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Copyright © 2023 Lovely Loser

ATÉ QUE A SORTE NOS SEPARE


1ª Edição

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida
ou transmitida por qualquer forma, meios eletrônicos ou mecânicos sem
consentimento e autorização por escrito do autor/editor.
Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e acontecimentos
descritos são produtos da imaginação da autora. Qualquer semelhança com a
realidade é mera coincidência. Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada ou
reproduzida sob quaisquer meios existentes – tangíveis ou intangíveis – sem
prévia autorização da autora. A violação dos direitos autorais é crime
estabelecido na Lei nº 9.610/98, punido pelo artigo 184 do Código Penal.
TEXTO REVISADO SEGUNDO O ACORDO ORTOGRÁFICO DA LÍNGUA
PORTUGUESA.
prólogo
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Este livro pode conter alguns gatilhos, contendo violência
física, psicológica, menção de abuso sexual, abandono parental e
cenas sexuais.
Caso resolva seguir em frente, desejo uma ótima leitura.
essa não é uma história sobre perdão e reconciliação
é a história de duas pessoas que foram feridas por quem
deveria protegê-las
e se tornaram fortes sozinhas.

— perdoar não significa manter por perto.


PARTE I
“Eu vou mandar nesta cidade de nada Veja eu
fazer com que eles se curvem Um por um.”
— You Should See Me In a Crown, Billie Eillish.
prólogo

Não consigo disfarçar meu mau humor essa noite, e isso fica
claro pelos olhares de súplica que meu pai me lança. Tenho
vontade de tirar cada grampo do cabelo, arrancar o quimono do
corpo e sair desse lugar. No entanto, isso provavelmente
decepcionaria papai, então minha melhor opção é ficar e fingir as
aparências, por mais que pareça uma missão impossível.
A inauguração da sua nova parceria com uma empresa
americana está acontecendo neste momento no arranha-céu mais
luxuoso de Tóquio. Odeio esse tipo de evento, já que sempre saio
na capa de alguma revista adolescente por uma ou duas semanas.
Evito esse tipo de atenção, porque as pessoas sempre me
resumem a isso. A filha prodígio do grande Jim Ogawa, o
empresário revolucionário do Japão. Crescer à sombra de um
sobrenome importante tem certo peso que odeio carregar.
— Phoenix — meu pai me chama, fazendo-me parar
de ajeitar os guardanapos na mesa obsessivamente.
Ergo o olhar. Jim Ogawa está em pé ao lado de um homem
que nunca vi em toda minha vida. Ele usa um smoking preto de
corte elegante com gravata borboleta. Além das roupas impecáveis,
o cabelo loiro parece uma fusão de ouro, prata e palha, que
combina com os olhos azuis gelo e pele pálida. Acho que nunca vi
alguém tão bonito antes, nem um olhar tão opaco. Sua frieza me dá
calafrios.
— Este é Liam Diamond, o novo sucessor das
indústrias Diamond.
A informação me pega de surpresa. Imaginei que o novo
sócio seria um homem maduro e experiente como meu pai, não
alguém tão jovem quanto Liam. Alterno o olhar entre eles. Quando
percebo que estou sendo mal-educada, me levanto da cadeira e
cumprimento o loiro com um menear de cabeça.
— É um prazer conhecê-lo, sr. Diamond — digo
mecanicamente, porque sei que é o que meu pai gostaria que eu
dissesse, mas, na verdade, só quero bocejar e ir embora para casa.
— O prazer é todo meu, senhorita Phoenix. O sr. Ogawa me
disse que toca piano. Se importa? — ele fala tão expressivo
quanto uma estátua. Consigo reconhecer o brilho de tédio que
banha suas íris.
Parece que não sou a única que está se esforçando para
ser amigável e causar uma boa impressão.
Eu sorrio polidamente, mas no fundo gostaria mesmo de
jogar uma taça de vinho no seu terno caro. Mal o conheço e já
detesto ele. Odeio ser o centro das atenções, e tocar em público
vai me tornar o evento principal desse salão.
Vejo a expectativa no rosto de meu pai e contenho o suspiro.

— É claro que não. — Mascaro toda a irritação que sinto.


O piano está ocupado por um pianista talentoso que não se
opõe quando me aproximo e informo que irei usá-lo. Começo a
sentir os olhares grudarem em mim. Respiro fundo, amaldiçoando
Liam Diamond. Resolvo tocar Nocturne in C Sharp Minor, de
Frédéric Chopin, porque é um clássico que meu pai aprecia.
Quando termino, sou ovacionada. Meu pai aproveita o
momento para começar uma mini palestra no palco montado
para ele, anunciando oficialmente a nova parceria com as
indústrias Diamond.
Observo o rosto impassível de Liam enquanto está ao lado
do meu pai e faço uma careta. Parece que ele só tem um tipo de
expressão.
Depois de alguns momentos, a palestra acaba e meu pai é
cercado por várias pessoas. Me levanto, indo até o banheiro.
Enquanto lavo as mãos após sair de uma das cabines, observo meu
reflexo no espelho. O quimono vermelho tem um padrão de flores
douradas tecidas à mão e a faixa de obi envolve minha cintura.
Estou tão parecida com minha mãe que fico longos
segundos encarando minha própria imagem refletida.
Quando saio do transe, seco as mãos no papel toalha e saio.
Me deparo com Liam, que acaba de deixar o banheiro masculino.
Nossos olhares se travam e eu não consigo me conter, dizendo:

— Obrigada por me fazer tocar em público.

Há uma pausa enquanto ele olha para mim em silêncio. Sua


sobrancelha esquerda se arqueia de maneira quase imperceptível, e
é a primeira vez que vejo alguma outra expressão no seu rosto,
mesmo que quase não possa ser considerada uma.
— Ironia não combina com você, senhorita Phoenix — é
tudo o que fala. — Agora, se me der licença…
Faz menção de se afastar, mas eu o impeço e me coloco
em seu caminho.
— Não interfira na minha vida e não vou interferir na sua
parceria com o meu pai. Não repita o mesmo erro novamente.
Não sei por que estou dizendo isso. Talvez eu só esteja com
raiva do meu pai por ter me proibido de ir para o evento de artes
no centro de Tóquio para estar aqui. Eu iria exibir um dos meus
quadros lá, mas ele estragou tudo.
Liam não se abala comigo ou minhas palavras, apenas me
dá as costas e volta para a festa.
Além de frustrada, me sinto uma idiota. Espero alguns
momentos antes de entrar no salão. Me sento na minha mesa
habitual e para não morrer de tédio, volto a organizar os talheres.
Um instante depois, ouço uma cadeira sendo puxada à
minha esquerda.
O cheiro de hortelã e charuto me envolve antes que eu erga
o olhar e encontre Liam. Não consigo esconder a surpresa no meu
rosto. Fico ainda mais sem reação quando ele se curva até mim,
ficando mais próximo que o adequado.
Meu coração dispara.

— Phoenix, para ser sincero, não poderia me importar menos


com você e sua vida de adolescente patética, ou seus dons no piano.
O que me interessa são meus negócios, e não gostaria de ter minha
aliança com seu pai destruída. Todas as ameaças não permanecem em
meu caminho por muito tempo, se é que me entende. — Liam se
afasta, encosta o corpo contra a cadeira e ajeita as abotoaduras nas
mangas da camiseta social que despontam por baixo do smoking,
como se não tivesse acabado de me intimidar.
Pisco, em choque. Meu corpo continua estático.
Não digo nada, então ele se levanta e se vai, sem sequer
me lançar um olhar sobre o ombro.
Um momento depois, os seguranças do salão começam a
me cercar e franzo o cenho. Não entendo o que está acontecendo
até que comecem a revirar minha bolsa, que estava sob a cadeira
que Liam tinha acabado de desocupar.
— Ei, tirem as mãos das minhas coisas! — ralho, o tom
de voz alto, atraindo mais atenção para nós.
Meu pai surge entre a multidão que começa a se
aglomerar ao meu redor, confuso.
— Desculpe, sr. Ogawa, mas recebemos uma denúncia
anônima e precisamos averiguar — o segurança fala, constrangido.
— Disseram que viram a senhorita Phoenix pegando o relógio de
um dos convidados. Tenho certeza que tudo não passa de um mal-
entendido.
Solto uma risada, descrente.

— Me confundiram, não peguei relógio algum.

O salão todo fica em silêncio, a tensão é palpável. Engulo


em seco e lanço um olhar de desespero para meu pai. Ele parece
tão incrédulo quanto eu. O segurança que revira minha bolsa tira
um Rolex dourado de um dos compartimentos. A angústia me
abate porque o olhar de Jim Ogawa se transforma em decepção.
— Não fui eu quem colocou isso aí dentro, pai — digo
num muxoxo, sabendo que nada do que eu falar neste momento
o convencerá do contrário.
— De quem é esse relógio? — ele questiona aos
seguranças, e me ignora completamente.
— Nos informaram que o proprietário é o sr. Diamond.
Como em uma cena digna de um drama cinematográfico,
todos soltam um arquejar em uníssono e olham para Liam
Diamond, destacado entre o pequeno aglomerado pelos cabelos
loiros. Sua expressão de surpresa e choque é convincente, mas a
compreensão me atinge.
Não.
Ele não pode ter feito isso comigo. No entanto, recordo o
que ele me disse. Ameaças não permanecem no meu caminho por
muito tempo, e tudo se encaixa. Tenho vontade de gritar e
chacoalhá-lo pelos ombros, mas não vou fazer uma cena extra aqui.
A situação toda já passou dos limites.
Fico em silêncio enquanto o encaro. Liam se aproxima e olha
para o Rolex nas mãos do segurança, depois me fita com frieza.
— É meu relógio — anuncia em voz alta, e as pessoas
voltam a murmurar.
— Não achei que você faria algo do tipo só porque te proibi
de ir naquele evento estúpido — meu pai fala baixo, só para que
eu consiga ouvir. — Levem Phoenix daqui.
Fazendo um sinal para os seguranças, sinto o
constrangimento e a raiva tomarem conta do meu corpo
enquanto sou escoltada para fora do salão. Alguns flashes dos
fotógrafos presentes no evento me atingem e travo a mandíbula.
Lanço um olhar sobre o ombro. Minhas íris encontram as
de Liam. Ele parece alheio, como quem não tem consciência do
que acabou de fazer.
Liam Diamond começou uma guerra.

Essa foi apenas a primeira batalha.


E eu não deixaria que ganhasse mais nenhuma dali
em diante.
01

Quando o policial vem abrir a cela, estou com frio, fome e,


sobretudo, muita raiva. Nunca achei que seria presa algum dia,
muito menos que o poderoso Jim Ogawa permitiria algo assim.
Geralmente, ele evita qualquer tipo de escândalo que possa
colocá-lo sob os holofotes da imprensa com fome de destruição.
Assim que chego à recepção, paro de andar, porque ao lado
do meu pai está ninguém menos que o desgraçado responsável por
me colocar aqui dentro. Meu primeiro instinto é querer pular sobre
o balcão e estrangulá-lo na frente de todos. Contudo, isso
provavelmente só faria com que eu voltasse para aquela cela
imunda. Então, com muito esforço, me contenho.
Foco os olhos em papai, que não está nada contente. Por
instinto, começo a mexer na manga do quimono. Não gosto que fique
bravo comigo, até porque ele é tudo que tenho. Sempre estou em
busca de aprovação, mas parece que nunca é o suficiente, e sinto
que agora nunca vai ser. Se não conseguir provar que sou inocente, é
capaz que perca todas as esperanças em mim.
— O senhor Diamond não vai prestar queixa e você vai
ter uma oportunidade de se redimir em breve — é tudo que meu
pai diz, deixando claro em sua expressão que, qualquer que seja
o castigo que ele tenha para mim, não vou poder escapar.
Sinto vontade de chorar, mas isso só me faria parecer
mais patética ainda. Engulo o nó que se forma na garganta e
ergo o queixo trêmulo, passando por Liam e meu pai. Saio da
delegacia assim que me liberam oficialmente. Não sei que horas
são, mas o céu está negro feito um bréu e as ruas desertas. A
Limousine habitual nos espera no meio-fio.
Nem consigo cumprimentar o senhor Hayashi quando entro
no automóvel. Meu pai entra depois e Liam permanece lá fora, com
as mãos enfiadas no bolso, me lançando um olhar insignificante. Me
pergunto como ele consegue agir de forma tão fria após ter me
colocado atrás das grades e ter quebrado uma parte da confiança
do papai em relação a mim.
— Não fale nada. — Jim Ogawa me corta assim que
faço menção de abrir a boca e o carro começa a se mover.
— Isso não é justo!
Ele me ignora.

— Você vai se redimir com o sr. Diamond. É uma surpresa


que ele não tenha levado isso adiante e nem desfeito nossa
parceria. Você vai estagiar duzentas horas para ele em sua nova
sede aqui em Tóquio, em gratidão à sua generosidade.
Meu queixo cai.

— Não vou estagiar porcaria nenhuma. Esse cara é


um babaca sem sentimentos. Ele armou tudo isso. Você tem
que acreditar em mim. Por favor.
— Chega, Phoenix! — Meu pai estoura, fazendo-me
encolher contra o estofado da Limousine. — Essa conversa acabou.
Você vai honrar nossa família e se redimir com o sr. Diamond. Não
há negociação quanto a isso.
Pelo resto do trajeto, fico em silêncio, com um nó
na garganta.

Antes de alcançar Emi, vejo o topo dos seus cabelos


castanhos claros a alguns metros de distância. Ela está sentada na
mesa habitual, perto da janela de nossa cafeteria preferida no
centro de Tóquio. Emi é muito bonita, seu cabelo está cortado acima
do ombro e seus olhos são mais proeminentes que os meus. Assim
que desabo na cadeira em sua frente, ela me lança um olhar
penetrante, como se visse dentro da minha alma.
Talvez ela realmente tenha esse tipo de poder, porque
sempre sabe quando estou lidando com dias ruins.
— O que aconteceu? — indaga, usando seu radar de melhor
amiga.
— Fui presa — falo, o que a faz soltar uma risada.

A gargalhada morre conforme ela nota na minha


expressão que não é uma piada. Que falo sério.
— Meu Deus, como isso aconteceu?

— Você não vai acreditar… — começo a falar, mas me calo


assim que fito a revista sobre a mesa, ao lado do copo de café de
Emi. A primeira página anuncia a chegada do grande
empreendedor milionário Liam Diamond no Japão. Mas que droga?
Quem é esse cara? O Justin Bieber?
Emi nota meu olhar, porque fala:

— Ele é lindo, não é? E tá bem popular entre as garotas


daqui.

— Ele é uma pessoa horrível! — Arranco a revista da mesa


e a amasso entre os dedos. Só de olhar para a fotografia do
babaca descendo de um jatinho, me dá vontade de gritar.
Emi e algumas pessoas ao nosso redor me fitam chocadas.
Talvez eu pareça uma lunática agora, mas me sinto melhor
quando termino de descontar minha ira na revista.
Respiro fundo e jogo o papel amassado em uma lata de lixo
próxima da mesa. A garçonete se aproxima cautelosa, com um
sorriso sem graça. Provavelmente ela testemunhou minha cena,
mas não tenho tempo para sentir constrangimento.
Peço um expresso com chantilly.

— O que foi isso? — Emi questiona, assustada.

— Eu fui presa por causa desse idiota.

Minha amiga pisca, tentando assimilar a informação.


— Você o conhece?

— Ele é o novo sócio do papai. Estava no último evento,


semana passada. Ele me acusou de roubar o relógio dele.
— Ele te acusou de furto? — indaga, assustada.

— Não diretamente. Ele armou para mim. Mas não quero


falar sobre ele. — Solto um suspiro, indo direto ao ponto que tem
me incomodado nos últimos tempos. — Acho que não vou ingressar
na faculdade de Direito.
Admitir isso em voz alta é assustador e libertador ao mesmo
tempo. Eu e Emi nos formamos no colégio há alguns meses e, até o
baile de formatura, minha vida era perfeita. Depois, é como se tudo
desmoronasse. A relação com meu pai esfriou ainda mais, e eu me
vi perdida, sem saber qual rumo seguir. A Phoenix do colegial ficou
para trás e tudo o que eu acreditava também. Não sei mais quem
eu sou e talvez esse seja o problema.
— Acho que você devia dizer ao sr. Ogawa de uma vez —
Emi fala, com cautela.
Aproveito o momento que meu expresso chega e lambo a
camada do chantilly, enquanto evito respondê-la. Sei que esse é
o caminho certo, mas me sinto uma covarde, já que no instante
em que disser isso para meu pai, será irreversível. Vou perder
completamente o respeito dele.
A faculdade de Direito sempre foi uma espécie de acordo
entre nós dois. Nunca houve interesse no que eu gostaria de fazer,
mas sim no que traria sentido para nossa família. Não há espaço
para perdedores, como ele denomina qualquer um que trabalhe
com arte, na nossa linhagem.
— Não sei se consigo. — Meus ombros despencam. —
Não posso decepcioná-lo.
— Mas alguém vai sair decepcionado. Só vai ter que decidir
se vai ser você ou ele.
As palavras de Emi ficam em minha mente conforme
dirijo para casa no meu conversível.
Na maioria das vezes, saio com motoristas. Quando quero
pensar, opto por eu mesma dirigir, porque posso ir para onde eu
quiser. Ouço meu celular bipar e, antes de fitar o visor, já sei que
é meu pai. No farol vermelho, dou uma espiada nas notificações
para confirmar minha suspeita.
Ele quer saber se já fui na sede do Liam deixar as papeladas
para o estágio.
Isso foi algo que recusei a pensar até agora. Estou protelando
ao máximo levar os papéis na empresa, porque sei que o pesadelo vai
ser real quando finalmente o fizer. Sempre invento uma desculpa para
meu pai, mas percebo que a paciência dele está se esgotando.
Ignoro o telefone e a pasta de couro no banco do passageiro.
Na verdade, jogo-a no banco de trás para que fique fora de vista.

Vou evitar Diamond até o limite. Estagiar em sua empresa


não estava nos meus planos de férias antes da faculdade. Seguro o
volante com força, sentindo outra vez a onda de raiva me invadir.
Nada nessa situação é justa. O que Liam fez, para me acusar de
ter pego o relógio, nem meu pai ao me forçar a cumprir trabalho
para me redimir.
O babaca é quem precisa se redimir comigo. Mas eu
não perdoaria Liam nem em um milhão de anos.
Começo a dirigir para o único lugar em que me sinto bem,
onde posso ser eu mesma. Assim que chego em frente ao prédio
discreto numa rua comercial, estaciono do outro lado da rua e
pego a mala que sempre trago comigo quando venho para cá.
Essa noite, tenho uma missão.
02

O Hide & Art está cheio esta noite, porque é sábado.


Durante a semana, o fluxo é bom, mas nos sábados e domingos é
quando realmente lota.
Sempre fico um pouco nervosa antes de me apresentar,
não importa quantas vezes eu faça isso.
Meu cabelo está preso em um coque e a máscara que uso é
vermelha, que combina com o tom do vestido que bate na metade
das minhas coxas. Geralmente, não mostro muita pele em jantares
de família, mas aqui, posso ousar mais. Posso ser eu mesma. Até
porque minha identidade sempre vai ser um segredo. O conceito
é que os artistas sejam anônimos.
Dylan se aproxima pela esquerda, com sua própria máscara
que imita penas de um pavão. Ele acabou de se apresentar, fez
uma escultura de barro ao vivo, e agora é minha vez.
— Parece que hoje tem alguém querendo comprar as artes.
— Não consigo ver seu rosto, mas parece curioso. — O Kai disse
que não estamos vendendo nada, mas o rapaz insistiu tanto, que o
fez ceder.
Meu queixo quase despenca.

— Sério?

Para que Kai, o organizador e fundador do Hide & Art,


tenha aceitado uma oferta — algo bastante comum —, deve ter
sido por conta de muito dinheiro.
Ele sempre deixou claro que nossos trabalhos não estavam
à venda, que seria apenas uma exposição. Mas, pelo visto, alguém
o fez mudar de ideia. Não sei como me sentiria com alguém
levando um dos meus quadros.
— Ele só vai vender se concordarmos, é claro — Dylan
acrescenta, provavelmente notando a incerteza nos meus olhos.
— Agora, é sua vez, Flora.
Flora é o pseudônimo que escolhi para assinar meus
quadros. Eu me sinto mais à vontade sendo Flora do que Phoenix
para pintar as telas. Além disso, é mais seguro. É algo que eu
nunca arriscaria perder e, se meu pai descobrisse, com certeza me
proibiria de frequentar o ambiente.
Sinto a habitual ansiedade começar a varrer meu corpo.
Subo no pequeno palco. Minha tela já está posicionada. A
conversa baixa no ambiente some conforme me sento na cadeira.
Nunca olho para as pessoas lá embaixo. Sempre que estou pintando,
tudo ao meu redor desaparece. Somos apenas eu e meus quadros.
Com as primeiras pinceladas de tinta, começo a dar vida à
tela. O tempo passa rápido aqui em cima. Cada artista tem
cinquenta minutos para criar algo, e eu finalizo meu quadro da
melhor forma que consigo. A fênix de asas abertas foi pintada de
um jeito brusco. Para finalizar, com um isqueiro, queimo as bordas
da tela, dando a impressão de que o pássaro ganhou vida e
incendiou tudo.
Uma salva de palmas explode ao meu redor, e desperto
do torpor em que me envolvi nos últimos momentos.
Algo me incomoda, no entanto.

Sinto um olhar perfurar minha nuca, uma sensação


incômoda de que alguém tem um alvo em mim.
Olho para as pessoas aglomeradas no estúdio e tento
sorrir em agradecimento, mas meus lábios murcham assim que
fito o azul ártico que congela meu corpo inteiro.
É como se a pequena multidão tivesse desaparecido. Somos
apenas eu e Liam aqui. Seu corpo está encostado contra uma pilastra,
e o terno azul marinho parece impecável. A cor esvai do meu rosto.
O olhar presunçoso no rosto dele diz: eu sei todos os
seus segredos.
Mas talvez isso seja impressão minha. Não tem como
ele saber quem eu sou. Me viro e deixo o palco com pressa,
me escondendo no corredor de acesso. Dylan ainda está aqui
atrás desde que comecei a pintar.
— Parece que viu um fantasma — ele diz, em meio a
uma risadinha.
Tenho vontade de respondê-lo que estou sendo
assombrada, mas não por um fantasma. E sim por um milionário
que parece não ter alma nem coração.
— Ainda não me acostumei em ser o centro das atenções —
falo qualquer coisa, dando um riso mecânico para acompanhá-lo.
— Seu quadro ficou incrível. A ideia do isqueiro… —
Dylan balança a cabeça, como se não soubesse encontrar as
palavras certas para descrever a técnica que utilizei.
— Obrigada. Preciso ir embora agora. Com licença —
falo, gentilmente, pronta para dar o fora.
Antes que ele possa estender a conversa, eu me esquivo
em direção aos armários, onde deixei minha mala com as roupas
que estava usando mais cedo.
Não tenho tempo para me trocar, apenas visto um sobretudo
que esconde o vestido vermelho. Não sei se devo tirar a máscara.
Talvez seja arriscado enquanto Diamond permanece por perto.
— Flora! Finalmente te encontrei. — A voz de Kai soa atrás
de mim e faz com que eu feche os olhos com força. — Tem alguém
que quer te conhecer. — Ouço mais passos e percebo uma terceira
presença no cômodo.
Meu corpo inteiro congela e prendo a respiração.

