois se nós retiramos seu nome e colocar-
mos o dela no lugar, ele dirá, com razão, também: ‘Por que me
excluís? Por que essa genealogia, ascendente e descendente,
não partiu de mim?’. Poderíamos dizer a ele: ‘Porque não o
geraste por meio do ato carnal’. Mas ele responderia: ‘E ela se
tornou mãe d’Ele por um ato carnal?’. O que o Espírito Santo
operou, Ele o fez nos dois. ‘José era um homem justo’, afirma
a Escritura. Portanto, marido e mulher eram justos. E o Espí-
rito Santo, apoiado na justiça de ambos, deu o Filho aos dois;
mas naquela relação que deveria gerar o Filho, Ele atuou para
que o Filho também nascesse para o esposo. Portanto, o anjo
disse a ambos que deveriam dar o nome à criança, para que a
autoridade parental dos dois encontrasse reconhecimento. A
Maria foi dito: ‘Eis que conceberás e darás à luz um Filho, e lhe
porás o nome de Jesus’. E também a José foi dito: ‘José, filho
de Davi, não temas receber Maria por esposa, pois o que nela
foi concebido vem do Espírito Santo. Ela dará à luz um filho,
a quem porás o nome de Jesus, porque Ele salvará Seu povo
de seus pecados’. E a Escritura diz, ainda: ‘E ela deu à luz seu
Filho’. Aí temos a confirmação da paternidade dele, não na
carne, é claro, mas no amor. Desse modo, ele, portanto, é pai,
e realmente o é. É mostra de grande atenção e prudência da
parte dos evangelistas a inclusão de José na genealogia, seja
em Mateus, descendo de Abraão a Cristo, seja em Lucas, as-
cendendo de Cristo a Deus, por meio de Abraão. A primeira é
um registro descendente, a segunda, ascendente, mas as duas
passam por José. Por quê? Porque ele era o pai. Por que pai?
Porque quão mais casto ele era, mais firmemente ele era pai. É
verdade que as pessoas pensavam ser ele pai de nosso Senhor
Jesus Cristo de modo diferente, a saber, como os outros pais,
que geram seus filhos na carne, e não os geram no espírito
por meio do amor paternal. Pelo que São Lucas também diz:
‘Quem era o suposto pai de Jesus?’. Por que ele era suposto?
Por causa da maneira deles de pensarem e formarem opiniões
leva os homens a acreditar que as coisas devem ser como nor-
malmente são. Logo, nosso Senhor não é descendente de José,
embora alguns o pensassem; todavia, para o devotado amor

116
Padre Joseph Mueller S. J.

de São José, um Filho foi gerado pela Virgem Maria, o Filho


que era, também, o Filho de Deus” (ibid.).

Resumamos a exposição do grande doutor em poucas frases.


Para Santo Agostinho, José era, verdadeiramente, o pai de Jesus em
virtude de seu matrimônio virginal com a mãe de Deus; o menino
Jesus nasceu nesse matrimônio; Ele era o maravilhoso e sobrenatural
fruto dessa união e, portanto, pertencia aos dois esposos virginais,
José em Maria; e se ela é mãe, então, ele é pai. Cada um deles con-
tribuiu para dar uma vida humana ao Filho divino, mas não por
um natural e físico ato de relação carnal: em seu lugar, houve um
amor conjugal inteiramente casto e puro, combinado com perfeita
justiça e santidade; a essa sagrada união virginal foi dado um fruto
maravilhoso, sobrenatural e santíssimo, o divino menino Jesus. Foi,
portanto, com base em sua sublime união, distinta por sua perfeita
justiça e santidade, que eles foram tão maravilhosamente abençoa-
dos por Deus: Maria e José cooperaram, como causæ dispositivæ, não
de modo natural, como os outros pais o fazem, mas de um modo
muito superior, espiritual e sobrenatural. Parece-me que, nessas
passagens, Santo Agostinho, com sua eloquência e visão profunda,
corrobora totalmente a explicação dessa paternidade que apresenta-
mos nos últimos dois capítulos.

2. Como já dissemos, nenhum dos outros Padres tratou tão


cuidadosamente da paternidade de São José como Santo Agostinho.
Mas temos, porém, declarações de alguns outros sustentando, basi-
camente, a mesma doutrina. Já mencionamos Santo Efrém. Há, pelo
menos, uma declaração dele inquestionavelmente favorável a nossa
explicação da paternidade de São José:

“O Evangelho chama Maria de mãe (não mãe nutrícia),


mas também chama José de pai (não pai nutrício), embora ele
não tenha participado daquela concepção. Não foi o nome que
tornou José o que era, mas o que ele deu-lhe aquele nome.
Pelas promessas matrimoniais trocadas entre a Virgem e José,
o nome de pai foi dado a ele, embora não tenha procriado.

117
A Paternidade de São José

Quanto às palmeiras, as plantas ‘macho’ fertilizam as plantas


‘fêmeas’ encobrindo-as [isto é, fecundando-as] sem contato e
sem transmitir-lhes algo de sua substância. Também algumas
figueiras não dão frutos a menos que sejam encobertas por ra-
mos ‘machos’. Então, como estes (em nossa linguagem síria)
são chamados ‘pais’, embora eles mesmos não gerem, São José
foi chamado pai, apesar de ser esposo de Maria sem qualquer
relação conjugal. Esse é um grande mistério”7.

Conforme [Santo] Efrém, portanto, São José é chamado pai de


Jesus; esse não é um título vago, mas justificado por sua própria na-
tureza: tem uma sólida fundamentação nas promessas matrimoniais
trocadas entre Maria e José, cuja descendência (prole) foi o menino
Jesus. A ideia é a mesma de Santo Agostinho, só não há menção à
cooperação de Maria e José.

3. Outra testemunha valiosa é o autor da obra Questões e res-


postas aos cristãos ortodoxos (anteriormente atribuída a São Justino,
mas proveniente do século V), que escreve:

“Como José era chamado filho de Eli, embora não tenha


sido gerado por ele, mas devido à exigência da divina lei que
a esse Eli um filho deveria ser dado por sua esposa, também
Deus desejou que a José um filho fosse dado por sua espo-
sa, apesar de não ter sido gerado fisicamente por ele... Assim,
qualquer um nascido de uma esposa, sem que haja adultério,
é necessariamente o filho de ambos os esposos, seja qual for a
forma que agrade a Deus conceder um filho ao esposo, seja por
geração natural ou sem ela”8.

7. II, 277 (edição vaticana). N. R.: Perceba o leitor que as questões


biológicas citadas pelo santo padre podem ou não estar corretas, de
fato, pois correspondem ao que se acreditava em sua época. Descul-
pamo-nos qualquer inexatidão, portanto.
8. Questão 133 (PL, 6, 1386). N. R.: No original em Inglês, o título da obra é
Questoins and Answers to Orthodox Christians, sem edição em Português.

118
Padre Joseph Mueller S. J.

Também esse autor sustenta que José, por direito de seu ma-
trimônio, é pai verdadeiro de Jesus.

4. São [João] Crisóstomo, em uma passagem sobre esse assun-


to, faz o anjo dirigir-se a José assim:

“‘Ela dará à luz um filho e tu lhe porás o nome de Jesus’.


Para que tu, por ser ele fruto do Espírito Santo, não te imagi-
nes um estranho ao ministério dessa dispensação. Embora no
nascimento não tenhas feito parte, pois a Virgem permaneceu
intocada, no entanto, o que cabe a um pai, mas não prejudica
a honra da virgindade, eu dou a ti: ‘tu lhe porás o nome’. Pois
embora a descendência não seja tua, ainda assim tu mostrarás
o cuidado de um pai para com ele. Portanto, desde o dar-lhe
o nome, Eu o ligo Àquele que nascerá. Mas para que não se
suspeite, por isso, que ele seja o pai, ouvi agora, atentamente,
o seguinte: ‘Ela dará à luz um filho’, diz o anjo; ele não diz:
‘dará a ti um filho’, mas simplesmente ‘dará à luz’, de modo
indefinido, de modo que ela não deu à luz um filho para ele,
mas para todo o mundo”9.

Nós apenas trouxemos essa citação porque São [João] Cri-


sóstomo faz o anjo atribuir a José autoridade paternal com todos
os direitos pertinentes a ela. A paternidade, em nossa visão, não é
garantida, já que, conforme o santo, o filho não foi “nascido de São
José”.

5. Nossa última testemunha é São Jerônimo. Seu testemunho,


na linha de pensamento de Santo Agostinho, exige e merece uma
avaliação mais cuidadosa:

“Você diz que Maria não permaneceu uma virgem. Mas


eu afirmo ainda mais: que José também permaneceu virgem
por causa de sua união com Maria, de modo que um Filho

9. Sobre Mt 1, 21; homilia 4, nº 7 (PG, 57, 47).

119
A Paternidade de São José

virginal nasceu em um matrimônio virginal. Pois, se nenhuma


suspeita de fornicação pode cair sobre esse santo homem, se
não há registro de que ele tenha possuído outra esposa e se a
relação que ele tinha com Maria, cujo esposo ele estava desti-
nado a ser, era mais de um protetor de sua virgindade que de
um esposo, parece lógico que aquele que por direito é chama-
do de pai de nosso Senhor permaneceu virgem com Maria”10.

São necessários alguns comentários a essa passagem.

1º. Por que São Jerônimo diz: “José também permaneceu vir-
gem por causa de sua união com Maria?”. Após tudo o que dissemos
até agora sobre o matrimônio virginal de Maria e José, a resposta não
pode ser outra que esta: o Filho eterno de Deus só poderia ser con-
cebido por uma virgem, mas uma virgem vivendo em um matrimô-
nio virginal. Discutimos isso em todos os seus aspectos no capítulo
5, seguindo estritamente o ensinamento de Santo Tomás. A Divina
Providência, dispondo todas as coisas com sabedoria, especialmente
tudo o que, de qualquer forma, servisse à execução do plano divino
da Encarnação e Redenção, desejou que Maria vivesse em um matri-
mônio virginal e que José fosse, assim, intimamente unido a ela em
um matrimônio virginal para guardar e proteger sua virgindade e,
em geral, cuidar dela e de seu divino Filho. Em resumo, José tinha
que permanecer virgem por causa dessa união com Maria, porque
ela estava destinada a ser a mãe virginal do divino Redentor.

2º. Isso é corroborado pelas palavras imediatamente seguin-


tes: “de modo que um filho virginal nascesse de um matrimônio vir-
ginal”. Pois, como vimos antes, esse matrimônio virginal tinha sido
ordenado apenas em vista da encarnação do Filho de Deus. E era a
única forma em que a Encarnação poderia ser realizada como Deus
havia decretado, já que, de acordo com a lei geral de Deus, a vida
humana deveria ser propagada somente no matrimônio.

10. De perp. Virg. B.M. (PL, 23, 203).

120
Padre Joseph Mueller S. J.

3º. O Filho de Deus entraria no mundo humano como a pro-


le, o fruto, desse matrimônio, como São Jerônimo afirma tão clara e
enfaticamente: desse matrimônio virginal o Filho virginal deveria
nascer. Mas se Jesus era o fruto desse matrimônio, então José era
verdadeiramente Seu pai, pois o fruto do matrimônio pertence não
apenas à esposa, mas também ao esposo. E, portanto, como Maria
era a verdadeira mãe do Filho divino, também José era verdadei-
ramente Seu pai. De fato, ambos tinham, como causas dispositivas,
cooperado na encarnação do Filho de Deus, por sua justiça e san-
tidade, mas especialmente por seu matrimônio virginal e por seu
amor mútuo, um casto amor conjugal. Santo Agostinho enfatiza isso
repetidamente e com grande clareza, como vimos. Nas palavras de
São Jerônimo, o mesmo é, no mínimo, sugerido, e ele pôde, logica-
mente, concluir: “parece lógico que aquele que por direito é chama-
do de pai de nosso Senhor permaneceu virgem com Maria”.

Esse testemunho de São Jerônimo, tão breve, mas também tão


repleto de significado, tem grande valor para nós. Mostra que ele
concorda totalmente com Santo Agostinho sobre o aspecto essencial
de nossa questão e que temos outra confirmação de nossa tese e nos-
sas explicações.

121
9. Os teólogos

Santo Agostinho não estava sozinho, mesmo na antiguidade cristã,


em sua interpretação sobre a paternidade de São José sobre o meni-
no Jesus, como vimos nos capítulos anteriores. Suas ideias, em geral,
são encontradas em [Santo] Efrém; em [São João] Crisóstomo, que,
pelo menos, atribui a São José completa autoridade e responsabili-
dade parental; também nas breves, porém claras e precisas senten-
ças do Pseudo-Justino; e finalmente em [São] Jerônimo, que em pa-
lavras igualmente precisas e significativas repete as ideias de Santo
Agostinho, contudo, se aquele é influenciado por este ou não parece
difícil de decidir.

Pode ser lamentável que os primeiros séculos não ofereçam


mais testemunhas, mas isso é explicado pelas circunstâncias dos
tempos. A paternidade de São José, como a entendemos, e, de fato,
toda a teologia Josefina não era uma verdade essencial do Cristia-
nismo, como a Trindade, a Encarnação ou a Redenção, que, acima
de todas as outras, tinha de ser salvaguardada contra as grandes he-
resias daquele tempo. Ademais, como vários escritores daquele pe-
ríodo não reconheciam, claramente, a existência de um matrimônio
real entre José e Maria, ele poderiam não fazer o mesmo em nome
da paternidade de São José, porque esta é ligada àquele, como sua
consequência necessária.
A Paternidade de São José

Contudo, essas testemunhas citadas, embora poucas, têm no-


tável importância e não devem ser desprezadas. As maiores delas,
São Jerônimo e Santo Agostinho, especialmente o último, com sua
profunda e lúcida discussão sobre o assunto, foram destinadas, com
o passar do tempo, a ter uma influência decisiva no pensamento teo-
lógico. No princípio, sua influência demorou a ser sentido porque a
invasão dos bárbaros, com a consequente devastação do mundo ci-
vilizado, paralisou toda a atividade escolástica, enquanto a influên-
cia dos escritos apócrifos continuava forte o bastante para obstruir
um desenvolvimento teológico sensato. Quando esses obstáculos fo-
ram vencidos, a influência de Santo Agostinho começou a se impor;
a partir do século VIII em diante, vemos um número cada vez maior
de escritores que defendiam a paternidade de São José conforme
Santo Agostinho. Não podemos descrever esse desenvolvimento em
detalhes. Contentamo-nos com uma rápida pesquisa e em indicar
seus destaques por citações de algumas de suas testemunhas.

1. No século VIII, temos o testemunho do Venerável Beda,


que não apenas segue a opinião de Santo Agostinho, mas assume
sua expressão verbal. Comentando Lucas 2, 33, “Seu pai e sua mãe
estavam admirados...”, ele diz:

“José pode ser chamado pai de Jesus da mesma forma


que ele pode, e legitimamente o é, considerado o esposo de
Maria, sem ter havido relação carnal, mas pelo mero fato de
estarem unidos em matrimônio; e com uma relação muito mais
próxima do que se Jesus tivesse sido adotado por ele. A José
não podia ser negado o nome de pai pelo fato de não ter gerado
[o menino], já que ele seria, por direito, o pai de alguém que
não tivesse gerado por meio de sua esposa, mas adotado”1.

2. No século IX, é Pascásio Radberto que defende a paternida-


de de São José com o sentido e, mesmo, as palavras de Santo Agos-
tinho:

1. In Matth. (PL, 92, 345).

124
Padre Joseph Mueller S. J.

“Porque Jesus nasceu de sua esposa, José é chamado o


pai de Jesus por causa e uma relação muito mais íntima do
que se Jesus tivesse sido adotado. Portanto, quando o Evange-
lista diz ‘Jesus era tido por filho de José’, evidentemente o faz
somente por causa daqueles que O consideravam nascido de
José, à semelhança dos outros homens”2.

3. No século XII, temos Ruperto de Deutz retomando Santo


Agostinho. Ele reconhece e exalta São José não apenas como o espo-
so de Maria, mas também como pai do menino Jesus, precisamente
devido àquele matrimônio:

“‘Jacó gerou José, o esposo de Maria, da qual nasceu


Jesus, que é chamado Cristo’. Chamar José o esposo de Maria
dá a ele um grande e verdadeiro título, porque se ele é o espo-
so de Maria, é também o pai do Senhor. Ou a lei não declara
que a mulher esposada já é esposa?... Logo, José é esposo de
Maria, e ela sua esposa, por isso esse Evangelista pôde, corre-
tamente, chamar José o esposo de Maria, mas também o outro
Evangelista não mentiu quando o chamou de pai daquele que
nasceu dela, Cristo, quando disse: ‘Seu pai e sua mãe estavam
admirados das coisas que dele se diziam’3. Não apenas o Evan-
gelista chamou José o esposo de Maria, porém mesmo antes
dele o anjo tinha – o que equivale à mesma coisa – chamado
Maria a esposa de José, dizendo: ‘José, filho de Davi, não temas
receber Maria por esposa’. Ó, verdadeiro e santo matrimônio,
celeste e não desta terra. Como e por qual laço eles foram uni-
dos? Não há dúvida, nesse aspecto, que havia neles uma só
mente e a mesma fidelidade mútua: só a corrupção carnal esta-
va ausente. Mais verdadeiramente, portanto, o Apóstolo disse:
‘O primeiro homem, tirado da terra, é terreno; o segundo veio
do céu’4, não como se Jesus Cristo, que nasceu de Maria, tivesse

2. In Matth., livro I, cap. 1 (PL, 120, 79).


3. Lc 2, 33.
4. I Cor 15, 47.

125
A Paternidade de São José

recebido a carne do Céu e, como alguns hereges propõem, ti-


vesse passado por Maria como por um canal, mas porque a
união de Maria e José, como suas vidas inteiras, era celestial
– era o Espírito Santo a gerá-los, de modo que já viviam como
que no céu. O amor conjugal de um pelo outro e Ele próprio
[o Espírito Santo], reinando em seus corações, havia confiado
essa esposa a esse esposo e, enquanto formava um corpo hu-
mano no ventre da Virgem, encheu o coração desse homem
com amor paternal pelo Filho que nasceu”5.

Podemos ver que essas ideias são bem agostinianas.

4. Com Ruperto de Deutz, já ultrapassamos o limiar da Esco-


lástica. Nesse período, nossa primeira testemunha é Pedro Lombar-
do, o Magister Sententiarum, cujas Sentenças tornaram-se, durante os
próximos séculos, o livro usado pelos teólogos em suas palestras e a
base de muitos comentários. Ele escreve:

“O matrimônio de José e Maria era perfeito em santida-


de, também perfeito em relação aos três bens do matrimônio:
fidelidade, descendência e sacramento. Pois, como Agostinho
diz6, todos os bonum matrimonii são completamente realizados
nos pais de Jesus: fidelidade, descendência e sacramento. Hou-
ve uma descendência, como sabemos, o próprio Senhor Jesus;
fidelidade, pois não houve adultério; sacramento, porque não
houve divórcio. Apenas a relação carnal estava ausente, por-
que nos homens decaídos não poderia existir sem o resultado
do pecado, a repugnante concupiscência carnal, com a qual
não desejou ser concebido Aquele que não teria pecado. As-
sim, embora não tenha havido relação conjugal, eles eram um
casal casado em espírito, não na carne, como verdadeiramente
eram pais. É verdade que Santo Ambrósio defende que um
matrimônio se torna perfeito por meio da relação carnal: ‘Em

5. In Matth., livro I, nº 568 (168, 1319


6. De nuptiis, livro I, cap. 11, nº 13.

126
Padre Joseph Mueller S. J.

todo matrimônio, a união espiritual é compreensível, contudo


é confirmada e aperfeiçoada por meio da união dos corpos’7.
Mas deve-se entender que o uso do matrimônio não o faz mais
perfeito em nome de sua validade e santidade, mas apenas em
nome de seu significado, porque representa mais perfeitamen-
te a união de Cristo e da Igreja”8.

Observe especialmente as palavras “embora não tenha ha-


vido relação conjugal, eles eram um casal casado em espírito, não
na carne, como verdadeiramente eram pais”. Nenhuma distinção é
feita entre José e Maria: como eles eram, de fato, marido e mulher
“mente, non carne” [na mente, não na carne], porque Jesus era a prole,
a descendência, desse matrimônio.

5. Essa doutrina relativa ao tríplice bonum matrimonii e ao


menino Jesus como a descendência do matrimônio de José e Ma-
ria também foi mantida por Santo Tomás. Nós podemos, portanto,
seguramente declará-lo como seguidor da interpretação de Santo
Agostinho, embora ele não fale de “pais” e da “paternidade” de São
José tão explicitamente quanto o Mestre das Sentenças. Contudo, ele
também parece ter admitido por parte de Maria e José uma coope-
ração dispositiva no sentido de promover a existência humana do
menino Jesus. Isso explicaria melhor uma passagem em seu Comen-
tário sobre as Sentenças9, especialmente sua resposta à quarta obje-
ção levantada.

“Objeção 4: Um matrimônio é chamado perfeito por-


que tem o bonum pralis. Mas a descendência gerada nes-
se matrimônio (de Maria e José) não resultado dessa união,
tanto quanto um filho adotado não é chamado um bonum

7. Graciano. Decr., cap. 27, q. 2.


8. Sent., livro IV, d. 30.
9. In IV, d. 30, q. 2, a. 2. N. R.: No original em Inglês, Commentary on
the Sentences.

127
A Paternidade de São José

matrimonii. Portanto, esse matrimônio não era perfeito. Resposta:


Uma descendência é chamada um bonum matrimonii não apenas
na medida em que foi gerada por meio de um matrimônio, mas
também por ter sido concebida e criada em um. É dessa forma
que aquela prole (o Senhor Jesus) erra fruto daquela união, não
do primeiro modo. No entanto, alguém nascido de um adultério
ou um filho adotado que é criado em um matrimônio não é um
bonum matrimonii, porque o casamento, por sua natureza, não é
ordenado em vista da criação de tais filhos, ao passo que o matri-
mônio de Maria e José foi especialmente planejado para o fim de
que aquela descendência fosse concebida e criada”.

Desde que estamos lidando, aqui, com um princípio ou axio-


ma proposto por Santo Agostinho, provavelmente temos que enten-
der esse texto de Santo Tomás no mesmo sentido. A entrada do Deus
feito homem na existência humana foi necessária e indispensavel-
mente condicionada ao matrimônio virginal de José e Maria. Somen-
te dessa forma, Deus tinha decretado, Jesus deveria ser concebido
e nascer, de modo sobrenatural e miraculoso, de Maria, unida em
virginal matrimônio com José. Desse modo, José e Maria coopera-
ram, não por meio de geração natural, mas por sua união virginal
e seus vários atos de virtude conectados a ela, para a realização da
existência humana do menino Jesus. Sua cooperação foi preparató-
ria, ou dispositiva, em preparar-se para a missão designada, porque,
conforme o plano de Deus, o matrimônio virginal era a condição e
a preparação para a concepção e nascimento virginais do Deus feito
homem. Mas um homem e uma mulher casados, aos quais, nessas
circunstâncias e dessa maneira, um filho é dado por Deus, são pais
dessa criança, embora não tenha sido gerado naturalmente. Portan-
to, assim como Maria é mãe de Jesus, José é, não da mesma forma,
porém analogamente, Seu pai.

Os outros grandes teólogos escolásticos (como Alexandre de


Hales, [Santo] Alberto Magno, [São] Boaventura, Duns Scott, Gil de
Roma e Henrique de Gand) parecem não ter abordado essa questão
ou, pelo menos, não deram atenção especial a ela.

128
Padre Joseph Mueller S. J.

6. Mais um teólogo do período anterior ao Concílio de Trento


deve ser mencionado, um que estava repleto de uma devoção fervo-
rosa a nosso santo e não economizou esforços para fazer o mundo
reconhecer a elevada dignidade e santidade de São José e sua posição
sublime no reino de Deus, e também para promover sua veneração
na Igreja. É Gerson, o famoso chanceler da Universidade de Paris.
No Concílio de Constança, ele pregou ante os padres conciliares um
grande sermão na festa da Natividade da Santíssima Virgem e usou
essa ocasião, também, para mostrar as grandes excelências e privi-
légios de São José. Alguns de seus outros escritos servem ao mesmo
propósito, por exemplo, um ofício de São José, cujas lições apresen-
tam teor dogmático; um poema didático em hexâmetros latinos que
trata da vida de São José segundo os Evangelhos, mas também com
passagens dogmáticas em conteúdo; e suas Considerações sobre São
José em Francês, igualmente do ponto de vista dogmático. Citamos
apenas uma passagem de seu sermão no Concílio de Constança, tra-
tando da paternidade de São José.

“José era o pai corporal de Jesus na opinião dos homens;


ele era o pai por seu cuidado como provedor; ele era o pai, em
terceiro lugar, por concepção; é verdade, ele próprio não O ge-
rou, mas sua esposa Maria o fez e pela ação do Espírito Santo,
que, de certo modo, tomou o lugar de José, não fisicamente,
mas por uma misteriosa concepção espiritual. José, portanto,
pode ser chamado não o pai natural de Jesus, de fato, mas o
pai legal, a quem o Espírito Santo dera poderes procriativos
mais eficazes que os naturais. Jesus nasceu na terra ou proprie-
dade de José, na terra de que Isaías diz: ‘Deixai cair o orvalho,
ó céus, do alto e deixai as nuvens choverem a justiça; deixai a
terra se abrir e brotar um Salvador’10. E no Salmo 84, 12, lemos:

10. Is 45, 8. N. R.: É comum encontrarmos nas traduções bíblicas atuais


esse versículo desta forma: “Que os céus, das alturas derramem
seu orvalho, que as chuvas façam chover a vitória; abra-se a terra
e brote a felicidade e, ao mesmo tempo, faça germinar a justiça”.

129
A Paternidade de São José

‘A verdade brotará da terra’. Não pertence, portanto, a José,


entre todos os outros homens, uma espécie de direito legal na
abençoada formação do menino Jesus, que nasceu na carne e
sobre a carne sobre a qual José tinha adquirido domínio por
direito matrimonial?... Essa formação em vós, ó Maria, do me-
nino Jesus se deu por meio do Espírito Santo, mas com o con-
sentimento implícito de vosso esposo José, pois ele desejava
que a vontade do Senhor fosse feita em tudo, já que era um
homem justo... Podemos exclamar: Ó grandeza maravilhosa
que é tua, ó José! Ó, dignidade inigualável: a mãe de Deus,
a rainha do céu, a senhora do mundo dignou chamar-te seu
senhor. Não sei o que é mais admirável aqui: a humildade de
Maria ou a sublimidade de José, embora ambas sejam supe-
radas, incomparavelmente, pelo menino Jesus, que é bendito
para sempre. D’Ele também está escrito que estava sujeito a
eles: sujeito a um carpinteiro, Aquele que criou o amanhecer e
o sol; sujeito a uma mulher trabalhando o tear, Aquele a quem
devem dobrar os joelhos os que estão no céu, na terra e debai-
xo da terra. Desejaria ter palavras suficientes para explicar um
mistério tão profundo e oculto do mundo, essa maravilhosa e
venerável trindade: Jesus, José e Maria. Eu posso desejar, mas
não encontro forças para fazê-lo e falho em meu esforço. Por-
tanto, uma vez que a graça e a glória não eliminam a natureza,
mas a elevam e a aperfeiçoam, consideremos piedosamente
o seguinte: apenas pelo vínculo natural que une a família, o
filho Jesus é submisso a sua mãe, a mãe ao marido, e o filho
e a mãe, ao mais fiel, vigilante e sempre incansável guardião
e provedor José, que era o chefe de Maria e, portanto, tinha
um grau de autoridade sobre ela, assim como Maria, por direi-
to de maternidade natural, tinha sobre seu Filho Jesus. Quão
grande, então, devemos pensar que José é agora em sua glória
celestial, ele que foi tão eminente e grande neste vale de lágri-
mas na terra? Certamente, se Jesus não mentiu quando disse:

No entanto, oferecemos uma tradução do texto apresentado na


obra, em vista do contexto.

130
Padre Joseph Mueller S. J.

‘Onde eu estiver, estará ali também meu servo’11, parece que


aquele deveria ter um lugar mais próximo a Ele no céu quem
depois de Maria lhe era mais próximo, mais obsequioso e fiel
em servir-Lhe na terra”.

7. Após o Concílio de Trento, com o renascimento das ciên-


cias sagradas, especialmente a Teologia escolástica, mais atenção foi
dada a São José. Vários teólogos fizeram dele o objeto de suas in-
vestigações, ao menos em conexão com a Mariologia, e discutiram
também a questão de sua paternidade. Nesse aspecto, bem como em
outras questões, Suárez indicou o caminho: ele voltou a Santo Agos-
tinho e, em geral, seguiu seus passos, levando, provavelmente, mui-
tos outros teólogos a fazerem o mesmo. Entre aqueles que aceitaram
a interpretação agostiniana da paternidade de São José, estão Corné-
lio a Lápide, Tirinus, Silveyra, Theóphile Raynaud, Francis Sylvius,
Estius, cardeal Gotti, São Francisco de Sales, Billot, Mariani, Bover,
Schindler, Egger, Lercher, Gummersbach e Knabenbauer. Demora-
ria muito apresentar citações de todos eles. Citaremos, então, alguns
deles e acrescentaremos alguns comentários a seus ensinamentos.

Já ouvimos Suárez no capítulo 6. Cornélio a Lápide e Tirino


seguiram-no de perto, usando quase as mesmas palavras.

8. Cornélio a Lápide:

“Observe a expressão ‘José, o esposo de Maria’. Por ela,


concluímos que José tinha todos os direitos de um real esposo
sobre a Santíssima Virgem, e, consequentemente, era legal e
verdadeiramente o pai de Cristo, pelos seguintes motivos: 1.
Cristo era o fruto do matrimônio de José e Maria e, por ter
nascido em seu matrimônio, pôde ser designado aos dois, res-
pectivamente, como Seu pai e Sua mãe. Por meio desse matri-
mônio, José tinha se tornado, de certo modo, o dono do corpo
da Santíssima Virgem, logo, também o fruto daquele corpo, a

11. Jo 12, 26.

131
A Paternidade de São José

saber, Cristo, pertencia a ele como depósitos de minério en-


contrados numa terra pertencem ao dono da terra, conforme o
jurista diz: ‘o que surgiu em meu campo é meu’. 2. Um homem
e sua esposa tornam-se um pelo matrimônio e, por assim dizer,
uma pessoa legal. Portanto, eles tinham tudo em comum, in-
cluindo a descendência legítima daquele matrimônio... Cristo,
que era o Filho da Virgem Mãe de Deus, era também filho de
José, que, como esposo dela, compartilhava de todas as suas
bênçãos... Por isso, José tem a autoridade de um pai sobre Ele
e, portanto, a maior afeição e solicitude de um pai por Ele. E
Cristo, em troca, acalentou, amou e honrou José como Seu pai
e foi obediente a ele”12.

9. Tirinus:

“Jesus era, de fato, o verdadeiro e legítimo filho de São


José, embora não devido a concepção natural, mas ao poder
sobrenatural do Espírito Santo, que Jesus nasceu para o esposo
de sua esposa legítima. Se o esposo é o chefe de sua esposa e o
senhor de seu corpo, ele o é, também, sobre qual for, e de qual
maneira for, o fruto daquele corpo... Logo, José tinha todos
os direitos de um real senhor e pai sobre Jesus como homem,
e, desse modo, é chamado o pai de Jesus até pela Santíssima
Virgem”13.

10. Estius:

Como Cristo era um bonum desse matrimônio, e como José


era pai de Cristo? Alguns escritores responderam, até agora, sim-
plesmente, que isso poderia ser afirmado honestamente, na medi-
da em que Cristo foi concebido e nasceu naquele casamento sem
qualquer violação de sua santidade. Essa razão é aceitável, mas se-
ria mais adequado dizer: Cristo é chamado, com todo o direito, de

12. In Matth. 1, 16.


13. Ibid.

132
Padre Joseph Mueller S. J.

bonum desse matrimônio, porque a geração da prole que ocorreu


nele não estava ligada apenas à mãe, mas também, pela lei que rege
o casamento, dizia respeito a São José, pois ele era marido da virgem
Mãe de Deus. Por esse direito, José é verdadeiramente chamado de
pai de Cristo, como o evangelista testemunha: ‘Seu pai e sua mãe es-
tavam admirados’, e a Virgem Maria, falando com seu filho: ‘Eis que
teu pai e eu andávamos a tua procura, cheios de aflição’”14.

11. Gotti, O. P.:

“Cristo, como verdadeiro filho de Maria, também per-


tencia a José, seu esposo, de um modo especial, sendo fruto
de seu casamento, não nascido realmente dele, mas nele, no-
meadamente, no e daquele corpo virginal sobre o qual só José
tinha direito pela lei do casamento. E ele deve ser chamado de
pai do filho de sua esposa em um sentido muito mais exato do
que um padrasto, cujo filho é de outro casamento, porque José
é chamado de pai de Cristo, que nasceu no, embora não do
mesmo casamento”15.

Todos esses teólogos indicam Agostinho como sua referên-


cia, e o fazem merecidamente, como vimos. Mas eles omitem algo
que Agostinho declarou clara e enfaticamente. Verdadeira pater-
nidade e verdadeira maternidade exigem que o pai e a mãe, como
entes livres, cooperem dispositivamente na procriação do filho. Em
Agostinho, como vimos, encontramos uma explicação muito plausí-
vel para essa livre cooperação dispositiva de Maria e José, mas não
nesses teólogos. Nós discutimos, anteriormente, em nossa disserta-
ção sobre o triplo bonum matrimonii e, novamente, explicamos isso,
conforme Santo Agostinho, no último capítulo. Isso tem importância
decisiva, e nenhuma paternidade ou maternidade verdadeira pode
existir sem isso.

14. In IV, 2, d. 30, nº 11.


15. Veritas relig. Christ., vol. I, trat. 5, cap. 4.

133
A Paternidade de São José

Alguns teólogos fazem comparações para ilustrar a tese que


José é o pai de Jesus porque este, como o fruto do ventre virginal de
sua esposa, pela lei do matrimônio pertence também a ele. Desse
modo procederam Suárez, Francisco de Sales, Kleutgeu etc. Ouça-
mos o último deles. Em um sermão dogmático, ele explica a pater-
nidade de São José na linha de Suárez e a ilustra com a seguinte
comparação:

“Mas isto é o mais importante: como José era o verda-


deiro esposo de Maria, logo, o Filho de Maria, embora não
concebido por ele, mas pelo Espírito Santo, pode ser reivin-
dicado por José como seu, como nenhum outro ser humano
pode reivindicá-Lo. Analisemos isso mais de perto. Os san-
tos Padres usam várias comparações, com as quais ilustram
as prerrogativas da Santíssima Virgem, e, entre elas, frequen-
temente comparam-na com o Paraíso, que Deus criou para
nossos primeiros pais, não apenas porque Maria era como o
jardim plantado por Deus, rico em flores e frutos de graça e
santidade, mas também porque nela brotou a árvore da vida,
Cristo. No princípio, Deus colocou o homem no Paraíso para
cultivá-lo e guardá-lo, como a Escritura diz, mas depois que
a obediência do homem tivesse resistido à prova, o paraíso
deveria ser dado a ele e a sua posteridade para sempre. Agora,
supondo que o homem tivesse resistido à prova, Deus, ao en-
tregar-lhe o Paraíso, ocultaria dele a árvore da vida, por ela ter
sido feita, antes, apenas pelo poder de Deus, sem a cooperação
do homem? Ninguém pensaria isso. José também atravessou
um tempo de dura provação que pode ser comparado ao tem-
po em que a obediência de Adão foi testada. Então, José, du-
rante todo o seu tempo de provação, com reverência piedosa
e reverência, guardara o paraíso que lhe fora confiado, isto é,
a Virgem Maria, para que ela, assegurada para sempre da vir-
tude dele, pudesse dizer ao anjo: ‘Como posso ser mãe, se eu
não conheço homem?’. Será que Deus, ao dar Maria a José para
sempre, desejaria que o bendito fruto de seu ventre não fosse
dele (literalmente: permanecesse estranho a ele)? Ah, não, o
que os Evangelhos ensinam é bem diferente. O que o anjo dis-

134
Padre Joseph Mueller S. J.

se quando apareceu a José em um sonho? ‘José, filho de Davi,


não temas receber Maria por esposa, pois o que nela foi con-
cebido vem do Espírito Santo’16. Nessas palavras foi revelado
a nosso santo o mistério que os anjos desejam ver, o mistério
da encarnação de Deus e o mistério da maternidade virginal
de Maria, e, ao mesmo tempo, o desejo de Deus que Maria,
agora elevada por meio desse mistério sobre todas as meras
criaturas, jamais deixasse de ser sua esposa, mas lhe tinha sido
dada pelo próprio Deus para sempre. Mas nada lhe foi reve-
lado sobre sua própria relação com o filho no ventre dela? O
anjo continua: ‘Ela dará à luz um filho, a quem porás o nome
de Jesus, porque Ele salvará Seu povo de seus pecados’. É pri-
vilégio do pai e da mãe dar o nome ao filho, portanto, o anjo já
tinha dito a Maria: ‘Lhe porás o nome de Jesus’17. Desse modo,
ao dar a José a mesma ordem, Deus revelou Sua vontade de
que José deveria tomar o lugar de pai para o Filho, que, assim,
lhe foi entregue com a mãe”.

Até aqui, citamos Kleutgeu. Entretanto, a essa comparação e


a comparações semelhantes se aplica o que dissemos sobre as pro-
vas ou explicações de outros teólogos: a verdadeira paternidade e
maternidade pressupõem ou exigem uma cooperação dispositiva
livremente dada por pai e mãe. Portanto, esse deve ser o caso tam-
bém em Maria e José. Mas não há indícios de tal cooperação nessas
comparações, por mais adequadas que possam parecer. Chamamos
novamente a atenção para esse defeito, a fim de indicar mais uma
vez quão engenhosa, penetrante e abrangente é a explicação de San-
to Agostinho. Até agora, nenhum teólogo conseguiu aprimorá-la.

É gratificando saber que, desde o Concílio Vaticano [I], al-


guns teólogos seguidores das explicações de Suárez e Agostinho
para a paternidade de São José tem, explicitamente, indicado esse
elemento tão destacado por Santo Agostinho, sobre como Maria,

16. Mt 1, 20.
17. Lc 1, 31.

135
A Paternidade de São José

e igualmente José, cooperaram ativamente para a realização da


existência humana do Redentor (por exemplo, Mariani, Scheeben,
Bellouvet, Knabenbauer e Gummersbach).

Scheeben escreve:

“Quanto ao bonum prolis, esse matrimônio não era menor


do que qualquer outro pretendido por Deus, que o fez, intrín-
seca e essencialmente, com o objetivo de tornar possível o rece-
bimento de uma prole. Mas, sobre todos os outros casamentos
virgens, ele tem esse privilégio: que, sem prejuízo da sua vir-
gindade, ele compartilha com um matrimônio consumado a
bênção da fecundidade. Pois nele um fruto realmente deveria
ser dado ao casal e ser confiado a seus cuidados. E embora o
fruto não tenha sido produzido pelo uso carnal do matrimônio
pelos esposos, ainda assim tinha que pertencer aos dois, con-
forme o decreto do divino Pai, em virtude da união espiritual
dos esposos, como o fruto natural de outro casamento perten-
ce ao esposo e à esposa. Ademais, esse matrimônio possui ain-
da outro privilégio sobre toda união não virginal: seu fruto
é inteiramente santo, e os esposos, por sua entrega virginal
conjunta a Deus, cooperaram de maneira mais elevada para
obter esse fruto do que ocorre nas relações carnais com relação
a um fruto natural”18.

Knabenbauer, iniciando com uma citação de Cornélio a Lápi-


de, escreve o seguinte:

“‘Cristo nasceu no matrimônio de José e Maria. Por


essa união, José tornou-se, por assim dizer, o dono do corpo
da Santíssima Virgem Maria. Logo, também o fruto do ventre
dela pertencia a ele. Pois o fruto que nasce de um casamento
legítimo pertence a ambos os esposos, como a colheita que sob
influência sobrenatural cresce no meu campo estéril pertence a
mim; portanto, pela lei do matrimônio, Cristo é o filho de José.

18. Dogmatik, I, nº 1580.

136
Padre Joseph Mueller S. J.

Além disso, pelo casamento, marido e mulher se tornam uma


pessoa civil, por assim dizer; logo, os filhos legítimos perten-
cem a eles em comum’. Até aqui, citamos Cornélio a Lápide.
Mas que Deus pode dar, e algumas vezes deu, um filho a um
homem que não o gerou, nós temos exemplos nos matrimô-
nios leviratos. Desse modo, Agostinho e Pascásio estão certos
quando concluem, pela existência de um verdadeiro matrimô-
nio entre Maria e José, que Cristo poderia e deveria ser cha-
mado o filho de Davi por causa de José, mesmo que não tenha
havido relação sanguínea entre Maria e José. Por fim, um ar-
gumento de Bellouvet (que cita Bartolomeu de los Rios) me-
rece um lugar aqui, a saber, que José é chamado pai de Jesus
porque ele realmente contribuiu de alguma forma para a rea-
lização da origem humana de Cristo. Segundo o plano divino,
Jesus deveria nascer de uma mulher virgem e esposa, então,
a continência virginal de José tornou-se, como causa moral, o
fundamento em que sua paternidade sobre Jesus é baseada”19.

Algumas observações adicionais. É, de fato, muito desejável


que a Teologia católica dê continuidade às linhas de pensamento de
Santo Agostinho e, desse modo, avance ainda mais nosso conheci-
mento da verdade dogmática relativa a São José. Assim, sua elevada
posição, atrás apenas de sua santa esposa, no reino de Deus será ain-
da mais claramente reconhecida. Pode parece estranho que, quanto
a São José, a ciência teológica não apresente tanto desenvolvimento
e progresso contínuo como sobre outros assuntos, por exemplo, Ma-
riologia. Isso pode ser devido, talvez, ao menos em parte, aos planos
da Divina providência, que esse grande e amável santo teve que ser-
vir, como nós já mostramos ou, no mínimo, insinuamos.

Billot relata bem como a pessoa do santo patriarca foi origi-


nalmente escondida, por assim dizer, em obscuridade, e como sua
maravilhosa grandeza tornou-se reconhecida e admitida só muito
tarde e gradualmente:

19. Knabenbauer. In Matth. 1, 16.

137
A Paternidade de São José

“Como não era de acordo com os planos divinos que


o nascimento virginal chegasse ao conhecimento público no
princípio, com sinais e milagres, a virgem mãe tinha que ser
desposada por um homem, para que nenhuma dúvida fosse
lançada sobre a legitimidade do nascimento de nosso Senhor.
Maria, a mãe de Jesus, necessitava estar casada com José, ho-
mem escolhido especialmente, por meio do qual e sob cujo cui-
dado Cristo deveria ser introduzido no mundo de uma forma
discreta e honrosa, e assim evitar um anúncio prematuro do
Messias em Israel, o que seria contrário à execução do plano
divino. Outros, São João e os apóstolos, foram destinados a ser
as vozes que fariam Cristo conhecido para o mundo posterior-
mente; José, em vez disso, deveria ser um véu, protegendo-O
de ser visto. Mas como Cristo tinha que permanecer escondido
apenas por pouco tempo, José foi tirado deste mundo antes
que o precursor chegasse para proclamar o advento do Mes-
sias, desse modo os homens poderiam e, de fato, se acostu-
mariam a pensar em Cristo sem associá-Lo a um pai humano.
O ministério de José era necessário para a introdução do Filho
de Deus no mundo e para possibilitar a vida oculta de Cris-
to, em toda a decência e respeitabilidade. Contudo, sem a vida
oculta, o mistério da Encarnação teria perdido sua característi-
ca peculiar: o nome Emanuel não teria um significado tão com-
pleto como agora... E porque José era, como se diz, uma sombra
para esconder Cristo, ele mesmo tinha que permanecer ainda
mais nas sombras, não apenas em sua vida, mas, inclusive,
após sua morte, e ele não se tornou alvo de veneração pública
até muito tempo depois. Era necessário que o dogma da vir-
gindade da Mãe de Deus lançasse firmes raízes nas mentes dos
homens, e que todos estivessem completamente acostumados
à ideia de que apenas Maria é a genitora física do Salvador”20.

No próximo capítulo, apresentaremos um resumo mais siste-


mático dos capítulos anteriores e incluiremos algumas explicações,
concluindo, assim, nossa explicação da paternidade de São José em
si mesma.

20. De verbo incarn., 7 ed., pp. 433 ss.

138
10. Recapitulação

O matrimônio virginal de Maria e José é planejado inteiramente em


vista da Encarnação, que é toda a razão para a existência daquele.
Portanto, o Deus feito homem, Jesus, é o fruto daquele matrimônio,
e como Maria é mãe, José é pai; pois o fruto daquela união pertence
a ambos conforme a lei que rege as relações matrimoniais: a esposa
não tem autoridade sobre seu corpo, mas o esposo. São José não era
o pai físico, mas verdadeiramente ele cooperou para a Encarnação
por meio de seu matrimônio virginal com Maria. Na concepção na-
tural, pai e mãe cooperam, pela relação marital, apenas dispositiva-
mente, mas a alma é criada por Deus. Neste caso, em vez da coope-
ração dispositiva natural existe a união espiritual entre José e Maria,
seu matrimônio virginal, sua castidade e santidade: só assim eles
puderam cooperar para a Encarnação. Logo, a José deve ser atribuí-
da a concepção espiritual ou moral do menino Jesus; a concepção é
a origem de um ser vivo da substância de um ser vivo, à semelhança
de sua natureza.

Solução de duas dificuldades:

a) Como São José poderia cooperar, se não sabia coisa algu-


ma a respeito disso?

b) Jesus tinha somente um pai, o Pai celeste.


A Paternidade de São José

Para uma melhor compreensão do que precisamos dizer, o


leitor deve ter claras em sua mente as explicações da paternidade de
São José apresentadas anteriormente. Portanto, apresentaremos aqui
um resumo claro, ainda que breve, delas, acrescentaremos explica-
ções complementares aqui e ali e, em seguida, tiraremos conclusões,
indicando alguns aspectos especiais da paternidade de São José.

Em primeiro lugar, devemos ter sempre em mente que, con-


forme o plano divino, o matrimônio virginal de Maria e José foi
planejado inteiramente em vista da Encarnação do Filho de Deus
e tinha nela sua única razão de existência – seu único propósito era
servir à execução apropriada da Encarnação. O Filho de Deus, como
vimos, tinha de ser concebido por uma virgem desposada e tinha
que nascer em um matrimônio virginal. Isso era ainda mais neces-
sário porque Deus, desde o princípio, na criação do primeiro casal,
uniu a “bênção dos filhos” ao matrimônio e ordenou que isso, e so-
mente isso, deveria ser a fonte legal de todas as outras vidas huma-
nas futuras; tanto que Ele não abriria uma exceção a essa lei, mesmo
quando Seu Filho unigênito se tornasse homem no ventre de uma
virgem, em que qualquer ação física de um homem estivesse absolu-
tamente incluída. São José, portanto, não era o pai natural de Jesus,
nem poderia ser. Partindo disso, como José poderia se tornar e ser,
verdadeiramente, pai de Jesus, sendo esse o título dado a ele, nos
mais claros e precisos termos, não apenas pelos Evangelistas, mas
pela própria Maria, pelo anjo e, subsequentemente, pelos maiores
doutores da Igreja e os mais eminentes teólogos? Seguindo o ensi-
namento de Santo Agostinho, São Jerônimo, Santo Tomás, Suárez e
outros, explicamos isso desta forma:

Na ordem natural, um ser humano vem à existência apenas


pela cooperação de três fatores: o fator primário é Deus, a causa
primeira de todo ser. Ele age, aqui, não apenas como faz em toda
parte, conservando a existência de tudo o que existe, e cooperando
com toda atividade criada, mas aqui Ele cria uma alma espiritual. Só
Deus pode criá-la e infundi-la no organismo produzido pelos pais.

140
Padre Joseph Mueller S. J.

Marido e mulher, portanto, embora sejam o princípio orgânico ade-


quado, são apenas fatores secundários, por meio do ato marital, em
que a célula germinativa feminina é fecundada pela masculina. Mas
essa ação é apenas dispositiva, ou seja, preparatória para a atividade
criadora de Deus, pela qual a alma é criada e unida ao feto produzi-
do pelos pais, e uma nova vida individual humana vem à existência.