Esse momento não pode ser real. Torço para que quem
deseja me conhecer seja qualquer um dos espectadores comuns que
vêm até aqui. Isso já aconteceu antes. Já fui apresentada a dezenas
de pessoas que gostaram do meu trabalho.
Agora, meu único instinto é sair correndo.
Alguns segundos se passam, e me viro lentamente. Como eu
temia, Liam está em pé na minha frente, ao lado de Kai. Evito olhá-
lo nos olhos e torço para que a máscara seja suficiente para que
ele não me reconheça. Ela cobre metade do meu rosto; apenas um
pouco dos meus lábios e queixo ficam à vista.
— Esse é o sr. Diamond. Ele tem interesse no seu quadro,
fez uma oferta excepcional.
Tenho certeza de que sim. Alguém com tanto dinheiro… Me
surpreende que Liam aprecie a arte. Ou, pelos, finja. Ainda não
entendi qual é a dele. Se está aqui apenas para ter outro motivo
para me chantagear, ou se foi uma infeliz coincidência do destino.
— Fico feliz que se interesse pelo meu quadro, mas ele não
está à venda — falo, baixo, agradecendo a máscara que faz com
que minha voz soe abafada.
Fito Kai enquanto digo isso, que parece ultrajado. Ele me
inspeciona como se eu fosse uma completa imbecil, mas não
quero o dinheiro e, muito menos, que Liam possua uma das
minhas criações.
— Ele ofertou vinte mil dólares — Kai reforça.

Além de tudo, ele paga em dólar. Mas é claro. Tenho


vontade de rolar os olhos. É a primeira vez que tenho coragem de
encarar Liam desde que ele entrou aqui. Sustento seu olhar
inexpressivo enquanto digo:
— Sinto decepcioná-lo, sr. Diamond, mas minha arte
não pode ser comprada nem com todo dinheiro do mundo.
Isso faz com que sua sobrancelha esquerda se arqueie de
forma sutil. É quase como se achasse a resposta interessante. Ou
um desafio. O silêncio preenche o ambiente. Uma tensão
palpável toma o rosto de Kai.
— Tudo bem — Liam diz, enfim. — Se um dia mudar de
ideia, me procure.
Ele me entrega um cartão com seu número pessoal e eu
aceno com a cabeça antes de pegar minha mala e me despedir.
Sob o braço livre, carrego o quadro, agora envolvido por um pano,
para que não sofra danos ou suje. Caminho até a porta dos fundos,
puxando a maçaneta.
A rajada do ar frio se choca contra meu corpo e rosto.
Aperto o sobretudo ao redor do tronco e começo a caminhar pela
rua estreita em direção onde meu carro está estacionado.
Um calafrio toma meu corpo. Tenho a estranha sensação
de estar sendo vigiada. Observada.
Não olho sobre o ombro nenhuma vez enquanto entro no
automóvel.

— Onde você estava? — É a primeira coisa que ouço


assim que atravesso a porta. Quase deixo o quadro cair no chão
com o susto.
Meu pai está sentado na poltrona, próximo à lareira. Não sei
o que me surpreende mais: o fato de ele estar em casa ou sentado
aqui. Jim Ogawa sempre dedica seu tempo aos negócios. E
quando deveria estar livre, se enfia no escritório e dá um jeito de
trabalhar até mesmo em suas folgas. Vê-lo sem roupas sociais,
apenas sentado na sala, é uma cena um tanto chocante.
Minhas observações se dissipam assim que reparo na
expressão no seu rosto. Uma onda de raiva transparece nas feições
dele, e eu me encolho, como se pudesse desaparecer dentro do
sobretudo. Seu olhar se fixa no objeto que seguro embaixo do
braço e, em seguida, na mala em minha mão.
— O que estava fazendo, Phoenix? — Engulo em seco.

— Fui numa exposição de arte. — Resolvo ser um pouco


honesta, porque se ele quiser descobrir o que faço, vai mandar
alguém para me espionar. Desenrolo o pano ao redor da tela com
cuidado. — Já que o senhor acha que não devo pintar, resolvi
pelo menos comprar um quadro. — Mostro a ele a pintura. Meu
pai continua inexpressivo. — É de uma artista chamada Flora.
Ele solta um suspiro longo, mas minha explicação parece ser
o suficiente.

— Desde que siga com a ideia da faculdade de Direito,


pode ir até as exposições.
— Claro, pai — digo, num muxoxo. — Mas… você não acha
interessante? — Ergo a tela outra vez, me sentindo nervosa,
como se meu coração fosse explodir dentro do peito. — Não
gostou do quadro?
Seus olhos voltam a analisar minha arte.

— É bonito — fala, me surpreendendo. Uma parte minha se


enche de esperança. Esperança tola que morre no próximo segundo.
— Mas não é seu destino. Seja uma espectadora da arte, se
quiser. Não uma artista.
Tenho que engolir o nó que se forma em minha
garganta, tentando não demonstrar a decepção.
— Liguei para Diamond — continua, me surpreendendo. Fico
em silêncio. — Liam dispensou a entrega das papeladas, e me disse
que você não compareceu até lá para levar. Vai começar o estágio
segunda-feira. Ele irá te treinar.
Abro a boca para contestar, mas logo a fecho. Discutir com
meu pai é uma batalha em vão. Nunca irei convencê-lo de que essa é
uma ideia ridícula, que não tenho que trabalhar para Liam. Mas ele
nunca vai entender. Para ele, sou a filha patética que quis
chamar atenção ao roubar o relógio de um de seus sócios.
— Tudo bem — falo, derrotada. — Posso ir para o
meu quarto?
Meu pai assente, permitindo.

E, como um bom cão treinado, abaixo a cabeça e subo


as escadas, matando meus sonhos dentro de mim.
03

Preciso de todo autocontrole do mundo para não derrubar


o copo de café que seguro no meu novo chefe. A palavra me dá
calafrios. Ele está à minha frente com uma expressão de babaca
presunçoso, ostentando o cabelo loiro estúpido que está
perfeitamente penteado para trás.
— Está atrasada, senhorita Phoenix — é a primeira coisa
que diz desde que cheguei para meu primeiro dia no estágio. Ele
não demonstra nenhum indício de que me reconheceu na
exposição, o que é um alívio.
O prédio é moderno, padronizado como os outros na área
industrial. Me surpreende que ele tenha mesmo fincado suas
garras aqui, no meu lar. No fundo, estou fervendo de raiva. É
necessário muito autocontrole para não rolar os olhos, mas lembro
que para vencer essa guerra, não posso usar os métodos
agressivos que gostaria.
— Trânsito — digo, de maneira seca e fatídica.

Liam é um oponente em potencial. Ele possui poder e


influência que, neste momento, não tenho, além da credibilidade do
papai. Tudo o que mais desejo é reconquistar meu pódio como a
filha exemplar, não aquela que vai parar atrás de grades imundas
da delegacia local.
Seus olhos azuis frios estão fixos no meu rosto de um jeito
desconcertante. Não consigo ter a mínima ideia do que ele está
pensando, pois leva a sério a arte de manter o rosto
completamente inexpressivo.
Depois de longos segundos que parecem décadas, ele
levanta de trás da mesa, expondo toda sua altura. Só agora percebo
que ele é bem maior que eu.
Liam veste uma camiseta de botões branca e calça social preta,
o maldito Rolex que ele me acusou de ter furtado cintila em seu pulso.
Ele senta bem na minha frente, sobre o tampo de madeira, e então
começa a ajeitar as malditas abotoaduras de prata.
Sua expressão é entediada quando diz:

— Bom, uma pirralha como você não me é útil no escritório.


Só permiti sua presença aqui porque seu pai insistiu muito na ideia
de se redimir comigo. Então, estou tão ansioso para me livrar de
você quanto você deve estar para que tudo isso acabe. — Há uma
pausa. Ele ergue o olhar de forma lenta até meu rosto. — Você
pode ficar com os cafés.
Pisco, absorvendo suas palavras. Minha mão treme ao redor
do copo de Starbucks que seguro. Pirralha e não ser útil na mesma
frase me dá tanta raiva que preciso respirar fundo várias vezes
para não explodir.
— Claro — é tudo que digo. — O senhor está a fim de
tomar algo neste momento? — Tento mascarar o cinismo, mas
falho miseravelmente.
Liam percebe, porque sua sobrancelha se mexe.

— Café desnatado, sem açúcar.

Café desnatado sem açúcar. Sério? Tem como esse cara


ficar mais sem graça? Me levanto, seguro a bolsa contra o corpo e
ajeito minha saia que subiu um pouco quando me sentei. Entro no
elevador, apertando um dos botões no painel. Quando olho para
frente, reparo que Liam ainda me observa. Assim que as portas se
fecham, rolo os olhos.

Quando volto com o café, Diamond não está no seu


escritório. Vou até a mesa e vejo o post-it grudado em cima de uma
pasta preta. Reunião de emergência. Busque meu almoço.
Semicerro os olhos para o pedaço de papel neon, observando com
desgosto a caligrafia perfeita.
Largo a bebida em cima da mesa e aproveito o momento
para procurar qualquer evidência de falhas. Mexo em suas gavetas,
abrindo-as.
Nas primeiras, há clipes organizados em cores e
tamanhos, enfileirados com precisão. Na segunda, apenas pastas
com processos em ordem alfabética. A última está trancada e eu
solto uma bufada audível, frustrada.
Me irrita a forma como ele parece perfeito. Me irrita
mais ainda como ele faz parecer fácil.
Fico olhando para o post-it até que meu celular comece a
tocar. Não preciso conferir o visor para saber que é Ren. Atendo
no terceiro toque. Sua voz soa abafada do outro lado da linha:
— Já começou o estágio?
— É, já. — Faço uma pausa, olhando pelas janelas. O
escritório de Liam fica no último andar, a arquitetura de vidro
permite que eu tenha uma vista panorâmica da cidade estendida
abaixo de mim. Com cuidado, ando até estar próxima dos janelões
que se se erguem do chão até o teto, como paredes transparentes.
— Como está aí? — questiono, referindo-me à viagem. Ren
está visitando a casa de campo de sua família.
— Meu avô perguntou de você. Ele fez Miso. Seu preferido.
— Há um momento constrangedor de tensão, mesmo que seja
apenas uma chamada telefônica. Consigo quase imaginá-lo fazendo
aquela coisa com a boca toda vez que está ansioso.
Ren e eu nos conhecemos desde que tínhamos dez anos de
idade. Ele foi meu primeiro amor e agora que estamos prestes a
nos formar, nosso relacionamento ficou esquisito. Ele quer fazer
faculdade em Harvard, nos Estados Unidos, e sempre idealizamos o
futuro perfeito. Ele seria um neurocirurgião renomado, eu me
formaria com honras em Direito, e teríamos tardes românticas em
Boston.
Acontece que isso sempre foi o que meu pai planejou para
mim. Talvez por isso ele goste tanto de Ren. Eles tem ideias
parecidas. Acho que não existe nada que eu tenha realmente
escolhido até agora. Fui criada para ser um exemplo e obedecer.
Começo a tirar as lascas do esmalte vermelho das minhas
unhas distraidamente, concentrada no fluxo de carros do trânsito
de Tóquio.
— Phoe? Está escutando? — Ren soa distante na minha
mente e desperto, lembrando-me que estamos em ligação.
— Desculpa. Dá pra repetir?

— Você anda muito aérea ultimamente. Tem certeza de


que está tudo bem?
Não contei para Ren sobre o episódio com Liam. Só falei que
meu pai queria que eu fizesse estágio com seu novo parceiro de
negócios, ocultando as motivações por trás disso. Nunca guardei
nenhum segredo dele, mas agora é tão natural mentir que me
deixa perplexa.
— Só estou meio cansada. Queria ter conseguido ir para
a casa de campo com você.
— Eu também queria que você estivesse aqui. A gente iria
ficar o tempo todo no gazebo. Lembra? Você amava aquele lugar.
O gazebo que fica no jardim, como poderia me esquecer?
Foi lá que nos beijamos pela primeira vez, aos catorze anos. Sinto
falta dessa época. Um barulho atrás de mim me faz olhar sobre o
ombro e eu congelo assim que vejo Liam parado a alguns metros
de distância. A expressão de tédio e a postura prepotente. Limpo a
garganta.
— Desculpa, Ren. Preciso desligar agora. — Encerro a
chamada. Me viro completamente para Diamond, que ainda
me encara como se esperasse alguma reação.
— Sente-se, senhorita Phoenix. — A voz autoritária faz
com que eu franza o cenho em uma careta.
— Pra quê?

— Sente-se, não vou repetir.


Fico parada e ele diz pausadamente:

— Senta. Agora.

Fervendo de raiva, me jogo na poltrona em frente à sua


mesa. Liam se senta em seu posto de forma lenta, o que me dá
nos nervos. Parece que cada movimento dele exala uma dose de
prepotência, o que é extremamente irritante. Fico tentada a me
levantar, só para contradizê-lo, mas permaneço quieta, esperando.
Seus olhos azuis frios estão fixos nos meus quando fala:

— Você está demitida.

Meu queixo cai.

— O quê? — Me levanto em um solavanco. — E o acordo


com o papai?
— Não fiz acordo nenhum com seu pai referente ao seu
estágio. Ele me pediu para contratá-la, mas você não cumpriu as
expectativas.
— Isso é ridículo. Foi só uma pausa para atender o celular e
você nem estava aqui. — Bato minha bolsa sobre o tampo da mesa
com força, reproduzindo um estalo alto do couro ao se chocar
contra a madeira. — Você não pode me demitir!
— Acabei de fazer isso, senhorita Phoenix. Não há nada
que homens como eu não possam fazer.
Sinto tanta raiva que nem hesito antes de jogar o copo de
café em sua camiseta social. O líquido marrom mancha todo o
tecido branco. Liam trava a mandíbula por um segundo antes de
voltar para sua habitual expressão de estátua. Posso jurar que vejo
uma sombra de sorriso em seus lábios, mas talvez eu esteja ficando
louca, ou ele é algum tipo de sociopata.
— Acho que homens como você também podem trocar
de roupas.
— Tem razão. Mas o que seu pai vai achar disso?

Enrijeço. Não pensei em nada antes de decidir encharcá-lo


com a porcaria do café. Agora provavelmente estou encrencada.
Tenho que me lembrar de quem ele é. Liam Diamond. Influente.
Novo sócio do meu pai. Não posso deixar com que acessos de
raiva me façam estragar tudo.
— Não conta pra ele — disparo, na defensiva.

— Por que eu faria isso?

— Tem que ter algo que você queira. Até homens como
você almejam algo.
— Engraçado. Não há nada que eu queira neste momento.

— Todo mundo quer algo — digo, entre dentes, tentando me


recompor. Sopro uma mecha de cabelo para longe dos meus olhos
e seguro minha bolsa firmemente. — Quando pensar, me procure.
Sei que não vai desperdiçar a chance de ter uma carta na manga.
Liam brinca com uma caneta, passando-a entre os dedos
quando me lança um olhar que me dá arrepios e responde:
— Tem razão, senhorita Phoenix. — Há uma pausa. —
Vamos desconsiderar seu deslize com o celular. Que não se repita.

A primeira regra para deter o inimigo é conhecer suas


fraquezas e pontos fortes. Por isso, estou fazendo meu dever de
casa ao pesquisar tudo sobre Liam Diamond no Google. A
quantidade de resultados na busca é tão grande que me dá nos
nervos. Ele está em páginas da Forbes, em jornais americanos e
fóruns alemães. Inclusive, descobri que ele descende de uma
monarquia antiga da Alemanha, além de que seu nome inteiro
é Liam Lawrence Diamond.
Sua vida toda aparenta ser perfeita, aulas de polo aquático,
campeonatos de golfe e esgrima, faixa preta em diversas artes
marciais e irmão de um bilionário filantropo chamado Bastian que
tem tanta relevância na mídia que me assusta.
Inspeciono uma fotografia de sua família. Todos eles
possuem a cabeleira loira e foram esculpidos com tamanha
perfeição. A única rachadura na fachada aparentemente
impenetrável é o divórcio dos pais, mas não há nada sobre o motivo
pelo qual o casamento acabou.
Travo a mandíbula com tanta força que ouço meus dentes
rangerem. Como posso vencer um oponente que não demonstra ter
defeitos? Diferente de mim, Liam não está envolvido em nenhum
escândalo. Eu fui para a cadeia, mesmo que por algumas horas. Foi
o suficiente para que meu rosto estampasse os jornais locais.
Giro na cadeira assim que a porta abre e fecho o notebook
antes que Emi veja o que estou fazendo. Depois de tanto tempo
frequentando minha casa, ela parou de bater antes de entrar no
quarto, o que me irrita. Contudo, nunca tenho coragem de dizer
nada, pois ela é uma boa amiga e sempre está por perto quando
preciso.
Emi segura o copo de isopor com o melhor chá de hibisco
da cidade. Ela o deixa na mesa em minha frente e senta na borda
da cama, com o seu próprio chá entre os dedos.
— Como foi o primeiro dia no estágio?

— Foi horrível. Ele me demitiu e recontratou em questão


de minutos.
Emi quase engasga com a bebida. Ela tosse algumas vezes
e, quando recupera o ar, questiona:
— O que você fez para ser demitida e recontratada
no primeiro dia de estágio?
— Eu te disse que ele é uma pessoa horrível. Só atendi o
telefone por uns minutos enquanto ele nem estava no escritório.
— Que amargurado. Bom, acho que eu e você precisamos
de um dia de SPA e compras.
Solto uma risadinha. O bom de tê-la ao meu lado, é que me
conhece como ninguém. Faz um tempo desde que não passamos
um dia fazendo coisas que gostamos, como ir até o SPA e ao
shopping. Acho que talvez ela esteja certa. Estive tão pilhada
ultimamente que esqueci de todas coisas que eu gosto.
— Como nos velhos tempos? — questiono, empolgada com a
ideia.

— Como nos velhos tempos — Emi concorda, sorrindo


em minha direção.
04

Quando sinto o cheiro salgado da maresia, respiro fundo,


inalando-o. Paro para contemplar a casa de praia que se ergue
à beira do oceano. Por anos, esse lugar foi o meu porto-seguro
e agora não é diferente.
Sempre que quero relaxar, venho até aqui. É preciso de
uma balsa para chegar até Sodoko Beach, que fica isolada em uma
ilha. Avanço até a porta de madeira com a chave que meu pai
confidenciou a mim, contudo, não é necessário usá-la já que a
fechadura está destrancada. Com o cenho franzido, avanço pelo hall.
A luz do sol dança livremente através das janelas e enche a
sala com um brilho dourado e caloroso. Todas as almofadas claras,
em paletas de tons naturais do sofá, estão organizadas. A mobília
de madeira permanece no lugar, inclusive os troféus de ouro que
colecionei ao longo dos anos em campeonatos de vôlei, o que indica
que ninguém entrou aqui. Talvez o caseiro tenha esquecido de
trancar a porta.
Jogo a bolsa no sofá, enquanto me aproximo das paredes de
vidro.

A vista panorâmica do oceano se estende até onde os olhos


podem ver, o azul infinito e horizonte interminável. As ondas do mar
se quebram suavemente na praia, enquanto um grupo de amigos
joga bola na areia. De repente, ouço um estalo atrás de mim que
me desperta.
Pisco algumas vezes enquanto encaro ninguém menos que
Liam Diamond na minha frente, usando bermudas e camiseta de
linho. Seus pés estão descalços e ele parece surpreso em me ver
parada diante das paredes de vidro. Já eu, estou quase chocada.
Não impeço que a pergunta saia da minha boca:
— O que você está fazendo aqui?

— Não que seja da sua conta, mas seu pai me deu as chaves
e me deixou passar alguns dias aqui. — Quando recebi uma ligação
esta manhã dizendo que eu teria uma semana de recesso,
estranhei, até porque tinha acabado de começar no estágio.
Imaginei que Liam tinha assuntos urgentes a resolver e por isso me
dispensou. Mas, para a minha surpresa, me deparo com… isso.
Há uma pausa enquanto ele me lança um de seus olhares
tediosos. Sua sobrancelha esquerda se arqueia de maneira quase
imperceptível.

— Você tem que ir embora. — Cruzo os braços em frente


ao peito. — Vou ficar um tempo aqui e não quero ter que lidar
com você.
— Receio que esteja ficando surda, senhorita Phoenix. — A
expressão dele é de tanto desdém que começa a realmente me
irritar. Tenho vontade de dar um soco em sua cara de babaca
mimado presunçoso. — Disse que seu pai me deu as chaves. Ele
quer que eu relaxe antes de começarmos oficialmente nossos
negócios. E, se pudesse apostar, juraria que o sr. Ogawa não
sabe que veio até aqui.
Meu rosto começa a esquentar. Droga, ele tem um ponto.
Meu pai vai ficar furioso se souber que vim para a casa de praia
sem consultá-lo. Ele ligaria imediatamente para nossa governanta, o
que também seria um problema, já que ela acha que estou com
Ren. Isso me daria um castigo triplo. Primeiro, por vir para cá sem
permissão. Segundo, mentir para a governanta. E terceiro, o que o
incomodaria mais, por ter interferido nas miniférias de um de seus
aliados mais importantes no momento.
A ideia de que Jim Ogawa possa começar a me detestar
ainda mais me faz mentir:
— Acho que meu pai se enganou, então. Ele disse que
eu podia vir. Deve ter confundido as datas.
— Você mente mal, senhorita Phoenix.

Solto um suspiro alto e irritado. Não entendo por que Diamond


parece ter sido enviado em uma missão para atormentar minha vida.
Desde que ele chegou, as coisas ficaram mais difíceis. Quero me
livrar dele o mais rápido possível, o que me lembra que tenho que
começar a bolar um plano para dispensá-lo de volta para os Estados
Unidos, Alemanha, ou qualquer que seja o buraco de
onde tenha saído.

Pego minha bolsa do sofá, pisando duro até a porta.


Talvez eu consiga alcançar a última balsa, que deve sair daqui
quinze minutos. No entanto, um raio parte o céu de Sodoko
Beach, enviando clarões de luz através das paredes de vidro.
Um momento depois, a chuva torrencial começa a
bater contra o telhado, feito um tambor.
Ótimo.