Em nosso caso, que é a concepção sobrenatural de Jesus, o


Deus feito homem, nós também temos os fatores secundários, mari-
do e mulher, que tinha uma função dispositiva a desempenhar, ain-
da que não da mesma forma que o fariam no caso de uma concepção
natural. Em nosso caso, o fator feminino, a Virgem puríssima, tinha
gradualmente formada dentro de si, no natural e espontâneo curso
de desenvolvimento, a célula germinativa que seria fecundada não
por um homem, mas de forma sobrenatural. Quando o anjo levou a
ela a mensagem do Céu, ela, com resignação sobrenatural, colocou-
-se à disposição do Espírito Santo para ter o fruto de seu ventre avi-
vado sobrenaturalmente e hipostaticamente unido ao Filho eterno de
Deus, a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade. Ela o fez sob a ins-
piração do próprio Espírito Santo, esclarecida e apoiada pela divina
graça, por um ato de humilde e completa submissão à santa vontade
de Deus. Ela o fez com uma palavra que renovaria o mundo e intro-
duziria uma nova ordem sobrenatural: “Eis aqui a serva do Senhor.
Faça-se em mim segundo a tua palavra”1. Mas antes disso ela já ha-
via cooperado dispositivamente para isso, quando, sob inspiração
divina, ela se uniu a São José naquele matrimônio virginal, que ela
santificou ao praticar aquelas santas virtudes que esse estado de vida
exige e pelo qual foi enobrecido com uma santidade inigualável.

Entretanto, como São José cooperou dispositivamente para a


concepção sobrenatural do Filho eterno de Deus? Ele não poderia
cooperar por atividade física alguma, nem mesmo por uma ativi-
dade natural espontânea, como a Mãe de Deus o fez parcialmente,

1. Lc 1, 38.

141
A Paternidade de São José

nem ofereceu coisa alguma de sua substância. Mas ele poderia e, de


fato, cooperou por meio de sua própria virgindade e por meio de
sua união virginal com Maria, que a divina sabedoria tinha previsto
e predeterminado. Desse modo, ele, de sua parte, tornou possível
que o Filho de Deus pudesse ser concebido e nascer de uma virgem
desposada e, assim, também de acordo com a lei estabelecida no
princípio, entrar neste mundo como um homem de uma forma apro-
priada e irrepreensível. Para essa função, São José tinha se prepara-
do pela extraordinária santidade de sua vida – a Sagrada Escritura o
chama, enfaticamente, um “homem justo” – e uma vez casado com a
virgem, amou-a com o amor mais casto de um esposo virginal, guar-
dou com o mais terno cuidado a virgindade dela que, por seu ma-
trimônio virginal, tornou-se, por assim dizer, seu próprio tesouro,
e o fez não somente após sua concepção sobrenatural, mas já antes
dela. Por essas razões ele, também, tinha uma parte no bendito fru-
to daquela união e daquela virgindade, pois os dois, o matrimônio
e a virgindade, isto é, ambos os elementos combinados, devem ser
atribuídos à concepção natural de Jesus por Sua mãe, como a oração
da Igreja mostra: “Ó Deus, que pela virgindade fecunda de Maria
destes à humanidade a salvação eterna, dai-nos contar sempre com
a sua intercessão, pois ela nos trouxe o autor da vida. Por Nosso Se-
nhor Jesus Cristo, Vosso Filho”.

Ademais, Santo Tomás diz da Virgem puríssima: “Pela graça


que lhe foi dada, ela mereceu tal grau de pureza e santidade que
poderia, convenientemente, ser a Mãe de Deus”2. Essas mesmas pa-
lavras podemos aplicar a São José, não no mesmo sentido exato, mas
em um sentido verdadeiro: “Pela graça que lhe foi dada, ele mereceu
tal grau de pureza e santidade que poderia, convenientemente, ser o
esposo virginal da Santíssima Virgem e o pai de Cristo”.

Em nosso caso, portanto, conforme o plano divino, a efetiva


disposição para a produção da nova, não meramente humana, mas

2. Suma teol., IIIa, q. 2, a. 11, ad 3.

142
Padre Joseph Mueller S. J.

divino-humana, vida de Jesus consistiu não em uma relação carnal,


mas no que descrevemos há pouco, a dispositiva atividade prepara-
tória de São José, bem como a da Santíssima Virgem: “Para o santo
amor de José um filho nasceu da Virgem Maria, que é também o
Filho de Deus”3. Desse modo, também para ele, não apenas para
a Virgem Mãe, o menino Jesus foi dado por Deus. Essa atividade
dispositiva de José e Maria é de primária importância; somente por
ela eles poderiam, como causas secundárias ou subordinadas, é ver-
dade, mas ação livre e pessoal, cooperar para a encarnação do Filho
de Deus. Como Maria é, realmente, a mãe de Jesus, também José é,
verdadeiramente, Seu pai. Maria, é claro, concebeu e deu à luz Jesus
fisicamente, embora não por meio de relação conjugal, mas porque
o Espírito Santo lhe havia encoberto. Mas era vontade de Deus que
tanto Maria quanto José, por sua atividade dispositiva, tornassem
possível e, por assim dizer, convidassem ou atraíssem a ação do Es-
pírito Santo, e, consequentemente, o menino Jesus foi dado como
fruto a seu matrimônio virginal, não apenas a Maria, mas também
a José.

Nem poderia ser de outra maneira, por causa do matrimônio


virginal. Pois, de acordo com as palavras conhecidas do Apóstolo e
os pontos de vista jurídicos geralmente aceitos, como o corpo da es-
posa pertence ao marido, com o objetivo de adquirir uma nova vida,
o fruto legítimo do útero pertence não apenas à esposa, mas também
o marido, mesmo que ele não tenha cooperado fisicamente na con-
cepção; e como outros maridos e esposas se tornam uma só carne
pela consumação de seu casamento, assim José e Maria, pela união
conjugal e por seu mútuo casto amor conjugal, tornam-se um cora-
ção e um espírito, e, assim, um princípio cooperativo na produção
da vida humana do Filho de Deus. Afinal, ao que parece, poder-se-ia
dizer que São José cooperou na fecundação sobrenatural do ventre
virginal da Virgem Maria, não por meio da concepção física, é cla-
ro, mas por uma maravilhosa, sobrenatural e puramente espiritual;

3. Santo Agostinho. Sermão 51, nº 16 (PL, 44, 421).

143
A Paternidade de São José

desde que a concepção natural de um ser humano é apenas secundá-


ria e dispositiva por parte dos pais; pois, de todos os elementos con-
tidos na definição de concepção comumente aceita, todos, exceto o
mencionado, estão presentes: productio viventis a vivente conjuntuncto
in similitudinem naturæ. Podemos, então, concluir: assim como Maria
é a verdadeira Mãe do Deus feito homem, José é seu pai verdadeiro,
embora apenas no sentido análogo.

Após essas explicações, não é mais difícil obter uma prova


formal da paternidade de São José do fato de que o matrimônio vir-
ginal de Maria e José era essencialmente dirigido para a Encarnação
do Filho de Deus ou, o que significa quase a mesma coisa, que o
menino Jesus é a prole, a descendência, o fruto desse matrimônio.
Podemos resumir toda a nossa argumentação de um modo mais si-
logístico, a seguir:

Conforme Santo Agostinho, Santo Tomás4 e outros grandes


teólogos, o matrimônio virginal entre José e Maria foi ordenado por
Deus em vista da encarnação de Seu Filho eterno de forma que o
menino Jesus fosse a prole, a descendência, desse matrimônio. É ge-
ralmente aceito que o fruto de um matrimônio só pode ser um filho
que é resultado dessa união e para cuja origem ou existência ambos
os esposos tenham cooperado de sua respectiva maneira. Como San-
to Tomás bem diz, um filho concebido em adultério ou uma criança
não relacionada àquele casamento e adotada depois não é, obvia-
mente, como todos concordam, a prole daquela união. Mas desde
que o menino Jesus é a prole, a descendência do matrimônio virginal
entre José e Maria, portanto, os dois cooperaram dispositivamente
para provocar a existência humana de Jesus, não apenas Maria, mas
também José, pois o que é feito unilateralmente por um dos esposos
não pode ser atribuído ao matrimônio como tal. São José não coope-
rou como uma causa física, logo houve uma cooperação moral dis-
positiva de sua parte. Em que consistiu essa cooperação dispositiva,

4. In I, s. 4, d. 30, q. 2, a. 2, ad 4; Suma teol., IIIa, q. 29, a. 2.

144
Padre Joseph Mueller S. J.

já explicamos no último capítulo: Maria e José cooperaram contrain-


do seu matrimônio virginal, por seu casto amor conjugal mútuo, por
sua santidade culminando em sua total entrega obediente a Deus,
e, ao fazê-la, eles satisfizeram a condição, ou melhor, a disposição
à qual, por sábio e misericordioso decreto de Deus, a encarnação
de seu Filho no puríssimo ventre de Maria estava irrevogavelmente
ligada, assim como na ordem natural a produção de uma nova vida
humana está ligada à relação conjugal. Desse modo, o menino Jesus,
como prole daquele matrimônio virginal, era, de fato o filho dos es-
posos, de José e Maria, e como Maria era a mãe, José também era,
verdadeiramente, embora de modo análogo, Seu pai.

A argumentação de Scheeben chega à mesma conclusão. Ele


indica que o elemento constitucional mais essencial da paternidade e
da maternidade consiste no fato de que os pais recebem um filho por
meio de Deus em união com seu casamento; para José e Maria, como
fruto de e em seu matrimônio, o menino Jesus foi dado por Deus e
recebido por eles. Tal presente de Deus, dado em conexão com o ma-
trimônio, é uma característica essencial, ou elemento constitucional,
da paternidade e da maternidade em geral, especialmente no caso
da paternidade e maternidade dos pais do Deus feito homem, Jesus.
Scheeben, seguindo Santo Tomás, bem enfatiza isso:

“Geralmente, mesmo nos matrimônios comuns, sua re-


lação com o fruto deles é melhor e mais idealmente expressada
quando é chamada susceptio prolis per Deum que apenas pro-
criação conjunta5, pois a expressão indica que o filho é fruto
da bênção divina, de que a alma se origina, e da função pro-
dutiva dos pais, como subserviente à divina cooperação. Por
esse ponto de vista e por esse motivo, o filho, em casamento
comum, é primeiramente dado e apropriado por Deus à mãe,
e por meio dela ao pai, e isso não apenas devido à influência
física do pai na produção do filho, mas ao mesmo tempo tam-
bém em virtude da propriedade corporal do pai sobre a mãe,

5. Cf. Gn 4, 1.

145
A Paternidade de São José

ou também em virtude da unidade de ambos. Desse ponto de


vista geral, é mais fácil sustentar que o matrimônio de Maria e
José é uma união perfeita. Por outro lado, sua forma peculiar é
um exemplo instrutivo útil para uma visão ideal do casamento
em geral. A partir daí, finalmente, segue-se uma compreensão
mais profunda da paternidade de São José, que certamente é
mais do que uma paternidade meramente aparente na forma
de uma tutela ou adoção, porque se baseia na perfeição do ca-
samento de José com a mãe corporal da criança”6.

Mas como um homem, sem função geradora física de sua par-


te, pode receber um filho de Deus é apropriadamente ilustrado por
Grimm, quando chama a atenção para a instituição do levirato no
Antigo Testamento, isto é, um casamento que, conforme a lei mo-
saica7, um homem devia contrair com a viúva de seu falecido irmão
que não havia deixado herdeiros, a fim de gerar filhos para o irmão
falecido. Grimm diz:

“Essa verdade, o direito inviolável do Céu de fazer um


israelita se tornar pai sem sua função geradora, mas com todas
as consequências resultantes da relação parental – uma ver-
dade cuja importância é mais bem revelada no nascimento do
Messias – tinha se tornado, há muito tempo, familiar à mente
israelita, de modo proposital e notável. Era o casamento le-
virato que também deveria servir a esse mesmo propósito, e
justamente por esse motivo, ele desempenharia um papel tão
importante na continuação das famílias israelitas e até na ge-
nealogia do próprio Messias. É verdade que a união de Ma-
ria e José não era um casamento levirato, mas, especialmente
pelas mesmas razões que levaram a esse casamento, a ideia
do levirato havia sido implantada muito profundamente na
consciência de Israel. O mesmo Deus de sua aliança, que tem
o poder de dar um filho a um israelita falecido que não pôde

6. Mariologia, I, 129.
7. Dt 25, 5-10.

146
Padre Joseph Mueller S. J.

de forma alguma cooperar, dá um filho ao ‘esposo’ de uma


Virgem que ainda vive, mas que também nunca tocou em sua
esposa virginal. Um israelita poderia muito bem perguntar: o
filho que o céu concedeu à esposa de José durante sua vida se-
ria menos verdadeiramente filho de José do que se ela tivesse
sido deixada viúva sem filhos e depois lhe desse um filho por
meio de um casamento levirato após sua morte? Em nenhum
dos casos José gerou o filho; no entanto, em ambos os casos, é
o poder soberano de Deus que concede a bênção da paterni-
dade aos israelitas de uma forma além dos poderes naturais.
Israel conhece essa liberdade de Deus; portanto, o Messias está
ali diante de Seu povo como o verdadeiro filho e herdeiro de
José, independentemente de se ele foi gerado por seu pai ou
se tornou seu filho de uma forma extraordinária. Mesmo que
essa forma não seja um casamento levirato, se o Senhor tiver
outro meio de fazê-lo, o que importa? O essencial, em ambos
os casos, é a soberana liberdade de ação de Deus. Era lógico,
portanto, que o anjo dissesse a José que ele deveria usar um
direito envolvido na paternidade: dar à criança o nome, aquele
nome tão expressivo da misteriosa vocação da criança”8.

Contra a explicação que demos sobre a paternidade de São


José, e especialmente contra nossa afirmação de que ele, bem como
a Santíssima Virgem, cooperou pessoal, ativa e livremente para a
encarnação do Filho eterno de Deus, talvez seja feita a objeção de
que isso parece impossível para São José, porque, antes que o anjo
lhe anunciasse que Santíssima Virgem esperava um filho e que este
Menino era o Filho de Deus, São José não tinha conhecimento algum
de que a Encarnação decretada por Deus desde a eternidade era,
agora, iminente. Como ele poderia cooperar com ela como sua cau-
sa pessoal e livre, mesmo se apenas dispositiva, especialmente em
contrair matrimônio com a Santíssima Virgem, se ele não sabia que
seu matrimônio virginal estava totalmente voltado à encarnação do

8. Grimm. Die Einheit der Evangelien, p. 244. N. R.: Em tradução livre,


A unidade dos Evangelhos, sem edição em Português.

147
A Paternidade de São José

Filho de Deus e tinha nela sua ratio essendi? Parece necessário que
São José deveria ser informado sobre isso se ele tinha que cooperar
como uma causa pessoal e livre. Essa questão é, sem dúvida, justifi-
cável e precisa de uma resposta.

Eu respondo desta forma: Em primeiro lugar, a determina-


ção do matrimônio virginal entre José e Maria em vista da Encar-
nação foi obra de Deus, não dos homens. Para cumprir Seu grande
desígnio, Ele usou a Virgem puríssima e o virginal José: por graça
especial, Ele lhes iluminou as mentes e lhes moveu as vontades para
que se unissem em um santo matrimônio virginal. Não obstante, seu
contrato foi uma ação livre e pessoal e, mesmo se eles não soubessem
que, segundo a intenção de Deus, sua união deveria ser subserviente
à encarnação do Filho de Deus, por sempre estarem totalmente en-
tregues à providência e à condução de Deus, eles tinham a intenção
de servi-Lo até em seu casamento e de cooperar em tudo que Deus
lhes mandasse ou desejasse. Essa rendição geral à santa vontade de
Deus, no entanto, continha implícita a disposição de estar, na medi-
da do possível, à disposição do chamado de Deus, portanto, também
em seu casamento e, mesmo, em relação à encarnação do Filho de
Deus que deveria acontecer no e por meio do matrimônio deles.

Além disso, posteriormente, mas no tempo adequado, ambos


os santos esposos foram informados do grande e maravilhoso pro-
pósito de seu matrimônio virginal, com isso, prontamente se ofere-
ceram imediatamente para esse ministério santo e sublime: a Virgem
Maria, na anunciação antes da própria Encarnação, por meio de sua
grande resposta: “Eis aqui a serva do Senhor. Faça-se em mim segun-
do a tua palavra”; e São José, logo após a Encarnação, também por
um anjo, que lhe apareceu em um sonho, dissipou sua ansiedade e
o convidou a se entregar também no futuro inteiramente ao serviço
de Maria e seu divino Filho; e José, também, imediatamente, entrou
neste santo ministério. Essa pronta e sincera disposição de ambos é
uma indicação evidente de que, quando entraram em seu matrimô-
nio virginal, eles já pretendiam, pelo menos implicitamente, servir,
por meio de seu matrimônio, à encarnação do Filho de Deus. Assim,

148
Padre Joseph Mueller S. J.

eles, não apenas Maria, mas também José, foram as livres, ativas e
pessoais, embora somente dispositivas e ministeriais, causas da En-
carnação, como ocorreu concretamente. Devemos recordar, aqui, as
palavras de Gerson citadas no último capítulo: “Essa formação em
vós, ó Maria, do menino Jesus se deu por meio do Espírito Santo,
mas com o consentimento implícito de vosso esposo José, pois ele
desejava que a vontade do Senhor fosse feita em tudo, já que era um
homem justo”.

Que São José não foi informado anteriormente da Encanação,


como os Padres e muitos teólogos indicam, isso estava de acordo com
o sábio plano de Deus, para fortalecer nossa fé na concepção e nas-
cimento virginais de nosso salvador. A apreensão e a ansiedade que
dominaram São José à vista da bendita condição de sua santa espo-
sa dão clara evidência de que ele não teve participação física nela;
por outro lado, pela explicação do anjo, a concepção virginal operada
pelo Espírito Santo está acima de dúvida para qualquer fiel cristão.

Ainda outra objeção que pode surgir contra nossa explicação


sobre a paternidade de São José deve ser mencionada aqui. Nosso
Senhor frequentemente fala de Seu “Pai que está nos céus”, o que
parece excluir Seu outro pai. Também nos livros teológicos pode-
mos ler que Cristo tinha um único Pai, no céu. Isso não refuta nossa
explicação? A resposta é fácil: Deus Pai, a Primeira Pessoa da San-
tíssima Trindade, é o único Pai de Cristo, de modo que Ele – em Sua
natureza divina – é gerado por Deus Pai desde toda a eternidade.
Mas em Sua natureza humana Ele não é o Filho natural de Deus, não
tem Deus por Pai, porque Ele não procede de Deus Pai in similitu-
dinem naturæ divinæ9. A paternidade de São José, portanto, não está
no nível de paternidade da Primeira Pessoa da Santíssima Trindade,
não se refere à natureza divina de Cristo, mas a Sua natureza huma-
na; é apenas um frágil reflexo da eterna paternidade de Deus Pai,
embora esta seja muito superior a toda paternidade natural humana.

9. N. R.: Em tradução livre, “em semelhança à natureza divina”.

149
11. P rerrogativas
de São José

O matrimônio virginal de São José com a Virgem imaculada Mãe de


Deus e, consequentemente, sua paternidade sobre o divino menino
Jesus, fornecem, se podemos dizer assim, a principal característica
ou essência sobrenatural de São José. Mas, como sempre, várias qua-
lidades ou prerrogativas estão ligadas ou derivam de uma essência,
o mesmo ocorre, por assim dizer, com essa essência sobrenatural de
São José. Dela surgem várias prerrogativas para ele. Temos que con-
siderar pelo menos a mais importante delas, se quisermos apreciar
o máximo possível toda a grandeza e dignidade sobrenatural de São
José.

1. Porque São José era, verdadeiramente, o virginal esposo


de Maria, a Virgem imaculada e Mãe de Deus, e, como explicamos
antes, de acordo com a lei do casamento e, por um tipo de concep-
ção espiritual ou moral, o pai de Jesus, ele tinha, por tanto, todos os
direitos e deveres de esposo e pai em sua relação com Maria e Jesus.
Mas considerados esses direitos e deveres, também está implícito
que ele era o chefe da família, pois o pai é considerado, em toda
parte, o criador e o propagador da família e do nome; ele é o único
a figurar nas árvores genealógicas; ele rege a família e distribui as
tarefas para seus membros, toma conta do bem-estar comum, supre
suas necessidades corporais e o desenvolvimento físico e mental das
A Paternidade de São José

crianças; ele é seu protetor e representante frente ao mundo exterior.


Todas essas são funções do chefe de uma família, e, portanto, o pai
de uma família é, em todo lugar, considerado seu chefe. A Sagra-
da Escritura testemunha esses deveres de São José, bem como os
grandes e incansáveis esforços que ele fez para cumpri-los em meio
às maiores dificuldades. Algumas passagens relevantes da Sagrada
Escritura confirmam isso.

a) Quando o Santo tomou conhecimento da bendita condição


de sua esposa e seu coração encheu-se de dolorosa ansiedade, um
anjo lhe apareceu em sonho, serenou seus medos e confiou Maria e o
bendito fruto do ventre dela a seu cuidado e proteção: “José, filho de
Davi, não temas receber Maria por esposa, pois o que nela foi conce-
bido vem do Espírito Santo. Ela dará à luz um filho, a quem porás o
nome de Jesus, porque Ele salvará Seu povo de seus pecados”. Tudo
isso aconteceu para que se cumprisse o que tinha sido dito pelo Se-
nhor por meio do profeta: “Eis que a Virgem conceberá e dará à luz
um filho, que se chamará Emanuel, que significa: Deus conosco”1.

A tarefa que lhe era atribuída como pai e chefe da família, há


pouco iniciada, foi assim solenemente confirmada por essas pala-
vras do anjo, e ele imediatamente começou a executá-la com devo-
ção sincera e incansável fidelidade. “Despertando, José fez como o
anjo do Senhor lhe havia mandado e recebeu em sua casa sua espo-
sa. E, sem que ele a tivesse conhecido, ela deu à luz seu filho, que
recebeu o nome de Jesus”2.

Ele tomou para si a Santíssima Virgem, foi seu protetor, pro-


vedor para todas as suas necessidades, especialmente o fiel guardião
e testemunha da virgindade dela, que foi confiada a ele como seu
próprio tesouro em seu casamento, pela virginal união dos dois. Ele
não a conheceu antes de ela ter dado à luz seu Filho primogênito,

1. Mt 1, 20-23.
2. Mt 1, 24-25.

152
Padre Joseph Mueller S. J.

muito menos o fez depois: após ambos terem jurado virgindade, e


especialmente após o nascimento de Jesus, era impensável para ele
a ideia de profanar, por desejo sensual e lascívia carnal, o ventre
virginal santificado pela concepção e nascimento do Filho eterno de
Deus. A Santíssima Virgem parecia-lhe não menos que um santuá-
rio maravilhoso, fechado por uma porta misteriosa, que apenas um
poderia abrir, o próprio Deus, o Senhor soberano, como os santos
Padres explicam pela famosa passagem de Ezequiel3.

Ele, então, conduziu-a a Belém, protegendo-a e servindo-a


durante a jornada, e com grande dificuldade conseguiu encontrar
para ela um abrigo em que deu à luz o Filho de Deus feito homem. E
quando Jesus nasceu e estava para ser circuncidado, José deu-lhe o
nome de Jesus, como havia sido ordenado pelo anjo, usando, assim,
pela primeira vez, seu direito de pai e chefe da família. E, novamen-
te, como pai e chefe da família, ele agiu na apresentação do menino
Jesus no templo, o que, de acordo com a lei dos judeus, era dever do
pai, como o chefe da família4. Seja o que for que a Escritura registre
de São José, em toda parte nós o encontramos fielmente cumprindo
seus direitos e deveres como esposo e pai, sempre solícito, confiável
chefe da família. Contudo, uma ou outra característica desse quadro
chama especial atenção: ainda o esperavam tarefas mais difíceis que
lhe dariam a oportunidade de mostrar que sua fidelidade e solici-
tude sempre vigilante podiam suportar esplendidamente todos os
testes.

b) O divino Menino, o futuro Redentor, mal tinha entrado nes-


te visível mundo quando os poderes das trevas se levantaram contra
Ele, tendo cúmplices entre homens maus para destruí-lo. Em vão.
Pois a Providência divina frustrou seus esquemas sombrios, mas
também usou, de sua parte, um homem sempre obediente e pronto
para todo sacrifício, São José. O Evangelista nos conta: “Depois de

3. Ez 44, 19.
4. Lc 2, 22-23.

153
A Paternidade de São José

sua partida, um anjo do Senhor apareceu em sonhos a José e disse:


Levanta-te, toma o menino e sua mãe e foge para o Egito; fica lá até
que eu te avise, porque Herodes vai procurar o menino para matá-
-lo”5. E São José, sem a menor hesitação, cumpriu a ordem divina e
assumiu a trabalhosa e perigosa jornada. “José levantou-se durante
a noite, tomou o menino e sua mãe e partiu para o Egito. Ali perma-
neceu até a morte de Herodes para que se cumprisse o que o Senhor
dissera pelo profeta: Eu chamei do Egito meu filho”6.

c) Quando o perigo, vindo de Herodes, que a ameaçava a vida


do Menino, tinha sido eliminado pela morte desse cruel tirano, um
anjo do Senhor apareceu novamente a José, no Egito, e mandou-o
retornar a sua terra, em Israel, e, com Jesus e Sua mãe, residir na Ga-
lileia, na cidade de Nazaré7. Por fim, sua ansiosa solicitude paternal
apareceu quando o menino Jesus, aos 12 anos, acompanhou Seus
pais a Jerusalém, para a festa da Páscoa, e se perdeu deles, que O
procuraram por três dias, cheios de aflição, como Sua própria mãe
atestou: “E sua mãe disse-lhe: Meu filho, que nos fizeste? Eis que teu
pai e eu andávamos a tua procura, cheios de aflição”8.