Eu havia visto a previsão do tempo esta manhã, e por mais


que tenha sido anunciado a possível chegada de uma tempestade,
não levei em consideração. Afinal, quantas vezes as previsões
foram equivocadas? E não seria um problema ficar aqui, desde que
estivesse sozinha.
Olho sobre o ombro, Liam continua parado, com os braços
cruzados em frente ao peitoral largo. Ele me fita como se não
desse a mínima para a chuva, muito menos para mim. Fecho a
porta com força e o ouço questionar:
— Não vai embora?

Lanço a ele um olhar que diz qual a porra do seu problema?


Mas não acho que ele se importe com isso. Na verdade, não consigo
pensar em nada que Liam Diamond possa se importar a não ser com
seu próprio nariz. Me pergunto se ele é sempre assim, até com sua
família.
— Não dá para ir embora! Se não percebeu, tá caindo
o mundo lá fora. Preciso de uma balsa.
O loiro apenas ajusta as mangas. Essa coisa me irrita. Ele
sempre checa suas abotoaduras. Sempre confere se está
impecável o suficiente, mesmo que sejamos só nós dois aqui.
Quando ergue o olhar, seus olhos azuis estão sérios.

— Não me importo. — O silêncio preenche o espaço enquanto o


encaro, chocada com sua frieza. — Apenas não me incomode.
Então, se vira e vai embora. Ouço a porta da suíte principal
se fechar; ela é a mais pesada e sempre faz um rangido ao bater.
Fico parada onde estou, ouvindo o som da chuva e sentindo uma
onda de raiva que faz até meus lábios formigarem. Respiro fundo e
tento me recompor, antes de ir até a cozinha.
Agora que sei que o babaca está com a suíte que costumo
ficar, vou ter que dormir em um dos quartos comuns. O único
problema é que minhas coisas estão lá. Abro a geladeira e espio o
interior que tem resquícios da minha última visita, cerca de duas
semanas atrás.
Coloco pedaços de salmão, cream cheese e shimeji numa
tigela. O barulho da chuva ainda ressoa quando volto para a sala.
Ligo a tevê e começo a assistir a um programa de culinária
japonês. Quando coloco o último cubo de salmão na boca, o som
estarrecedor de um trovão corta o ar, e a casa mergulha num breu.
Merda. A energia acabou.
Meu coração está batendo forte enquanto olho para
as paredes de vidro. Os raios que partem do céu iluminam
momentaneamente a escuridão presente na casa.
Levanto, deixando a tigela de lado. Ligo o flash do celular e
caminho pelo corredor até a porta da suíte. Com o punho cerrado,
dou duas batidas contra ela. Demora até que Liam abra a porta e,
como o habitual, não parece nem um pouco contente.
— O que foi? Tem medo do escuro? — pergunta, com o
tom de voz monótono.
O ignoro.
— Preciso pegar algumas coisas que estão aqui.

Ele me dá espaço de passagem após dizer:

— Seja breve.

Rolo os olhos quando passo pelo seu corpo esguio e pego a


bolsa de autocuidados e a mala que deixo aqui. Liam não espera
um segundo antes de fechar a porta assim que saio da suíte. Me
pergunto o que é que ele vai fazer lá dentro, sem luz. Talvez seja o
tipo de pessoa que naturalmente gosta do escuro, o que só
confirmaria minha teoria de que ele é uma espécie loira do Darth
Vader.
Começo a organizar meu material de pintura no novo
quarto. Embora não seja tão espaçoso quanto a suíte, isso não me
incomoda. O que realmente me perturba é perceber que Liam está
cada vez mais conquistando o favoritismo de meu pai. Jim Ogawa
nunca permitiu que um parceiro de negócios viesse para a casa de
praia, e isso me preocupa.
Limpando a mente, começo a traçar uma forma abstrata com
pincel e tinta. Às vezes não sei o que quero pintar, apenas deixo
com que minha mão flua e, de repente, a imagem no quadro
começa a tomar forma.
Nem percebo em que momento a eletricidade volta, mas,
quando me dou conta, a lâmpada do quarto está acesa. Paro um
momento, contemplando a pintura. Para minha surpresa, é a casa
do avô do Ren. Isso me faz resmungar e pegar o celular dentro
da bolsa.
Há, ao menos, sete ligações perdidas.

Aperto o botão para retorná-lo.

— Oi, desculpa. Estava pintando e acabei perdendo a


noção do tempo — falo, o que é uma verdade quase inteira.
— Achei que estivesse me ignorando. — Ele ri, constrangido.
— Quer pedir comida tailandesa? Vou pegar o carro e posso
passar aí…
— Não! — falo, rápido demais. O silêncio reina entre nós
através da chamada e mordo o lábio inferior com força. Meu Deus,
isso deve ter sido tão esqusito. Limpo a garganta. — É que estou
concentrada em um novo estudo de formas. Que tal jantarmos
fora qualquer dia desses?
Percebo que Ren acha uma boa ideia pelo seu tom de
voz menos tenso quando diz:
— Claro. Seria ótimo.

Quando desligamos, penso em voltar para meu quadro,


mas não estou tão inspirada para continuar. Espiando pela janela,
noto que parou de chover e já é noite. Saio do quarto para
alongar as pernas, já que fiquei sentada por bastante tempo.
Assim que entro na sala, vejo Liam. Ele está de pé próximo
à coleção de bebidas importadas do meu pai, meio virado de costas
para mim, falando ao telefone. Parece irritado, cuspindo palavras
num idioma que acho que é alemão.
Assim que a chamada encerra, seu olhar encontra o meu,
como um ímã. Sua mandíbula está travada e ele parece se
recompor. Agora, apenas sua frieza permanece.
— Espiar é feio, senhorita Phoenix.

— Como se eu pudesse entender uma palavra do que você


estava falando! — Me irrito também, porque ele não consegue ser
cordial por um segundo sequer. Parece que sempre está com
raiva do mundo.
— Achei que fosse mais inteligente.
Olho para ele incrédula.

— Só porque não entendo dez idiomas?

Liam não responde. Abre uma das garrafas de uísque e


se serve com um copo generoso. Fico parada, observando-o
beber, como se minha presença fosse completamente ignorada.
A essa altura, não sei por que suas atitudes ainda me
irritam. Solto uma bufada e vou até a cozinha, onde começo a
preparar minha próxima refeição.
— O que quer que esteja fazendo aí, faz para mim também.
— A voz de Liam me alcança. Por um momento, me pergunto se
não estou ouvindo coisas.
Mas, quando me viro, ele está parado na entrada da
cozinha, os braços cruzados em frente ao peito e um ar zombeteiro
toma conta de seu rosto. Volto minha atenção para a panela, onde
preparo um macarrão.
— Por que eu faria comida pra você? — murmuro.

— Porque no momento, sei de coisas que te encrencariam


com o papai. Então seja uma boa garota. Você não quer novas
batalhas, muito menos as que você não tem nenhuma chance de
ganhar.
Meu corpo fica tenso. Odeio estar nessa posição de
inferioridade. É como me sinto toda vez que Diamond joga na
minha cara que pode arruinar minha vida. Fico em silêncio, evitando
encará-lo, na esperança de que ele vá embora, mas não acontece.
Seus olhos continuam presos nas minhas costas.

Adiciono uma porção extra de macarrão na água, com os


lábios amassados um contra o outro para evitar dizer tudo o que eu
gostaria. Às vezes, o silêncio é a melhor opção para não se
auto sabotar. É algo que estou aprendendo.
No entanto, na tigela de Liam, coloco uma dose exagerada
de pimenta, junto com o macarrão e carne de porco. Ele está
sentado à mesa, e pela sua postura, espera que eu o sirva. Com
desgosto, coloco a comida em sua frente.
— Espero que goste — falo, com ironia.

Diamond fica em silêncio e eu tomo um assento bem longe


dele. Poderia ir para a sala, mas não quero perder sua reação. Ele leva
a primeira garfada até a boca. Eu espero. Nada acontece. As íris azuis
apenas me olham sem revelar nada antes que ele se volte para
a refeição.

— Sou um grande fã de pimenta japonesa — fala, cheio


de desdém.
Não digo nada, porque estou fervendo de raiva. Apenas
como em silêncio. É claro que Liam Diamond tem que ser imune a
tudo, inclusive a pimentas. Parece que abalá-lo é uma tarefa quase
impossível. Nem mesmo quando joguei café em sua camiseta
consegui a reação que desejava.
Me levanto, ficando subitamente sem apetite, e me
retiro para meu quarto.
Fico lá pelo restante da noite.
05

Quando acordo pela manhã, não está mais chovendo.


Apesar do dia nublado, decido aproveitar a oportunidade para
passear por Sodoko Beach antes de ser forçada a ir embora por
Liam. Por sorte, não o encontro quando passo pela sala com minha
bolsa de praia apoiada em um dos ombros.
O dia permanece encoberto, mas isso não impede que
outras pessoas estejam reunidas na areia. Estendo um pano
próximo do mar e me sento, abrindo um livro. Visto apenas o sutiã
do biquíni e um shorts jeans. Meu cabelo, como o habitual, está
preso em um rabo de cavalo que resvala nas costas desnudas.
A poucos metros de distância, uma partida de vôlei se inicia,
atraindo minha atenção. Em algum momento, levanto e peço para
entrar no jogo.
Faço amizade com dois garotos e uma garota, embora não o
suficiente para perguntar seus nomes. Ao encerrarmos a partida,
apenas me despeço e volto a recolher meus pertences que estão na
areia.
Daqui, consigo ver a casa de praia do meu pai. Ela foi
construída em cima de uma rocha. Fico por alguns segundos
admirando a varanda de vidro até que uma mulher apareça.
Preciso piscar algumas vezes para ter certeza de que não estou
imaginando coisas.
Ela se debruça na varanda, enquanto olha para o mar. Só
consigo me concentrar no que ela está vestindo. Parece uma das
camisetas sociais de Liam. Pouco depois, ela volta para dentro, e
me questiono se tudo não passou de uma alucinação.
Decido retornar para casa.

Assim que abro a porta da sala, não ouço nada. Nenhum sinal
de vida aqui dentro. Deixo a bolsa no sofá e vou até a cozinha,
então congelo. De costas para mim, está a loira estonteante da
varanda, mexendo em um dos armários. Limpo a garganta, e atraio
sua atenção.
Seus olhos azuis encontram os meus sobre o ombro. Ela é tão
bonita que dói. Tão bonita que me faz questionar o quão sem graça e
comum devo parecer, com a pele pálida, cabelo castanho e olhos num
tom avelã. Ela é alta, bronzeada e se assemelha a uma modelo.
É claro que o tipo de Liam só podia ser alguém que parece sua
versão feminina.
— Oi — ela fala, em inglês. — Você sabe onde ficam
os copos?
Eu pisco, desnorteada com o rumo da conversa.

— No armário inferior.

Enquanto ela pega um copo, a encaro feito uma idiota. Há


algo familiar nela. Talvez seja porque é o tipo de rosto que
estampa revistas e atua em filmes de Hollywood.
— Você é atriz? — não consigo conter a pergunta que
escapa por meus lábios.
Ela me olha, confusa, enquanto pega água na geladeira. Então,
despeja no copo e começa a beber como se eu fosse um quebra-
cabeça. Liam provavelmente vai ficar com raiva se eu começar a
conversar com sua namorada ou o que quer que ela seja.
— Não. — Há uma pausa. — Você sabe onde tá o Liam?
Preciso perguntar cadê a chave da sauna. Aliás, quem é você?
— Bom, eu…

Por sorte, antes que eu seja obrigada a me apresentar,


Diamond adentra a cozinha sem dizer uma palavra, e passa por
mim como se eu fosse invisível. Veste apenas um shorts longo de
treino, expondo o peitoral de pele alva. É a primeira vez que o vejo
parecer um jovem comum de vinte e poucos anos.
Fico surpresa com a quantidade de músculos que
se espalham por seu tronco.
Só percebo que fito suas costas definidas descaradamente
quando sinto o olhar da loira sobre mim. Desvio o rosto para
outro lugar, e me repreendo mentalmente.
— Você não vai me apresentar a ela? — a modelo
fala, confusa.
Tenho vontade de sair correndo. Não quero ser motivo
de desavença entre um casal.
— Ninguém importante. Estou de babá.

A resposta dele me ultraja. Meu rosto pega fogo, assim


como as orelhas e o pescoço.
— Babá porcaria nenhuma, vou voltar para Tóquio. Espero
que você se afogue no mar e os tubarões eliminem os vestígios do
que sobrar.
A mulher loira solta um riso tão alto que me assusta.
Liam continua com sua expressão de tédio.
— Você devia ser menos escandalosa, é deselegante —
diz. Me sinto ofendida por sua namorada. Como ele tem coragem
de falar assim com ela? A loira não responde. Apenas rola os
olhos e segura meu braço, me puxando para a suíte.
Confusa, apenas a acompanho. Me pergunto mentalmente
se ela vai deixar que ele a desrespeite assim, mas fico em silêncio.
— Você e meu irmão estão saindo ou algo do tipo? — Se
joga na cama de casal.
Pisco algumas vezes, e minha mente estala com a memória
das fotos que vi na internet da família de Liam. Ela era mais
jovem nas imagens. Agora, parece uma mulher madura e
radiante. Seu cabelo loiro cai em forma de cascata sobre um dos
ombros, combinando com o tom bronzeado da sua pele.
— Não! Eu pensei que você fosse namorada dele.

— Que nojo. A propósito, me chamo Brianna.

— Phoenix. — Me sinto melhor agora que sei que ela não


pensa que sou uma espécie de amante. — Você chegou aqui pela
manhã? Não ouvi barulho nenhum.

— Sim. Vou passar uns dias aqui no Japão. Vim visitar meu
irmão. Ele é meio… incomunicável, sabe? Se não forçá-lo a me
ver, acho que esquece que tem família.
— Parece um idiota egoísta — resmungo meu pensamento.

— Você não gosta mesmo dele, não é? — Brianna questiona,


com um tom descontraído. Seus olhos contém um brilho lúdico, como
se ela achasse a situação toda divertida e interessante.
— Não. — Dou de ombros. — Sem querer ofender, mas
seu irmão não é o tipo de pessoa que admiro. Ele é alguém cínico
que parece só pensar em si mesmo.
Brianna reflete por alguns momentos.

— É verdade — fala, me surpreendendo. — Tenho que


admitir que Liam não é uma pessoa… calorosa. Eu e meu outro
irmão nos esforçamos muito para não deixar que ele vá
completamente pro lado sombrio da força — completa, fazendo uma
referência clara a Star Wars.
Eu rio, mas as palavras dela me deixam um tanto pensativa.
Isso confirma minhas suspeitas de que Liam é um lobo solitário.
Alguém indiferente. Tenho vontade de perguntá-la algumas coisas,
mas sei que vai parecer esquisito, então apenas digo:
— Preciso voltar para a cidade antes que fique tarde. Foi
bom conhecê-la, Brianna.
Ela sorri, os dentes brancos e brilhantes assim como todo o
resto.

— Foi bom conhecê-la também. Algo me diz que iremos


nos ver mais vezes.
Duvido, penso, mas fico em silêncio. Apenas aceno com
a cabeça e me viro, indo arrumar minhas coisas.

A balsa demora uma hora para chegar. Estou cansada


quando, enfim, o motorista me busca para me levar em casa.
Dormi durante todo trajeto, e ao acordar o carro está estacionado
no pátio da propriedade de três andares. Deixo as malas no carro
para evitar suspeitas e desço. Ren está em pé na varanda. Ele
parece confuso, mas não diz nada conforme me aproximo.
— Onde você estava? Estou há tempos te esperando.

Solto um suspiro longo, cansada de inventar mentiras para


todos ao meu redor. Parece que, para ser eu mesma e ter minha
liberdade, sempre terei que fazer isso por baixo dos panos. Quando
volto à realidade, sou obrigada a fingir ser alguém que não sou.
A filha e a namorada perfeita.

— Em uma exposição — digo a primeira coisa que me vem


à cabeça.
Ren parece meio surpreso e apreensivo. Ele sinaliza para
dentro, e concordo. Entramos na casa e nos sentamos no sofá, lado a
lado. Meu namorado olha para mim de um jeito cauteloso. É quase
como se estivesse pisando em ovos. É assim que todos agem em
torno de mim quando identificam minha possível fraqueza pela arte.
— Você desistiu da faculdade? — Ele é direto ao ponto, o
que me surpreende.
Não sei. Eu desisti? Estou disposta a lidar com a falta
de apoio do meu pai? A resposta é clara.
— Não.
A palavra o deixa tão aliviado que chega a ser patético. Ren
coloca uma das mãos em meu ombro esquerdo, e o afaga de forma
que seria confortante se eu não estivesse me sentindo ofendida por
ele pensar igual ao papai. A diferença entre eles é que o garoto não
é tão rude.

— Você pode continuar pintando na faculdade de


Direito, sabe disso, não sabe?
— Como um hobby? — pergunto, com mais acidez do que
eu gostaria.
Ren dá de ombros, visivelmente desconfortável com
a conversa que estamos tendo.
— É. Você sabe… Isso não é estável. Nós sonhamos com
Harvard e planejamos isso desde sempre. — Seus olhos encontram
os meus, como se esperasse que eu confirmasse. Mas não posso
fazer isso. Há um limite até onde consigo fingir. Ren suspira. —
Acho que você está confusa ultimamente.
— Acho que estou me sentindo pressionada. Talvez essa
seja a palavra certa.
Ele esfrega os olhos com força, cansado.

— Não entendo você, Phoe. Você queria ir para a Harvard.


O que mudou?
— Não sei — respondo e é a primeira vez que estou
sendo honesta.
Antes, eu realmente gostava da ideia de ir para a faculdade
junto com Ren. Fiz alguns planejamentos, pesquisei sobre onde
iríamos morar, concordamos que ficaríamos no mesmo alojamento,
até comprei um moletom do campus para presenteá-lo. Nosso
futuro parecia certo, algo que estava destinado a acontecer. No
entanto, agora… é diferente.
— Acho que você não tá pensando com clareza, mas tudo
bem. Vou ajudar meu pai no escritório. Se você quiser conversar
depois, me liga, ok?
Eu assinto e Ren dá um beijo rápido nos meus lábios antes de
se levantar e sair. Olho para a porta fechada por longos minutos,
assimilando o silêncio ao meu redor.
Qual das duas opções será um grande erro no futuro?

Seguir meus sonhos ou faculdade?

É a dúvida que martela na minha cabeça pelo restante do dia.


06

É domingo à noite quando meu pai entra no meu quarto sem


explicações e pede para que eu me vista para um evento. Em nossa
posição social, é comum frequentarmos festas de pessoas
importantes, ainda que contra minha vontade. Contudo, devo apenas
obedecê-lo sem retrucar.
Checo o celular antes de levantar da cama. Há três
ligações perdidas de Ren. Estou o ignorando desde que disse que
eu não deveria insistir na arte.
Coloco um quimono azul escuro e prendo o cabelo. Não passo
nenhuma maquiagem, então desço logo após calçar minhas
sandálias. Meu pai já me espera dentro da Limousine e, como o
habitual, está em alguma chamada telefônica sobre negócios. São
raros os momentos em que ele está livre.
Me contento em ver a paisagem passando por nós através
da janela, até que avisto um arranha-céu. Meu pai desce primeiro e
o sigo. Chegamos no hall luxuoso, e entramos no elevador.
As portas se abrem depois de longos momentos, revelando
um buffet. Garçons circulam por cada centímetro do salão e o som
de um violino flutua no ar, mesclado ao burburinho de conversas.
Entediada, acompanho meu pai enquanto ele cumprimenta as pessoas
que conhece aqui. Alguns rostos me são familiares também.
De repente, Liam Diamond irrompe na multidão e
é ovacionado por uma salva de palmas.
Só quando vejo o logo de um diamante sendo exibido em um
cartaz próximo ao palanque que minha ficha cai. Essa é,
provavelmente, a festa oficial de inauguração da sede em Tóquio. O
engraçado é que ele não parece dar a mínima para o que acontece
ao seu redor. O som das palmas, a aprovação de todas as pessoas,
as boas-vindas que ele recebe. Nada disso importa. É como se ele
já esperasse isso.
Como se tivesse calculado.

— Pai — falo, fazendo-o me encarar. — Qual a razão


deste evento?
— É o novo prédio do sr. Diamond — diz.

— Não foi aqui que vim estagiar semana passada. — Franzo


o cenho.
— É novo, querida. Agora são dois.

Solto um suspiro indignado e volto a olhar para Liam. Ele


sobe no palanque, e as pessoas se silenciam quando o loiro se
aproxima do microfone. O rosto dele é sério, assim como seu olhar,
que percorre a multidão por alguns momentos antes que ele diga:
— Obrigado por comparecerem. É uma honra fazer parte da
comunidade de negócios do Japão. Espero que os próximos anos
sejam prósperos, e que construamos um futuro brilhante em Tóquio.
As palavras são breves e secas, mas as pessoas as
recebem como se fosse o discurso do ano. Uma nova salva de
palmas ecoa enquanto ele desce do palanque.
— Vou ao banheiro — murmuro para meu pai, que mal se
importa já que está entretido em uma conversa com dois homens.
Ao invés de seguir para os sanitários, entro no elevador.
Analisando o painel, encontro o número que sinaliza o escritório e
o aperto. Começo a ficar nervosa conforme me aproximo do andar.
Não sei exatamente o que estou fazendo, mas preciso encontrar
algo que possa comprometer Liam no futuro.
As portas de metal se abrem, e paro no meio de um corredor
com uma única porta, com uma placa que diz “acesso restrito”. Torço
para que esteja destrancada, mas me frustro quando tento abri-la e
nada acontece. Liam não deixaria falhas em sua segurança.
Ouço o barulho do elevador apitando e, antes que eu possa
pensar em me esconder, Diamond surge na minha frente como
uma maldita assombração.
— Senhorita Phoenix, que surpresa — fala. Contudo,
não parece nenhum pouco surpreendido com minha presença.
— Acho que me perdi. — Dou um sorriso forçado.

Liam dá um passo e caminha até mim, o que faz com que eu


prenda a respiração. Todo meu corpo tenciona. Ele ergue uma chave
no ar, provavelmente a que abre a fechadura. Fecho os olhos com
força por alguns segundos antes de abri-los e voltar a encarar
seu rosto sem emoções. Estou encrencada.
— Estava procurando por isso?

— Não. Na verdade, eu esperava que a porta já


estivesse aberta — falo, sincera.
Minha resposta honesta faz com que ele mova os lábios
sutilmente, longe de ser um sorriso, mas é algo. Agora, posso ver
a diversão que cintila em seus orbes. Não é o tipo comum de
divertimento; é algo sombrio. Sádico.
Ele se aproxima, e a cada passo que dá, dou um para trás.
Minhas costas batem contra a porta. Estou encurralada pelo seu
corpo grande. Meu coração bate tão depressa que acho que vai
atravessar o peito. Liam chega até mim, a apenas alguns
centímetros de distância, e, comigo contra a porta, sem tirar as íris
azuis gelo das minhas, ele enfia a chave na fechadura e destranca
a porta.
Ouço o clique. Em seguida, o rangido quando ele a abre.

Ainda parada feito uma idiota em seu caminho, sem saber


como reagir à situação toda, engulo em seco e saio da frente. A
luz é acesa através do sensor de movimento.
Observo os painéis de madeira nas paredes,
cuidadosamente polidos. No centro da sala, há uma mesa de
mogno de proporção monumental, repousada sobre um tapete que
parece persa. Sua cadeira de couro exala autoridade.
A iluminação do escritório é uma sinfonia de lustres de
cristal. Na parede oposta à nova mesa de Liam, há uma estante que
exibe uma coleção de livros raros, em diversos idiomas, enfileirados
por cores e tamanhos. Entre eles, alguns prêmios de
reconhecimento empresarial.
— O que achou, senhorita Phoenix? — Ele se senta em
sua cadeira.
Me sinto intimidada, mas não demonstro. Avanço
alguns passos e paro próxima da sua mesa.
— É comum — minto, para não dizer que é o escritório
mais bonito que já vi.
Como no anterior, há uma vista panorâmica da cidade.

— Então, quando você voltar a estagiar para mim


amanhã, devo deixá-la na sede antiga?
Fico em silêncio, porque não sei o que responder. Não quero
lidar com Liam, mas também não quero ser deixada para trás
enquanto ele se muda para cá. Como irei conhecer suas fraquezas
e aprender sobre ele se estiver longe?
— Faça o que quiser. — Finjo indiferença.

— E vou. Vou mantê-la perto de mim, onde posso observá-la.

Ele diz isso enquanto passa uma caneta entre os dedos,


num ritmo hipnotizante. É quase um desafio desviar o olhar dele,
mas quebro o contato, porque começo a me sentir esquisita.
— Como conseguiu outro prédio tão rápido? — Caminho até
a parede de vidro.
— Dinheiro. É o que move o mundo.

Eu poderia discordar, mas, de certa forma, ele está certo.


Dinheiro compra muita coisa. Conforto e lugares como esse. No
entanto, para Liam, parece ser o suficiente. Olho sobre o
ombro, sentindo seus olhos queimarem minhas costas. Ele me
observa, como eu suspeitava.
— É tudo o que você procura? — Arqueio as sobrancelhas.
— É o que eu desejo — pontua lentamente. — Na verdade, o
dinheiro é uma consequência do meu conhecimento. Conhecimento
é poder. O dinheiro é apenas um efeito colateral.

— Fala como se tivesse conquistado tudo do zero


— murmuro, irônica.
Nas matérias que li sobre ele e sua família, soube que
herdou tudo o que um dia pertenceu aos seus antepassados. Isso
não é exatamente meritocracia, como faz parecer ser.
— Tem razão, senhorita Phoenix. Nunca disse que tudo é
resultado do meu esforço. Longe disso. Herdei a empresa, mas ela
estava à beira da falência. — A informação me pega de surpresa,
no entanto, não demonstro. — Eu salvei o que estava condenado.
Um negócio milionário vira pó nas mãos erradas.
— Entendo, sr. Diamond. — Me viro em sua direção. —
Mas mãos gananciosas e individualistas também falham.
Seus olhos azuis permanecem frios quando ele diz:

— Você está certa. Sou ganancioso. Individualista. Todos os


sinônimos dessas duas palavras. — Há uma pausa. — Não nego
minha natureza, senhorita Phoenix. O que estiver no meu
caminho, será eliminado.
Outra vez, uma ameaça velada.

Nos seus olhos, contém um desafio que diz para que eu tente
derrotá-lo.
E nos meus lábios, há um sorriso de quem diz com muito
prazer.
— Se me der licença — falo, após longos momentos
de silêncio e tensão, caminhando até a porta.
— Até amanhã, senhorita Phoenix. — Ouço-o dizer atrás de
mim enquanto entro no elevador.
Não olho para trás nenhuma vez.

Depois que volto para a festa, Liam demora no escritório


antes de retornar. Penso no que as pessoas acham de sua ausência
no próprio evento, contudo, todos parecem entretidos em
conversas enquanto seguram taças de vinho.
Assim que um garçom passa, pego minha própria bebida.
Observo o violinista quando alguém se aproxima de mim. Capto de
soslaio o cabelo loiro longo. Brianna surge em minha frente, em
um vestido preto que a deixa incrível.
— Aí está você — fala, enquanto mastiga um aperitivo.
— Ainda não entendo a ligação entre você e meu irmão.
— Ele é o novo sócio do meu pai — explico. — Nada
muito interessante.
— Parecia interessante quando ele foi atrás de você
no elevador. — Arqueia as sobrancelhas.
O comentário dela faz com que minhas bochechas
esquentem. Por mais que pareça outra coisa do seu ponto de
vista, nada aconteceu entre nós dois. Tenho até náuseas só de
imaginar algo do gênero.
— Eu estava tentando invadir o escritório dele. —
Sou honesta.
Brianna ri.

— Caramba, você realmente detesta o meu irmão.


Está planejando boicotá-lo ou algo do tipo?
— Sim. Aliás, aceito sugestões de como posso fazer

isso. Ela ri mais.

— Gostei de você. Mas não conte comigo para isso. Eu o


amo, apesar de tudo. — Faz uma pausa. — Nosso pai sempre foi
duro com todos nós, principalmente com meus dois irmãos mais
velhos. Fico feliz que Liam pareça pelo menos um pouco satisfeito
com seu trabalho agora.
Assimilo as palavras de Brianna. Não sei muito bem como
interpretá-las. Será que Liam teve problemas com seu pai durante a
infância e adolescência? Fico tentada a perguntar por mais detalhes,
mas não quero ser enxerida, então apenas aceno em concordância.
— Você vai ficar aqui por quanto tempo? — Mudo de assunto.

— Vou embora amanhã, na verdade. Sabe, faculdade e


coisa e tal. O dever me chama. — Brianna tira uma mecha que cai
sobre sua visão e me oferece um sorriso amigável. — Preciso ir.
Pega leve com o Liam, ok? Foi legal te conhecer.
Ela se vai antes que eu possa responder e dizer que também
gostei de conhecê-la. Só não posso e nem vou prometer pegar leve
com Liam. Ele está bagunçando algumas coisas na minha vida, e eu
não pretendo facilitar nada para Diamond.
Quando meu pai me chama para ir embora, não vejo o loiro
no salão. Uma parte minha se pergunta onde é que ele se enfiou,
mas logo disperso o pensamento, que não é da minha conta.
Sei que iremos nos consumir completamente nessa rivalidade.

Mas não tem volta.

Ele não vai oferecer bandeira branca, nem eu.


07

antes
Uma salva de palmas irrompe ao meu redor, mas nenhuma
delas é destinada a mim. São todas para meu irmão mais velho.
Ele sorri, de pé no palco do anfiteatro do colégio, enquanto ostenta
a medalha do primeiro lugar da feira de ciências da qual não pude
participar, pois só alunos com mais de dezesseis anos tinham
permissão para se inscrever.
Um desconforto cresce dentro de mim. Fui eu quem planejou e
executou o trabalho da feira de ciências para salvar a pele do meu
irmão. Não imaginava que Bastian fosse levar o primeiro lugar.
Ele me pediu ajuda, e eu cedi, mas agora sinto ciúmes.
Ele sempre consegue ser a estrela principal. O filho mais
velho, o mais querido e amado. Não importa quantas vezes meus
pais tenham que tirá-lo de enrascadas com dinheiro, ele sempre
será o escolhido, o sucessor.
Meu pai está em pé ao meu lado, e o olhar no rosto dele é de
orgulho. É como um soco na boca do estômago. Aqui estão todos os
seus parceiros de negócios, que vieram ver seus filhos exibirem os
projetos, no entanto, é Bastian quem se tornou o grande evento.
Meu irmão mais velho caminha até nós como um rei. As
pessoas ao seu redor abrem espaço para que ele passe. Olhares de
admiração são dirigidos a ele. Assim que para em nossa frente,
meu pai diz:
— Estou orgulhoso de você, filho. Sabia que
não decepcionaria nossa família.
Bastian sorri, e me lança um breve olhar, como se
dissesse esse é o nosso segredo.
Mais um de muitos.

Durante o caminho até nossa casa, fico em silêncio na


Limousine. Bastian e meu pai estão numa conversa sobre negócios
e consigo ver a expressão de aborrecimento em seu rosto a cada
palavra que sai da boca de Hernan. Me pergunto se ele não percebe
que Bastian não está nem aí para o nosso império. Eu, por outro
lado, filtro cada frase que ele diz, absorvo e guardo em minha
mente.
— Você é nosso futuro, Bastian. Hoje você provou que
pode começar a trabalhar comigo na empresa — nosso pai fala.
— Mas ele não está pronto. — As palavras deixam minha
boca antes que eu possa contê-las. Não sei o que dá em mim, mas,
de repente, me sinto inquieto, com uma sensação esquisita na
boca do estômago que só se agrava quando Hernan me fita.
É como se ele tivesse se lembrado só agora que tem um
segundo filho.
— O que disse, Liam? — indaga, com o cenho franzido. —
Por que acha que Bastian não está pronto? Ele trouxe honra para
nossa família conquistando o primeiro lugar na feira de ciências.
Não foi ele. Fui eu.
Tenho vontade de gritar isso para que todo mundo escute.
Meu pai, o motorista, e até as pessoas que passam por nós na
calçada conforme a Limousine avança pelas ruas. No entanto, feito
um covarde, eu levo em consideração o olhar de desespero no
rosto do meu irmão e fico em silêncio.
— Na verdade, você está certo, pai. Desculpe interrompê-lo.

Fico em silêncio pelo restante do trajeto, enquanto observo


a paisagem pela janela. Quando chegamos em casa, desço do
carro e vou direto para o quarto. Estou trabalhando em um projeto
há semanas. Planejo mostrá-lo para meu pai quando estiver
pronto, pois quero impressioná-lo.
Quando ele perceber que sou capaz, vai entender que
posso liderar a empresa algum dia.
A porta do meu quarto se abre, e Bastian entra no cômodo.
Ele segura a medalha que ganhou na mão esquerda.

Eu fecho o notebook depressa, porque não quero que ele


veja o que estou fazendo. Meu irmão mal repara no meu
comportamento suspeito. O olhar no seu rosto é de culpa.
— Desculpe por levar seus méritos. Não achei que fosse
ficar em primeiro lugar.
— Nem eu — admito. Meu reator de fusão nuclear de
pequena escala foi um sucesso, considerado revolucionário.
— Isso significa que você é um gênio. Eu só espero que
Hernan reconheça isso algum dia. Sei que é importante pra você.
— Por que não é honesto com ele, então?

A pergunta parece surpreendê-lo. Bastian suspira, e deixa


a medalha em cima da mesa de estudos. Ele olha para as janelas,
como se estivesse com vergonha de admitir em voz alta.
— Tanto quanto você, quero que nossos pais sintam orgulho
de mim. Eu não posso quebrar a tradição. Você sabe, é o
primogênito que deve se tornar o próximo líder dos negócios da
nossa família. Como acha que ele irá reagir se eu disser que não
vou seguir os seus passos?
Fico em silêncio. Por mais que isso me frustre, tento entender
o lado de Bastian. Sobre ele, há um peso de expectativa.
Expectativa que nossos pais não esperam de mim, nem da nossa
irmã caçula, Brianna. Na nossa família, é como se só o primeiro filho
homem contasse.
— Você acha que isso pode mudar um dia? — pergunto,
depois de longos minutos de silêncio. — Acha que nossos pais
vão sentir orgulho de mim também, assim como sentem de você?
Bastian acena com a cabeça, me dando um sorriso.

— Claro. Um dia, você será um grande homem. Fará


grandes coisas e todos nós sentiremos orgulho de você.
Suas palavras me confortam, mas, no fundo, não sei se são
verdade. Pelos olhos de Bastian, acho que nem ele acredita no que
diz. Contudo, o melhor para nós dois é continuarmos nos
enganando. Fingir que ele vai ser livre para fazer as próprias
escolhas e que, um dia, poderei ser reconhecido e assumir o
posto principal da família.
Nós dois permanecemos em silêncio pelos próximos
momentos, nos agarrando a essa ideia distante.
08

Na segunda-feira pela manhã, começo a me preparar para


o estágio, contra minha vontade. Acordei de mau-humor. Nem o
expresso com dose extra de chantilly que a governanta me trouxe
na cama foi capaz de melhorá-lo.
Visto uma saia lápis e uma blusa de mangas longas. Depois
de prender o cabelo, respiro fundo e desço as escadas, levando
minha bolsa junto comigo. A casa está silenciosa, exceto pelo
movimento de algumas empregadas, que limpam os lustres.
Um carro me espera no pátio assim que atravesso a porta.
A Limousine geralmente fica com meu pai, e o motorista
principal também. Quando não dirijo, uma SUV blindada é deixada
à minha disposição a qualquer hora do dia. Entro no carro,
desejando bom dia ao homem atrás do volante.
Checo meu celular. Há muitas mensagens de Ren que
não respondi, mas não posso ignorá-lo para sempre, então
começo a digitar uma resposta breve.
Phoenix: hoje à noite te ligo.

Ren: ok.

Enfio o telefone dentro da bolsa. Não demora muito para


que eu chegue na nova sede de Liam. Na recepção, liberam meu
acesso e me dão um crachá de identificação. Uso a coisa grudada
no peito, porque é obrigatório. Enquanto subo os intermináveis
andares no elevador, uma música genérica, que devia ser
supostamente agradável, soa nos meus ouvidos.
As portas se abrem. Um frio toma a boca do meu estômago
enquanto olho para a única porta do corredor.
Sem ter para onde fugir, puxo a maçaneta.

Talvez devesse ter batido antes, levando em consideração


que Liam está na sala na companhia de um homem. Travo na
soleira, sem saber se continuo a andar ou volto para trás. A
conversa é interrompida, e Diamond me olha como se eu não
passasse de um pequeno inconveniente.
Limpo a garganta, sem graça.

— Desculpe. Posso voltar outra hora.

— Não é necessário. — A resposta do meu chefe


me surpreende.
De forma cautelosa, fecho a porta atrás de mim enquanto
a conversa volta a fluir. Não é nada interessante. Liam está
falando sobre um planejamento de estratégias. Se a conversa
fosse importante, ele pediria para que eu me retirasse, sei disso.
Tenho vontade de bocejar enquanto espero sentada em uma
cadeira no fundo do escritório.
Daqui, vejo a parte de trás da cabeça do homem que conduz
uma pequena reunião e Liam, que vez ou outra desvia os olhos até
mim. Não contenho o bocejo desta vez, o que faz com que as íris
do loiro disparem em minha direção por um tempo maior que o
habitual. Será que isso o irrita? Cruzo as pernas, analisando seus
movimentos.
Diamond está sentado com a postura perfeita, o cabelo loiro
meio bagunçado e uma das mãos envolvida ao redor de uma
caneta. Não há nada errado nele. Nenhum tique. Nenhuma peça de
roupa amassada, apenas sua fachada impenetrável.
— Essas parcerias podem nos dar acesso a novos mercados
— diz o homem quando começo a prestar atenção no que eles
conversam.
— Vou deixar você liderar a equipe de expansão, Alex. Mas
não me decepcione. — As palavras de Liam ficam no meio termo
do passivo e agressivo.
É um aviso claro. Cometa um deslize e será demitido.

— Não vou. — O homem garante, mas daqui, posso ver


seus ombros tensos. — Obrigado pela oportunidade, sr. Diamond.
Então, eles apertam as mãos e Alex sai da sala, sem se
importar com minha presença. Assim que a porta bate, a atmosfera
muda. Liam fixa os olhos em mim e aponta para a cadeira na
frente dele.
— Sente-se.
Obedecê-lo é quase um sacrifício. Contudo, como não tenho
opção, forço meu corpo a se mover até a cadeira. Puxo a saia para
baixo ao me sentar. Seus olhos azuis estão presos nos meus
quando ele despeja:
— Quero que traga meu almoço meio-dia em ponto e
organize alguns arquivos em ordem alfabética. Depois, preciso
que leve o Lotus para tomar banho.
— Lotus?

— Meu cachorro — diz de forma fatídica, e eu pisco,


tentando assimilar.
— Isso é um estágio ou abuso de autoridade?

— Como te falei, você não me é útil na empresa. Pode


fazer outras coisas para compensar.
— Sendo sua empregada pessoal? — solto, irritada. — O que
as pessoas diriam se soubessem que o grande Liam Diamond é um
babaca que subestima mulheres?
— A maior parte dos empregados desse departamento é
composto por mulheres. — Arqueia as sobrancelhas, sem esconder
o tédio no olhar. — O que não quero é uma pirralha dentro do meu
sistema. Acha que não sei o que você está tentando fazer, senhorita
Phoenix?
Sinto o rosto arder.

— O que estou tentando fazer? Diga-me, senhor Diamond.

— Quer se vingar, o que é em vão. Não pretendo mais


perder meu tempo com você. Quando você foi para a prisão, já te
coloquei na posição em que eu queria, como pode ver. — Ele acena
com a mão para mim.
O fato de eu estar sentada na sala dele, onde ele pode
manter os olhos em mim. A posição em que me encontro no
momento, tendo que acatar suas ordens. Trazer cafés,
almoços… Minha mandíbula se trava.
Desgraçado.
— Para você, parece um jogo de xadrez — retruco.

— E você está na posição em que eu quero — reafirma.

— Não por muito tempo.

Liam me ignora. Ele começa a ler alguns papéis enquanto


fico sentada sem utilidade nenhuma em sua frente. Espero que ele
diga para eu fazer algo, mas tudo o que me resta é o silêncio
ensurdecedor.
Olho para o relógio na parede. Faltam quarenta minutos
para meio-dia. A hora em que Liam solicitou seu almoço.
— Vou sair. — Me levanto e pego minha bolsa.

— Não lembro de tê-la dado permissão.

Seguro a bufada no fundo da garganta.

— Vou pegar seu almoço, sr. Diamond. Achei que não


fosse um problema, mas sim uma ordem.
Liam não diz nada, então aproveito a deixa e sigo em direção
à porta. Me sinto melhor quando estou fora do escritório. É como se
o ar fosse mais limpo, sem a contaminação do mau humor dele. No
elevador, mando uma mensagem para Emi.
Phoenix: vou almoçar no Megumi, se quiser me encontrar
por lá.
Emi: claro, tô indo.
Quando chego do lado de fora do arranha-céu, peço um táxi.
O Megumi é um restaurante tradicional de comida japonesa. Não
fica muito longe de onde estou, então é oportuno. Assim que
adentro no estabelecimento, vejo que Emi já está sentada em uma
das mesas. Ela ergue a mão, acenando-a no ar, como se sua
jaqueta cor-de-rosa já não chamasse atenção o suficiente.
— Esse é seu visual de estagiária? — indaga, arqueando as
sobrancelhas.
— Sim. — Puxo uma cadeira para me sentar. — Está brega?

— Não, achei que você ficou linda. Não rola nenhum


clima entre você e o chefe gato e insuportável?
Minha amiga tem um péssimo defeito, sonhar demais
com coisas impossíveis.
Eu a repreendo com o olhar.

— Claro que não, eu tenho namorado!

— É, mas ultimamente as coisas com o Ren não estão legais.


— Dá de ombros. — Acho que você tá protelando algo inevitável.

Me remexo desconfortável no assento, porque sei que ela


tem razão. Ren e eu mal temos nos visto ultimamente, além de que,
após nossa última conversa, nossa relação passou de estranha para
super estranha. Não sei como poderei sustentar nosso namoro
depois disso. Acho que não posso pensar em me casar com alguém
que não apoia meus sonhos.
Fico em silêncio e resolvo mudar de assunto:

— Vamos falar sobre você e seus problemas — digo,


embora ache improvável.
Nunca vi Emi reclamar de nada. Seus pais são legais, donos
de uma rede famosa de SPA aqui no Japão e apoiaram quando ela
se inscreveu na faculdade de artes visuais. Não admito isso, mas
tenho inveja dela. Sua família é estável, com um casamento bom.
Além disso, a garota tem um irmão mais velho que a protege de
tudo. Inclusive, na oitava série, ele socou um babaca que partiu
seu coração.
Eu não tenho ninguém que faria isso por mim. Meu pai é
ocupado demais, minha mãe desapareceu e não tenho irmãos.
Minha amiga parece pensar por alguns momentos.

— Meu professor da faculdade não larga do meu pé. Ele


sempre pede para que eu leia os textos da matéria em voz alta.
Parece até que estou de volta ao colegial, quando era
representante da turma.
Solto um risinho. Acho divertido que essa seja a
única preocupação de Emi.
— Talvez ele sinta uma atração secreta por você, sabe.
Como em uma daquelas novelas populares e clichês.
— Eca. Ele tem, tipo, noventa anos. Toda vez que cochila
na cadeira, alguém precisa cutucá-lo para ter certeza de que não
teve uma parada cardíaca durante a aula.
Nós duas rimos e resolvemos, enfim, fazermos nossos
pedidos. Fico com um ramen e Emi pede uma salada de pepino. Não
sei quanto tempo passa enquanto conversamos, mas, quando olho o
relógio, percebo que estou atrasada. Com pressa, me despeço, jogo
algumas notas sobre a mesa para cobrir minha parte e pego um
yakissoba pronto em um comércio ambulante enquanto peço o táxi
de volta para a empresa.
Não sei se Liam gosta de yakissoba, mas ele não
especificou o que queria comer.
Estou atrasada trinta minutos quando abro a porta do
escritório.
— Parece que você tem problemas em olhar no relógio.

— São só trinta minutos. — Deixo a sacola em cima da mesa,


me sentindo exausta. Corri pelo hall imenso até o elevador. Sorte
que uma funcionária segurou as portas para mim, ou teria ficado
esperando lá embaixo.
Espero que Liam tenha um ataque de estrelismo quando vê
a embalagem de isopor, mas ele apenas abre a tampa e começa a
comer com o hashi. O observo feito uma idiota, porque não sei o
que fazer em seguida. Ele nota meu olhar enquanto mastiga e
arqueia as sobrancelhas sutilmente.
Olho para longe.

Ele parece quase… normal. Pelo menos agora, enquanto


está comendo, em silêncio.
Uma batida na porta me desperta de meus devaneios. Liam
autoriza a entrada e um homem atravessa a porta. Com ele, está
um cachorro Border Collie preso a uma coleira.
— Aqui está o cachorro, senhor — diz, cortando o silêncio.

— Obrigado. Pode entregá-lo à Phoenix — Liam


fala, finalizando o yakissoba e deixando o hashi de lado.
Dou um passo à frente, muito entretida no animalzinho para
contestar. Sempre quis um bicho de estimação, mas meu pai
nunca permitiu. Sei que Liam poderia ter pedido a qualquer pessoa
para levar o seu cachorro ao pet shop, mas ele designou isso a
mim justamente para que eu tivesse alguma tarefa, já que diz que
aqui, em sua empresa, não tenho utilidades.
Lotus cheira meus calcanhares quando seguro sua guia e
depois dá uma lambida em uma das minhas mãos. Começo a
rir, mas logo paro quando percebo o olhar de Diamond grudado
em mim. Limpo a garganta e adoto uma postura séria.
— Estou saindo — aviso, sem encará-lo.