A Sagrada Escritura nos dá uma imagem clara e detalhada da


solicitude paterna de São José, que nunca vacila em todas as prova-
ções, mas também não menos claramente testemunha a posição de
autoridade que era dele como chefe da família. Essa posição é evi-
denciada pelo fato de que a ordem divina de dar ao Menino o nome
de Jesus foi dirigida a São José, bem como a ordem de livrar o Meni-
no dos ardis de Herodes, de forma que também a mãe foi confiada
a ele. Há algumas indicações inconfundíveis de que também a San-
tíssima Virgem reconhecia essa posição de São José como chefe da

5. Mt 2, 13.
6. Mt 2, 14-15.
7. Mt 2, 19 ss.
8. Lc 2, 48.

154
Padre Joseph Mueller S. J.

família. Ela expressou isso em palavras quando exprimiu sua queixa


triste pela perda de três dias de seu filho com estas palavras: “Meu
filho, que nos fizeste? Eis que teu pai e eu andávamos a tua procura,
cheios de aflição”. Ela menciona, aqui, José como o chefe da família,
em primeiro lugar, antes de si mesma, como o Evangelista Lucas
normalmente faz: “Seu pai e sua mãe estavam admirados das coisas
que dele se diziam”9. Por esses mesmos atos ela mostra que respeita
a posição dele quando, prontamente e sem objeção, ela se submete a
sua direção e proteção, como podemos ver pelo relato dos incidentes
apresentados nos Evangelhos e mencionados há pouco. E o próprio
divino menino Jesus reconheceu, junto à autoridade maternal de
Sua Virgem Mãe, também a autoridade paternal de São José, como o
Evangelista testemunha novamente: “Era-lhes submisso”10.

d) No entanto, essa autoridade de São José, como esposo da


Mãe de Deus, como pai do divino menino Jesus, como chefe da Sa-
grada Família, não deve ser mal interpretada. Suárez, comentando
as palavras do Evangelista “Era-lhes submisso”, observou, pertinen-
temente:

“Essa frase significa o que Jesus realmente fez, em vez de o


que Ele era obrigado a fazer. Pois, de fato, por causa da dignidade
de Sua pessoa, Ele não estava, no sentido próprio da palavra, sujeito
a homem algum. Mas para indicar a elevada posição de São José, era
suficiente que Cristo, considerado só e especificamente em Sua na-
tureza e origem humanas, estivesse, por direito, sujeito a ele e que,
embora dispensado disso por Sua natureza divina, Ele desejou ser,
de fato, submisso a ele e rende-lhe respeito e obediência, como Seu
pai e superior11.

9. Lc 2, 33.
10. Lc 2, 51.
11. De mysteriis vitæ Christi. N. R.: Em tradução livre, Os mistérios da vida
de Cristo, sem edição em Português.

155
A Paternidade de São José

Essa submissão e obediência não eram, portanto, um dever


estrito para Ele, nem mesmo para Sua humana vontade, mas con-
siderando Sua atual condição humana, era uma questão de ade-
quação, a concruitas or observantia. Nesse sentido também os Padres
entendem as palavras “Era-lhes submisso”, como Santo Agostinho,
que diz: “O Evangelista não diz ‘Ele era submisso à mãe’, mas ‘Ele
era submisso a ele’... por aquela condescendência pela qual Ele tam-
bém se tornara um Filho do homem’”12.

e) A Igreja também, tanto em seu ensinamento quanto em


sua prática, reconheceu São José como o chefe da Sagrada Família.
Assim Leão XIII fala em sua encíclica Quamquam pluries (de 15 de
agosto de 1889): “Dessa dupla dignidade [de esposo e pai] deriva-
ram espontaneamente os deveres que a natureza impõe aos pais de
família; assim, pois, São José foi guarda legítimo e natural da Sagra-
da Família, e ao mesmo tempo seu chefe e defensor, exercendo estes
ofícios até o fim de sua vida”.

Na mesma encíclica, o Pontífice indica que a Palavra de Deus


encarnada prestou honra e obediência a José como Seu pai: “[São
José] eleva-se entre todos em dignidade também porque, por vonta-
de de Deus, foi guarda e, na opinião de todos, pai do Filho de Deus.
Em consequência, o Verbo de Deus foi humildemente submisso a
José, obedeceu-lhe e prestou-lhe a honra e o respeito que o filho deve
ao seu pai”.

O que dissemos sobre São José, como sendo o chefe da Sagra-


da Família, também é confirmado pela Igreja na ladainha em honra
de São José, aprovada para toda a Igreja por Pio X, em que a invoca-
ção almæ familiæ præses equivale a sacræ familiæ caput, isto é, “chefe
[cabeça] da Sagrada Família”; também no motu proprio de Bento XV
(de 25 de julho de 1920), em que lemos, sobre São José, “ele era o au-
gusto chefe da Sagrada Família de Nazaré”; finalmente, no Prefácio

12. Sermão 51, nº 19 (PL,, 38, 343).

156
Padre Joseph Mueller S. J.

prescrito em 1919, para toda a Igreja, para a festa de São José, em


que o santo patriarca é chamado “servo fiel e prudente, colocado
sobre a família de Deus”. Quando consideramos tudo isso, dificil-
mente parecerá um exagero se dissermos que essa autoridade de São
José, como chefe da Sagrada Família é um tema consagrado na fé da
Igreja.

Consequentemente, em virtude de seu matrimônio virginal


com Maria, a Virgem Mãe de Deus, e por sua paternidade sobre Je-
sus, o Deus feito homem, São José também era o chefe da Sagrada
Família.

2. Como chefe da família, assim dotado com a autoridade que


essa posição lhe conferia, São José tem uma relação toda especial
com Deus Pai.

a) Ele era, assim, de um modo especial, e incomparavelmente


mais que qualquer outra criatura, um representante e um reflexo do
Pai celeste. Poucas palavras bastam para explicar esse ponto.

Pai de Jesus no sentido próprio e completo da palavra é o Pai


celestial, a Primeira Pessoa da Trindade. Ele é Seu Pai natural, por
ter gerado desde a eternidade e estar sempre gerando Sua natureza
divina. Mas Ele também é, pelo menos por apropriação, em contras-
te com as outras Pessoas divinas, o Pai jurídico primário de Jesus,
mesmo quando Este é considerado em Sua natureza humana, pois,
como diz o apóstolo: “a Ele deve sua existência toda [paternidade]
no céu e na terra”13. A paternidade jurídica e espiritual de São José
surge, assim, como uma participação na divina paternidade. Por or-
dem expressa do Pai celeste, São José desempenha os deveres e goza
os direitos de pai de Jesus. Repetidamente, mensageiros vem a ele
com instruções e direcionamentos do Pai celestial. Desse modo, São
José é visto como o representante temporal, visível, do Pai eterno,
sob cuja direção e proteção ele exerce seus direitos e deveres como

13. Ef 3, 15.

157
A Paternidade de São José

pai. Certamente também Jesus e Maria o consideravam um repre-


sentante desse tipo e, portanto, prestariam a mais rápida e voluntá-
ria obediência a seus desejos e ordens. Assim, a autoridade paterna
de São José é um reflexo leve, porém maravilhoso, da autoridade
infinita do Pai celestial.

b) Há outro aspecto na paternidade de São José, pelo qual


ele é especialmente enobrecido e aparece novamente como um refle-
xo da eterna paternidade celestial. Deus Pai gerou Seu Filho eterno
por meio do ato infinitamente perfeito de conhecer a Si mesmo, pelo
qual Ele produziu dentro de Si uma imagem viva e consubstancial
de Si mesmo, a Palavra eterna. Nada pode ser mais afastado de qual-
quer impureza física ou corrupção do que a operação espiritual do
intelecto. Mas também a paternidade de São José não é afetada por
nenhuma mancha física: ela é fundamentada em algo espiritual, o
virginal matrimônio com a Santíssima Virgem, e resultado de um
tipo de concepção espiritual, como explicamos antes. Assim, nova-
mente, a paternidade de São José é um reflexo da paternidade do Pai
celeste.

c) Por mais um motivo a paternidade de São José reflete, tanto


quanto é possível para uma criatura, a paternidade do Pai celestial: o
Pai celeste ama Seu eterno e consubstancial Filho com infinito amor
porque Ele é a infinitamente perfeita imagem de Si mesmo, e, por-
tanto, chama-O Seu Filho bem-amado, em quem Ele se compraz14.
Contudo, desde que Ele desejou que São José fosse Seu representan-
te na Terra, o pai humano de Seu bem-amado Filho, é inconcebível
que Ele não influiria em seu coração um amor paternal correspon-
dente, assim como a Virgem imaculada, que Ele tornou mãe de Seu
unigênito e bem-amado Filho, foi dotada por Ele, sem dúvida, com
um amor materno tão terno e grande que ultrapassa nossa com-
preensão. Logo, São José tinha tanto amor pelo menino Jesus como
se fosse Seu pai natural, mas em um nível incomparavelmente mais

14. Mt 3, 17.

158
Padre Joseph Mueller S. J.

alto e mais perfeito que o melhor pai natural teria por seu filho úni-
co. E os santos doutores dificilmente encontram palavras eloquentes
o bastante para exaltar esse amor de São José. Assim, São Bernardino
de Sena exclama, em um de seus sermões: “São José tinha o mais
ardente amor por Cristo... Que delícia para ele ouvir o menino ain-
da balbuciante chamá-lo de pai... Com um amor imenso ele se sen-
tiu atraído pelo doce Filho que lhe foi dado pelo Espírito Santo por
meio de sua virginal esposa... e a dor intensa pela perda do menino
Jesus mostra a aflição de um pai ternamente amoroso”15.

De modo semelhante, também Isidoro Isolano (nota 92) fala,


em termos radiantes, do amor paternal de São José. Após mostrar,
por vários argumentos, que São José deveria ter um imenso amor
pelo divino Filho que lhe fora confiado, ele diz que José, a partir do
momento em que Jesus nasceu, inevitavelmente revestiu-se de um
novo homem, isto é, de um homem puro e santo, ele tornou-se in-
comparavelmente mais puro e santo, e continua:

“Quão frequentemente ele carregou, amorosamente, o


Menino em seus braços! E quando o Menino começou a bal-
buciar e a dar sinais externos de que o entendia, quantas ve-
zes José diria: ‘O que desejais, meu Filho? Ó, Deus imortal,
diga-me, ordene, comande! Desejaste que me considerem Teu
pai, mas eu só desejo, e me glorio nisso, ser Teu servo. Quem
não te amaria, Tu, tão excessivamente belo, tão sábio, tão forte,
tão poderoso e tão amoroso? És verdadeiro Deus, a sabedoria
do Pai, o esplendor de Sua glória, a salvação da humanida-
de. Adoro-Te, meu Filho, amo-Te e desejo ser amado por Ti.
Aceite meu serviço, que eu gostaria de dar a Ti e a Tua santa
mãe. Onde eu, homem fraco e mortal, falhar, sê meu auxílio.
Ó, doce consolação, ó, fonte de amor, minha alma está derreti-
da pela doçura de Teu amor’. A tais palavras de amor intenso,
a doce voz do Menino responderia, Sua face se iluminaria de
alegria. Não há, então, razão para duvidar que José deve ter

15. Sermão 1 de São José.

159
A Paternidade de São José

amado o Menino com um amor indescritível. Pergunte a al-


guém que ama o Senhor Jesus Cristo, pergunte a alguém que
é amado por Ele. Ele irá responder: Tudo isso é mais claro que
a luz do dia, e para ver não são necessárias provas, basta o
coração de um amante”16.

Bossuet, em um de seus panegíricos sobre São José, tem uma


passagem significante e sugestiva sobre esse amor de São José. Ele
escreve:

“José divide com Maria os cuidados, vigílias e ansieda-


des que devem vinculados à gestação do Filho divino, e para
Jesus ele tem aquela afeição natural, aqueles ternos sentimen-
tos de que apenas um coração paterno é capaz. Mas, alguém
pode perguntar, de onde lhe vem tal coração paternal, se não
lhe foi dado pela natureza? Essas afeições naturais estão dis-
poníveis para serem absorvidas à vontade? Pode a arte imitar
o que apenas a natureza pode escrever no coração? Se, então,
José não é um pai natural, como ele pode ter um coração de
pai? Nós reconhecemos que aqui deve haver ação da mão de
Deus. É graças ao poder do Todo-poderoso que José tem um
coração de pai e, se a natureza não lhe dá um, Deus cria um
para ele com Sua própria mão. Pois a Sagrada Escritura diz
que Deus dirige e transforma o coração dos homens para onde
quer que Ele queira. É essa mão todo-poderosa que deu a José
o coração de um pai e a Jesus o coração de um filho. Então,
Jesus obedece, e José não teme dar ordens a Ele. E de onde lhe
vem essa ousadia de dar ordens a seu Criador? Deste fato: o
verdadeiro (isto é, natural) Pai de Jesus Cristo, Deus, que O ge-
rou desde toda a eternidade, após escolher São José para servir
Seu Filho unigênito como pai no tempo, enviou ao coração de
José um raio ou uma centelha do infinito amor que Ele mesmo
tem por Seu Filho. Isso foi o que mudou o coração de José, o
que deu a ele um amor paternal, e tal amor que o mesmo José,
agora tendo dentro de si um coração de pai formado por Deus,

16. De donis S. Joseph, II, cap. 15.

160
Padre Joseph Mueller S. J.

ao mesmo tempo sente que Deus deseja que ele também faça
uso de sua autoridade como pai, e assim sente-se livre para
dar ordens Àquele que reconhece como seu Senhor”17.

Para concluir, vamos ouvir às eloquentes palavras de um


eminente autor espiritual do último século, padre W. Faber, que dis-
puta com Bernardino de Sena e Isidoro Isolano em exaltar o ilimita-
do amor paternal de São José para com o divino menino Jesus. Ele
escreve:

“De sua alma profunda e calma, José derramara um


oceano de amor, o amor mais humilde, amor menor que o do
Pai, mas também ousando ser assim, como Maria havia sido
como os amores conjugados do Pai e do Espírito, pois ela era
Mãe e Esposa ao mesmo tempo. Nenhum amor temporal, a
não ser o de Maria, poderia ser mais próximo de um amor
eterno que o amor de José pelo Menino, por causa de sua se-
melhança com o amor do Pai Eterno... O amor de José por Je-
sus era, obviamente, retribuído pelo Menino Jesus com um
amor filial correspondente, um amor que pode ser dividido
entre todos os pais na Terra e torná-los mais felizes do que eles
poderiam acreditar”18.

E a esse amor entre Jesus e José é unido o amor mútuo entre


Jesus e Maria, de um lado, e aquele entre Maria e José, do outro, e
esse triplo amor interligado constitui, nas palavras do padre Faber,
a unidade daquela Sagrada Família na Terra, que pode ser apro-
priadamente chamada de trindade terrena, porque é uma imagem
maravilhosa da Trindade celestial. Pois como as três Pessoas divi-
nas são realmente distintas como pessoas, enquanto que idênticas
e únicas na natureza, assim são as três da Sagrada Família, isto é,
distintas como pessoas e, apesar de não serem únicas na natureza,

17. Oeuvres, VII, 176.


18. Bethlehem, p. 136.

161
A Paternidade de São José

são, ainda assim, intimamente ligadas e se tornam uma por seu


maravilhoso amor mútuo.

d) Há, ainda, uma terceira prerrogativa, resultante do matri-


mônio virginal de José com a Mãe de Deus e de sua paternidade so-
bre Jesus: São José pertence à ordem hipostática ou pode ser inserido
nela. Mas esse ponto exige uma explicação mais detalhada em outro
capítulo.

162
12. A
 ordem da
união hipostática

Como dissemos no último capítulo, prosseguiremos com a detalha-


da explicação da doutrina proposta inicialmente por Suárez, que,
como veremos, contribuirá, inclusive, para um entendimento mais
claro do papel que São José desempenhou na obra de nossa salva-
ção. Como é melhor manter a exposição de Suárez diante de nossas
mentes, iniciaremos citando suas próprias palavras:

“Eu não penso ser improvável que a missão ou o ofício


de São José, na medida em que pertence, em algum aspecto, a
uma ordem superior, pode ser chamado mais perfeito que o
ofício dos apóstolos. Pois, em meu entendimento, certas tare-
fas, no reino de Deus, pertencem à ordem da graça santifican-
te, e nessa ordem, pelo que eu entendo, os apóstolos estavam
mais elevados e necessitavam mais das graças extraordinárias
e dos dons de sabedoria que os outros. Mas há tarefas que
pertencem à ordem da união hipostática, que é, por natureza,
mais perfeita, conforme eu disse, quando falei da dignidade
da Mãe de Deus. Nessa ordem, embora no lugar mais baixo,
está o ofício de São José, que excede, assim, todos os ofícios
precisamente porque pertence a uma ordem mais elevada.
Logo, Santo Tomás foi cuidadoso em afirmar que os apóstolos
estão mais elevados que os outros porque seu ofício pertencia
ao Novo Testamento. Mas o ofício de São José não pertencia ao
A Paternidade de São José

Novo Testamento nem, estritamente falando, ao Antigo, mas


ao Autor de ambos, à pedra angular, que dos dois fez um”1.

1. Suárez, então, diz que, em sua opinião, São José, por causa
de seu ofício, isto é, a missão designada a ele por Deus, pertence à
ordem hipostática, em contraposição aos apóstolos, que, por meio
de seu ministério, isso é, do ofício conferido a eles por Cristo, perten-
ciam à ordem comum da graça, da graça santificante.

A última ordem compreende a graça santificante destinada a


todos os homens, juntamente com tudo o que diretamente preserva
a aquisição, preservação e aumento da graça. A ordem hipostática,
ou a ordem da união do Filho de Deus com uma natureza humana
individual em uma pessoa, compreende imediatamente essa natu-
reza humana individual em sua união com o eterno Filho de Deus,
juntamente com todos os outros dons, privilégios e relações que na-
turalmente e imediatamente resultam dessa união para a natureza
humana, e compreende, além disso, também tudo o que direta e afe-
tivamente serviu à realização dessa união.

Logo, assim como o ministério ou ofício dos apóstolos per-


tence à ordem da graça santificante, porque está destinado e serve
à produção da graça santificante nos homens, pertence à ordem da
união hipostática o ministério ou ofício ou a tarefa da Mãe de Deus,
porque ela, em humilde submissão serviu à realização do eterno de-
creto de salvação de Deus, isto é, a encarnação do Filho de Deus.
Assim, também o ministério de São José deve pertencer à ordem
da união hipostática se ele, também, à semelhança da Mãe de Deus,
pela missão designada a ele por Deus, efetivamente serviu à mesma
encarnação do Filho de Deus. Mostrar que São José tinha essa mis-
são e que a desempenhou bem é o propósito da discussão seguinte.
Depois do que dissemos, não será muito difícil mostrar isso e provar
nossa tese de modo convincente. Se o próprio Suárez fala com um

1. De myster. Chri., d. 8, s. 1, nº 10.

164
Padre Joseph Mueller S. J.

pouco de hesitação, é por causa de sua modéstia. Mas desde sua


época, a presente questão tinha sido consideravelmente esclarecida
pela discussão teológica. Vamos a nossa argumentação:

1. Como vimos em nossas discussões anteriores, São José era o


verdadeiro esposo virginal de Maria, a Virgem imaculada e Mãe de
Deus. Ele também era o pai do Filho que era Deus e homem, não, de
fato, o pai natural, por procriação física, mas pai virginal, conforme
os princípios da lei matrimonial e por meio do que podemos chamar
um tipo de geração espiritual. Em consequência, ele tinha todos os
direitos, deveres e atributos característicos de um pai verdadeiro, à
exceção da procriação natural. Finalmente, ele era, verdadeiramen-
te, o chefe da Sagrada Família, não menos que qualquer pai é che-
fe de uma família, conforme as leis divina e humana. Portanto, ele
era o mais próximo e tinha as relações mais imediatas com Jesus e
Maria. A Sagrada Escritura testemunha claramente essas verdades,
especialmente a última, que José era o chefe da Sagrada Família. É
justamente disso que tratamos, detalhadamente, no último capítulo.

Agora, eu desejo apenas destacar o fato de que essa verdade


também está claramente contida na fé geral implícita da Igreja. Pro-
vas disso são oferecidas por vários pronunciamentos e legislações
litúrgicas dos Romanos Pontífices (como Leão XIII, Pio X e Bento
XV), alguns dos quais nos já citamos no capítulo anterior.

Leão XIII declarou:

“Dessa dupla dignidade [como esposo e pai] derivaram


espontaneamente os deveres que a natureza impõe aos pais
de família; assim, pois, São José foi guarda legítimo e natural
da Sagrada Família, e ao mesmo tempo seu chefe e defensor,
exercendo esses ofícios até o fim de sua vida. Foi ele, de fato,
que guardou com sumo amor e contínua vigilância a sua es-
posa e o Filho divino; foi ele que proveu o seu sustento com o
trabalho; ele que os afastou do perigo a que os expunha o ódio
de um rei, levando-os a salvo para fora da pátria, e nos descon-

165
A Paternidade de São José

fortos das viagens e nas dificuldades do exílio foi, de Jesus e


Maria, companheiro inseparável, socorro e conforto”2.

Um breve, mas enfático, pronunciamento e a legislação litúr-


gica de Bento XV já foram citados no último capítulo.

Em 1909, Pio X aprovou, para toda a Igreja, a ladainha de São


José, em que o santo patriarca é invocado como o “Chefe da Sagrada
Família”. Bento XV, em um motu proprio, Bonum sane (25 de julho de
1920), declarou que São José era “o chefe da Sagrada Família”. Em 19
de abril de 1919, o mesmo papa aprovou um Prefácio especial para
as Missas em honra a São José, em que diz que José “é um servo fiel
e prudente, colocado sobre a família de Deus”. Assim tem se expres-
sado os papas de nosso tempo em documentos autênticos.

Essas relações de São José, como verdadeiro esposo da Mãe


virginal de Deus, como pai verdadeiro, embora não natural, de Je-
sus e como chefe da Sagrada Família mostram-no em uma conexão
imediatamente mais íntima com os outros membros da Sagrada Fa-
mília; e a última, como chefe da família, dá a ele certa precedência
sobre Maria, e mesmo sobre Jesus. Mas desde que estes, o Deus feito
homem, Jesus, e Sua mãe virginal, certamente pertencem à ordem hi-
postática, devemos dizer o mesmo de São José por causa de sua união
mais íntima com eles, e porque, como chefe da Sagrada Família, ele
tem certa preferência sobre eles. Isso é ainda mais verdadeiro porque
o casamento virginal entre José e Maria foi arranjado por Deus inteira-
mente e somente em vista da Encarnação e tinha nisso sua única razão
de existir. Logo, esse matrimônio virginal e toda a Sagrada Família
pertencem à ordem da união hipostática, e assim também São José,
como uma parte essencial desse matrimônio virginal e como chefe da
Sagrada Família, evidentemente pertence a essa ordem.

2. Ainda de outra maneira, podemos mostrar essa proposição


verdadeira e certa. Como os apóstolos, por seu trabalho apostólico,

2. Encíclica Quamquam pluries (15 de agosto de 1889).

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Padre Joseph Mueller S. J.

tiveram parte na aplicação dos frutos da Redenção aos homens, di-


fundindo a fé e compartilhando com os homens os tesouros da graça
que o Redentor havia ganhado por eles, e gerando em seus corações
a vida sobrenatural da graça, São José teve um papel efetivo na rea-
lização da encarnação do Filho de Deus, planejada e decretada por
Deus desde toda a eternidade. Já explicamos, anteriormente, como
São José contribuiu para isso: conforme o plano eterno de Deus, a
Encarnação tinha que ocorrer dentro de um matrimônio virginal.
Isso se deu, primeiramente, porque, após a criação do primeiro ho-
mem e mulher, a vida humana deveria ser propagada apenas no e
por meio do casamento; em segundo lugar, e principalmente, por-
que a maneira mais adequada, se não a única, de levar a cabo esse
plano da Encarnação de uma forma apropriada e digna dele era em
um matrimônio virginal. Então, na plenitude dos tempos, e, sem dú-
vida, sob a inspiração divina, Maria e José se uniram em um matri-
mônio virginal, e esse casamento foi escolhido por Deus para que
nele Seu Filho eterno fosse feito carne e se tornasse homem.