Enquanto espero Lotus do lado de fora da sala de banho,


meu celular começa a tocar. Suspiro ao ver o nome de Ren no visor
e atendo um momento depois, porque prometi que ligaria hoje.
— Onde você está? — pergunta, provavelmente ao ouvir
o barulho de secadores do ambiente.
Me afasto um pouco de onde vem o som e me apoio
contra uma prateleira de rações.
— No pet shop.

— Pet shop? — questiona, a confusão se faz presente em seu


tom de voz. — Seu pai deixou você ter um animal de estimação?
— Não. É só que, não sei, me deu vontade de entrar em um.
— Me nego a admitir que isso faz parte do meu estágio. É
vergonhoso que Liam me ache tão inútil a ponto de me pedir
coisas do cotidiano. Não posso dizer isso para Ren.
— Pensei que você estava no estágio.

— Fui dispensada mais cedo.

— Ótimo, então podemos nos ver? Posso ir te encontrar.

— Agora não dá — nego rapidamente. —


Depois conversamos, ok? Beijo.
Não espero uma resposta sua, apenas encerro a chamada.
Volto para perto da vitrine, onde posso ver Lotus. Ele está sendo
ensaboado e tenta engolir as bolhas de sabão que flutuam no ar,
que explodem em seu focinho antes que ele tenha a chance.
Como um cachorro tão amável pode ter um dono como Liam?
De repente, fico com pena dele. Liam não deve ser
carinhoso, nem dar a atenção necessária.
Quando o animalzinho está limpo e seco, o levo até o carro
da empresa que meu chefe colocou à nossa disposição. Me
surpreendo ao ver que ele espera em frente ao arranha-céu. Os
braços estão cruzados em frente ao terno sob medida, e ele nem
agradece quando eu desço do carro com seu cachorro, apenas
toma a guia da minha mão e dá as costas após dizer:
— Está dispensada por hoje.
09

Estou trinta minutos atrasado, algo que nunca acontece,


devido uma falha no motor do carro. Solicitar um segundo
veículo demorou mais que o habitual, o que me deixa
impaciente. Não costumo chegar depois dos meus funcionários
na empresa. Assim que eles iniciam o expediente, já estou lá.
Levo a sério a pontualidade, afinal, o tempo é algo que não
se pode comprar ou produzir. Ao chegar no escritório, avisto
Phoenix. Ela toma um susto quando abro a porta, pois está
tentando destrancar uma das minhas gavetas. O rosto dela é
tomado por um rubor vermelho irritante, que demonstra suas
emoções de forma tão clara como se ela fosse um livro aberto.
Não sei por qual motivo, mas reparo nela por alguns
momentos. Está vestindo uma camiseta de linho branco e uma saia
preta, além de saltos médios. O cabelo amarrado no topo de sua
cabeça é algo usual. Esta manhã, no entanto, suas orelhas exibem
brincos de pérolas.
Sou observador. Reparo que sua postura está tensa e ela
finge que não estava fazendo nada demais, como se enfiar o nariz
nas coisas de seu próprio chefe não fosse relevante. Maldita seja
essa garota, sempre em busca de provas contra mim. Sinto vontade
de mandá-la embora, mas permaneço em silêncio enquanto
caminho até estar parado em sua frente.
— Não te proibi de entrar quando eu não estivesse?
Inclusive, como entrou?
— Eu não sabia que você não estava antes de entrar e, em
minha defesa, estavam fazendo manutenção do sistema elétrico.
A porta estava aberta.
É claro. A maldita manutenção que solicitei. Mas não gosto
que Phoenix tenha conseguido entrar aqui. Alguém terá que
responder por isso.
— Bom, você acaba de demitir alguém — digo, enquanto me
sento na minha poltrona.
— Eu? — ela balbucia. — Por quê?

— Porque você entrou aqui. Alguém autorizou sua entrada


enquanto eu não estava, e você permaneceu. Isso é uma falha
na segurança. Não posso permitir que algo assim aconteça.
Phoenix comprime os lábios, me olhando com as
pálpebras com dobras epicânticas semicerradas.
— Você não acha que está exagerando? Eu mostrei meu
crachá de identificação. — Ela sinaliza para o peito, onde está
grudado. — Não foi falha na segurança. Eles sabiam que eu
trabalho aqui.
— Então está dizendo que não estava tentando bisbilhotar
minha gaveta antes de eu chegar? Que eu não devia punir alguém
por isso? — Passo a caneta prateada que fica na minha mesa
entre os dedos.
— Eu não estava…

— Estava — a interrompo. — Então, você vai escolher. Vou


demitir alguém, ou você vai assumir e ser responsável pelos seus
próprios erros. E terei uma conversa com o sr. Ogawa.
Quando cito seu pai, que definitivamente é seu calcanhar de
aquiles, Phoenix murcha. Vejo a dúvida nos seus olhos. Ela está
em um conflito entre demitir alguém e ser punida pelo o que fez.
— Tudo bem. Vai em frente, ligue para o meu pai, marque
uma reunião, faça o que você sabe fazer de melhor, que é ser
um baita ranzinza!
— Eu não precisaria fazer isso se você parasse de agir
feito uma pentelha.
— Eu não precisaria ser uma pentelha se você não tivesse
me colocado na prisão.
Sei que Phoenix nunca vai me perdoar por isso, mas não me
importo. Ela já tentou me sabotar várias vezes. Jogou café em
mim, colocou pimenta na minha comida e até tentou invadir meu
escritório. Duas vezes.
Geralmente, não sou paciente com esse tipo de coisa.

— Onde está o meu café? — questiono, sem me importar


com o olhar odioso que recebo. Na verdade, ouso dizer que
estou habituado com esse tipo de coisa.
— Eu me cansei disso! — Phoenix tira o crachá de
identificação do peito e o atira sobre a mesa, respirando num
ritmo tão intenso que posso ver seu peito subindo e descendo. As
bochechas dela estão coradas. — Eu me demito.
Estou surpreso, porque não esperava que ela fosse chegar
a este ponto.
Fico em silêncio, observando-a.

— Faça o que quiser, diga ao meu pai, o que quer que seja,
não me importo. Tô cansada de viver nas rédeas. — Há uma pausa,
enquanto ela olha para mim como se pudesse perfurar meu crânio.
— E essa gravata é horrível — acrescenta, de repente, antes de
me dar as costas e sair do escritório.

— Senhor, temos um problema — a voz de Kim,


minha assistente, ressoa nos meus ouvidos.
Eu não paro minha série de exercícios. Mandei construir uma
academia pessoal no novo prédio justamente para que tivesse
otimização de tempo. Não vai ser uma frase como esta que vai me
fazer parar agora.
Me concentro em erguer os halteres, que surgem no meu
campo de visão enquanto os músculos do meu peito queimam. Não
consigo ver Kim daqui, porque estou inclinado no banco de supino,
com os olhos fixos no teto.
Quando acabo as repetições, largo os pesos, me sentando
de forma que posso ver a mulher através dos espelhos.
— Diga.
— Receio que o senhor não possa ganhar o prêmio de
melhor CEO do ano aqui no Japão.
Arqueio uma sobrancelha. Não há nada que eu não possa
conquistar se eu quiser. Basta apenas minha determinação. Pedi a
Kim para me ajudar a analisar as possibilidades de eu vencer o
prêmio. Meus resultados até agora têm sido revolucionários. Não é
à toa que Jim Ogawa, um dos grandes pioneiros daqui, quis se
tornar um aliado, além de outros tantos.
— Por quê? — pergunto, com calma, enquanto abro a
garrafa de água e começo a bebê-la.
— Analisando os últimos vencedores dos prêmios, todos
eles estavam em casamentos e uniões estáveis. É uma formalidade
dos organizadores da cerimônia que o prêmio seja entregue por
um cônjuge.
O quê?
Sei que o Japão é um lugar tradicional com
princípios inigualáveis, mas nem tanto.
Fico em silêncio, e absorvo as palavras de Kim. Ela sabe
que não me relaciono com ninguém, meus objetivos são bem
claros. Minha atenção e foco são destinados a empresa.
— Então está me dizendo que para que eu seja bem visto
pelos juízes, tenho que estar em um relacionamento? — questiono,
torcendo para que ela me dê um argumento que refute tudo isso.
— Sim, senhor. Apenas um homem solteiro foi ganhador
do prêmio, há dez anos, uma exceção por ter sido pai solteiro. O
sr. Ogawa.
Interessante.
— Entendo, Kim. Isso não será mais um problema.
Obrigado pelas informações.
Ela parece surpresa, mas permanece em silêncio. Dou
permissão para que se retire enquanto penso no que farei
para reverter a situação.
Na verdade, tenho um plano.

Estou parado no hall há vinte minutos, esperando. Tenho


certeza de que a demora toda é proposital e já estou cansado
de analisar os quadros na parede.
Decorei as três imagens. Na primeira há uma fotografia de
um bebê enrolado em um manto com gravuras japonesas. Na
segunda, o bebê já tem uns três ou quatro anos, enquanto sorri
para a câmera e segura um buquê de flores. Na última, os anos
voaram. Agora há uma adolescente contida, vestindo um
quimono, abraçada junto de um garoto da mesma faixa etária,
que veste smoking.
Abaixo da foto, há a legenda “Baile de Formatura”.

Agora, a mesma adolescente, um pouco diferente, me


encara do topo das escadas.
Phoenix não parece feliz em me ver, mas há curiosidade
em seus olhos castanhos. Faz três dias desde que ela se demitiu e
não me opus.
— Sabia que uma hora você voltaria a me infernizar. —
Ela encosta-se contra a parede, mantendo uma distância de
vários metros entre nós.
— Não vim inferniza-la.
— Então a que devo sua grande e ilustre presença? —
fala, num tom óbvio de sarcasmo.
— Quero uma trégua.

A frase parece impressioná-la. Phoenix me fita como se uma


segunda cabeça tivesse surgido no meu tronco, mas logo passa e
só resta a dúvida. Não a culpo. Eu também não confiaria em mim.
— Como assim? — Cruza os braços em frente ao peito e
adota uma postura defensiva. — Não vai contar ao meu pai que
me demiti?
— Não. Quero que possamos chegar a um acordo.

— O que é que você quer? Apenas diga de uma vez por


todas.

Mantenho minha expressão séria enquanto começo a falar:

— Preciso que finja ser minha namorada.

Phoenix gargalha. Não é o tipo de riso normal, é um riso


histérico, quase como se ela achasse que eu estou louco. Quando
ela para, tem que enxugar as lágrimas nos cantos dos olhos.
— Veio até aqui para me contar uma piada? Tenho
que admitir que me diverti, mas já pode dar o fora, Liam.
Ela começa a subir as escadas mas eu entoo um:

— Espere.

Phoenix para, como se percebesse a seriedade no meu tom


de voz. Odeio pedir favores, então é necessário uma dose de
esforço que quase dói fisicamente. Minha mandíbula trava quando
começo a dizer:
— Não é brincadeira. Faça isso e te deverei um favor.
Odeio admitir isso, mas eu realmente preciso dela no
momento. Ela e seu pai são influentes no Japão, além de que Jim
já ganhou uma das premiações. O sobrenome Ogawa vai me abrir
portas, mesmo que através de Phoenix.
Ela parece interessada agora. A garota desce os degraus
da escada e se aproxima, parando a um metro de distância.
— Vai fazer qualquer coisa que eu pedir? — Arqueia
as sobrancelhas.
— O que estiver ao meu alcance — falo, secamente.

— Você não me disse que não há nada que homens


como você não possam fazer?
Espertinha.
Apenas estendo minha mão até ela. Phoenix olha para
meus dedos por longos momentos, como se estivesse receosa.
Como se estivesse prestes a fazer um acordo com o diabo.
Enfim, sua mão se fecha sobre a minha. A tensão no ar é
maior do que a do corpo de Phoenix. Ela enrijece ao me tocar e logo
se desvencilha, como se meu toque a queimasse.
— Está feito — diz e, pela primeira vez, sinto que fiz
um péssimo negócio.
10

Hoje é feriado e faço o melhor que posso para enfeitar meu


cabelo em frente ao espelho. Coloco uma fita azul que combina
com o meu vestido, um Valentino, de corte simples. Assim que
termino de calçar os saltos, meu pai bate na porta e digo que ele
pode entrar.
— Mandei um carro para buscar a família de Ren. Desça
para recebê-los.
Seus orbes castanhos escuros não conseguem se fixar em mim
por muito tempo antes de desviar o olhar e se retirar. Um nó se
forma na minha garganta, pois sei que ele faz isso porque me
pareço com minha mãe. Desde que ela nos deixou, evito usar
meus cabelos soltos. Parece idiota, mas sou como uma cópia dela.
Olhar para mim deve ser difícil para ele. Ao mesmo tempo em que
tento entendê-lo, sinto raiva.
Sinto raiva dele por associá-la a mim e sinto raiva da minha
mãe por ter feito as malas e se mudado para outro continente em
busca de seus sonhos. A princípio, ela disse que levaria apenas
alguns meses. Que voltaria para casa, para meu pai e para mim.
Lembro do dia em que ela me deixou. Me deu um beijo na testa e
pediu para que eu fosse uma boa garota enquanto estivesse fora.
Já fazem dez anos desde então.

Minha mãe nunca voltou para casa e me acostumei a viver


sem ela. Papai, por sua vez, se tornou um fantasma de quem já foi
um dia. Um homem sério e focado apenas nos negócios. Tive que
enfrentar a solidão na adolescência, sem ter o ombro do meu pai
para chorar por um coração partido, ou dicas da minha mãe
quando menstruei pela primeira vez.
Quando lágrimas de raiva, tristeza e ressentimento
começam a embaçar minha visão, respiro fundo e me concentro na
minha aparência. Falta o batom. Escolho o vermelho.
Depois que estou pronta, desço a escadaria para o primeiro
andar. Alcanço o hall assim que ouço o barulho dos portões
automáticos abrirem lá fora e aguardo na porta enquanto Ren e
sua família descem do carro.
O senhor e a senhora Nagashi são carismáticos. Eu amo a
família de Ren. Eles são fáceis de gostar. Lin Nagashi me dá um
abraço apertado e um beijo no rosto, fazendo um comentário
sobre meu cabelo antes de entrar. O sr. Nagashi apenas me
cumprimenta e, apesar de ser mais contido, é igualmente
simpático. Ele segue a esposa para dentro.
Por fim, resta apenas eu e meu ex-namorado na varanda
de mármore. O clima fica esquisito e denso.
Depois que me demiti do estágio de Liam, briguei feio com
Ren pelo telefone e resolvi terminar nosso relacionamento. Ainda
não contamos às nossas famílias. Nem sei se tenho coragem. É
algo que nunca fará sentido para eles. Os Nagashi me receberam
como sua filha e meu pai também ficaria descontente.
Mas bem, aqui estou eu, tentando tomar as decisões certas
e me sentindo mais perdida do que nunca.
Ren segura uma caixa retangular envelopada de cetim que
conheço bem, de uma marca que importa chocolates da Suíça. Ele
usa um terno caro e, sob a luz do luar, me lembro porque me
apaixonei por ele. Ele é lindo. Seus cabelos são curtos e escuros, e
seus traços remetem à descendência chinesa de sua família
materna. Além disso, Ren traz uma sensação confortante. Acho
que ele tem esse efeito de calma nas pessoas.
— Você tá linda nesse vestido — elogia, meio sem graça, ao
me entregar os chocolates. Meu coração bate um pouquinho mais
rápido.
— Obrigada. Não precisava.

Ren dá de ombros, meio constrangido e nós entramos. Minha


casa está especialmente brilhante esta noite. Meu pai mandou polir
o chão e limpar os lustres. A governanta faz menção de pegar o
casaco de Ren, mas ele apenas a dispensa educadamente e o coloca
por conta própria no mancebo de madeira.
A mesa da sala de jantar está cheia de velas e meu pai e
os Nagashi já estão sentados, juntamente com dois homens que
trabalham com eles e que nunca decoro os nomes.
Todos na mesa parecem mais parceiros de negócios, o que de
fato são, que família. Reparar nisso me incomoda um pouco, mas sei
que é a atmosfera que meu pai estabeleceu. Queria que as
coisas fossem diferentes, ao menos num feriado como esse.
Ocupo um lugar ao lado de Ren e estranho quando meu pai
não manda servir o jantar imediatamente já que estamos todos
aqui. Como se lesse isso nas entrelinhas, o homem limpa a garganta
e diz:
— Estou esperando meu último convidado.

Franzo o cenho e, antes que possa questionar, a porta da


frente se abre. Alguns momentos depois, uma figura imponente
de terno entra na sala de jantar.
Liam Diamond está em seu traje habitual, com o cabelo
loiro impecavelmente penteado para trás.
Agora sim seremos uma família feliz.
Meu humor piora no mesmo instante, e quero perguntar a
meu pai por que ele convidou Liam para um jantar em família, mas
a resposta é óbvia. Dinheiro sempre foi a razão. Diamond deve
representar um enorme cifrão ambulante para o senhor Ogawa. Ele
se levanta para recebê-lo. Após apresentá-lo a todos, papai pede
para que Liam se sente ao seu lado direito, o que me ofende.
Meu pai nunca deixou eu me sentar nesse lugar.

— Ele é… jovem — a voz de Ren me tira dos


pensamentos, fazendo-me encará-lo.
Assim como todos, ele faz sua própria análise. Seus olhos
estão presos em Liam. Aposto que Ren nem sabe que esboça uma
careta agora, o que acho engraçado. Ele sempre gosta de todo
mundo.
Os empregados, enfim, começam a nos servir.
Não sei o que Diamond irá dizer, espero que não comente
nada sobre nosso relacionamento. Concordei com isso visando meus
próprios interesses, mas se ele abrir o bico aqui e agora, vou pular
sobre a mesa e alcançá-lo do outro lado para enforcá-lo com
minhas próprias mãos.
— Ouvi falar bastante sobre você — o pai de Ren diz
a Diamond, o que me surpreende.
Baixo os olhos para meu prato, enquanto mastigo um pedaço
de peixe. Finjo desinteresse, mas presto atenção em cada palavra
da conversa que se desenrola. Então quer dizer que meu pai fala
sobre o Liam por aí?
— Jim sempre elogia todas suas estratégias e
posicionamentos. Estou ansioso para fechar contrato com você.
Meu queixo quase cai.

Quer dizer que Liam conseguiu se enfiar até na família de


Ren? Sinto uma pontada de ciúmes, porque essa é minha vida.
Minha vida sendo invadida por ele.

— Seremos grandes aliados — é tudo o que o loiro se limita a


dizer.

Sempre objetivo, racional e dispensando afeto.

É difícil agir naturalmente; estou com medo do que Liam pode


revelar. Lanço a ele um breve olhar e me surpreendo quando vejo que
me encara de volta sob a borda da taça de vinho que leva aos lábios.
Quebro o contato visual rapidamente, com o
coração disparado.
— A gente pode conversar por um momento? —
Ren questiona quando nossos pratos estão vazios.
Olho ao redor. Meu pai e os outros estão em uma conversa
animada. Liam permanece em silêncio, mas parece prestar
atenção no que dizem. Concordo, mas aviso que será breve.
Pedimos licença e deixamos a sala de jantar. Nós paramos
em um dos corredores de acesso, onde há silêncio e privacidade. Dá
para sentir a tensão entre nós.
É quase palpável.

— Me desculpa — Ren diz, arrependido. Seus olhos estão


presos aos meus com tanta intensidade que tenho que engolir o nó
que se forma na garganta.
— Pelo o quê? — questiono num murmúrio, porque não
sei exatamente por qual parte ele está se desculpando.
— Por nossa última discussão. Acho que nenhum de
nós estava pensando direito…
Em todos esses anos, Ren e eu nunca rompemos nosso
namoro. Sempre resolvemos tudo com uma conversa simples e
clara. Ele sempre foi meu melhor amigo, nunca tivemos
desavenças antes.
— Você não tá pensando direito, Phoe. — Segura minhas
mãos entre as suas. — Você pode continuar pintando em
Harvard. Nós fomos feitos um para o outro.
Murcho, porque ele não entende. Achei que Ren pudesse
perceber uma hora que não preciso ser advogada para me
tornar uma mulher bem sucedida, muito menos abrir mãos dos
meus sonhos.
Ele se aproxima alguns passos, diminuindo quase toda
distância entre nós. Há uma súplica silenciosa em seus olhos.
— A gente vai superar isso. Eu prometo que…
— Que coisa deplorável. — A voz grave ecoa pelo
ar, interrompendo meu ex-namorado.
Fico estática quando olho para o lado e vejo Liam no início do
corredor, encostado contra uma das paredes. Ele acende um
charuto enquanto nos observa com tédio como se fôssemos uma
novela de drama.
— Se não percebeu, estamos tendo uma conversa particular
— Ren diz, ultrajado.

Ele nunca fica nervoso, mas, agora, está bem próximo disso.

— Não me importa, para ser sincero. — Dá a primeira


tragada no charuto.
— Vem, Phoe — Ren fala, esperando que eu o siga,
mas meus pés não se movem. Continuo parada.
Quando não faço nenhuma menção de segui-lo, sua mão se
fecha firmemente ao redor do meu braço e ele tenta me arrastar.
— Tá machucando — resmungo, não entendendo qual
a porra do problema dele hoje.
— Cuidado — Liam avisa, de forma ameaçadora e cautelosa.
— Solte o braço dela.

O ar muda. É como se tudo não passasse de tensão e


desconforto. Ren olha para mim, na esperança de que eu mude
de ideia.
— Eu disse, solte o braço dela — repete, de maneira lenta,
aproximando-se até que esteja perto o suficiente para que eu
possa sentir o cheiro de tabaco e perfume caro.
Ren não se move. Não me solta.
Liam apaga o charuto na camiseta social do garoto, deixando
uma marca preta e restos de cinzas. Então, empurra seu peito com
o antebraço, fazendo suas costas atingirem a parede atrás de si.
Os quadros chacoalham e me espanto com a cena, o coração
quase saindo pela boca.
— Essa é a distância segura — fala, o tom de voz baixo e
sério.

Ren se desvencilha do toque bruscamente e encara Liam


como se pudesse dar um soco em seu rosto. Em seguida, me lança
um olhar magoado e sai às pressas, deixando-me a sós com
Diamond.
— Preciso falar com você — diz, enquanto sustenta o
charuto na boca e ajeita as mangas de seu terno, como se não
tivesse acabado de prensar Ren contra a parede.
Ainda estou com dificuldade de assimilar os últimos
acontecimentos. Ren nunca havia me tocado antes, muito menos
apertado meu braço. Olho para baixo, vendo as marcas dos
dedos gravadas em minha pele.
— O que foi? — digo, quase num sussurro, sentindo-
me cansada e vazia.
— Precisamos falar sobre nosso acordo.