Portanto, ao responderem à inspiração de Deus e contraírem


esse matrimônio virginal, Maria e José, não apenas Maria, mas tam-
bém José, cooperaram livre e efetivamente para ocasionar a encarna-
ção do Filho de Deus que tinha sido planejada por Deus desde toda
a eternidade. Sua união virginal abriu caminho para a entrada d’Ele
neste mundo. Eles fizeram isso por seu matrimônio virginal, tanto
por causa de seu matrimônio como de sua virgindade, os quais, no
caso deles, estavam inseparavelmente conectados. E essa união vir-
ginal, logo, sua união e sua virgindade, substituiu o uso carnal do
casamento, do qual depende, em geral, a origem de uma nova vida
humana. É nesse sentido que as palavras de Santo Agostinho devem
ser entendidas quando ele fala da paternidade de São José:

“O que o Espírito Santo operou, Ele operou por ambos...


Estando bem satisfeito com a santidade dos dois, Ele deu o
Filho a ambos. Mas na relação que deveria dar à luz o Filho,
Ele o criou, de modo que o Filho também nasceu para o pai.

167
A Paternidade de São José

Logo, o anjo diz aos dois para darem o nome ao Menino. Aqui,
a autoridade parental se torna evidente... José, portanto, é pai.
Por quê? Porque quão mais casto ele era, mais firmemente era
pai”3.

Já que foi por meio de sua virgindade que José cooperou dis-
positivamente para ocasionar a Encarnação, e já que sua paterni-
dade sobre Jesus é fundada nessa cooperação, quanto mais casto e
virginal ele era, mais verdadeiramente pai de Jesus.

Depois de tudo isso, parece-me que podemos seguramente


tirar a conclusão: porque São José não apenas manteve as mais pró-
ximas e íntimas relações com as santíssimas pessoas, Jesus e Ma-
ria, mas também por causa de seu matrimônio virginal, ou seja, sua
fidelidade marital e sua virgindade, cooperou dispositivamente na
Encarnação, ele claramente pertence à ordem da união hipostática.
Além disso, José pertence a essa união porque a ele, como esposo e
como chefe da Sagrada Família, foi confiada a proteção de sua espo-
sa virginal, quando o poder do Altíssimo a encobriu com sua som-
bra, bem como a do menino Jesus mesmo antes de seu nascimento; e
porque ele desempenhou essa tarefa sob as mais difíceis condições,
com o mais fiel e devotado amor de um esposo e um pai e, assim,
efetivamente protegeu e preservou o maior tesouro que esta Terra já
teve: a vida humana do Filho de Deus e Redentor da humanidade.

3. Nós ouvimos [Santo] Agostinho e vimos que a doutrina


aqui apresentada está bem de acordo com sua visão, e o mesmo deve
ser dito de outros Padres e doutores. Ouçamos o que alguns deles
dizem sobre esse tema. As palavras ditas pelo anjo que apareceu a
José em seu sonho para eliminar suas dúvidas sobre a Santíssima
Virgem são interpretadas por São [João] Crisóstomo assim: “Não
acredite que, porque o que dela vai nascer é do Espírito Santo, tu
estás, portanto, excluído do ministério dessa dispensação, isto é, da

3. Sermão 51, nº 30 (PL, 38, 351).

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Padre Joseph Mueller S. J.

Encarnação”4. Evidentemente, o santo considera que São José per-


tence à ordem da dispensação, isto é, à ordem hipostática.

Encontramos pensamentos similares nos sermões de São


Bernardo:

“Lembra-te daquele grande patriarca que, uma vez, foi


vendido ao Egito. A ele foi dado entender o significado oculto
dos sonhos. Mas a José foi concedido tornar-se familiarizado
com, e mesmo ter parte em, mistérios celestiais... Não há dú-
vida de que José, por quem a Mãe do Salvador foi desposada,
era um homem bom e fiel, um servo fiel e prudente, a quem
o Senhor tinha escolhido para ser um ajudante para essa mãe,
um provedor para Suas necessidades diárias, e como o único
na Terra a cooperar fielmente na realização desse grande de-
sígnio... O Senhor encontrou outro Davi, um homem segundo
Seu próprio coração, a quem Ele pôde, com segurança, con-
fiar o segredo mais oculto de Seu coração, “as coisas incertas
e ocultas de Sua sabedoria”5, a quem Ele permitiu conhecer
aquele mistério que nenhum dos príncipes deste mundo co-
nheceu. E o que muitos reis e profetas desejaram ver, mas não
viram, ouvir, mas não ouviram: a José foi dado não apenas
ver e ouvir, mas carregá-Lo em seus braços, guiá-Lo pela mãe,
abraçá-Lo, beijá-Lo, alimentá-Lo e protegê-Lo”6.

Dentre os representantes da Neoescolástica, nós já ouvimos


Suárez, que mais do que os outros merece crédito por seu tratado
magistral sobre São José na teologia dogmática. Outro teólogo do
mesmo período, mais ou menos, especialmente famoso como um
estudioso das Escrituras, Cornélio a Lápide, ensina o mesmo que
Suárez, embora não use a mesma fraseologia, sobre o pertencimento
de São José à ordem hipostática:

4. In Matth., 4, nº 6 (PG, 57, 46).


5. Cf. Sl 50, 8.
6. Super “Missus est”, homilia 2, nº 16 (PL, 183, 69).

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A Paternidade de São José

“Cristo pertenceu, no sentido próprio, à família de São José,


pois Ele pertenceu à família de Sua mãe e ela pertenceu à família de
José, seu esposo. Havia na Terra, então, uma família excessivamente
distinta, celestialmente divina, em que o pai era José, que presidia
e regia, a mãe era a Santíssima Virgem e o Filho era Cristo. Nes-
sa família existiam, portanto, as pessoas mais elevadas e nobres do
mundo: a primeira, Cristo, como Deus e homem; a segunda, a Mãe
virginal, que, de todas, era a pessoa mais próxima a Cristo; a tercei-
ra, José, como pai matrimonial de Cristo”7.

Dos teólogos modernos, citaremos apenas dois, que, como


Cornélio a Lápide, assumem o mesmo testemunho, embora não
usando a terminologia teológica de Suárez porque eles tratam do as-
sunto de modo popular ou apenas de passagem. O primeiro é Kleu-
tgen, que diz, em um de seus sermões:

“Grandes eram a vocação e o mérito dos profetas que


prenunciaram Cristo, do precursor, que preparou o caminho
para Ele, dos apóstolos, que fundaram Sua Igreja; não deve-
mos considerar como grande e sublime o ofício e o mérito da-
quele que O serviu, nutriu e guardou? Não tem a pessoa de
Cristo valor inestimavelmente mais alto do que a Igreja que
Ele fundou? E não devemos apreciar muito mais generosa-
mente os serviços pelos quais Sua vida foi preservada do que
aqueles pelos quais Seu nome foi dado a conhecer ao mundo?
É verdade, todos os serviços que São José pôde fazer para Ele
puderam ser feitos para Ele apenas em Sua humanidade; mas
não foram feitos, portanto, para Ele? Quem foi que nessa na-
tureza humana viveu e trabalhou, quem nela e através dela
foi um homem? Foi Ele que, em Sua natureza divina, vive e
opera com o Pai e o Espírito Santo, que é o Filho unigênito,
o Verbo eterno. Assim como é verdade que Maria, em cujo
ventre apenas a humanidade de Cristo foi formada, deu à luz
Deus Filho, também é verdade que José alimentou e protegeu

7. In Matth., 1, 16.

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Padre Joseph Mueller S. J.

Deus Filho. Este é precisamente o grande mistério da divina


condescendência: Ele, que pelo poder de Sua divindade nutre
e guarda a existência de toda a criação, desejou, na fraque-
za de Sua humanidade, ser protegido pelo homem. E ainda
mais. Como o Filho de Deus tornou-se nosso Redentor, senão
assumindo a natureza humana e, nela, sofrendo e morrendo?
É exatamente por isso que todas as gerações chamarão Maria
bendita, como mãe do Redentor, porque dela o Filho de Deus
recebeu sua natureza humana. Então, a mesma vida humana
que Maria deu ao Filho de Deus, como qualquer mãe dá a seu
filho, José preservou, como um pai preserva a vida de seu fi-
lho. José nutriu aquele corpo que foi sacrificado pela salvação
de todos nós; aquele sangue que foi dado em resgate por todos
nós; aquele corpo que tornou-se o alimento de nossas almas,
aquele sangue que seria para nós a bebida da vida eterna. José
do Egito armazenou trigo durante os vários anos férteis para
distribui-lo ao povo durante os anos estéreis. Mas José, o es-
poso de Maria, não apenas manteve em segurança o pão vivo
que desceu do Céu, mas também o manteve vivo e nutrido
para que todas as pessoas pudessem ser nutridas por ele para
a vida eterna”8.

Kleutgen não fala aqui, de fato, explicitamente de qualquer


cooperação de São José quando a vida humana do Filho de Deus
estava para vir à existência, mas, em vez disso, fala dele preservan-
do-Lhe a vida. Mas mesmo essa última atividade, especialmente
quando consideramos que ele era parte daquela família e o chefe
dela, oferece, como parece evidente, um fundamento suficientemen-
te sólido para a inclusão dele na ordem hipostática.

Como segunda testemunha, nós citamos Billot:

“José era mais próximo de Cristo que os outros, tanto


por causa de sua tarefa oficial de desempenhar todos os deve-
res de um pai relativos a Cristo, exceto a concepção, quando

8. Sermões, I, 298.

171
A Paternidade de São José

porque ele era o chefe daquela união marital ordenada direta-


mente por Deus para o propósito de receber e criar Cristo”9.

Finalmente, pode-se dizer que essa doutrina está ganhando


mais e mais fundamento e pode ser chamada uma certeza teológica.

2. Para entender completamente o que significa São José per-


tencer à ordem da união hipostática, assim como nossos argumentos
provam, precisamos mostrar brevemente que, além de Maria e José,
nenhuma criatura, nem anjo nem homem, nem mesmo São João Ba-
tista, nem os apóstolos, por tarefa imposta a eles pode Deus ou por
seu ofício, pertenceu à ordem da união hipostática.

a) A prova para essa afirmação adicional não é difícil. Pri-


meiro, um argumento geral, para mostrar que todas as
tarefas e ofícios mencionados há pouco e todas as outras
concebíveis estão excluídos da ordem hipostática. Todas
essas várias tarefas ou ofícios não implicam ou indicam
qualquer influência sobre a união hipostática. Elas a pres-
supõem como já existente, portanto, não pertencem a ela.
Todos esses ofícios poderiam ter sido instituídos mesmo
se o Filho eterno de Deus tivesse assumido uma natureza
humana, não sendo concebido e nascido de uma Virgem,
mas de outra forma, por exemplo, se Ele tivesse vindo a
este mundo como um homem adulto. Esses ofícios não
têm relações internas com a Encarnação. Os responsáveis
por eles não são, assim, postos em uma conexão tão estrei-
ta e imediata com o Filho de Deus feito homem, e, portan-
to, com a Encarnação, como ela realmente aconteceu; logo,
não podem pertencer de forma alguma à ordem da união
hipostática.

b) Consideremos também cada um desses ofícios separada-


mente.

9. De verbo incarn., VII, 423.

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Padre Joseph Mueller S. J.

1. Parece que o arcanjo Gabriel, que anunciou a Maria sua


escolha como mãe de Deus, contribuiu efetivamente para a execução
da Encarnação e, portanto, pertenceu à ordem da união hipostática.
Mas essa missão do anjo era, primeiramente, um serviço transitório
de que a Encarnação não dependia de forma alguma. Não estabele-
ceu qualquer relação interior permanente do anjo com o mistério da
Encarnação, como encontramos em Maria e José. Era o ofício de um
mensageiro, de um intermediário, como se diz, entre Deus e a San-
tíssima Virgem, que era e permaneceu totalmente externo ao misté-
rio da Encarnação; um ofício que não estabeleceu relação especial
ou essencial entre Jesus, Maria e José, de um lado, e o anjo, de outro.

Temos que dizer o mesmo sobre os profetas, que, sob a inspi-


ração de Deus, prenunciaram a Encarnação. Suas profecias pressu-
punham a Encarnação vindoura como um evento maravilhoso que
se daria no futuro, com Deus como sua causa principal e uma Vir-
gem e seu esposo virginal como causas ministeriais. Mas os profetas,
por suas profecias, não tinham qualquer relação interior real com o
mistério; e muito menos eles próprios exerceram alguma influência
sobre a Encarnação.

2. Uma dificuldade, portanto, parece causada por São João


Batista, de quem o próprio Senhor disse: “Entre os filhos das mulhe-
res, não surgiu outro maior que João Batista”10. Logo, ele também
deveria pertencer à união hipostática. Mas essa dificuldade não é
mais que aparente. O ofício ou tarefa de São João Batista nada tinha
a ver com causar a Encarnação, mas, evidentemente, pressupõe-na.
Sua tarefa era fazer os homens conhecerem a Encarnação e crerem
nela, portanto, pertenceu à ordem comum da graça, ela própria um
resultado da Encarnação. Ademais, tais palavras não podem ser to-
madas no sentido aparentemente universal que parecem ter. Entre
aqueles nascidos de mulher também estão o próprio Cristo, o Se-
nhor, e Sua santa mãe. Deveriam eles, por acaso, ser considerados

10. Mt 11, 11.

173
A Paternidade de São José

inferiores a João Batista? Obviamente, isso é impensável. Eles são


uma exceção, e nada impede nossa crença de que São José também
era uma exceção.

Mas o que realmente significam aquelas palavras peculiares?


Para responder a essa questão nós devemos, conforme as regras ge-
rais de interpretação, consultar passagens paralelas da Escritura e
o contexto. Em uma passagem paralela, São Lucas diz: “Entre os
nascidos de mulher, não há maior profeta que João”11. E outra re-
gra da interpretação diz que, entre passagens paralelas, a que dá o
sentido mais fiel e exato é aquela que usa palavras mais definidas e
concretas. A resposta, portanto, é essa: Cristo, o Senhor, não com-
para São João com todos os homens, mas apenas com os profetas, e
assim sendo, diz que nenhum profeta é maior do que João Batista.
O contexto também nos oferece a mesma explicação, pois ambos os
Evangelistas citados usam a seguinte continuação: “Entretanto, o
menor no Reino de Deus é maior do que ele.” Com essas palavras,
nosso Senhor quis dizer que o menor ofício no Novo Testamento é
maior e mais elevado do que o ofício mais alto no Antigo Testamen-
to, ao qual São João Batista pertencia. Não há aqui qualquer tipo de
comparação entre São José com São João Batista, e o fato de que São
João era o maior profeta do Antigo Testamento não tem valor para
provar que ele pertencia à ordem da união hipostática.

11. Lc 7, 28. N. R.: No texto bíblico, não se encontra a palavra “profeta”


nessa citação. Ela é depreendida do contexto. Se tomado literalmente,
o versículo diria o mesmo que a passagem de Mateus e não serviria
para o propósito do autor.

174
13. A
 elevada dignidade
de São José

Nos capítulos anteriores, explicamos e provamos que São José era


o esposo a Mãe virginal de Deus; que, em um sentido verdadeiro e
próprio, também era o pai do menino Jesus, o Deus feito homem;
que, consequentemente, ele era o chefe da Sagrada Família e que
agiu como tal; que, devido a esses fatos e privilégios, ele pertenceu
à ordem da união hipostática. Lançamos, portanto, as bases e, ao
mesmo tempo, estabelecemos as normas ou padrões de medida para
nos guiar na formação de uma estimativa verdadeira da posição ele-
vada de São José no reino de Deus, de sua grandeza e dignidade
sobrenaturais. Consideremos, então, brevemente, essas bases e es-
sas normas, além de alguns outros aspectos, ainda não mencionados
até aqui, e não será difícil formarmos um julgamento correto e justo
dessa questão.

1. São José era e será sempre o esposo virginal da imaculada


Virgem e Mãe de Deus, o “esposo de Maria, da qual nasceu Jesus,
que é chamado Cristo” (Mt 1, 16). Esse santo matrimônio é a pri-
meira base e a primeira norma de sua elevação e dignidade sobre-
naturais. Pelo casamento, marido e mulher entram na mais íntima
união um com o outro do que é imaginável entre os homens. Eles
se tornam não apenas uma só carne ou um único princípio de uma
nova vida humana, mas um só coração e uma só alma, em uma pes-
soa moral, embora não física. O matrimônio geralmente implica que
A Paternidade de São José

os esposos compartilhem entre si não apenas os bens materiais, mas


também os espirituais e morais, tanto quanto seja possível; portan-
to, também há igualdade na posição social. Contudo, desde que a
Santíssima Virgem, por causa de sua maternidade divina, ultrapassa
todos os seres criados em dignidade e excelência, e como São José
era, verdadeiramente, seu esposo virginal, ele, por seu matrimônio
virginal com ela, foi, necessariamente, elevado à inestimavelmente
grande dignidade e excelência dela, tanto quanto é possível. É o que
mostra Leão XIII em sua encíclica sobre São José (Quamquam pluries):

“As razões pelas quais São José deve ser tido como Pa-
trono da Igreja – e a Igreja, por sua vez, espera muitíssimo de
sua especial proteção – residem, sobretudo, no fato que ele é
esposo de Maria e pai putativo de Jesus Cristo. Daqui derivam
toda a sua grandeza, graça, santidade e glória. Sabemos que a
dignidade da Mãe de Deus é altíssima e que não pode haver
uma maior. Mas dado que entre a beatíssima Mãe de Deus e
São José existe um verdadeiro vínculo matrimonial, é também
certo que São José, mais que qualquer outro, se aproximou da-
quela altíssima dignidade que faz da Mãe de Deus a criatura
mais excelsa. De fato, o matrimônio constitui, por si mesmo, a
forma mais nobre de sociedade e de amizade, e traz consigo a
comunhão dos bens. Portanto, se Deus deu José como esposo
a Maria, deu-o não só como companheiro de sua vida, teste-
munha de sua virgindade e tutor de sua pureza, mas também
como participante – por força do vínculo conjugal – da excelsa
dignidade da qual ela foi adornada”.

As observações adicionais seguintes podem contribuir para


uma compreensão total do argumento contido nas palavras prece-
dentes de Leão XIII. O matrimônio virginal entre José e Maria, con-
forme o plano de Deus, tinha apenas um propósito: ser submisso à
encarnação do Filho de Deus, como dissemos mais de uma vez. Sob
a inspiração de Deus sapientíssimo, Maria e José uniram-se em um
virginal matrimônio para que, como um único princípio moral – José
apenas moralmente, Maria também fisicamente –, eles pudessem e,

176
Padre Joseph Mueller S. J.

de fato, colaborassem dispositivamente para a grande e maravilho-


sa obra de Deus. Mas se eles, unidos intimamente como eram, coo-
peraram juntos nessa grande tarefa, São José deve, no mínimo, ter
participado, de alguma forma, da maravilhosa elevação de Maria,
daquela dignidade sem medida que lhe era devida como Mãe de
Deus. O oposto soaria como uma nota discordante nessa obra ma-
ravilhosamente harmoniosa de Deus, a Encarnação. Simplesmente
não se pode pensar em um tipo de casamento morganático entre
Maria e José.

Quando, portanto, Leão XIII, na passagem supracitada, diz


que São José participou da elevada dignidade de Maria é porque
isso é demandado pela própria natureza do fato. Ademais, que São
José foi chamado por um especial decreto divino a tornar-se o espo-
so virginal da Virgem Maria é uma verdade incontestável, deman-
dada pelo próprio propósito a que esse matrimônio deveria servir,
e está descrito claramente dos documentos da Igreja. Já citamos as
palavras de Leão XIII: “Deus deu José como esposo a Maria”. Seu
grande predecessor Pio IX, que foi o promotor principal da venera-
ção a São José, disse o mesmo em palavras claras e explícitas. A carta
apostólica de 7 de julho de 1871, em que ele finalmente regulou a
veneração litúrgica de São José como patrono da Igreja universal,
começa com as palavras seguintes:

“Com justiça a Igreja Católica segue com um culto


sempre mais difundido e venera com mais íntimo afeto o
insigne patriarca, o Bem-aventurado José, coroado de glória
e de honra no céu, que Deus Onipotente, entre todos os seus
santos, quis como puríssimo e verdadeiro esposo da Imacu-
lada Virgem Maria e pai putativo de seu Filho Unigênito, e a
fim de que cumprisse com fidelidade uma obra tão sublime,
fortaleceu-o e enriqueceu-o abundantemente com graças es-
peciais”1.

1. Carta apostólica Inclytum Patriarcham, de 7 de julho de 1871.

177
A Paternidade de São José

Na mesma carta, o papa decretou que São José deveria ser


mencionado com outros santos em várias partes na liturgia e que a
oração da festa do Patrocínio (agora solenidade) de São José fosse
adicionada em alguns casos; essa oração claramente indica que São
José foi escolhido e indicado como o esposo da Santíssima Virgem:
“Ó Deus, que em Vossa inefável providência Vos dignastes escolher
o Bem-aventurado José para esposo de vossa Mãe Santíssima, vo-lo
pedimos que, venerando-o na terra como protetor, mereçamos tê-lo
no céu como intercessor”.

A escolha especial de São José como esposo da Santíssima


Virgem é parte, portanto da fé implícita da Igreja, bem como sua
eminente dignidade, pelo que, nesse aspecto, junto à mãe de Deus,
ele excede todos os seres criados, homens e anjos. Digo “seres cria-
dos” por causa da natureza humana de Cristo, que, em si mesma,
não é uma pessoa, mas, obviamente, ultrapassa Maria e José em dig-
nidade porque participa da infinita majestade da Segunda Pessoa da
Santíssima Trindade e com ela é adorada com o mais alto culto de
adoração (supremo culto latriæ).

2. A segunda base e, portanto, a segunda norma da grandeza


e dignidade de São José é sua paternidade sobre Jesus, o Deus feito
homem. Aquele que continua tentando entender melhor essa pater-
nidade, especialmente como interpretada por Santo Agostinho, deve
considerá-la ainda mais maravilhosa e sublime, para que somente a
infinita sabedoria de Deus, juntamente com Seu amor e compaixão
sem limites pelo homem, possam concebê-la e fazerem dela uma
realidade. Essa paternidade deu a José todos os direitos, atributos e
prerrogativas de um verdadeiro pai, não em relação a um mero ser
humano, mas em relação a Jesus, que é Deus e homem. São José era,
portanto, como vimos, como pai do menino Jesus, verdadeiramente
uma imagem do Pai celestial e Seu representante na Terra. Em vista
disso, não se pode pensar em estatura maior a que um homem possa
ser elevado, como é impensável que uma mulher possa ser elevada
acima da mãe de Deus.

178
Padre Joseph Mueller S. J.

Por meio dessa paternidade, São José parece ter sido elevado
ainda mais do que por seu matrimônio virginal com a imaculada
Mãe de Deus. A preeminência dessa paternidade se torna tão clara
e quase visível quando vemos Maria e Jesus prestando reverência e
obediência a ele, pois como marido de Maria e pai de Jesus, ele tam-
bém era o chefe da Sagrada Família, como mostramos em detalhes
em um capítulo anterior. Já tocamos aqui a terceira base, a terceira
norma da alta dignidade de São José.

3. São José, como chefe da Sagrada Família. Apenas umas pa-


lavras também sobre esse tema. A função do chefe da Sagrada Fa-
mília, quando entendida corretamente parece tão sublime que, em
dignidade, ultrapassa qualquer dons ou distinção sobrenatural que
possa ser concedido aos homens. O Filho eterno de Deus, que tem a
mesma natureza e glória com o Pai e o Espírito Santo, o Redentor e
Rei de todos os homens, reconheceu, como também Sua santa mãe, a
autoridade de São José e foi submisso não apenas a ela, mas também
a ele. “Era-lhes submisso”, como o Santo Evangelho diz. Entende-
-se, é claro, que Ele era submisso apenas em Sua natureza e vontade
humanas e, como já dissemos, não por uma obrigação estrita, mas
por condescendência e por razões de conformidade, apenas no que
os interesses domésticos físicos e temporais exigiam e com o intuito
de ensinar a nós, homens, por Seu exemplo, como devemos consi-
derar e respeitar devidamente todas as autoridades legítimas. Essa
submissão não se estendia aos aspectos ligados a Sua missão como
o divino Redentor, o que o próprio divino Menino delicadamente
deu a entender a Seus pais após ter se perdido e ser reencontrado no
templo: “Não sabeis que devo ocupar-me das coisas de meu Pai?”2.
Finalmente, essa dependência do menino Jesus não pode ser esten-
dida a Sua fase adulta, o que não é exigido mesmo aos homens co-
muns. Mas não há dúvida de que Jesus nunca deixou de mostrar a
Seus pais devoção, reverência e amor filiais, como Ele, sem dúvida,
faz ainda agora no Céu, tendo mais consideração com seus pedidos

2. Lc 2, 49.

179
A Paternidade de São José

e intercessões que com os dos outros patronos ou intercessores. Não


obstante todas as restrições, quão maravilhosa é a posição de São
José como chefe da Sagrada Família! Já ouvimos com admiração que
São Bernardo fala disso e, como ele, também Gerson, o chanceler da
Universidade de Paris. E a Santa Igreja, maravilhada, canta a São
José em sua festa:

Deus, Rei dos reis e Senhor de toda a criação,


Ele, a cujo assentimento as hordas infernais tremem,
Aquele a quem os céus prostrados estão sempre servindo,
Foi submisso a ti.

4. A quarta base e quarta norma da maravilhosa grandeza e


dignidade de São José é sua inclusão na ordem hipostática, de que já
falei no capítulo anterior. Essas bases e normas não são tão distintas
realmente quanto formalmente. De qualquer modo, elas estão tão
intimamente conectadas que uma pode ser considerada o resultado
ou a conclusão lógica da outra: sua paternidade vem de seu matri-
mônio virginal, sua liderança sobre a Sagrada Família vem de sua
paternidade, e de todas essas deriva sua inclusão na ordem da união
hipostática. Um tratamento separado desses aspectos permitirá um
entendimento mais claro e uma apreciação mais profunda das prer-
rogativas de São José.

Acrescentemos algumas outras razões teológicas, de um modo


mais escolástico, baseadas em uma ou outra dessas quatro normas
ou em algumas delas juntas.

5. A dignidade ou grandeza sobrenatural de um ser humano


é tão maior quanto mais intimamente ele está unido à dignidade e
majestade divinas, ou quanto mais próxima é sua relação com Deus.
Por causa de uma união tão íntima ou de uma relação próxima, a
dignidade divina transborda, por assim dizer, para a pessoa criada
que está unida, e esta compartilhará mais plenamente essa dignida-
de quanto mais íntima a união e mais próxima a relação for. Desse

180
Padre Joseph Mueller S. J.

modo, a natureza humana de Cristo possui uma absoluta e infinita


dignidade e majestade, já que por sua união hipostática com o Filho
de Deus foi levada à unidade com essa pessoa divina e apropriada
completamente por essa pessoa divina. A Santíssima Virgem Maria,
por sua vez, sendo a Mãe virginal de Deus, é, após a natureza huma-
na de Cristo, de todas as criaturas, a mais intimamente unida a Deus
e, portanto, depois de Deus e da natureza humana de Cristo, possui
a maior dignidade e, assim, por causa disso, ultrapassa infinitamen-
te todas as outras criaturas.

Depois da Mãe de Deus, na ordem sobrenatural, nenhuma


outra criatura está tão intimamente conectada a Deus, nenhuma tem
relações tão próximas com uma pessoa divina como São José. Ele é o
casto esposo da Mãe de Deus, o verdadeiro, embora não fisicamente,
pai de Jesus, o Deus feito homem, e o chefe da Sagrada Família; com
Maria, ele pertence à ordem da união hipostática, à qual nenhum
outro ser criado pertence. A conclusão lógica, portanto, é: em digni-
dade e majestade sobrenaturais, São José, logo após Maria, ultrapas-
sa todas as criaturas, todos os anjos, todos os santos, pois apenas a
Mãe de Deus e ele pertencem à ordem da união hipostática, como já
vimos no capítulo anterior.

6. A dignidade sobrenatural de São José é relativamente infi-


nita. Para ver o que essa afirmação significa e quão bem está funda-
mentada, basta considerar brevemente a paternidade de São José.
A dignidade de um pai é proporcional à inata dignidade natural de
seu filho, e é medida por ela, ou seja, quanto maior a inata dignidade
natural de seu filho, maior será a dignidade do pai. Por sobrena-
tural dispensação e providência de Deus, São José foi destinado a
ser o verdadeiro e adequado pai de Jesus, logo, a dignidade de sua
paternidade deve ser medida conforme à inata dignidade do Deus
feito homem, Jesus. Mas a dignidade e a majestade do menino Jesus,
por ser Ele o Filho natural de Deus e verdadeiro Deus, é simples-
mente infinita, no sentido estrito. Portanto, também a dignidade da
paternidade de São José sobre o menino Jesus, Deus feito homem, é

181
A Paternidade de São José

relativamente infinita, isto é, como verdadeiro pai de Jesus, Deus hu-


manado, São José possui grandeza e dignidade sobrenaturais como
nenhum outro ser humano, excetuando apenas a Mãe de Deus, que,
em razão de sua conexão mais íntima e maravilhosa com Deus, ou
seja, com o menino Jesus, Deus feito homem, está mais perto de
Deus, em dignidade e majestade sobrenaturais, que São José. Assim,
como a dignidade da maternidade virginal de Maria ultrapassa infi-
nitamente a de qualquer outra maternidade, também a paternidade
de São José excede, igualmente, qualquer outra paternidade.

Para entender a força desse argumento, precisamos apenas


recordar que os teólogos, de modo semelhante, provam que um
pecado mortal é uma ofensa relativamente infinita cometida con-
tra Deus. Sua argumentação parte do princípio geralmente aceito
de que uma ofensa é mais grave em sua natureza quanto maior
for a dignidade da pessoa ofendida. Mas desde que o ofendido
pelo pecado mortal é o próprio Deus, em Sua infinita majestade e
dignidade, um pecado mortal, considerado como uma ofensa con-
tra Deus, precisamente nesse aspecto, é relativamente infinito, ou
seja, ultrapassa infinitamente todas as outras ofensas cometidas
pelos homens.

Contra essa argumentação, pode-se objetar, talvez, que os


dois casos são diferentes, que o próprio São José não contribui de
forma alguma para a infinitamente elevada dignidade do menino
Jesus e, portanto, também não contribui para sua própria dignidade
paternal. É realmente verdade que São José não poderia contribuir
ou adicionar coisa alguma à infinita dignidade do menino Jesus,
mas, agindo como o pai que era, ele contribuiu, de sua parte, quan-
do a Encarnação estava para ser realizada, e, assim, também agiu,
de alguma forma, em vista de obter sua gloriosa paternidade. Ade-
mais, por seus grandes méritos e santidade, ele tinha preparado a
si mesmo merecidamente para ser escolhido como pai de Jesus, de
maneira análoga à qual a Mãe de Deus tinha preparado a si mesma
para sua divina maternidade.

182
Padre Joseph Mueller S. J.

7. A paternidade de São José excede em dignidade mesmo a


graça santificante e a visão beatífica. Para evitar qualquer mal-enten-
dido, devemos fazer algumas observações preliminares. a) O ponto
de comparação, aqui, é apenas a dignidade que se atribui à pater-
nidade de São José, por um lado, e à graça santificadora e à visão
beatífica, por outro. Não se trata de comparar as perfeições físicas
intrínsecas aos dois lados, nem as respectivas grandes capacidades
que as duas têm de dar felicidade aos homens e aos anjos. b) Nós
abordamos a paternidade de São José no sentido que já explicamos.
Nesse sentido, ela também inclui a graça santificante, embora ape-
nas in exigentia et radice, como explicaremos depois, não et formaliter.

Vamos à prova. A graça santificante torna seu objeto (o que a


possui) um filho adotivo de Deus, mas a paternidade de São José faz
dele o real e digno pai do menino Jesus, embora não corporalmente;
então, a real e digna paternidade sobre o menino Jesus, embora não
corporalmente, mas em um sentido espiritual, é muito superior a
uma filiação por adoção, assim como, entre os homens, um pai físico
ocupa uma dignidade muito superior à de um filho adotivo. Portan-
to, a paternidade de São José sobre o menino Jesus é incomparavel-
mente superior à adoção por Deus.

Para tornar isso ainda mais claro, precisamos de outro co-


mentário: o valor inteiro e, é claro, muito grande de ser filho de Deus
por adoção consiste essencialmente nisso: que por meio dela, aquele
que é dotado da graça santificante ou é um filho adotivo de Deus re-
cebe o direito de participar da visão beatífica, que por si só e por sua
natureza pertence somente a Deus. Mas a isso o verdadeiro pai do
Filho de Deus, São José, tem mais direito que um filho adotado, pois
a verdadeira paternidade traz consigo connaturaliter (ou seja, natu-
ralmente) os bens do Céu. Tampouco esse direito é prejudicado pelo
fato de São José ser o pai do Filho de Deus apenas no que diz respei-
to à natureza humana de Jesus. Pelo contrário, esse fato enfatiza o
direito de São José porque é em Sua natureza humana que o Reden-
tor sofreu e morreu para obter-nos o direito àqueles bens celestes.

183
A Paternidade de São José

Desde que o Filho de Deus deu a Si mesmo como filho tanto a José
como a Maria, Ele certamente também daria a Seus pais, juntamente
com essa paternidade e maternidade, o direito às coisas boas que
Ele tem no céu. Mais do que em qualquer outra parte, é aqui que as
palavras do Apóstolo se aplicam em seu significado mais completo:
“Como não nos dará, também, com Ele todas as coisas?”3.

Para provar nossa afirmação de que a paternidade de São José


ocupa um lugar mais alto em dignidade que a graça santificante, po-
demos usar aqui, adaptado a nosso propósito, um argumento pelo
qual Suárez mostra que a dignidade da maternidade da Santíssi-
ma Virgem é incomparavelmente maior que aquela concedida pela
graça santificante e a glória do Céu ao homem: Como a natureza
humana de Cristo, por causa da união hipostática, exige o mais alto
grau de graça e glória, também a Santíssima Virgem, por ser a mãe
de Jesus Cristo, Deus feito homem, e São José, por ser seu pai, têm
direito a uma proporcional plenitude de graça e glória celestial.

Desse modo, a maternidade virginal de Maria e, portanto,


também a paternidade virginal de José são, no verdadeiro sentido, o
primeiro princípio e fonte de todas as graças com as quais foram do-
tados e também dessa grande dignidade que resultou dessas graças,
e que a maternidade e a paternidade contêm, de acordo com o pla-
no onisciente de Deus, a graça santificante ordinária e a glória a ela
devida, em uma medida muito maior. Portanto, a maternidade da
Santíssima Virgem e a paternidade de José, nesse aspecto, são muito
superiores à graça santificante e à glória que lhe é devida, e certa-
mente um favor muito maior foi feito por Deus à Santíssima Virgem
e a São José, quando Ele os escolheu para serem, respectivamente, a
mãe e o pai do Deus feito homem, que o feito a São Pedro, quando o
Deus o selecionou para um lugar glorioso no Céu.

8. Que a dignidade de São José ultrapassa a de São João Ba-


tista e a dos apóstolos, já discutimos no capítulo anterior, em que

3. Rm 8, 32.

184
Padre Joseph Mueller S. J.

mostramos que nem São João Batista nem os apóstolos pertenceram


à ordem hipostática.

Após tudo o que dissemos sobre São José nestas páginas, uma
suspeita pode ter ficado em algumas mentes de que colocamos São
José praticamente em igual condição com a Mãe de Deus, o que seria
contrário a tudo que a Igreja crê. Trataremos dessa objeção antes de
encerrarmos este livro.

185
14. A
 eminente santidade
de São José

Até aqui, consideramos em detalhes a posição ou lugar que São José


ocupa na economia sobrenatural da salvação. Esse lugar é o mais
eminente por causa do matrimônio virginal de São José com a san-
ta Mãe de Deus, sua paternidade sobre o divino menino Jesus, sua
posição como chefe da Sagrada Família e sua inclusão na ordem da
união hipostática. Entre todos os outros seres criados, ele ocupa, no
reino de Deus, o primeiríssimo lugar, após a Bem-aventurada Mãe
de Deus. A questão, agora, é: Encontramos em São José uma prática
heroica de virtude ou uma santidade pessoal correspondente a sua
sublime posição? A resposta é um inquestionável “sim”. Esse é o
tema deste capítulo.

1. A santidade eminente de São José é atestada pelas palavras


claras da Sagrada Escritura. No Evangelho, lemos:

“‘José, seu esposo, que era homem justo’1. O que signi-


fica a palavra ‘justo’? Quase todos os Padres e exegetas dos
tempos posteriores consideram que essa expressão significa
uma completa perfeição moral, virtude e santidade. [São João]
Crisóstomo diz (sobre Mt 1, 19): ‘José, seu esposo, que era um

1. Mt 1, 19.
A Paternidade de São José

homem justo’. ‘Justo significa, aqui, alguém dotado de toda a


virtude... pois a justiça é a virtude geral (isto é, que inclui to-
das as outras), e a Sagrada Escritura usa a palavra, sobretudo,
nesse sentido, como em Jó 1, 1: ‘Um homem justo, reto’, e em
Lucas 1, 6: ‘Ambos eram justos’”2.
[Santo] Ambrósio (sobre Lc 3, 4) diz: “O justo não age
contra o que é prescrito pela lei”3.
[São] Jerônimo deveria ter o mesmo sentido em mente,
quando escreveu (sobre Mt 1, 19): “Como José poderia ser des-
crito como justo, se escondesse um crime de sua esposa?”4.

Essa interpretação dos Padres é seguida pelos exegetas pos-


teriores, como Maldonado: “Eu respondo que José é chamado um
homem justo porque foi dotado completamente com todo tipo de
virtude”5. E Knabenbauer: “‘Justo’ é aquele que guarda estritamen-
te a norma da lei divina e dá exemplo dela em sua vida”6.

Seria supérfluo citar outros Padres e exegetas. Basta dizer,


brevemente, que os Padres e os teólogos são praticamente unâni-
mes em sua opinião de que o termo “justo”, tanto em muitas outras
passagens, como na que aqui nos referimos, compreende todas as
virtudes, portanto, significa uma completa perfeição e santidade.
Logo, temos, na Sagrada Escritura, uma testemunha incontestável
da perfeição e santidade de São José.

2. Mas a Sagrada Escritura não apenas testemunha teori-


camente a grande santidade de São José, como no texto há pouco
citado, mas praticamente no-lo mostra tão vivamente que quase

2. PG, 57, 43.


3. PL, 15, 1590.
4. PL, 26, 24.
5. Sobre Mt 1, 19.
6. Idem.

188
Padre Joseph Mueller S. J.

podemos vê-lo praticando, em seu modo discreto, as mais heroicas


virtudes. Seguem algumas ilustrações disso:

a) A Escritura mostra São José como um homem de fé forte


e perfeita obediência. Quando seu coração estava repleto
de profunda ansiedade e receio sobre a condição de sua
esposa, um mensageiro celeste apareceu-lhe em sonho
para livrá-lo de sua preocupação. “Enquanto assim pen-
sava, eis que um anjo do Senhor lhe apareceu em sonhos
e lhe disse: José, filho de Davi, não temas receber Maria
por esposa, pois o que nela foi concebido vem do Espírito
Santo”7.

O que São José respondeu? A Sagrada Escritura não registra


uma só palavra dele, mas, em vez disso, nos mostra sua fé forte re-
velando-se por sua pronta e corajosa obediência. “Despertando, José
fez como o anjo do Senhor lhe havia mandado e recebeu em sua casa
sua esposa”8. Aqui, estamos em presença de uma fé verdadeiramen-
te maravilhosa. Se a Escritura chama a fé de Abraão grande porque
ele acreditou em Deus, quando lhe contou que geraria um filho pela
estéril Sara, em idade avançada, então, certamente, a fé de São José
é ainda maior e mais admirável, quando, após a palavra do anjo
enviado por Deus e aparecido a ele em sonho, ele, em fé humilde
e simples, com total consentimento, aceita o nascimento vindouro
do Filho eterno de Deus por meio de sua virginal esposa, e, após o
anúncio desse maravilhoso mistério, imediatamente pronto e, sem
dúvida, com o coração cheio de alegria, recebeu consigo sua esposa.
Realmente, uma fé maravilhosa, merecedora dos louvores com que
os Padres a cobriram. Certamente, Deus inspirou, e amparou com
muitas graças, essa fé de São José. Mas essa ajuda não excluiu todas
as dificuldades, apenas deu a ele força para superá-las, nem o pou-
pou das provas amargas que o futuro lhe reservava.

7. Mt 1, 20.
8. Mt 1, 24.

189
A Paternidade de São José

Uma dessas provas logo seria encarada, quando um anjo veio


a São José com uma mensagem de Deus, ordenando a ele que fugisse
para o Egito para salvar o Menino dos malvados desígnios de He-
rodes. Quão difícil essa tarefa e, para a mente humana, quão enig-
mática e misteriosa! Esse Menino tinha sido anunciado a ele como o
salvador de Seu povo e o Redentor do mundo. Ele não poderia ser
facilmente protegido contra os ardis de seu perseguidor por uma
intervenção sobrenatural de Seu Pai celestial? Contudo, São José não
se perturbou por qualquer mal-entendido ou dificuldade, mas, com
uma fé inabalável, determinada obediência e uma fortaleza deste-
mida, sem qualquer demora, tomou o Menino e Sua mãe e partiu
em uma jornada cercada de muitos perigos e adversidades por meio
de um deserto inóspito, rumo a uma terra desconhecida. Outra vez,
temos um brilhante exemplo de sua confiança incrivelmente forte
na Providência, na divindade de Cristo e em sua própria respon-
sabilidade, celestialmente imposta; ao mesmo tempo, novamente,
uma prova de sua obediência heroica, pronta para tudo, mesmo os
maiores sacrifícios9.

Em outra ocasião que já mencionamos, quando São José per-


cebeu que sua virginal esposa estava grávida, e penosas dúvidas
encheram sua mente, outras virtudes de São José se revelaram: sua
serenidade mental e autocontrole. Sobre essa conexão, Suárez fez
este bom comentário:

“Quando ele tomou conhecimento da condição de sua


esposa, demonstrou perfeito autocontrole e prudência, para os
quais [João] Cristóstomo já tinha chamado a atenção quando,
em um de seus sermões [Homilia 4 sobre Mateus], ele diz que
Cristo, ainda no útero, santificara João [Batista] por meio de
Sua mãe, portanto, também conferira a José graça suficiente
para capacitá-lo a suportar o pesado fardo de sua missão com
muito mais força e compreensão, e assim, revelou-se um ver-
dadeiro filósofo”.

9. Mt 2, 13-15.

190
Padre Joseph Mueller S. J.

Suárez indica, então, como a fé e a obediência de São José fo-


ram testadas e como ele suportou o teste esplendidamente.

“Tanto quando o anjo revelou a ele o mistério da Encar-


nação quanto quando lhe ordenou que fugisse para o Egito, ele
acreditou e obedeceu com maior boa-vontade e sem demora,
apesar do quão misterioso e incompreensível tudo isso deve
ter parecido... Novamente, [João] Crisóstomo diz (homilia 5):
‘Aqui vedes sua obediência, sua fé aceitando prontamente os
anúncios celestes, sua mente completamente alerta e total-
mente pura’; e, outra vez, na homilia 8, ele louva a obediência
de São José, porque, nesse assunto tão difícil e misterioso, ele
não questiona, mas, sem dizer uma palavra, obedece imedia-
tamente e, alegremente, se submete a todas as provas. Não há,
portanto, dúvida possível de que esse homem alcançou um
altíssimo grau de santidade”10.

b) De igual modo, devemos tratar aqui também das outras


virtudes que adornavam o caráter de São José, como sua
castidade virginal, seu amor ardente e terno pelo divino
Filho e por sua imaculada esposa, entre muitas outras. Já
tivemos ocasião aqui e ali para falar deles, mas o faremos
novamente agora. Apenas uma será destacada, pois mos-
tra tão bem seu caráter e o torna tão atraente e venerável.
Nós já aludimos a ela: sua admirável humildade e modés-
tia. Por ela, José conseguiu fazer a si mesmo, por assim
dizer, desaparecer ou sumir a nossos olhos quando Jesus e
Maria estão presentes. Ele parece manter a si mesmo sem-
pre na retaguarda e avança apenas quando algum serviço
difícil deve ser desempenhado ou um sacrifício pesado é
exigido. O fato de isso acontecer tem sua razão na própria
tarefa imposta a ele por Deus e pode ser entendida à luz
dessa tarefa.

10. Suárez, loc. cit., disp. 8, s. 2, nº 2.

191
A Paternidade de São José

De acordo com ao onisciente plano da Providência, o Re-


dentor do mundo, o Deus feito homem, Jesus, deveria entrar neste
mundo como uma criança, pobre e frágil como qualquer outra, mas
também de uma forma digna e adequada, portanto, como o fruto
de um matrimônio virginal. Nesse plano, também estava decretado
que Cristo não se manifestaria ao grande público como o Reden-
tor prometido até que tivesse atingido a idade adulta. Então, Sua
vida pública deveria ser precedida por Sua vida oculta, durante a
qual Ele não revelaria Seu divino poder por milagres e outros sinais.
No entanto, como verdadeiro homem e verdadeiro Emanuel, isto é,
Deus conosco, Ele atravessou todos os estágios do desenvolvimento
humano e, assim, cresceu até a fase adulta, e, enquanto isso, deu a
todos os homens o maravilhoso exemplo de humildade e obediência
e todas as virtudes em uma família humana.

Durante esse tempo, então, a tarefa especial imposta por


Deus a São José foi esta: ele deveria, por seu matrimônio virginal
com a Santíssima Virgem, tornar possível ao Filho de Deus entrar na
raça humana de modo digno, e então, após a miraculosa concepção
e nascimento, ele deveria tornar-se, por assim dizer, uma tela ou
véu, escondendo do grande público o milagroso acontecimento da
Encarnação até a plenitude dos tempos, enquanto, posteriormente,
quando Cristo atingisse a fase adulta, João Batista, os apóstolos e
seus sucessores teriam a diferente, se não oposta, missão de procla-
má-Lo como o Filho de Deus feito homem e o Redentor da humani-
dade, tornando-O conhecido como tal pelo mundo.

Além disso, era missão de São José proteger a virgindade da


Mãe, salvaguardar a vida do Filho e, enquanto mantinha o mistério
da Encarnação em segredo por um tempo, tornar-se, para o bem dos
homens, no futuro, a mais confiável testemunha tanto da virgindade
de Maria quanto da encarnação do Filho de Deus. São Bernardo, em
poucas palavras, nos apresentou um bom esboço dessa maravilho-
sa missão de São José: “Um servo fiel e prudente, a quem o Senhor
tinha escolhido para ser um ajudante para Sua mãe, um provedor

192
Padre Joseph Mueller S. J.

para Suas necessidades diárias, e como o único na Terra a cooperar


fielmente na realização desse grande desígnio”11.

Quão fiel e bravamente São José desempenhou essa missão,


que, a princípio, parecia bem modesta, mas, na verdade, era da mais
elevada ordem, podemos ver pelo relato do Evangelho. Apenas
quando Deus chama ele deixa seu retiro por um tempo; ele faz sua
aparição somente quando é requisitada para o serviço do divino Fi-
lho e de Sua Mãe; para eles, ele está sempre pronto a fazer os maio-
res sacrifícios; nenhuma palavra sua é registrada em parte alguma;
ele sai de cena quando a vida pública de nosso Senhor começa, e é
provável até que, mesmo antes daquele tempo, quando sua missão
havia terminado, ele morreu uma santa morte, confortado pela pre-
sença de Jesus e Maria.

Depois disso tudo, devemos bem exclamar: “A vida silen-


ciosa e retirada de São José, especialmente quando consideramos
sua elevada dignidade, não é também um exemplo admirável de
modéstia e humildade?”. Sim, é tentador pensar que ele continuou,
mesmo após sua morte, em sua modéstia e humildade por mais um
longo tempo, permanecendo por séculos em relativa obscuridade,
para que os homens pudessem mais prontamente estar dispostos a
acreditar na virgindade da Mãe de Deus e no nascimento virginal
do Deus feito homem. Eu disse que ele permaneceu em relativa obs-
curidade visto que, por várias razões, a elevada posição de São José
só gradual e lentamente recebeu maior reconhecimento público, até
que, finalmente, no último século, recebeu o mais solene reconheci-
mento na liturgia da Igreja.