Limpo a mente, focando em suas palavras. O encaro


sem emoção, no entanto.
— Diga.

— Esteja preparada para nos assumir publicamente. — Há


uma pausa enquanto ele traga e solta a fumaça. — E mantenha-
se longe de babacas como esse — acrescenta, referindo-se a Ren.
— Ou vai me mandar para a cadeia.
— Ele é meu ex-namorado — digo, sem emoção.

Liam ignora a informação ou simplesmente não se importa.


Acho a última opção mais coerente.

— Até mais, Phoenix. Vou contatá-la em breve.

Então se vira e some tão inesperadamente quanto apareceu.


11

antes
A casa está cheia de pessoas que não conheço, e a música alta
reverbera pelo lugar. Bastian disse que faria uma pequena reunião
enquanto nossos pais estão fora, viajando a negócios. Mas isso não é
nada particular. Parece que o colégio inteiro foi convidado
para vir até aqui. Agora, há alguns carros estacionados no pátio
e gente por todo canto.
Brianna está assustada, deitada em minha cama e escondida
sob os cobertores. É a primeira vez que sinto raiva de Bash. Já
senti ciúmes, inveja, até mesmo tristeza. Contudo, raiva é a
primeira vez. Uma parte minha entende que ele não quer ser o
sucessor, mas é obrigado. Só não consigo assimilar toda a falta de
cuidado e inconsequência.
Ele é um ano e alguns meses mais velho que eu. Tenho
quinze anos e ele acabou de completar dezessete. Meu aniversário
é daqui alguns meses, no entanto, me sinto um velho ranzinza toda
vez que ele age como um moleque mimado.
— Bree — murmuro, esperando que ela saia do esconderijo.

Ela mal se move sob as cobertas. Puxo o travesseiro,


revelando sua cabeça loira e os olhos azuis arregalados.
— Por que tem tanto barulho? — choraminga, assustada.

Brianna sempre foi a mais sentimental e perceptiva de nós


três. Ela tem onze anos e nossos pais mal ligam para ela. Se eu sou
considerado um reserva por ter nascido depois, minha irmã está
completamente fora do jogo. Ela é a mais nova e mulher. Nunca
uma mulher havia liderado os negócios da nossa família antes, o
que sempre achei antiquado.
— É só o Bash e alguns amigos. — Tento tranquilizá-la. —
Que tal ouvir música nos fones enquanto vou lá checar se está
tudo bem?
Ela pensa por alguns instantes.

— Tá bom.
Pego meus fones e coloco em sua cabeça, depois procuro
uma playlist de música infantil e a reproduzo. Por precaução, tranco
a porta do quarto. Não pretendo ficar muito tempo lá embaixo, mas
não quero que alguém tenha acesso ao lugar em que ela está. Vi um
casal se beijando no banheiro dos meus pais mais cedo. Se Hernan e
Donna se deparassem com a cena ficariam loucos.
Desço a escada, que está cheia de gente subindo e
transitando pelos andares. Não demoro muito para encontrar
Bastian no mar de pessoas. Ele bebe na mangueira de um barril de
cerveja enquanto ouço gritos de incentivo. A música é tão alta que
meus ouvidos começam a doer.
Vou abrindo caminho até chegar perto o suficiente para
que consiga tocar seu ombro.
Ele demora para se virar em minha direção. Seu rosto
está corado e o cabelo uma bagunça. Está longe de estar sóbrio.
— Você tinha que trazer sua festa para cá? — Falho na
missão de manter minha voz calma.
Bastian percebe toda a raiva que sinto, porque franze o
cenho. Ele apoia o braço ao redor dos meus ombros, jogando
quase todo seu peso sobre mim.
— Por que não bebe e relaxa um pouco? Você parece irritado
— fala. Consigo sentir zombaria em seu tom de voz.

As pessoas ao nosso redor começam a prestar atenção


em nossa interação. Em um rompante de raiva, tiro bruscamente
o braço de Bastian de cima dos meus ombros. A atmosfera no
ambiente muda.
— Acabe com a festa agora ou eu mesmo vou chamar a
polícia. A Bree tá morrendo de medo lá em cima. Você devia
ser menos egoísta.
Bastian torce os lábios, não parecendo satisfeito com minha
sugestão.
— Eu disse para você relaxar. — Estende uma garrafa de
cerveja em minha direção como se isso fosse resolver as coisas.
— A Bree precisa dormir — volto a insistir, para que ele se
sensibilize. — Nossos pais deixaram você no comando para testá-
lo. Não percebe que está estragando tudo?
— Brianna pode dormir. Não tem ninguém impedindo ela.
Vocês dois têm que deixar de ser criancinhas e começarem a…
A raiva que sinto cresce em meu corpo, até que seja
difícil compreender as palavras que deixam a boca de Bastian.
Quando percebo, meu punho já se conectou no maxilar dele.
Meu irmão mais velho cambaleia com o impacto inesperado.

Depois, quando se recupera, parte para cima de mim. Nós


caímos no chão, fazendo pessoas gritarem e se afastarem até
que tenha um círculo formado ao nosso redor.
A dor explode em minhas costas quando atinjo o chão e
perco o fôlego por alguns segundos. Bastian pode ser lento, mas
ainda é mais velho e mais forte. Nós dois temos um longo histórico
com artes marciais. Nosso pai nos matriculou em todas as aulas
possíveis com o argumento de que deveríamos aprender a nos
defender, quando, na verdade, seu desejo era nos ver um contra o
outro, competindo. E é o que estamos fazendo.
Só que agora é real.

Tão real que sinto o gosto metálico do sangue invadir


minha boca quando meu irmão me soca na cara.
No entanto, reverto nossas posições no próximo momento e
acerto sua têmpora, depois a maçã de seu rosto. Quando percebo
que ele mal consegue se defender, desisto e me levanto, com
a respiração entrecortada.
As pessoas me encaram como se eu fosse um animal de
circo.

— Saiam! Saiam já! — começo a gritar, gesticulando com


os braços. — O espetáculo acabou.
Uma a uma, as pessoas começam a se mover em direção
à porta. Ando até as caixas de som e puxo os fios das tomadas.
Bastian está sentado no chão, parecendo recobrar sua
consciência enquanto observa os convidados evacuarem. Depois
de longos minutos, somos só eu e ele na sala, com copos plásticos
coloridos espalhados pelo chão e garrafas de cerveja vazias que
rolam aos nossos pés.
Olho para ele. Sua camiseta está amassada e há um corte
no supercílio, além de hematomas pelo rosto. Tenho certeza de que
se eu passar em frente a um espelho agora, verei resultados
parecidos em mim.
Seus olhos encontram os meus e ele não diz nada.

Nossa troca silenciosa de olhares significa apenas uma coisa:


nosso pai nos fará comer o pão que o diabo amassou.

E nós tememos por esse momento.


12

Olho o vestido vermelho dentro da caixa, sem reação.


Quando Liam falou que eu deveria estar preparada para nos
assumirmos publicamente, não imaginava que ele tinha
planejado cada detalhe.
O vestido ficava no meio termo entre o vulgar e o elegante.
Não é nada discreto, mas ao mesmo tempo não chega a ser tão
ousado a ponto de me envergonhar. As costas são desnudas, e há
um par de acessórios em ouro: um colar e bracelete. Um bilhete
está cuidadosamente colocado dentro da caixa. Solto um suspiro
e começo a lê-lo.
Use com os cabelos soltos.
Te buscarei às oito.
Olho o verso, certificando-me de que não há mais nada.
Sério? Só isso? Que ótimo.

Ignorando todos meus instintos que gritam que entrar nessa


é uma péssima ideia, foco no fato de que é minha chance de seguir
com a carreira dos sonhos.
Depois do banho, aplico o batom vermelho e faço um traçado
dourado nos olhos oblíquos, destacando seu formato. Ao me
observar no espelho, tenho uma sensação inquietante. Meu cabelo
está tão longo que me assusta. O rabo de cavalo escondia o
comprimento, agora, porém, os fios roçam no fim das minhas
costas e me sinto esquisita.
É quase como olhar para um retrato de minha mãe.

Ainda bem que papai saiu, ou pensaria que está sendo


assombrado por fantasmas do passado.
Quando estou quase desistindo da ideia estúpida de fazer
um acordo com o diabo, recebo uma mensagem de um número
desconhecido.
Número desconhecido: desça imediatamente.

Número desconhecido: há uma Limousine te esperando.

Ignoro a forma como ele conseguiu meu contato e o


nervosismo me toma, porque não pensei em como sairia.
Geralmente, seguranças ficam dispostos em frente aos
portões. Receosa, saio de casa e caminho pelo pátio até que
um dos capangas do meu pai me barre.
— O sr. Ogawa não nos deu permissão para que saísse
durante a noite, senhorita Phoenix — um deles diz, rígido.
— Que estranho. — Começo meu teatro. — Ele quem
pediu para que eu comparecesse à festa de um de seus parceiros
de negócios.
— Não recebemos nenhuma informação acerca disso,
senhorita Phoenix. Pode tentar conseguir uma confirmação do
sr. Ogawa?
Solto um suspiro dramático.

— Sabe, meu pai odeia que eu me atrase para os eventos.


Além do mais, ele vai ficar chateado quando souber que vocês
não acreditam no que digo. — Arqueio uma das sobrancelhas.
Eles trocam um olhar cauteloso entre si.

— Tudo bem, senhorita Phoenix. Apenas mantenha


a conversa entre nós.
Sorrio, vitoriosa.

— Claro.

Então, eles abrem os portões e deixam com que eu passe.


A Limousine está estacionada a alguns metros de distância e tenho
que caminhar para alcançá-la. Assim que abro a porta, caio para
dentro, dando de cara com Liam.
Quase tomo um susto. Ele está sentado bem à minha frente,
as mãos ocupadas embaralhando cartas. O loiro veste um smoking
que evidencia seus músculos. Os olhos azuis dele começam a
análise pelo meu rosto, então descem para meu pescoço que exibe
o colar de ouro e as pernas desnudas que parecem mais longas que
o habitual.
O olhar dele é do tipo que deixa um rastro em você. Me sinto
pelada, marcada e exposta. Tenho vontade de me cobrir
subitamente, no entanto, apenas jogo um pouco de cabelo para
trás dos ombros e cruzo as pernas.
— Vai ficar em silêncio? — murmuro, tentando
não demonstrar desconforto, apenas tédio.
Liam volta a misturar o baralho de cartas, baixando o olhar.

— Não tenho muito a dizer. Apenas quero que você seja


o evento da noite.
Franzo o cenho.

— Você nem disse para onde estamos indo — falo,


quando percebo que não sei desse detalhe super importante.
— Vai saber quando estivermos lá.

— Que ótimo — resmungo, de mau humor.

Não sei porque Liam sempre tem que complicar as coisas.


Acho que nunca irei confiar nele, nem mesmo durante nosso
acordo. Me remexo incomodada com a possibilidade de ele me
passar a perna e digo:
— Que garantia eu tenho?

— Seja específica — fala, com o tom de voz monótono.

— Como vou saber se vai cumprir sua parte do trato?

Liam deixa as cartas de lado e alcança o minibar da


Limousine, enchendo um copo do que parece conhaque. Depois de
um gole, ele me olha brevemente.
— Tem que me dizer o que deseja e será seu. É simples.

— Eu quero que você financie um projeto pessoal —


digo, sem dar detalhes.
Não quero que ele saiba que desejo ter minha própria galeria
de arte, onde as pessoas poderão conhecer meu trabalho. Meu pai
jamais me daria o dinheiro para isso, e o acordo com o Liam é a
oportunidade perfeita para que eu saia dessa redoma de vidro.
Tudo que tenho, é o que ele me permite ter.
Não quero que ele e nem ninguém tenha esse tipo de
poder sobre mim.
— Então, quer dinheiro — Liam conclui, e, se acha
estranho, não diz nada.
— É. — Sinto o rosto arder. Dizendo dessa forma, parece
até esquisito.
O olhar dele é cheio de julgamento e ironia.

Uma garota rica como você…


Quase posso ler seus pensamentos.

Desvio o olhar para a janela, enquanto evito seu escrutínio


de curiosidade. Não demora muito para que cheguemos ao coração
de Tóquio, Shibuya. Clubes noturnos estão lotados, gerando mais
trânsito, e pessoas esperam do lado de fora para entrar. Achei que
seguiríamos em frente, mas a Limousine estacionou no meio da rua.
— Vamos descer — anuncia, sem espaço para contestações.

Desço do automóvel, com vontade de esganar Liam. Ele não


me espera. Anda à frente como se nem me conhecesse e tenho
que acelerar o passo para alcançá-lo até a calçada. Quase tropeço
com os saltos, mas consigo chegar perto o suficiente para puxá-lo
por uma das mangas do terno.
Ele olha sobre o ombro como se eu fosse patética.

— Achei que estivesse me acompanhando.

Puxo sua manga com mais força. Não me importo se


estou amarrotando o tecido.
— Se continuar agindo feito um babaca, vou embora e
deixá-lo aqui. Não me importa o trato. Pode enfiá-lo no…
— É o suficiente. — Me interrompe antes que eu consiga dizer
um palavrão. Uma de suas mãos deslizam por meu ombro, depois, o
dedo indicador e o médio pressionam a linha da coluna até
chegarem perigosamente no limite do vestido na base das costas.
Estremeço. Calafrios se alastram por todo meu corpo.

O que ele está fazendo?


Olho para Liam com os olhos confusos.

— Está bom agora? — Ele se aproxima até que as laterais


dos nossos corpos se toquem. Meu seio direito roça no peitoral dele
e meu coração começa a bater tão forte que chega a ser
constrangedor.
Não tenho tempo para responder, porque no próximo
momento estamos em frente à uma porta de metal e um
segurança. A fachada do lugar passa despercebida em meio as
outras, com tijolos gastos e o letreiro falhando.
Antes que eu possa fazer perguntas, Liam informa seu
nome ao homem e ele nos dá passagem.
— Onde estamos? — indago, enquanto o loiro ainda me
guia por um corredor estreito e escuro.
— Espere e vai descobrir.

Rolo os olhos. Mais uma de suas respostas enigmáticas.

Atravessamos uma cortina vermelha e fico boquiaberta. O


tilintar de fichas de jogos e conversas baixas paira no ar. À minha
esquerda, há mesas de blackjack, enquanto do lado oposto,
roletas giram em um ritmo hipnotizante. Há apenas homens de
terno aqui. Homens poderosos. Liam nos guia até um bar
adornado com espelhos, onde pede dois drinks.
— O que estamos fazendo aqui? — questiono, confusa.
— Isso não é ilegal?
— De certa forma. — Seus olhos azuis esquadrinham
meu rosto sobre a borda do copo. — Está com medo?
Meu coração bate forte, mas eu nego com a cabeça.

— Mentirosa. Dá para ver que é covarde. — Ele coloca o


copo no balcão e se aproxima até que eu tenha que erguer o rosto
para encará-lo por conta da nossa diferença de altura.
Seu cheiro me desconcerta, mas tento me prender em
outras sensações.
— O verdadeiro poder não vem de quem você pensa. Elas
são só uma parte de tudo. Seu pai é considerado poderoso.Talvez o
mais influente na mídia no Japão. Mas, aqui, há pessoas que não
precisam aparecer para fazer grandes coisas.
Engulo em seco. Aqui está. A parte sombria de Liam que
estive procurando para que pudesse, enfim, puni-lo. Fico tentada
a usar todas essas novas informações que tenho contra ele, mas
não sei mais onde estou me metendo.
— Você é podre. — As palavras escapam de minha boca
antes que eu possa contê-las.
— Rotule como quiser. — Dá de ombros, os olhos sérios
como sempre. — Agora se comporte e faça o que pedi. — Há uma
pausa enquanto Liam analisa o salão. — Está vendo aquele homem?
Ele se chama Ryo.
Sigo sua linha de olhar. Há um homem acendendo um
cigarro, afastado dos jogos.
— Sim — murmuro. — O que tem?
— Ele é minha maior ameaça no momento. Está
tentando sabotar meus fornecedores.
Arqueio as sobrancelhas. Achei que Liam fosse me
apresentar para seus parceiros de negócios em algum evento
requintado, não me trazer a um submundo com seus adversários.
— E em que lugar eu me encaixo nisso tudo?

— Quero que descubra se ele vai trapacear.

Quase engasgo com meu próprio ar. Olho para Diamond


para ver se ele fala sério e começo a hiperventilar quando percebo
a expressão determinada em seu rosto. Uma das sobrancelhas
loiras se arqueiam em minha direção.
— Não se desespere. Não terá que interagir diretamente
com ele. Quero que fale com o Sora.
— Quem é Sora?

— É o assistente de Ryo. Mal remunerado. Dois casamentos


fracassados e trai a nova esposa toda sexta-feira. — Fico em
silêncio, assimilando as informações mesmo que queira perguntá-lo
como sabe disso tudo. —Tenho certeza de que depois de dois
drinks, vai te dizer o que quero saber.
— Você quer que eu o seduza? — questiono, incrédula.

— Não. Até porque, você é minha agora. Mesmo que seja uma
farsa. — Ele me olha tão intensamente que estremeço. — Apenas
deixe ele achar que tem chances. Dentro dos limites, é claro
— acrescenta, com tom de voz baixo.

— O que devo extrair?

— Dê um jeito de descobrir se Ryo vai apostar sujo


hoje. Pretendo desafiá-lo.
Não penso muito quando Diamond sinaliza para o homem
sentado do outro lado do bar. Sora usa um chapéu antiquado,
que destoa do ambiente. O rapaz parece interessado na
garçonete de pernas longas que serve os drinks.
Me aproximo, perto o suficiente para que ele note minha
presença. Seus olhos me inspecionam quando me debruço no balcão
e peço um martini. Jogo o cabelo sobre o ombro e viro parcialmente
em sua direção. Escondo a careta quando ele me analisa de cima a
baixo e diz:
— É por minha conta.
13

— Ela não é mais a mesma há um tempo, sabe? Fica


reclamando de tudo. Coisas fúteis como, “Sora, abaixe a tampa
da privada depois que usar o banheiro…” — Nessa hora, ele faz
uma voz feminina para se referir à esposa. A imitação se torna
mais patética pelo fato de ele estar bêbado. Estou com pena da
mulher que teve a falta de sorte de se casar com esse cara.
Forço um sorriso fraco, mas quero sair correndo daqui.
Para bem longe de seus desabafos idiotas. Ele não percebe que é
um marido de merda e por isso está no terceiro casamento, que
provavelmente não vai durar muito tempo.
Meu martini já acabou faz alguns minutos e Sora está na
sua quarta cerveja. Espero que ele termine de entornar o último
gole para perguntar:
— E o emprego? Não interfere na relação de vocês? Tipo,
o seu chefe não é alguém exigente?
Ao citá-lo, Sora muda a postura, como se temesse estar
sendo observado por Ryo. Com o tom de voz baixo, ele começa
a despejar:
— Para falar a verdade, odeio o meu chefe. Recebo ordens o
tempo inteiro para buscar seu almoço, ou ficar sentado enquanto
ele joga blackjack e me certificar de que as cartas certas… — Sora
para de falar e limpa a garganta, olhando para baixo. — Preciso ir
ao banheiro.
Droga.
O homem se levanta rápido e some do meu campo de vista.

Olho ao redor em busca de Liam. Ele está sentado em uma


cabine privativa. Sofás de couro adornam o ambiente majestoso e
bebidas caras estão espalhadas pelas mesas. O olhar do loiro se
fixa em mim, mas, ao seu lado, há duas garotas de vestido preto.
Ele traga o charuto, depois solta a fumaça, que espirala no
ar, criando uma cortina de fumaça em seu rosto.
Me levanto e começo a andar em sua direção até que
esteja parada em frente à mesa. Olho para as mulheres e para
Liam. Ele sinaliza com os dedos e, num passe de mágica, elas
desaparecem. Não sei o motivo, mas estou com raiva.
— Então quer dizer que você se diverte enquanto me
manda extrair informações?
— Receio que esteja com ciúmes — fala, um brilho
de diversão e sadismo presente em seu olhar.
Solto um riso sem qualquer traço de humor e me curvo sobre
a mesa até que esteja próxima dele. Seus olhos não deixam os meus
nem por nenhum momento, enquanto começo a dizer:
— Me faça parecer a namorada boba e vou te transformar
no empresário mais famoso de Tóquio por ter chifres.
Algo lampeja em suas íris, mas não sei bem identificar o que
é Espero que ele retruque, contudo, o silêncio preenche o local. Liam
aponta para uma nova mesa sendo organizada no meio do salão. É
maior que as outras e está posicionada estrategicamente sob uma
iluminação precisa.
— O próximo jogo é o que vou entrar. — Desliza algumas
notas em minha direção enquanto sustenta o charuto entre os
dentes. — Pode apostar em mim, contra mim, ou tentar a sorte
em uma das máquinas de caça-níquel.
Arqueio as sobrancelhas, desconfiada.

— Vai me dar dinheiro do nada?

Liam me ignora. Já que o dinheiro está parado na mesa,


decido pegar as notas e as colocar dentro da bolsa. Diamond
termina o charuto, amassa a ponta no cinzeiro que parece ser
de prata e o apaga.
— O que Sora te disse?

— Nada muito interessante. Ele só desabafou sobre o


casamento falido e que Ryo só faz com que ele se certifique das
cartas certas. Depois disso, ele se retraiu e sumiu, como se
tivesse dito demais.
— É o suficiente — Liam diz, em forma de ultimato e
uma clara dispensa.
Ele se levanta do sofá e ajeita o terno antes de começar a
andar para longe. Sem saber o que fazer, o sigo. As pessoas já
estão aglomeradas em volta da mesa de blackjack. Liam senta em
uma das poltronas. Há quatro no total.
Ryo ocupa uma, uma mulher deslumbrante senta-se em outra
e um homem careca e com ombros largos fica com a que sobra.
Não sei o motivo das pessoas quererem tanto assistir ao jogo.
A mesa está iluminada com luzes suaves que destacam
as fichas coloridas empilhadas na frente de cada jogador.
Nunca joguei blackjack, mas meu pai costumava jogar com
alguns de seus sócios conforme eu crescia. Observei o suficiente
para saber que o dealer é o homem careca, que distribui cartas e o
restante das funcionalidades.
Foco meus olhos em Diamond. Ele já recebeu as cartas e
mantém o olhar inexpressivo em sua mão. Se é uma mão boa ou
não, as pessoas jamais saberiam. Se tem algo que ele sabe fazer
com maestria, é esconder todas suas emoções e empurrá-las
para um poço profundo, onde ninguém, nem mesmo eu com
minhas medidas desesperadas, consegue acessar.
Do ângulo em que estamos assistindo, não conseguimos
ver as cartas de nenhum deles. Olho ao redor, em busca de Sora,
mas não o identifico em meio a pequena multidão.
Volto-me para frente e observo quando as apostas começam
a se acumular no centro da mesa. O som metálico das fichas
tilintam no tampo de madeira, criando uma tensão no ar.
Lembro do que Liam havia dito no primeiro dia em que nos
conhecemos, além do fato de que Ryo está tentando sabotar
seus fornecedores.
As ameaças não permanecem no meu caminho por muito
tempo.
O que quer que ele tenha planejando nessa mesa de
blackjack não é à toa. Eu deveria imaginar que ele já tinha um
plano antes mesmo de virmos até aqui.
Ryo leva a primeira rodada, exibindo seus pares de cartas.