Com base nas provas extraídas das Escrituras, e como é, com


unanimidade prática, interpretado pelos Padres e teólogos, estamos
plenamente justificados em dizer que a santidade de São José é total-
mente eminente e extraordinária.

11. Homilia 2 super “Missus est”, loc. cit.

193
A Paternidade de São José

3. Falta responder uma questão sobre as virtudes pessoais


e a santidade de São José. É esta: Sua santidade era tão eminente
quanto a posição ou lugar que ele ocupa no reino de Deus por cau-
sa da tarefa imposta a ele por Deus, ou tão eminente quanto a dig-
nidade que essa tarefa conferiu a sua pessoa? Em outras palavras,
São José também ultrapassa, em virtude pessoal e santidade, todos
os santos, de modo que, nesse aspecto, ele está próximo da Mãe de
Deus? A resposta deve ser afirmativa. Isso é o que eu desejo pro-
var neste capítulo por argumentos baseados em vários princípios
geralmente aceitos pelos teólogos. A maioria desses princípios foi
elaborada precisamente por Santo Tomás e é frequentemente usa-
da pelos teólogos para explicar e demonstrar a santidade de São
José.

a) A primeira prova é baseada em um princípio definido por


Santo Tomás e geralmente aceito pelos teólogos: Aqueles
a quem Deus escolhe para uma tarefa, Ele também os pre-
para e capacita para que eles sejam hábeis a cumpri-la”12.

São Bernardino de Sena formulou o mesmo princípio desta


forma:

“Em relação a todas as graças especiais conferidas por


Deus a uma criatura racional, a regra geral é que, sempre que
a benevolência de Deus escolhe alguém para uma missão es-
pecial ou para um estado muito elevado, também lhe dá todas
as graças especiais necessárias para sua missão ou que são or-
namentos dignos de seu estado”13.

São José tinha sido escolhido para a sublime tarefa de ser o


esposo virginal da Mãe de Deus e o verdadeiro, embora não corpo-
ral, pai do Filho de Deus feito homem, o chefe da Sagrada Família;
em resumo, ele foi, com a mãe de Deus e próximo a ela, incluído na

12. Suma teol., IIIa, q. 27, a. 4.


13. Sermão I de São José.

194
Padre Joseph Mueller S. J.

ordem da união hipostática e, assim, elevado incomparavelmente


acima das outras criaturas, com a singular exceção de sua esposa
virginal, a Mãe de Deus e, naturalmente, da sagrada humanidade de
Cristo. Tendo sido, assim, escolhido, ele foi dotado por Deus com to-
das as graças que lhe eram necessárias para desempenhar sua tarefa.
Com todas essas graças, São José cooperou fielmente, como a Sagra-
da Escritura claramente mostra e, portanto, ultrapassa em santidade,
bem como em dignidade e graça, todos os outros santos, excetuando
apenas a Mãe de Deus. É por isso que São Bernardino de Sena con-
tinua, após definir a regra geral supracitada: “Isso é especialmente
verificado em São José, o pai putativo de nosso Senhor Jesus Cristo e
verdadeiro esposo de Maria, a rainha do mundo e dos anjos, que foi
escolhido pelo Pai eterno para ser o fiel provedor e guarda de Seus
maiores tesouros, ou seja, o Filho de Deus e a própria esposa de José,
uma tarefa que José cumpriu fielmente”14.

Não há dúvida de que Deus desejou que a tarefa confiada a


José fosse cumprida de maneira absoluta e incondicional e que, por-
tanto, dotou José de todas as graças eficazes necessárias, e São José
correspondeu fielmente.

O que dissemos aqui concorda plenamente com as palavras


de Pio IX, no início de sua carta apostólica Inclytum Patriarcham (9 de
julho de 1879): “Com justiça a Igreja Católica segue com um culto
sempre mais difundido e venera com mais íntimo afeto o insigne
patriarca, o Bem-aventurado José, coroado de glória e de honra no
céu, que Deus Onipotente, entre todos os seus santos, quis como pu-
ríssimo e verdadeiro esposo da Imaculada Virgem Maria e pai puta-
tivo de seu Filho Unigênito, e a fim de que cumprisse com fidelidade
uma obra tão sublime, fortaleceu-o e enriqueceu-o abundantemente
com graças especiais”.

b) A segunda prova também é baseada em um princípio


teológico formulado por Santo Tomás. “Quão mais perto

14. Ibid.

195
A Paternidade de São José

uma coisa está de seu princípio, mais compartilha do efei-


to daquele princípio”15.

Cristo é, certamente, o princípio da graça, e depois de Maria,


nenhum homem ou anjo esteve tão perto dela quanto São José. Logo,
junto a Maria, ele deve ter sido enriquecido por Cristo com graça e
santidade mais do que qualquer homem ou anjo. Ademais, se Cristo
é o princípio da graça, Maria é a mediatriz da graça, ou o canal que
transmite a graça a nós. Mas José estava, também, mais intimamente
unido a Maria, portanto, também por causa disso, uma abundância
de graça deve ter vindo a ele e sua santidade deve ter aumentado
mais e mais.

c) Prova por um terceiro princípio, também tirado de Santo


Tomás. “Uma vez que uma causa eficiente é mais perfei-
ta do que o sujeito por ela afetado, entende-se que uma
causa eficiente que aperfeiçoa os outros deve possuir essa
perfeição no mais alto grau. Portanto, é precisamente por-
que Cristo possui a absoluta plenitude da graça que a gra-
ça é comunicada por Ele a outros”. Resumindo, uma causa
eficiente que aperfeiçoa os outros deve ter tal perfeição no
mais alto grau.

Santo Tomás aplica esse princípio apenas a Cristo, mas ele


também se aplica bem a outras pessoas. São José, como chefe e pro-
tetor da Sagrada Família, contribuiu com sua parte para nossa re-
denção, semelhante a Maria, embora apenas de modo semelhante,
e assim tornou-se uma causa parcial, embora subordinada, de graça
para outros. Portanto, ele deve ter sido, depois de Maria, enrique-
cido com graça e santidade mais do que todos os homens e anjos.
Que São José realmente, embora indiretamente, contribuiu para a
nossa redenção não se deve por em dúvida, pois a mesma mensa-
gem que o fez receber Maria como sua esposa, também o informou

15. Suma teol., IIIa, q. 27, a. 5.

196
Padre Joseph Mueller S. J.

que o Filho que ela iria gerar deveria ser chamado Jesus, pois seria o
futuro Redentor do mundo: “[Tu lhe] porás o nome de Jesus, porque
Ele salvará Seu povo de seus pecados”16. Assim, ele foi o pai não
apenas do Deus feito homem, mas também do Redentor, e desde
que ele aceitou livremente essa paternidade e, de boa vontade, to-
mou para si todos os deveres e preocupações, ele contribuiu, ainda
que só como mediador, de alguma forma para a obra do Redentor,
para nossa redenção, a fonte da qual todas as nossas graças fluem.

d) O quarto princípio é: “A perfeição da vida cristã consiste


na caridade”17.

Quanto maior, portanto, o amor a Deus e ao Salvador, maior é


a perfeição e a santidade. Quem poderia amar Jesus com amor mais
intenso e terno que Maria, Sua mãe virginal, e, junto a ela, São José?
Ele era, de fato, o pai do menino Jesus e, por assim dizer, o reflexo
e o representante do Pai celeste. No entanto, depois que o Pai celes-
tial fez José a Sua semelhança e Seu representante, Ele não poderia
esquecer, por assim dizer, de instilar no coração de José também os
mais ternos sentimentos paternais por seu filho, o Deus feito homem
e nosso Salvador. Logo, São José deve ter amado Jesus tanto como
seu Deus e Salvador quanto como seu filho, com tal profundo e ab-
negado amor, que nenhum homem ou anjo, à exceção de Maria, po-
deria ter amado. Se, então, perfeição e santidade consistem em amar
a Deus e ao Salvador, São José, depois de Maria deve ter excedido
todos os outros santos em santidade.

e) O quinto princípio consiste nisto: o amor de Deus por nós


é o real e principal motivo de todas as graças, como a Es-
critura, e especialmente São Paulo, frequente e claramen-
te atesta.

A partir disso, estamos justificados em concluir que o amor de


nosso Salvador é a medida da graça que Ele concede a cada homem.

16. Mt 2, 11.
17. Suma teol., IIa, IIæ, q. 184, a. 2.

197
A Paternidade de São José

Mas Cristo não amou ser humano algum tão afetuosamente como
amou Sua própria imaculada Mãe. Ele a amou com o amor do mais
agradecidamente devotado filho, e, em consequência, concedeu a
ela Seus mais ricos tesouros de graça, excedendo tudo o que qual-
quer homem ou anjo jamais recebeu. Mas depois de Sua santa Mãe,
nosso divino Salvador não deu a nenhum outro um amor maior que
o dado a São José, seu verdadeiro, embora não natural, pai, a ima-
gem e o representante de Seu Pai eterno. Era o amor de um filho
agradecido a Seu pai por todas as adversidade que tinha enfrentado,
por todos os sacrifícios que havia feito em Seu favor, e, consequente-
mente, o divino Salvador deve ter concedido a José tal plenitude de
graça e santidade como a ninguém mais, exceto Maria.

Somos levados à mesma conclusão, quando consideramos


Maria como mediatriz de todas as graças. Desde que Maria deve ter
sentido por São José, como seu esposo e protetor sempre atento, um
amor terníssimo e agradecido, ela não podia deixar de obter para
ele, por sua intercessão, as graças mais escolhidas de seu Filho.

Suárez, falando sobre os dons e as graças que São José tinha


recebido de Deus, expressa os mesmos pensamentos:

“Se o próprio Cristo prometeu que qualquer um que, em


Seu nome, desse um copo de água fria a beber não perderia sua
recompensa, como se pode pensar que Cristo deixaria sem retri-
buição tantos atos de bondade amorosa feitos por São José não
meramente em nome de Cristo, mas a Ele em pessoa? Deve-se
acrescentar a isso que, da mesma forma, também a Santíssima
Virgem seria mais ávida em obter para seu esposo ajuda divina
e graças muito além das ordinárias e que ela, de fato, as obteve
para ele por meio de sua intercessão. Se é verdade, como de fato
é, que um dos meios mais eficazes de obter de Deus dons de
graça é a devoção à Santíssima Virgem, como se pode acreditar
que José, tão amado por ela e tão devotado a ela, não obteve,
por meio dela, um extraordinário grau de santidade?”18.

18. Suárez, op. cit., d. 8, s. 2, nº 1.

198
Padre Joseph Mueller S. J.

Antes disso, Suárez já tinha indicado o grande amor que Jesus


e Maria tinham por José:

“Disso (isto é, o relacionamento existente entre Jesus e Ma-


ria, de um lado, e José, do outro) nós somos capazes de entender
com qual força deve ter surgido um vínculo entre eles de amor
e amizade, da elevação de José ao seu alto estado e dignidade.
Pois convém à virtude e santidade da esposa amar o marido e
desejar-lhe e obter-lhe tudo o que é bom para ele, especialmente
para sua alma. Mas a Santíssima Virgem era mais perfeita em
todos os aspectos e, portanto, sobressaía também nesse amor.
Acrescente a isso o motivo de gratidão que se deve a um benfei-
tor e que não é pago, de maneira alguma, melhor do que pelo
amor. São José tinha sofrido muito pela Santíssima Virgem e
tinha feito isso tão voluntariamente por amor, como era apro-
priado, de fato, por amor profundo e ardente. Por fim, deve-se
acrescentar sua semelhança de caráter, sua relação diária por
muitos anos, um companheirismo familiar jamais obscurecido
pela mínima nuvem de discórdia, um companheirismo que ser-
viu apenas para fortalecer seu amor mútuo e sua amizade sem-
pre mais e mais. Essas razões se aplicam especialmente a Cristo
e, proporcionalmente, ao aperfeiçoamento de Sua influência so-
bre São José, em comparação com a da Virgem Maria”19.

Jesus e Maria, então, amando São José como o amaram, não fi-
zeram mais que obter para ele uma plenitude de graças que, efetiva-
mente, garantiriam a ele um grau de santidade total compatível com
seu elevado estado e ofício, isto é, uma santidade que, atrás apenas
da pertencente à humanidade de Cristo e a de Maria, superasse toda
santidade criada.

f) Finalmente, um sexto princípio está contido em um fa-


moso provérbio: Verba movente, exempla trahunt20. São José

19. Ibid., d. 8, s. 1, nº 6.
20. N. R.: Em tradução literal, “As palavras movem, os exemplos arrastam”.

199
A Paternidade de São José

viveu continuamente em santa e família companhia com


Jesus e Maria: que exemplos maravilhosamente inspira-
dores ele teve sempre diante de seus olhos! Quanto eles
devem tê-lo estimulado a atingir um grau ainda maior de
amor por Deus e de santidade! São Bernardino de Sena
diz, sobre isso: “Se nós, pobre homens, somos sempre au-
xiliados a um progresso espiritual maior pela companhia
de santos homens que, em comparação com a Santíssima
Virgem, são nada, que progresso São José deve ter feito,
vivendo continuamente com Jesus e Maria!”. De fato, a
infinita santidade de Jesus e a imensurável santidade de
Maria devem ter transbordado sobre José.

Suárez, igualmente, destaca esse aspecto: “Pode-se bem en-


tender que o crescimento de São José em santidade foi ainda maior
após o nascimento de Cristo. Primeiro, porque quanto mais ele
aprendeu a conhecer Jesus por seu relacionamento constante e fre-
quente convivência com Ele, deve ter sido movido a cada vez mais
frequentes e fervorosos atos de amor, porque as palavras e exemplos
de Cristo devem ter tido uma influência ainda mais poderosa sobre
ele”21.

Desde que, como vimos, a Sagrada Escritura e a Igreja dão


irrefutável testemunho da santidade de São José, nós podemos e
devemos, pelas provas apresentadas aqui, tirar a conclusão de que,
junto de Maria, São José ultrapassa imensamente todos os outros ho-
mens e anjos não apenas em dignidade, mas também em perfeição
e santidade.

À figura que aqui desenhamos, da santidade e perfeição de


São José, uma característica ainda precisa ser adicionada para tor-
ná-la mais completa. A teologia católica ensina que não apenas os
santos no céu foram confirmados na graça e, portanto, não podem

21. Suárez, op. cit., s. 2, nº 1.

200
Padre Joseph Mueller S. J.

cometer pecados novamente, mas também atribui esse privilégio a


alguns santos enquanto eles ainda estavam na terra, especialmente
à Mãe de Deus. Alguns teólogos garantem esse privilégio também
a São João Batista, aos apóstolos e, também, a São José, por causa
de seus altos ofícios, que parecem exigir confirmação em graça para
seus titulares; e também para alguns outros poucos santos.

Mais umas poucas palavras sobre essa questão.

1. Não pode haver dúvida sobre a impecabilidade e a confir-


mação na graça no caso da Santíssima Virgem Maria. Todos admi-
tem isso. Os teólogos não estão de acordo quanto à causa intrínseca
dessa impecabilidade, nem ao explicar como uma criatura pode
tê-la.

2. Quanto a São José, como ele era o puro esposo da Virgem


Maria, o pai virginal de Cristo (no sentido que já explicamos), e foi
incluído na ordem hipostática, não deve haver qualquer dúvida de
que ele tinha o dom da impecabilidade para sempre, pelo menos no
que diz respeito aos pecados graves, e, portanto, também foi confir-
mado na graça. Seu alto posto como esposo da Santíssima Virgem,
como membro da ordem hipostática, exigia isso porque o apresenta
em sua íntima união com nosso divino Redentor, e assim superando
em santidade todas as criaturas, exceto a Mãe de Deus. Uma objeção
de que isso colocaria São José em pé de igualdade com a Santíssima
Virgem será tratada em nosso último capítulo.

201
15. O patrocínio
de São José

Nos capítulos anteriores, nós nos esforçamos para mostrar quão


importantes foram as tarefas designadas a São José na fundação do
reino de Deus, qual posição gloriosa ele ocupa, portanto, naquele
reino, e quão altiva sua dignidade e quão grande sua santidade de-
vem ser, pois essas são as razões fundamentais e a medida de toda a
veneração religiosa que devemos a ele.

Para o mesmo propósito, ainda temos que considerar algo


mais, que São José é o patrono, ou protetor, da Igreja, como foi pro-
clamado por Pio IX no decreto Quemadmodum Deus, emitido sob sua
autoridade pela Sagrada Congregação dos Ritos e solenemente pu-
blicado nas basílicas maiores de Roma em 8 de dezembro de 1870.
Esse decreto foi seguido pela carta apostólica Inclytum Patriarcham.
Nessa carta, após recontar e aprovar tudo o que seus predecessores
tinham feito para promover a veneração a São José, o papa remete
a seus próprios esforços a esse respeito e, especialmente, a sua pro-
clamação de São José como Patrono da Igreja Católica, ressalta a im-
portância de seu patrocínio e dá mais direções para uma veneração
litúrgica correspondente a esses privilégios de São José. Ele escreve:

“E nós mesmos, depois que, por misteriosos desígnios


de Deus, fomos elevados à suprema cátedra de Pedro, movi-
dos seja pelos exemplos de nossos ilustres predecessores, seja
A Paternidade de São José

pela particular devoção que nutrimos desde a juventude para


com o santo Patriarca, pelo decreto de 10 de setembro de 1847, com
grande júbilo nosso, ampliamos a festa de seu patrocínio
com rito duplo de segunda classe para toda a Igreja, como já se
celebrava por indulto especial desta Santa Sé em muitos lugares.

Na verdade, nestes últimos tempos, nos quais uma feroz e


terrível guerra foi declarada contra a Igreja de Cristo, a devoção dos
fiéis para com São José cresceu e aumentou tanto, que de toda parte
chegaram até nós inumeráveis e ardentíssimos pedidos, renovados
ultimamente enquanto acontecia o Concílio Ecumênico do Vaticano,
por todas as classes de fiéis e, o que mais conta, de muitos veneráveis
irmãos cardeais e bispos: estes solicitaram com insistência que, a fim
de inovar com mais eficácia a misericórdia de Deus pelos méritos e
pela intercessão de São José para afastar, nestes tempos funestos, to-
dos os males que nos perturbam de todos os lados, o declarássemos
Patrono da Igreja Católica.

Nós, portanto, movidos por esses pedidos, e invocada a pro-


teção divina, decidimos acolher tantos e piedosos desejos, e com um
particular decreto de nossa Sagrada Congregação dos Ritos, que or-
denamos fosse publicado durante a missa solene em nossas basílicas
patriarcais Lateranense, Vaticana e Liberiana, no dia 8 de dezembro
do passado ano de 1870, dedicado à Imaculada Conceição de sua
Esposa, declaramos solenemente o Bem-aventurado José ‘Patrono
da Igreja Católica’”1.

Essas palavras foram seguidas por uma série de novas regu-


lações ligadas à veneração litúrgica de São José que, no todo, atri-
buem a São José o posto mais alto junto ao de sua esposa imaculada,
a Mãe de Deus.

Disse, há pouco, que Pio IX “declarou” São José o patrono da


Igreja, não que ele o constituiu ou designou patrono, pois esse ofício

1. Pio IX. Inclytum Patriarcham (7 de julho de 1871).

204
Padre Joseph Mueller S. J.

e a correspondente elevada dignidade de patrono da Igreja pertence


a ele como uma necessidade. É o desenvolvimento lógico e natural
da tarefa e dignidade conferidas pelo próprio Deus a ele. Desde que
ele era o esposo virginal da Mãe de Deus e o pai virginal de Jesus
Cristo, o Deus feito homem, o chefe e, portanto, o protetor da Sagra-
da Família, entende-se como uma consequência natural que ele deva
ser, também, o protetor, o patrono, mesmo o pai da mais numerosa
sagrada família, a Igreja de Cristo.

Leão XIII havia mostrado isso em uma bela e luminosa passa-


gem de sua encíclica Quamquam pluries:

“As razões pelas quais São José deve ser tido como Pa-
trono da Igreja – e a Igreja por sua vez espera muitíssimo da
Sua especial proteção – residem, sobretudo, no fato que ele é
esposo de Maria e pai putativo de Jesus Cristo. Daqui derivam
toda a sua grandeza, graça, santidade e glória. [...] Ora, desta
dupla dignidade derivaram espontaneamente os deveres que
a natureza impõe aos pais de família; assim, pois, São José foi
guarda legítimo e natural da Sagrada Família, e ao mesmo
tempo seu chefe e defensor, exercendo esses ofícios até o fim
de sua vida. Foi ele, de fato, que guardou com sumo amor e
contínua vigilância a sua esposa e o Filho divino; foi ele que
proveu o seu sustento com o trabalho; ele que os afastou do
perigo a que os expunha o ódio de um rei, levando-o a salvo
para fora da pátria, e nos desconfortos das viagens e nas difi-
culdades do exílio foi de Jesus e Maria companheiro insepará-
vel, socorro e conforto. Pois bem: a Sagrada Família, que José
governou com autoridade de pai, era o berço da Igreja nas-
cente. A Virgem Santíssima, de fato, enquanto Mãe de Jesus, é
também mãe de todos os cristãos, por Ela gerados em meio às
dores do Redentor no Calvário. E Jesus é, de alguma maneira,
como o primogênito dos cristãos, que por adoção e pela reden-
ção lhe são irmãos. Disso deriva que São José considera como
confiada a Ele próprio a multidão dos cristãos que formam a
Igreja, ou seja, a inumerável família dispersa pelo mundo, so-
bre a qual Ele, como esposo de Maria e pai putativo de Jesus,

205
A Paternidade de São José

tem uma autoridade semelhante a de um pai. É, portanto, jus-


to e digno de São José, que assim como ele guardou no seu
tempo a família de Nazaré, também agora guarde e defenda
com seu patrocínio a Igreja de Deus”2.

Algumas frases devem ser acrescentadas aqui para explicar


mais completamente ou complementar as palavras supracitadas de
Leão XIII. Semelhante à maternidade física da Santíssima Virgem
em relação a nosso divino Redentor, que envolveu uma maternida-
de espiritual sobre todos os remidos por Ele, a paternidade de São
José sobre o menino Jesus se estende a todos aqueles que têm parte
nessa redenção. Como todos esses se tornaram, pela redenção, filhos
adotivos de Deus, irmãos e irmãs de Cristo, e agora formam com
Ele um corpo místico, de que Cristo é a cabeça e os remidos por Ele,
os membros, que vivem compartilhando sua vida com a cabeça. O
corpo místico de Cristo é a Igreja.

Mas se São José é o pai de Cristo, ele não pode recusar seu
amor e cuidado paternais àqueles que Cristo, por Sua obra de reden-
ção, tornou Seus próprios irmãos e irmãs e membros de Seu corpo
místico. Em vez disso, ele estenderá seu amor e cuidado paternais
a todos os que, pelo batismo, foram incorporados a Cristo e, assim,
são parte de Seu corpo místico. Pois São José teve que se tornar o pai
de Cristo com o único propósito de que Cristo pudesse operar nossa
redenção. Isso é o que as palavras do anjo sugeriam: “O que nela foi
concebido vem do Espírito Santo. Ela dará à luz um filho, a quem
porás o nome de Jesus, porque Ele salvará Seu povo de seus peca-
dos” (Mt 1, 20-21). Assim, está claro, agora, que São José, porque foi
pai de Cristo, consequentemente, também é pai de todo o seu corpo
místico e, da mesma forma, pai e patrono de toda a Igreja Católica.

É evidente, a partir do que foi dito, que esse patrocínio de


São José sobre a Igreja Católica não foi estabelecido por Pio IX e,

2. Encíclica Quamquam pluries.

206
Padre Joseph Mueller S. J.

então, confiado a São José, mas, por sua própria natureza, pertence
a São José, como o pai de Cristo, o esposo da Mãe de Deus e o chefe
da Sagrada Família. São José, que agora está na glória do Céu com
Seu filho, o Deus feito homem, e com sua imaculada esposa deve ter
aceitado com alegria e satisfação esse reconhecimento solene de seu
patrocínio e, certamente, continuará mais prontamente seu amoroso
cuidado pela Igreja de Cristo, tanto mais for reconhecido e venerado
como seu protetor e patrono.