A nova rodada inicia. O dealer e a mulher revelam suas mãos.

Olho para Liam. Um dos cantos de sua boca se ergue para


cima, atraindo a atenção do restante dos jogadores. Não é bem
um sorriso. É sombrio, frio e impessoal.
Não sou a única a perceber, todos começam a observá-lo.

— Que tal tornarmos isso interessante? — Ele quebra o


silêncio tenso e se recosta contra a poltrona. — Aposto minha
empresa contra a de Ryo.
Uma explosão de murmúrios corta o ar e ninguém esconde
a surpresa. Um músculo tenso na mandíbula de Ryo se move e ele
estuda suas cartas.
— Admiro sua coragem. — Há uma pausa que me deixa
sem ar antes que ele tome sua decisão. — Minha empresa está na
aposta.
Começo a ficar nervosa. Quero questionar Liam que droga
ele pensa que está fazendo ao arriscar sua empresa em um cassino,
no entanto, opto por permanecer em silêncio.
Ryo vira suas cartas, confiante.

Todos suspiraram ao verem que ele tem um par de setes.

Liam completa com um Ás e um Rei.


Ao longo da rodada, a tensão no ar é palpável, exceto pela
calma e indiferença no rosto de Diamond. Ryo não pede mais
cartas e Liam é recompensado com um Valete.
Meu coração começa a bater mais rápido.

O dealer revela suas cartas, que somam quinze pontos.


Todos nós assistimos com expectativa enquanto as cartas finais são
reveladas.
Liam soma vinte pontos e Ryo recebeu uma carta
indesejada, que finalizou sua soma em apenas quinze.
O silêncio paira no ar, interrompido apenas pelo rompante
de raiva quando ele se levanta e dá um murro na mesa, fazendo as
fichas chacoalharem.
— Você sempre soube que venceria — acusa, com o dedo
apontado na direção de Liam, que mal esboça reação, apenas o
ignora como se fosse uma mosca chata zumbindo ao seu redor.
Diamond levanta, fita brevemente Ryo e diz:

— Praemonitus, praemunitus.

Aquele que é prevenido está preparado.


Latim. Lembro-me de ver essa frase em uma eletiva no ano
passado. Diamond olha para mim e sinaliza discretamente até a
saída, enquanto deixa o caos e o choque para trás no cassino,
sem sequer lançar um olhar sobre o ombro.

Na Limousine, Liam permanece em silêncio, olhando para a


paisagem na janela como se não tivesse acabado de tomar a empresa
de um de seus adversários. Ele solta um suspiro e vira o rosto em
minha direção com a expressão mais entediada do planeta.
— Pergunte.

— O quê? — balbucio, confusa.

— Já faz alguns minutos que você está mexendo na sua


pulseira de um jeito inquietante, e sua perna está balançando
num ritmo que me irrita. Se está com dúvidas, fale.
Eu paro de mexer a perna e largo a pulseira.

— O que ele quis dizer quando falou que você sabia que
ia vencer?
Isso me deixou inquieta desde que deixamos o cassino. Não
consigo ignorar a raiva de Ryo, nem a calma assustadora de Liam,
muito menos sua frase em latim. Sei que algo aconteceu. Algo que
possa ter passado despercebido pelos outros, mas não por mim.
— Perspicaz de sua parte deduzir isso, senhorita Phoenix. —
Faz uma pausa longa para acender seu habitual charuto. Aperto o
botão para baixar o vidro da janela quando a fumaça me atinge.
— Mas é simples, eu já sabia que ele trapaceava desde o início.
— Como?

— Há uma ante sala oculta no cassino posicionada bem em


cima da mesa onde ele manda seus capangas como Sora. Toda
vez que Ryo sabe que não pode levar a rodada, ele não se arrisca.
Tem gente por todo o lado fazendo sinais para ele. O ajudando.
Fico chocada com a quantidade de informações, mas o que
me impressiona é que Liam tenha descoberto tudo sozinho.
— E você simplesmente presumiu?

Ele traga e solta a fumaça pela boca, os olhos azuis


pálidos fixos em mim.
— Não. Eu me preparei. Observo pessoalmente os jogos de
Ryo há semanas. Não é difícil perceber o que acontece ao redor,
Phoenix. Basta ter um pouco mais de malícia. Aposto que você
nem notou que a mulher na mesa era parceira de Ryo.
Abro a boca e fecho, sem dizer uma palavra, porque, de
fato, não percebi. Meu foco era Liam.
— E o Sora?

— Eu sempre soube o que ele fazia.

Solto um som com a boca, indignada.

— E por que me mandou para lá? Não disse que queria


informações?
Liam semicerra os olhos em minha direção, como se eu
não passasse de uma tola ingênua.
— Queria testar sua capacidade de dedução. E, como
previ, você é tão útil quanto uma porta — diz, com desdém. Meu
sangue ferve de raiva.
— Então você estava me testando — concluo, não
gostando nenhum pouco disso. Cruzo os braços sobre o peito.
— Se você vai ser minha namorada, mesmo que de mentira,
é de se esperar que acompanhe algumas coisas. Agora, ouça bem,
Phoenix. Essas pessoas são astutas e poderosas. Uma vez que você
for vista ao meu lado publicamente, vai se tornar um alvo.
— O que você quer dizer com alvo?

— Exatamente o que quero dizer, um alvo.

— Do tipo que as pessoas tentam derrubar?


— Sim, e às vezes, mais do que isso. — Dá de ombros,
terminando o charuto no momento em que o carro para bem na
frente dos portões de minha casa.
Antes que eu possa fazer mais perguntas, ele abre a porta
do automóvel para que eu saia e se despede:
— Boa noite, Phoenix.
PARTE II
“Brilhe intensamente como um diamante.”

— Diamonds, Rihanna.
14

antes
Meu pai ainda não chegou em casa, mas a tensão no meu
corpo é o suficiente para que eu sinta dor nos ombros devido à
rigidez. Bastian e eu fazemos o possível para limpar a bagunça
antes que Hernan apareça. Até mesmo Brianna, que deveria estar
dormindo, recolhe alguns copos do chão.
— Podem subir e ir para a cama. — Bash quebra o silêncio e
eu o encaro. Ele está segurando uma vassoura, os olhos cansados e
uma expressão de culpa preenche sua feição. — Isso não é da conta
de vocês. Fui eu quem causei tudo isso. É minha responsabilidade.
— É, mas nossos pais devem chegar amanhã cedo e
sozinho você não vai conseguir terminar de limpar toda essa
bagunça — digo, realista.
Por mais que Bastian tenha feito besteira e meu rosto esteja
doendo pelo soco que recebi, ele continua sendo meu irmão. É
assim que as coisas funcionam quando se tem irmãos. Uma hora
vocês estão rolando no chão, trocando socos e pontapés, e na
outra, é como se nada tivesse acontecido.
Não quero manter um clima ruim entre a gente. A família já
lida com muitos problemas e nossos pais não agem como tal.
Hernan parece nosso chefe. Não nos leva a jogos de beisebol,
mas prefere nos ensinar como administrar negócios; e nossa mãe,
Donna, está ocupada demais retocando seus cabelos e unhas nos
salões durante a semana.
Desde que meu pai começou a sair com outras mulheres, ela
criou uma obsessão por sua aparência, o que é triste. Não acho que
tenha algo de errado com minha mãe, e sim com o Hernan. Ele
devia ser fiel à sua esposa, mas não é. Isso respinga em todos nós.
Principalmente em Brianna.

Olho para minha irmã mais nova. Ela está quase dormindo
em pé. Sirvo de amparo quando ela cambaleia, e seu corpo bate
contra meu peito. Seguro-a nos braços e aviso a Bastian que irei
levá-la para a cama.
Bree não dorme sem abajur e seu ursinho de pelúcia
predileto, então me certifico de que os dois itens estejam por perto.
Depois de cobri-la com o cobertor cor-de-rosa, saio sem fazer
muito barulho.
Bash está sentado no sofá, com os cotovelos apoiados nas
pernas, enquanto olha para baixo. A bagunça na sala sumiu, e
agora nos resta checar o restante da casa.
— Liam, escuta… — começa a dizer quando me sento ao seu
lado. — Eu devia ser o irmão mais velho. Devia proteger você e a
Bree. — Nesta hora, seus olhos se direcionam para mim. — Me
desculpa. Eu mereci o soco, não devia ter retribuído.
— Tudo bem, mas podemos falar sobre isso depois.
Temos que terminar logo.
Nós voltamos com a missão de deixar a casa em ordem.
Bastian e eu nos revezamos. Ele fica com os andares de baixo e
eu, os de cima. Não sei em que momento adormeço, mas acordo
com uma mão chacoalhando meu ombro.
— Liam, acorda, nossos pais chegaram.

A frase me desperta. Abro os olhos e sou cegado pela


claridade que invade as janelas, me fazendo piscar algumas
vezes. Percebo que adormeci em cima da privada da suíte dos
meus pais, provavelmente enquanto esfregava uma mancha
esquisita no porcelanato da pia.
Me levanto depressa e finalizo os detalhes. Bastian parece
tão desnorteado quanto eu. As concussões em seu rosto começam a
se intensificar, e não preciso olhar no espelho para saber que estou
do mesmo jeito.
Trocamos um olhar silencioso e seguimos para o andar
debaixo. Assim que alcançamos o final da escadaria, é possível ver
Hernan parado no meio da sala. Pelo olhar intimidador que
deposita em nós, sei que estamos encrencados. Engulo em seco e
espero, assim como Bastian.
— Onde estão os seguranças e o restante dos empregados?
— pergunta, pausadamente, com o olhar sério.
— Eu os dispensei — Bastian diz depois de um longo período
de silêncio.
— Você os dispensou.

Não é uma pergunta. Meu pai está digerindo as palavras.


Reafirmando.

— Por quê? — Ele se senta na poltrona. Sua calma é


assustadora. Olho ao redor em busca de minha mãe, mas ela não
está aqui.
— Eu convidei alguns amigos para cá — Bastian admite.
— Queria privacidade.
Hernan semicerra os olhos na direção do meu irmão.

— Convidou seus amigos para minha casa enquanto eu


não estava e dispensou os seguranças e a governanta, expondo
não apenas a sua segurança, mas a da nossa propriedade e seus
dois irmãos?
Bastian está tão tenso que posso ver os músculos de suas
costas contraídos.
— Sim. Foi um deslize estúpido.

— Não foi apenas um deslize. Foi uma falha, uma anomalia.


Você entende que suas ações têm consequências? — Hernan
indaga, furioso.
Bastian mal respira.

— Sim, senhor.

— Entende que as consequências afetarão não somente


a você, mas seus irmãos também?
Nessa hora, ele trava. Bastian cerra o punho discretamente
atrás das costas, e eu fico ainda mais tenso, se é que é possível.
— Não, não entendo. Não puna Liam e Brianna. Eu
irei assumir as responsabilidades.
— E você vai. Toda vez que errar, você vai estar errando com
seus irmãos. Está estendido? E a próxima vez que se envolverem
em uma briga, certifiquem-se de esconder os hematomas —
completa com desgosto.
Bastian não retruca mais, vez que tem ciência que é uma
batalha perdida. Nada que ele faça ou diga fará com que meu
pai reconsidere sobre a decisão.
Ele vai nos punir porque sabe que é o único jeito de
atingir Bastian.
Porque sabe que ele vai sofrer mais dessa forma.
15

— Você terminou com Ren? — é a primeira coisa que meu


pai me pergunta quando me junto a ele na mesa, para o café da
manhã.
Enfio um pedaço de pão na boca, só para ganhar tempo
de elaborar uma resposta. Não adianta muito, porque não
consigo pensar em nada. Limpo a garganta, escolhendo as
palavras com cuidado.
— É, nós terminamos, em consenso — minto.
Ren não tomou nenhuma iniciativa para nossa relação
chegar ao fim, mas não é como se tivesse se esforçado para salvá-
la. Suas atitudes contribuíram para o desfecho. Talvez se ele fosse
um pouco mais compreensivo…
— E isso não irá influenciar em nada na faculdade, certo?

Sempre desejei ter mais tempo com meu pai, no entanto, isso
mudou quando notei que a presença dele em casa é sinônimo de
tortura. Por isso, acabo preferindo que ele saia e se tranque em sua
empresa. Me sinto péssima por pensar nisso, mas não consigo lidar
com toda a pressão e expectativa que ele coloca sobre mim. Estou
sufocando há um bom tempo.
— Pai, para falar a verdade, eu não quero ir para Harvard
— despejo de uma vez.
— Já conversamos sobre isso, Phoenix. — Ele me ignora
e foca no jornal aberto sobre a mesa.
— Eu não vou para Harvard — repito. Não pretendo
voltar atrás da minha decisão, e já que comecei a trilhar esse
caminho perigoso, irei até o fim.
— Você não está pensando com clareza, querida.
Conversamos sobre isso durante todos os últimos três anos
do colégio. Já preparei tudo para sua ida no final do ano.
— Pai. — Sinto a frustração dominar cada célula do meu corpo.
— Isso era negociável, mas não é mais. Eu não sou mais uma
adolescente. Sou uma mulher agora. Não quero ser influenciada pelos
seus pensamentos, quero escolher meu próprio caminho.
— Por Deus, o que há de errado com você? Se está fazendo
isso para se rebelar por falta de atenção, não vai funcionar. Maldita
hora em que sua mãe te deixou. Sempre soube que isso te
afetaria, já que tenho outras ocupações mais importantes que lidar
com seu drama.
Fico em completo silêncio e choque, sentindo o peso de suas
palavras. Maldita hora em que sua mãe te deixou. Meu pai nunca cita
minha mãe, muito menos conversa sobre para onde ela foi. Agora ele
está aqui, dizendo com todas as letras que ela me deixou.
Dói.

Um nó aperta minha garganta e consigo sair do cômodo


antes que ele perceba o quanto me machucou. As lágrimas
começam a descer quando abro a porta do quarto. Me certifico de
trancá-la, por mais que duvide que meu pai venha atrás de mim.
Meu celular bipa em cima da cômoda, atraindo minha
atenção. Olho o visor enquanto leio as mensagens que acabo de
receber.
Número desconhecido: almoço hoje.

Número desconhecido: esteja pronta ao meio dia.

Largo o aparelho e solto um suspiro, enxugando as


lágrimas. O som do carro de meu pai ecoa, e olho pela janela,
avistando o automóvel deixar a propriedade. Como de costume, ele
evita qualquer situação que envolva sentimentos.

— Não estou de bom humor. É melhor não me provocar


— aviso para Liam assim que desço do automóvel de luxo que
ele enviou para me buscar.
Diamond está parado no meio da calçada, em frente a um
dos restaurantes mais caros de Tóquio. Dois seguranças o
rodeiam. Ele arqueia a sobrancelha esquerda sutilmente em minha
direção, sem dizer uma única palavra. Como sempre, veste um de
seus ternos elegantes e caros.
Em dias normais, eu prestaria atenção no ambiente e na
decoração, mas apenas me sento na cadeira que o loiro puxa para
mim, sem interesse nenhum no restaurante. Sei que o fruto de
seu cavalheirismo repentino vem de interesses próprios.
— Não vai me perguntar o que acho do restaurante ou
qual minha comida preferida?
O comentário ácido sai antes que eu possa contê-lo. Não sei
o que tem de errado comigo hoje, mas quero colocar toda raiva que
sinto para fora. Se pudesse, iria até o Hide & Art neste momento.
— Receio que esteja chateada com assuntos que não
me convém e nem são de meu interesse — rebate.
Franzo o cenho, enquanto analiso sua expressão fria.

— Você é sempre tão empático?

Liam solta um suspiro dramático, recostando-se contra


sua cadeira.
— Você não quer ser confortada, Phoenix. Quer apenas um
alvo fácil para descontar sua raiva. E é aí que está. Não sou um
alvo. Você não pode me atingir. Isso deve irritá-la ainda mais.
— Está errado — murmuro, mal-humorada, não dando
o braço a torcer.
Como ele consegue me ler tão bem quando sequer posso
imaginar o que se passa pela sua cabeça? Meus olhos se fixam em
Liam. Observo a forma como ele está sentado, a postura ereta,
com uma de suas mãos pousada sobre a mesa.
A mão dele é bonita. Grande, com unhas quadradas e
simétricas. O Rolex brilha no seu pulso. Volto a encará-lo, sem me
importar se estou sendo indiscreta. A presença dele é o tipo que
domina o ambiente todo. Cabelos loiros, os ombros largos,
peitoral imponente e olhos azuis penetrantes.
Não consigo decifrá-lo. Não consigo saber o que está
pensando no momento. Ele é como uma tela em branco.
— Gosta do que observa? — Diamond quebra o silêncio
com sarcasmo.
— Não enche.

— Posso liberar o piano para você.

A sugestão inesperada me deixa surpresa. Olho para o canto


do restaurante, onde um pianista talentoso trabalha. Tocar algum
instrumento ajuda quando estou com raiva, mas fico hesitante.
— O que ganho com isso?

— Nada. Só acho que te fará bem. Você é ruim em disfarçar


emoções, o que é um problema para mim. Quando tirarem fotos
nossas para a mídia, minha pretensão é que pareça apaixonada.
— Bem, isso é impossível, já que você me faz infeliz.

Vejo uma sombra de sorriso atravessar seu rosto, mas é


tão rápido que acho que estou alucinando.
— Posso dizer o mesmo. A diferença é que pelo menos
sei mascarar bem.
O ignoro.

— Arranje o piano. — É tudo o que digo.

Liam acena para um garçom e sussurra algumas palavras no


ouvido do rapaz. Num instante, o piano está livre. Ajusto a alça do
meu vestido preto, levanto-me e caminho até o instrumento. É um
dos pianos de cauda mais bonitos que já vi. Coloco meus dedos
sobre as teclas macias de marfim e começo a tocar.
Diamond tem razão. Toda a tensão que venho
carregando desde cedo começa a se dissipar do meu corpo. Me
sinto leve, flutuando nas nuvens, enquanto derramo as emoções
no instrumento.
Quando termino, uma salva de palmas ressoa ao meu redor.

Meu rosto esquenta, pois não notei quando as pessoas


pararam de comer para prestar atenção na minha música.
Quando me junto a Liam outra vez, há polvo nos pratos e uma
garrafa sofisticada de vinho tinto sobre a mesa.
— Espero que esteja melhor. — Ele beberica o vinho.

— Não precisa ficar bancando o namorado preocupado.

— Prefere que eu volte a ser indiferente? — questiona,


fazendo-me hesitar enquanto mastigo um pedaço de polvo.
Definitivamente, não sei qual é a de Liam. Ao mesmo tempo
em que espero desvendá-lo, não quero que ele force algo que não
existe. Como agora, ele finge se importar. Isso me incomoda, por
algum motivo, por mais que tudo não passe de uma farsa.
Permaneço em silêncio pelos próximos segundos enquanto
como, e Diamond também não diz nada. Quando a conta chega, ele
paga e se levanta, oferecendo-me seu braço.
Aceito, a contragosto.

— Melhore a expressão — murmura.

Seu rosto está mais relaxado, mas, ainda


assim, completamente sério.
— Melhore você a sua expressão. Se forçar mais, seu rosto
irá partir ao meio.
Entramos no elevador e a máscara de Diamond cai.
Sua feição enrijece como uma pedra.
— Eu vou te beijar — ele avisa, repentinamente, conforme
o elevador desce.
Engasgo com meu próprio ar. Acho que estou ouvindo
coisas. Olho para o loiro como se ele tivesse enlouquecido, mas
não. Ele permanece impassível.
— Vou te beijar assim que sairmos na rua, esteja preparada
— repete.

— Não! — contesto.

— Sim.

— Não — devolvo outra vez, entredentes, mas Liam


apenas me ignora. — Não quero beijar você.
— E quem disse que eu quero te beijar? — Arqueia as
sobrancelhas. — Acredite em mim, Phoenix, eu preferiria passar
os lábios em um cacto. Mas, aqui estamos nós, sendo namorados
de mentirinha.
— E eu preferiria comer um cacto a te beijar, babaca
— murmuro de volta, com raiva.
Meu coração dispara assim que as portas do elevador se
abrem. Liam e eu atravessamos o hall e saímos do edifício. Estou
praticamente sendo arrastada por ele, que enganchou o braço ao
redor do meu. Ao pisarmos na calçada, avisto um fotógrafo do
outro lado da rua e entendo a razão de Diamond querer me beijar.
Tento relaxar a tensão nos ombros, mas é difícil. Meu corpo
inteiro está rígido. Liam coloca a mão gelada na parte de trás do
meu pescoço, fazendo-me estremecer. Então, ele me beija. Não é
exatamente como eu tinha imaginado. É um beijo que dura
segundos, sem língua. Apenas sinto a maciez de sua boca.
Alguns momentos depois ele se afasta, como se tivesse
gravado seu toque em mim. Por alguma razão, minha boca arde
e meu coração está quase explodindo no peito.
— Ainda não terminamos — diz, sem dar sinais do que
achou do nosso breve beijo. — Vamos.
Com isso, ele começa a me arrastar pelas ruas. Não sei para
onde estamos indo e nem questiono, já que Liam gosta de manter
o mistério.Não demora muito e chegamos até a Torre de Tóquio,
uma atração turística que se ergue imponente no céu urbano.
Construída numa altura que poderia muito bem desafiar a
gravidade, a torre se destaca.
O tempo todo, casais vêm até aqui para visitarem a Ponte
do Amor, onde cadeados são pendurados juntos à promessas. Olho
confusa para o loiro, questionando-o:
— Por que estamos aqui?

— Você pergunta demais. É óbvio a razão de estarmos


aqui. Vamos fazer outra cena.
Ao nos aproximarmos da ponte, Liam tira um cadeado do
bolso com as iniciais L e P gravadas nele. Solto um suspiro
conforme ele começa seu teatro de namorado romântico. Com a
mão livre, ele tira um pouco de cabelo do meu rosto, prendendo a
mecha atrás da orelha.
— Finja que estou recitando a melhor declaração de amor
de todos os tempos — fala, e posso identificar a ironia no seu tom
de voz.
— Não sou atriz.

— Dê um jeito, Phoenix.