O que dissemos sobre o patrocínio de São José, nós encontra-


mos corroborado quando relembramos a história de José do Egito,
em que alguns Padres e muitos teólogos, bem como os papas mais
recentes, reconhecem uma figura de José de Nazaré. Assim Pio IX
começa seu decreto de 8 de dezembro de 1870, pelo qual declarou
São José patrono da Igreja Católica, com estas palavras: “Da mesma
maneira que Deus havia constituído José, gerado do patriarca Jacó,
superintendente de toda a terra do Egito para guardar o trigo para
o povo, assim, chegando a plenitude dos tempos, estando para en-
viar à terra seu Filho Unigênito Salvador do mundo, escolheu um
outro José, do qual o primeiro era figura, o fez Senhor e Príncipe de
sua casa e propriedade e o elegeu guarda dos seus tesouros mais
preciosos”3.

Esses maiores tesouros confiados a José durante sua vida ter-


rena, como o decreto expressamente declara, eram Jesus e Maria,
mas eles são, agora, a aumentada sagrada família, a Igreja Católica,
como fica evidente por todo o teor do decreto, que conclui com a
declaração de São José como patrono de toda a Igreja.

Em palavras ainda mais explícitas, Leão XIII indica que José


do Egito é uma figura de nosso São José em vários aspectos, mas,
especialmente, uma figura de São José como patrono da Igreja. Ele
escreve, em sua encíclica Quamquam pluries:

3. Quemadmodum Deus.

207
A Paternidade de São José

“Tudo isto, veneráveis irmãos, encontra apoio – como


bem o sabeis – no ensinamento de não poucos Padres da Igre-
ja. De acordo nisso com a Sagrada Liturgia, eles entreviram
no antigo José, filho do patriarca Jacó, a pessoa e a vocação do
nosso [José]; e no esplendor que daquele emanava, viram sim-
bolizada a grandeza e a glória do Guarda da Sagrada Família.
De fato, além de terem ambos recebido – não sem significado
– o mesmo nome, existe entre eles muitas outras e claras seme-
lhanças, a vós bem conhecidas. Em primeiro lugar, o antigo
José ganhou para si a benevolência de seu senhor de um modo
todo singular; e depois conseguiu, graças a seu zelo, que cho-
vesse do céu toda a prosperidade e bênçãos sobre seu patrão,
de quem dirigiu a casa. E mais: por vontade do rei governou
com plenos poderes todo o reino, e quando a carestia se tor-
nou calamidade pública, foi ele quem alimentou os egípcios e
os povos vizinhos com exemplar sagacidade, a ponto de ser
merecidamente chamado pelo faraó de ‘salvador do mundo’.
Assim, no antigo patriarca é fácil ver a figura do nosso [José].
Como a antigo José foi a bênção para a casa de seu patrão e
para todo o reino, assim o nosso José foi predestinado a guar-
dar a cristandade e deve ser tido como defensor da Igreja, que
efetivamente é a Casa do Senhor e o reino de Deus na terra”.

Vamos acrescentar, ainda, dois breves comentários.

Quando a São José é dado, algumas vezes, o título de pa-


triarca, essa palavra é usada praticamente no mesmo sentido que
patrono. Na linguagem bíblica e eclesiástica, esse título é aplicado,
primeiramente, aos ancestrais do povo escolhido: Abraão, Isaac e
Jacó; depois, também, aos doze filhos de Jacó, como ancestrais das
doze tribos, e às vezes a Davi, o fundador da dinastia davídica.
Quanto, portanto, o título é aplicado a São José, isso pode ser feito
em um sentido análogo, a saber, no sentido de que, como São José
é o pai de nosso Salvador, seus direitos e deveres paternais tam-
bém alcançam toda a Igreja, porque a Igreja engloba todos aqueles
que foram redimidos por Cristo e, daí em diante, se tornaram filhos
adotivos de Deus e irmãos adotivos de Cristo. Logo, todos eles são,

208
Padre Joseph Mueller S. J.

como Leão XIII indicou, também os filhos adotivos de São José. Esse
parece o sentido do título de patriarca, quando aplicado a São José.

O patrocínio de São José novamente enfatiza sua grandeza no


reino de Deus. Nesse reino e, portanto, também na glória do Céu, ele
ocupa o primeiro lugar após Jesus e Maria e antes de todos os outros
santos anjos e homens. Seu trono no Céu é junto, embora abaixo, da
humanidade de Cristo e da Santíssima Virgem Maria, o mais próxi-
mo da Santíssima Trindade. Que grandeza e glória são as suas ago-
ra, especialmente quando comparadas com sua humilde, silenciosa
e oculta vida de abnegado serviço a Jesus e Maria aqui na terra!

Algumas palavras em conclusão. Que importância para a


nossa época a Santa Igreja atribui – e devemos fazer com ela – o papa
Pio XI nos diz em sua encíclica de 19 de março de 1937, sobre o co-
munismo ateu: “E, para apressar a ‘Paz de Cristo no Reino de Cris-
to’, por todos tão desejada, pomos a grande ação da Igreja Católica
contra o comunismo ateu mundial sob a égide do poderoso Protetor
da Igreja, São José. Ele pertence à classe operária e experimentou o
peso da pobreza, em si e na Sagrada Família, de que era chefe vigi-
lante e afetuoso; a ele foi confiado o Deus Menino, quando Herodes
mandou contra ele os seus sicários”4.

4. N. R.: Pio XI. Divini Redemptoris. 19 de março de 1937.

209
16. A veneração devida
a São José

1. Resta uma questão a ser respondida, sobre qual tipo de venera-


ção religiosa é devida a São José, por causa de seu lugar e ofício na
ordem sobrenatural ou no reino de Deus. Como já dissemos no iní-
cio, a santidade e a dignidade da pessoa a ser venerada não é apenas
o motivo, mas também a norma ou medida da veneração que lhe é
devida. Isso mostra, imediatamente, a essencial e incomensurável
diferença entre a veneração devida e realmente prestada pela Igreja
Católica a Deus, que é o culto chamado latria, e a veneração devida
e prestada a certas criaturas especialmente privilegiadas por Deus,
isto é, os anjos e os santos, um culto chamado dulia. Com base no
mesmo princípio, nós prestamos à Bem-aventurada Mãe de Deus
um tipo especial de veneração, chamado hyperdulia, ou seja, uma
veneração que, por sua própria natureza, está tão abaixo da latria
quanto um ser finito está abaixo do infinito, mas é indescritivel-
mente mais alta, muito mais alta do que a prestada a outros santos
e anjos, pois a Mãe de Deus excede a todos os outros em dignidade
e santidade.
Então, a pergunta que surge é se um tipo especial de devoção
também é devido a São José. A resposta a essa questão vai depen-
der, igualmente, da relativa posição de São José no reino de Deus,
e, desse modo, depende, novamente, de sua relação mais ou menos
íntima com a Encarnação e a Redenção e, portanto, de sua dignidade
A Paternidade de São José

e santidade. Já descrevemos e definimos essa posição, extraindo pro-


vas dos seguintes fatos ou princípios:

a) Seu virginal, porém verdadeiro e real, matrimônio com


Maria, a Mãe de Deus.

b) Sua paternidade sobre Jesus, o Deus feito homem, uma


paternidade, embora não corporal ou natural, mas em um
aspecto espiritual e moral, verdadeira e real.

c) Sua posição como chefe da Sagrada Família.

d) Consequentemente, sua posição ou ofício de patrono da


Igreja.

e) Sua inclusão na ordem da união hipostática.

f) Sua eminente dignidade e santidade pessoal.

Nós tratamos dessas relações e privilégios de São José em


detalhes e também tentamos dar uma ideia de sua, para nós quase
inconcebível, gloriosa posição no Céu, o maior lugar no Céu, depois
de Cristo e de Sua Santíssima Mãe.

2. Antes de concluirmos, desses privilégios de São José, o tipo


de veneração que devemos a ele, queremos retornar à dificuldade
mencionada em nosso último capítulo. Pode parecer, eu disse, en-
tão, que elevamos, agora, São José a um nível tão alto que ele parece
praticamente igual à Santíssima Virgem, o que prejudicaria seria-
mente toda a nossa argumentação, pois isso nos colocaria em con-
tradição com a opinião comum dos teólogos, se não com o conteúdo
implícito da fé católica. Não nego que essa dificuldade seja real e
exija uma solução. Mereceria um tratamento mais completo, mas eu
creio que, para nosso objetivo aqui, é possível uma resposta breve e
suficientemente clara.

a) A paternidade de São José sobre o menino Jesus, tão ma-


ravilhosa como é, não pode ser comparada à maternidade
da Santíssima Virgem. A paternidade de São José deriva

212
Padre Joseph Mueller S. J.

de um tipo de geração espiritual ou moral; é moral ou ju-


rídica, não uma paternidade corporal ou física. A materni-
dade da Santíssima Virgem, por outro lado, é tanto física
quanto espiritual. O corpo do menino Jesus foi formado
da carne e do sangue de Sua Santíssima Mãe. São José não
teve parte nisso, nem uma partícula de sua substância pas-
sou para o corpo de Jesus. Mas a Santíssima Virgem não
apenas deu sua substância ao Menino, como também teve
parte naquela outra geração espiritual ou moral que nós,
como Santo Agostinho, São Jerônimo e outros, atribuímos
a São José. Aqui nós já vemos uma essencial e, para nossa
questão, decisiva diferença entre Maria e José. O papel que
a Mãe de Deus teve na encarnação do Filho de Deus foi de
importância essencialmente maior que o de São José, e ela
está muito mais intimamente unida a Jesus e a todas as
pessoas da Santíssima Trindade que São José e, portanto,
elevada a uma dignidade essencialmente maior no Céu.
b) Outra razão útil em superar nossa dificuldade merece, no
mínimo, uma breve atenção. São José também teve um
papel em nossa redenção, mas apenas de modo remoto
e indireto. Ele tinha ajudado dispositivamente, como vi-
mos, a preparar o caminho para a Encarnação, que deveria
preceder a redenção e, no plano de Deus, estava ligada a
ela. Ademais, ele tinha mostrado o mais amoroso cuidado
com Jesus de Seu nascimento a Sua fase adulta e, desse
modo, preservou o Salvador para Seu sacrifício na cruz, e
assim ele também contribuiu para nossa redenção.

Mas também nesse aspecto a Santíssima Virgem foi muito


mais intimamente unida a nosso Redentor e cooperou com Ele em
Sua obra redentora muito mais íntima e diretamente. Ela foi, de fato,
a segunda Eva, que esmagou a cabeça da serpente; ao passo que o se-
gundo Adão não foi São José, mas Cristo, o próprio Salvador. Nesse
contexto, é, de fato, significativo que Maria ainda vivia e com Cristo
e experimentou, sofreu e ofereceu Sua paixão e morte redentora com

213
A Paternidade de São José

Ele; nós sabemos que São José não estava mais entre os vivos, já que
o Cristo agonizante recomendou Sua mãe a São João.

3. De tudo isso, nós podemos concluir com certeza que São


José não se iguala à Mãe de Deus em posição e dignidade, mas ocu-
pa o lugar seguinte ao dela e à frente de todos os anjos e santos no
reino de Deus e na glória celeste. Mas desde que essa dignidade não
é apenas o motivo, mas também a medida da veneração religiosa, a
veneração devida a São José é, obviamente, inferior àquela devida
à Mãe de Deus. Contudo, ela está acima daquela devida aos outros
santos, mesmo os anjos, e não apenas no grau, mas essencial e es-
pecificamente, pela simples razão de que também em dignidade ele
ultrapassar os outros essencial e especificamente. Na veneração aos
outros santos pode existir apenas uma diferença gradual, não es-
sencial ou específica, porque depende a santidade pessoal de cada
um, baseada na graça santificante, que em pessoas diferentes é ape-
nas gradualmente diferente, não essencialmente. Somente se, para
outros santos, além da graça santificante, também uma dignidade
decorrente de um ofício que eles ocuparam nesta vida, por exemplo,
como sacerdote ou bispo, devesse ser tomada juntamente com sua
santidade como motivo e norma, somente então poderia haver uma
questão de veneração especificamente diferente. Isso, no entanto,
geralmente não é feito. Seja como for, é indiscutível que a dignidade
da Mãe de Deus e de São José e, consequentemente, também a vene-
ração que lhes é devida, superam de maneira essencial e específica e
quase imensamente a de todos os santos, não apenas porque eles ti-
nham graça santificante em uma medida muito maior, mas, como eu
disse, por causa de sua dignidade essencial e especificamente maior
e sua inclusão na ordem hipostática. Se a veneração devida à Mãe de
Deus e a devida São José são especificamente diferentes, não é tão
claro. Embora ambos pertençam à ordem hipostática, dificilmente se
pode negar, em vista da união muito mais próxima, e essencialmen-
te mais próxima, de Maria com nosso Salvador e o Deus trino do que
a de São José.

214
Padre Joseph Mueller S. J.

A veneração ou o culto com o qual nós honramos Deus é infi-


nitamente superior àquele que nós damos mesmo à Santíssima Vir-
gem e a São José; não é apenas de um grau ou tipo mais elevado, mas
de uma ordem totalmente diferente. É apropriadamente chamado
adoração ou latria, enquanto a veneração aos santos é chamada dulia e
a veneração à Mãe de Deus é chamada corretamente de hyperdulia (isto
é, uma veneração superior à dulia). Tornou-se um costume chamar a
veneração a São José pelo nome de protodulia (isto é, a primeira ou
principal dulia), a melhor expressão já encontrada, embora não seja sa-
tisfatória, porque pode dar a ideia de que a veneração a São José difere
apenas em grau, não em tipo, da veneração aos outros santos.

Nesse sentido, vale a pena observar que, em toda veneração


religiosa, o essencial é o que ocorre na alma do adorador, sua atitude
mental em relação ao objeto de seu culto e os atos de sua alma: de
adoração, humilde submissão, gratidão, confiança, amor etc. Esses
atos interiores são e devem ser muito diferentes nos diferentes tipos
de veneração, já que suas manifestações externas (curvar-se, genu-
flexão etc.) nem sempre podem expressar essas distinções e são, fre-
quentemente, apenas uso convencional.

4. Vamos dar uma rápida olhada no desenvolvimento do cul-


to de São José, especialmente nos últimos anos. Essa veneração se
desenvolveu espontânea e instintivamente a partir do coração dos
próprios fiéis, mas sempre foi fomentada e incentivada pela mais
alta autoridade da Igreja. Assim, traz as marcas inconfundíveis da
protodulia. Aqui, vemos uma influência mútua exercida entre os fieis
e as autoridades da Igreja. O senso piedoso do povo, por sua própria
vontade, simplesmente colocou São José ao lado de sua Bem-Aven-
turada Esposa, acima de todos os outros santos no céu, e sempre
gostou de pensar nele na companhia de Jesus e Maria. Daí também
essas outras petições, por uma crescente veneração litúrgica de São
José. As autoridades da Igreja não deixaram de encorajar esses es-
forços e, assim, de sua parte, deram um novo estímulo à propagação
da devoção de São José.

215
A Paternidade de São José

Nós apenas citamos algumas elocuções papais mostrando


que o culto de São José, como se desenvolveu em nossos tempos,
possui as marcas de protodulia. O próprio Pio IX disse que a venera-
ção de São João, como surgira dos corações dos fiéis, era o impulso
final para que ele declarasse São José o patrono da Igreja Univer-
sal. Então, Leão XIII, em sua encíclica Quamquam pluries, diz: “E, de
fato, vimos um grande progresso no culto a São José, anteriormente
promovido pelo zelo dos Sumos Pontífices, depois estendido a todo
o mundo, especialmente quando Pio IX, nosso predecessor de feliz
memória, a pedido de muitíssimos bispos, declarou o santo patriar-
ca, patrono da Igreja Universal”.
Bento XV também foi um zeloso promotor da veneração a São
José, e estava bem ciente de seu constante crescimento entre os fieis.
Ele escreveu, em seu motu próprio Bonum sane (25 de junho de 1920),
no quinquagésimo aniversário da proclamação de São José como
patrono da Igreja: “Quando olhamos para estes últimos 50 anos, ob-
servamos um admirável reflorescimento de piedosas instituições, as
quais atestam como o culto ao santíssimo patriarca veio se desen-
volvendo sempre mais entre os fiéis; depois, se considerarmos as
hodiernas calamidades que afligem o gênero humano, parece ainda
mais evidente a oportunidade de intensificar tal culto e de difundi-
-lo com maior força em meio ao povo cristão”.
Essa interação entre os fieis e as autoridades da Igreja foi, prova-
velmente, uma das principais causas do desenvolvimento prodigioso
da veneração de São José nos últimos cem anos. E dessas manifesta-
ções nós podemos discernir que o culto que eles desejaram promover
tem as marcas da verdadeira protodulia, ou da mais alta dulia.
Testemunhemos alguns dos resultados desses empreendi-
mentos:
Primeiro, a festa de São José (a 19 de março) foi elevada por
Pio IX a dupla de primeira classe1; por Pio X, no entanto, que também

1. N. R.: Na liturgia da Igreja anterior ao Concílio Vaticano II, era usual


classificar as celebrações, utilizando termos que ainda permanecem,

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Padre Joseph Mueller S. J.

foi sinceramente devotado a São José, ela foi reduzida a festa de se-
gunda classe, porque normalmente ocorre na Quaresma e porque
ele desejou dar maior destaque à festa do Patrocínio de São José; mas
Bento XV a restabeleceu como festa de primeira classe.

A segunda festa de São José, originalmente intitulada “Pa-


trocínio de São José” foi, finalmente, elevada à primeira classe com
oitava, sob o título “Solenidade de São José, esposo da Bem-aventu-
rada Virgem Maria e patrono da Igreja Universal”. Nenhum outro
santo, além da Virgem Maria, é honrado desse modo por mais de
uma festa de primeira classe. E, mesmo, em uma terceira festa, São
José é honrado junto a Jesus e Maria, na festa da Sagrada Família.

Adicione-se a ladainha em honra a São José, com suas belas


invocações. Novamente, nenhum outro santo, além da Santíssima Vir-
gem, é assim honrado. O mesmo deve ser dito do Prefácio especial nas
Missas de São José. Esse Prefácio e o ofício do Breviário de suas festas
oferecem ainda mais provas para nossa argumentação de que a vene-
ração devida a São José é única em seu tipo, é uma protodulia.

Já mencionamos as petições apresentadas à Santa Sé durante


e após o Concílio Vaticano [I]. Eles estavam pedindo um aumento
ainda maior no culto litúrgico de São José, especificamente no Ordo
Missæ2 (no Confietor, nas orações Suscipe Sancta Trinitas, e Libera nos,

como “solenidade”, “festa” e “memória”, mas também dividi-las em


classes – primeira, segunda, terceira –, com maior ou menor cerimô-
nia (com ou sem vésperas, com ou sem oitava etc.), indicando o grau
de importância e precedência de uma celebração na vida litúrgica
da Igreja, conforme a pessoa homenageada.
2. N. R.: Ordo Missæ é o nome dado ao conjunto do texto chamado “or-
dinário” da Santa Missa, isto é, das partes fixas do rito. A expressão
era empregada comumente antes do Concílio Vaticano II. Os demais
termos – Confiteor, Suscipe etc. – são nomes de orações pertencentes
ao ordinário.

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A Paternidade de São José

e no Canon, nos Communicantes), bem como na Ladainha dos Santos,


São José também deveria ser mencionado pelo nome imediatamente
após o nome de Maria, a Mãe de Deus, e diante dos outros santos.
O papa, no entanto, não achou adequado atender a esses pedidos,
principalmente pelo fato de que exigiriam uma mudança nas mais
antigas e mais veneráveis partes da liturgia, que não deveria ser fei-
ta sem razões sérias. Dessa resposta fica evidente que não há dificul-
dades dogmáticas impedindo. Desde então, temos visto mudanças
serem feitas nos ritos litúrgicos que nossos pais jamais esperariam.
No decorrer do tempo, também essas dificuldades litúrgicas devem
ser superadas e São José receberá as maiores honras litúrgicas, a pro-
todulia, em toda parte.

Com essa expressão de esperança, encerramos nossa obra.


Que ela possa contribuir para um melhor conhecimento e uma pro-
funda apreciação de São José e, talvez, encoraje os pastores de al-
mas a tornarem seus rebanhos mais familiarizados com São José,
sua atraente personalidade, bem como sua grandeza e poder, para
que mais e mais pessoas se dirijam a ele com amorosa veneração e
confiança em sua intercessão.

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Coleção a Mulher Cristã
• A Mulher Forte – Mons. Landriot

• A Mulher Piedosa, vol. 1 – Mons. Landriot

• A Mulher Piedosa, vol.2 – Mons. Landriot

• Maria Falando ao Coração das Donzelas – Abade A. Bayle

• Donzela Cristã na Joia de sua Juventude – Pe. Matthias Bremscheid

• O Matrimônio Cristão – Mons. Tihamer Toth

• A Mulher como Deveria Sê-lo – Pe. Marchal

• As Três Chamas do Lar – Pe. Geraldo Pires

• O Meu Retiro – Padre Baeteman

• A Moça de Caráter – Mons. Tihamer Toth

• A Mulher Cristã e o Sofrimento – Pe. Henri Maurice

• A Mãe Segundo a Vontade de Deus – Pe. J. Berthier M.S.

• Imitação a Santíssima Virgem – Abade D’Herowille

Coleção das Santas Casadas

Resumos biográficos
• Santa Margarida de Cortona – Frei Pachomio Thieman

• Santa Isabel da Hungria – Albano Stolz


• Virgem Maria – Mons. Tihamer Toth

• Vida de Elisabeth Leseur – R. P. M. A. Leseur

• Santo Elzeário e a Bem-Aventurada Delfina – Genoveva Duhamelet

• Santa Isabel, Rainha de Portugal – J. Le Brun

• Santa Inês de Roma, Noiva Singular – Mons. Luigi de Marchi

• Santa Mônica – Mons. Bougaud

• Vida de Santa Rita de Cássia – Pe. José R. Cabezas

• Guia de imitação Mariana – Andre Damino S. S. P.

Coleção o homem cristão


• O Marido, o Pai, o Apóstolo – Pe. Emmanuel Gibergues

• Muito Entre Nós – Pe. Geraldo Pires

• Perante a Moça – Pe. Geraldo Pires

Títulos do Clube de Leitura / 2020


– Tetralogia Biblioteca da Mulher – Paulo Combes:

O Livro da Esposa – Paulo Combes;


O Livro da Dona de Casa – Paulo Combes;
O Livro da Mãe – Paulo Combes;
O Livro da Educadora – Paulo Combes.
Coleção esposa cristã
• A Mãe de Santa Terezinha - Irmã Genoveva da Santa Face

• O Pai de Santa Terezinha - Irmã Genoveva da Santa Face

• A Arte de Ser Chefe - Padre Gaston Courtois

• As Heroínas do Dever - Léon Rimbault

Coleção esposo cristão


• O Pai de Santa Terezinha - Irmã Genoveva da Santa Face

• A Arte de Ser Chefe - Padre Gaston Courtois

• A paternidade de São José

Livretos Devocionais 2020


– O Santíssimo Nome de Jesus – Pe. Paulo O’ Sullivan, O.P.

– Devoção a Sagrada Família – Editora Caritatem

– Devoção a São José – Editora Caritatem

– Devocionário Eucarístico – Editora Caritatem

– Devocionário de Santa Terezinha - Editora Caritatem

– O Precioíssimo Sangue de Jesus - Padre William Frederick Faber

– As três Ave-Marias
Outros Títulos da CARITATEM
• Devocionário Quotidiano
• Livro do Marido – Pierre Dufoyer
• Livro da Esposa – Pierre Dufoyer
• Guia do Catequista – Vol 01 – Mons. Alvaro Negromonte
• Guia do Catequista – Vol 02 – Mons. Alvaro Negromonte
• Guia do Catequista – Vol 03 – Mons. Alvaro Negromonte
• Guia do Catequista – Vol 04 – Mons. Alvaro Negromonte
• Meu catecismos – Vol 1 – Mons. Alvaro Negromonte
• Meu catecismos – Vol 2 – Mons. Alvaro Negromonte
• Meu catecismos – Vol 3 – Mons. Alvaro Negromonte
• Meu catecismos – Vol 4 – Mons. Alvaro Negromonte
• Preparação para a Primeira Comunhão - Monsenhor Álvaro
Negromonte
• Bíblia das Famílias Católicas - Padre Jakob Ecker
• Pequeno Tratado e Pedagogia - Abade Jean Viollet

“Todo mês, novas publicações destinadas à


Família Católica Tradicional”.
Este livro foi composto em Book antiqua 11/5 e terminou de ser
impresso sobre papel polén bold 90g na gráfica ROTAPLAN em
16 de julho, Dia de Nossa Senhora do Carmo.

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