Solto um suspiro e me inclino em sua direção, como se


estivesse apaixonada. Sei que provavelmente há alguém
registrando esse momento com uma câmera, então seguro a mão
de Liam. Ele parece tão surpreso com o contato quanto eu. Apenas
ajo no automático. Juntos, nós penduramos o cadeado em um
espaço livre das grades da ponte.
Quando acaba, os dedos de Diamond continuam roçando os
meus e nossos olhares se encontram.
É exatamente como naquelas cenas clichês. O tempo parece
passar devagar, as pessoas parecem sumir, e tudo o que posso ver é
seu rosto enquanto meu corpo recebe uma descarga elétrica.
O momento passa, no entanto, quando Diamond recua.
Sem dizer uma palavra, começamos a ir embora, para longe da
ponte e da nossa promessa falsa de amor, em forma de cadeado.
Liam abre a porta da Limousine que acabou de estacionar no
meio-fio, e eu entro. Sem dizer uma única palavra ou expressar
qualquer tipo de reação, sou levada para casa. Queria saber o que
ele achou de tudo isso. Desde o restaurante até agora, mas, como
sempre, ele não me dá qualquer indício de que sente, ao menos,
um arrepio quando estou por perto.
— Até mais, Phoenix — fala, quando estacionamos em frente
à propriedade Ogawa.

Em silêncio, desço.

Enquanto observo o automóvel se distanciar, passo os


dedos sobre os lábios, intrigada.
Por mais que esse namoro falso seja uma ideia
completamente insana, estaria mentindo se dissesse que o beijo
curto de Liam me deixou meio abalada e que seu cheiro não é
inebriante. Ignoro o alerta que dispara no fundo da minha mente
e, finalmente, entro.
16

— Foi horrível. Frio, impessoal e… — Não encontro mais


palavras e, também, Emi não presta atenção enquanto analisa a
foto em um site de notícias no notebook.
Estamos na nossa cafeteria preferida. Depois do beijo público
em Liam, a foto começou a circular por aí esta manhã. Já recebi
três ligações de Ren, que fiz questão de ignorar. Me sinto meio mal
por isso. Porém, não é como se estivéssemos juntos. Não estamos.
Não devo nada a ele, então… por que me sinto como se tivesse o
apunhalado?
— Não parece tão ruim na foto — murmura e vira a tela
do notebook em minha direção.
Faço uma careta, porque ela está certa. Olhando assim,
ninguém acreditaria na mentira que acabei de contar para minha
melhor amiga. Na fotografia, o aperto ao redor da minha cintura
parece firme e romântico, assim como a forma que Liam se inclina
sobre mim, os olhos fechados e nossas bocas seladas. Não quero
admitir que foi bom, porque foi só um encostar de lábios patético.
Começo a ler a matéria.
O grande empresário Liam Diamond teve o coração atingido
por uma flecha chamada Phoenix Ogawa. Tudo o que sabemos até
o momento é que eles foram vistos juntos almoçando no Empório,
um dos restaurantes mais caros de Tóquio. As fãs de Liam não
parecem contentes. Após isso, passaram o restante da tarde
romântica na Ponte do Amor! Parece que as coisas estão sérias…
Paro de ler e fecho a tampa do notebook, arrancando um
som de protesto da boca de Emi.
— Pra que todo esse mau humor?
— Por causa de uma farsa, provavelmente ganhei um
monte de inimigas entre treze e dezesseis anos. — Rolo os olhos,
enquanto seguro o copo de café quente contra a palma da mão. —
Não quero ser alvo de fã-clubes do Liam.
Quando termino de dizer, uma garota passa ao lado da
nossa mesa e deixa cair alguns guardanapos sujos sobre nós. Sob
seu braço, consigo identificar a revista dobrada com a matéria
referente a mim e Diamond. Fito Emi, apontando sobre o ombro
com o polegar.
— Está vendo? É com esse tipo de coisa que terei que lidar no
meu dia-a-dia!
Emi solta uma risada, sem se afetar, e começa a recolher os
guardanapos. Faço o mesmo. Logo a gerente se aproxima pedindo
desculpas e nos ajuda com a bagunça. Quando ela se retira,
minha amiga semicerra os olhos em minha direção.
— Não pode ser tão horrível. Você vai ser levada a jantares
caros, além do mais, vai conseguir abrir sua própria galeria. Acho
que é um preço pequeno a se pagar — minha amiga fala.
Mordo o lábio inferior, ficando em silêncio, porque sei que
ela tem razão. Muitas pessoas se matam todos os dias para
conseguirem alcançar seus sonhos. Minha galeria vai vir numa
bandeja de prata. Tudo que preciso fazer é fingir ser a namorada
de um cara podre de rico. Ok, Liam e eu não nos damos bem, e eu
o empurraria de uma cobertura de vinte andares se pudesse, mas e
daí? É tudo em nome da arte.
Não pode ser tão horrível assim, né?
— Você tem razão. Acho que estou focando apenas no
lado ruim da coisa.
De repente, sou interrompida por uma notificação que
vibra no visor. O nome do meu pai estampa a tela do aparelho.
Pai: precisamos conversar.
— Parece que as notícias correm por Tóquio — Emi
cantarola. Dou outro gole no café, começando a sentir um leve
arrependimento.
Outra notificação chega.
Pai: venha para casa imediatamente.
Solto uma bufada de ar, afundando no assento. Emi me
olha de um jeito que demonstra solidariedade pela minha situação.
— Depois me liga, tá bom? Acho melhor você ir.
Ela está certa. Me despeço e peço um táxi para casa. Estou
levando alguns mochis para comer mais tarde. Assim que atravesso
a porta da frente, meus tênis guincham no carpete, porque eu
estava esperando tudo, menos o que vejo. Meu pai está sentado na
poltrona e Ren ocupa um dos lados do sofá, enquanto Liam senta-se
oposto. Meus olhos disparam entre as três figuras, sem saber qual
dos olhares devo sustentar.
O do meu pai diz reprovação, o de Ren mágoa e traição. E,
por fim, há Liam sendo apenas Liam, com o seu habitual ar de tédio
e seriedade.
— Phoenix, sente-se. — Meu pai aponta para o sofá.
O único espaço disponível é entre Liam e Ren, e acho que
eu preferiria pular de bungee jump antes de me submeter a uma
situação constrangedora dessas.
— O que significa tudo isso? — Cruzo os braços em frente
ao peito e permaneço em pé.
— Eu liguei para seu pai — Ren despeja, surpreendendo-me.
O fito descrente. Nossos olhares se travam e vejo um
lampejo de raiva brilhar em suas íris, em meio a todo o mar de
tristeza. A tensão na sala é palpável. Meu pai limpa a garganta,
atraindo a atenção para si.
— Ren me ligou e resolvi conversar pessoalmente com você
e Liam. Ele achou coerente participar da reunião.
— Reunião sobre o quê?
— O seu novo relacionamento — esclarece. Engulo o
gemido de frustração que quer escapar da garganta.
— Eu não tenho mais treze anos, pai! E você…. — Lanço
um olhar fulminante para Ren. — Não devia se meter mais na
minha vida. Nós não somos um casal.
— Você acabou de conhecer esse cara, Phoe! Como pode
namorá-lo tão rápido, logo depois de terminarmos? Senhor
Ogawa, acredito que Phoenix esteja sendo manipulada por este…
Liam o interrompe com um bocejo alto.
— Que estupidez sem tamanho — fala, com calma. Tudo nele
parece ser meticulosamente calculado, como agora. — Não estou
manipulando Phoenix. Tem coisas que estão destinadas a ser. —
Nessa hora, ele olha para mim. Identifico a ironia e a diversão
sádica em seu olhar. — Como lua e sol, yin e yang….
— Que besteira! — Ren explode, caindo na isca de Liam. —
Você nem conhece a Phoenix! Não sabe nada sobre ela, nem do
que ela gosta.
— A cor favorita dela é vermelho, ela tem três pintas abaixo da
orelha esquerda, uma marca de nascença em formato de meia-lua no
ombro. Quando está com raiva, seu pescoço cora. Ela não sai sem o
colar com pingente de trevo, nem se sente muito confortável perto de
gente babaca como você. Como neste momento.
Ren direciona seus orbes em minha direção. Estou tão
tensa que me forço a relaxar os ombros. Ele solta um suspiro
brusco e permanece calado, mas todo seu rosto está vermelho.
— Confesso que fiquei surpreso com a notícia inesperada
— meu pai volta a dizer. — Mas Liam se mostrou alguém
responsável com a empresa e nossa parceria. Acredito que a
relação de vocês será próspera.
Não sei por que fico espantada com essas palavras. É claro
que meu pai amaria alguém como Liam inserido em nossa família. E
pela expressão presunçosa de Diamond, ele também sabia que
teria a bênção de Jim Ogawa desde o início.
Ren parece à beira de um colapso. Dá para ver o quanto ele
se sente traído no momento. Pedindo licença, ele deixa nossa casa
e bate a porta com força, o que faz com que meu pai solte um
suspiro.
— Ele ainda é um garoto. Irá amadurecer. — Há uma pausa.
— Aceita uma bebida, Liam?
— É claro.
Olho para o loiro. Ele está todo relaxado no sofá, como se a
casa o pertencesse. É a postura de alguém que sempre foi atendido a
vida toda e que consegue tudo o que quer. Semicerro os olhos em
sua direção e então ruborizo, lembrando-me de todos os detalhes
que ele descreveu para Ren. Coisas que achei que ele não desse a
mínima, imperceptíveis até mesmo para quem me conhece há algum
tempo. No entanto, é de se esperar, já que é do tipo observador.
Sinto pena de Ren enquanto vejo Liam e meu pai se
moverem para o escritório, onde ficam os uísques especiais. Ele
sempre teve a aprovação de Jim Ogawa. Considerado o pretendente
ideal, de uma família poderosa. Por mais que os pais de Ren tenham
certa influência, estão longe de chegarem aos pés de Diamond. Ele
tem um império que se estende além do Japão. Aqui há apenas uma
pequena extensão do que ele possui, construído e ramificado em
pouco tempo.
Penso em ligar para ele, no entanto, paro assim que olho
pela janela e o vejo no meio do pátio, com as mãos na cintura e o
olhar baixo.
Saio para a varanda. Ren permanece de costas para mim,
mas se vira ao ouvir o clique da porta se fechando. Ele passa o
dorso da mão pelo rosto, e meu coração aperta quando percebo
que ele estava chorando. Finjo não notar e me aproximo até que
esteja ao seu lado, ambos contemplando a fonte no meio do pátio
assim como ele.
— Não consigo entender, Phoenix. — Sua voz é baixa e triste.
Me recuso a olhar para ele, porque me sinto envergonhada.
— Ren, eu te amo. Mas não funcionamos há um tempo.
Depois que saímos do colégio, percebi que meus desejos eram
reflexos do que você e o papai queriam para mim. Que eu era a
Phoenix que vocês esperavam que eu fosse. — Suspiro. — Eu
nunca quis ir para Harvard, apenas me convenci disso porque não
queria decepcionar vocês dois.
Ele permanece em silêncio e eu continuo:
— Sei que, diferente de mim, você realmente sempre
sonhou com essa faculdade. Eu não. Eu sou artista, Ren. Eu quero
ser eu mesma. Quero escolher meu próprio caminho.
— Entendo melhor agora — ele diz. Finalmente o encaro.
— Você merece estar com alguém que apoie os seus sonhos. Eu
não percebi o quão babaca estava sendo, ou o quanto você
estava sofrendo ao fingir ser alguém que não é.
— Eu desejo boa sorte para você em Harvard. — Um
sorriso triste pinta meus lábios, e um nó sufoca a garganta.
Por muitos anos, Ren foi meu melhor amigo, meu
confidente e porto-seguro em dias ruins. Agora, iremos seguir
caminhos diferentes. Só nos resta aceitar.
— E eu desejo boa sorte para você com as pinturas. Você
sempre foi incrível, um talento excepcional. Floresça, Phoenix.
Faça com que o mundo todo conheça sua arte.
Eu sorrio de verdade. Vejo, enfim, o Ren por quem
estive apaixonada durante anos.
— Você também. Massacre os babacas em Harvard. Não
deixe que tirem notas mais altas que a sua. Se forme com honras.
Ren ri, o rosto iluminando.
— Vou fazer isso. — Há uma pausa. — Me desculpe mesmo,
Phoe. Por tudo. Espero que Liam te faça feliz. Agora, preciso ir.
Ren me dá uma abraço cheio de nostalgia. Sussurro um
“tchau” enquanto o observo se afastar, parada no meio do pátio.
Meu passado sai pelo portão, e o que me resta é apenas a
esperança de um futuro. Olho sobre o ombro, surpreendida ao
ver Diamond parado na varanda, segurando um copo de uísque.
O vento bagunça seus cabelos loiros, e os olhos dele brilham
em minha direção. Não é o tipo de brilho radiante, e sim sombrio. A
promessa de que irá realizar todos meus desejos, mas por um
preço muito, muito alto.
No entanto, estou disposta a ir até o final para
alcançar minha liberdade.
17

antes
A casa está envolta em silêncio enquanto completo a terceira
série de cem flexões. Meus antebraços tremem com todo o esforço
que faço para subir. A exaustão se instala, e minha mente falha
primeiro que o corpo. Caio no chão, cerrando os dentes ao ouvir os
passos do meu pai ao meu redor. Ele analisa minha desgraça como
se eu fosse um animal de circo. Um tipo de espetáculo sádico.
Seu suspiro de desaprovação ressoa e encaro seus
sapatos diante de mim. É tudo o que consigo enxergar do meu
campo de visão, deitado sobre o carpete gelado.
— Recomece — ordena, o tom de voz frio e indiferente.
Se ver que estou no meu limite não o comove, duvido muito que
minhas palavras irão.
— Não consigo — digo, entre dentes, sem fôlego. — Não é
o suficiente? Já não está bom?
Fazer quinhentas flexões seguidas é loucura. Não dá para
chegar a esse marco, no entanto, meu pai não está interessado
nos limites do corpo humano, apenas busca uma vingança pessoal
contra seus próprios filhos. Não ouso encarar o rosto dele e
mantenho a cabeça baixa.
— Não está bom. Você não fez as quinhentas flexões
no tempo sugerido, portanto, é medíocre.
Travo a mandíbula instantaneamente. Mediocridade é a
kriptonita dos Diamond. Não existe e nunca existiu espaço para
ser mediano nesta família. Ou você é acima da média, ou é
forçado a ser.
— Você tem três minutos para se levantar e completar as
flexões — avisa, seus sapatos se distanciando. Observo meu
reflexo no espelho à minha frente. Meu cabelo está bagunçado, o
suor cobre a testa e camisa, além do rosto ruborizado. Estou no
meu limite, contudo, me forço a abrir as palmas contra o chão e
tentar, em vão, me erguer.
Minha visão fica turva e volto a cair, ofegante. Arrisco olhar
para meu pai. Ele sinaliza para que o siga, abrindo a porta. Me ergo,
ainda exausto, e obedeço ao comando. Vamos para sala, onde
Bastian está sentado no sofá, visivelmente tenso. Olho com
confusão para ele, pois pensei que estivesse sendo punido assim
como eu. No entanto, ele não está coberto de suor e não parece
estar em nenhum tipo de teste de Hernan.
— Vire a poltrona para a janela e abra as cortinas — meu
pai ordena a Bastian, que me lança um olhar breve e significativo
antes de fazer o que ele pede. — Agora sente-se e aprecie o show.
Uma chuva torrencial despenca lá fora e as temperaturas
estão baixas. Não faço ideia do motivo para que Hernan tenha
pedido a Bastian que fique observando a tempestade, no entanto,
quando ele abre a porta e me fita, eu compreendo.
— Cem voltas completas ao redor do pátio, sob a chuva,
sem pausa. E você não tem permissão para voltar para dentro de
casa antes de finalizar o que mandei.
— Não — Bash intervém, levantando-se. — O senhor não
pode fazer isso. Não é mais uma lição. É desumano.
— Eu dei permissão para que você falasse? Me
interrompa outra vez e Brianna se juntará a Liam no pátio.
Isso cala Bastian. Ele se torna imponente, seus ombros
se curvam de um jeito patético.
Meu corpo inteiro treme. Mas não é cansaço; é raiva. Raiva
em sua forma mais pura e genuína, tanta raiva que eu não sei o
que fazer com ela. Então, saio para a varanda e encaro o temporal.
Foda-se. Começo a dar a primeira volta. A chuva me atinge com
força conforme eu corro. O pátio é extenso, não sei o tamanho
exato, contudo, é o suficiente para que dê para estacionar dezenas
de carros.
Olho para a janela. Bastian é forçado a assistir enquanto
Hernan me pune. Sua expressão é de pura agonia. Sei que ele
trocaria de lugar comigo se pudesse, mas nosso pai jamais
permitiria isso. Ele quer que meu irmão aprenda a lição. E é usando
Brianna e a mim que ele vai conseguir fazer isso.
Quando termino, quase não sinto os meus pés e pernas. Me
dirijo para o gazebo, próximo ao jardim da propriedade, onde o
caseiro guarda materiais de limpeza. Assim que saio da chuva, o
choque corre por meu corpo e deslizo contra a parede de madeira
até estar sentado no chão, tremendo de frio. Não sei quanto tempo
se passa, porém, me assusto quando a porta é aberta, e Bastian
aparece. Ele usa uma capa de chuva e uma bolsa está
transpassada no corpo dele.
— Desculpa por ter demorado, Hernan só dormiu agora. — A
expressão do meu irmão mais velho é sombria, acho que nunca o vi
assim. Ele aponta para a bolsa. — Tem roupas limpas e secas aí.
Vista-se e se prepare, porque iremos fugir.
As palavras de Bastian me deixam perplexo.
— Como assim fugir?
— De volta para a Alemanha, com a avó Ana. Eu liguei para
ela e avisei que estávamos indo visitá-la. Vou pegar Brianna. — Há
uma pausa, enquanto a chuva preenche o silêncio entre nós,
ressoando como tambor no gazebo. — Escuta, vamos ter que ser
rápidos. Vou buscar um dos carros e quero que você seja ágil.
Quando Hernan souber o que fizemos, vai mandar guardas atrás
de nós. Ele não vai facilitar.
Apenas aceno com a cabeça, sentindo meu estômago
gelar com a ansiedade. Isso não é uma ideia boa. É impulsivo e
sem planejamento, contudo, não podemos mais ficar sob as
garras de nosso pai. Fico com pena de deixar nossa mãe, mas
então lembro que ela preferiu visitar sua amiga em Hollywood do
que ficar com seus filhos.
Ela sempre foge quando a tensão estoura. Acho que só eu
percebo isso com clareza. Bastian diz que ela deve passar muito
tempo fora por causa do papai e que não a culpa. Minha irmã mais
nova tem esperança de que um dia será acolhida e que ela vai fazer
cachos em seus cabelos e colocá-la para dormir como qualquer
outra mãe normal.
Não sei como dizer a Bree que talvez isso nunca aconteça.
Que talvez nenhum de nós sejamos verdadeiramente amados
um dia.
Tiro as roupas molhadas, seguindo a instrução de Bastian,
e coloco as roupas que ele separou para mim. Termino de fechar
o zíper do agasalho impermeável e minha temperatura começa a
estabilizar, assim como os lábios rachados param de tremer. Meu
coração bate forte com a tensão toda que sinto. O corpo queima
e tenho que sufocar o gemido de dor quando me levanto.
Espero pelo sinal. Ouço pneus derrapando na pista molhada e
inspeciono através da janela do gazebo no momento em que Bastian
arranca um dos carros da garagem. Abro a porta e corro até
alcançar o carro, segurando a bolsa. Sento no banco do passageiro
e olho para trás. Brianna está sentada, com o cinto de segurança
afivelado. A garotinha agarra seu ursinho como se tudo dependesse
disso. Ela não entende o que está acontecendo e, no fundo, é
melhor assim.
— Para onde a gente tá indo sem o papai e a mamãe?
— pergunta, o lábio inferior tremendo.
— Vamos visitar a vovó Ana. — Tento demonstrar
tranquilidade enquanto Bastian dirige feito louco. Os seguranças
acenam para nós, na tentativa de bloquear nosso caminho
enquanto se comunicam através de rádios. Tudo vira uma bagunça,
mas conseguimos ultrapassar os portões.
— Ouve música, Bree — Bash diz, tenso. — Liam, pega o
iPod na bolsa.
Pego o iPod para Brianna e coloco na playlist que ela mesma
fez, conectando os fones em suas orelhas, o que é difícil porque
tenho que me virar e dar um jeito de alcançá-la no banco de trás.
Coloco o cinto e me volto para frente. Paramos em um semáforo.
— Estão nos seguindo? — Olho pelos retrovisores. Não
identifico nenhum dos carros de meu pai.
— Ainda não, mas deve ter um rastreador nesse carro —
meu irmão mais velho fala.
— Vamos estacionar e migrar para um táxi — sugiro e
Bastian concorda.
Nós estacionamos em uma rua qualquer e descemos,
entrando numa cafeteria. Bastian segura Bree no colo. Não me
sinto seguro aqui, mas duvido que irão nos encontrar agora que
abandonamos o carro. Bash compra alguns cookies para nossa irmã
e sanduíches para nós. Estou morrendo de fome e com sede, me
dou conta disso apenas neste momento. Entramos no táxi alguns
minutos depois, amontoados no banco de trás. A cabeça de Brianna
tomba contra meu peito e ela começa a adormecer.
Olho para Bastian e ele também observa nossa irmã.
— Isso não é vida — diz, o tom de voz baixo e cansado. — Me
desculpa por não ter feito nada enquanto ele te punia. Eu não podia
arriscar e pôr tudo a perder. Já estava planejando levar vocês dois
para longe daqui. A avó Ana mandou o jato particular para nós.
Isso faz com que eu relaxe. Começo a comer um
dos sanduíches.
— Você foi um bom irmão hoje — murmuro, a contragosto.
Bastian sorri, no entanto, não é nem de perto um dos seus
sorrisos brilhantes que atraem garotas e caras que querem ser
como ele no colégio. É triste.
— Eu tentei — é tudo o que diz e permanecemos em
silêncio até o aeroporto.
18

O Hide & Art não abre hoje, mas isso não me impede de
fazer uma visita. Kai está sentado em uma poltrona, bebendo um
vinho caro enquanto seus artistas se espalham pelo estúdio. Não
tem muita gente aqui, considerando o horário. É pouco mais de sete
horas da manhã, e Dylan é uma das pessoas presentes.
Não uso máscara quando não quero me apresentar, o
que talvez tenha sido um erro.
— Namorando um riquinho, Flora? — A voz ácida vem
de Zion, que se aproxima de um jeito tão silencioso que dou
um sobressalto. — Ou devo chamá-la de Phoenix?
Zion é um artista que gosta de alfinetadas. Ele usa um
terninho cor-de-rosa e um cachecol amarelo. Excêntrico é um
eufemismo para descrevê-lo. O garoto sempre se mete em
confusões no estúdio, tanto que no último mês recebeu um alerta
de Kai para que deixasse a nova artista da galeria em paz. Se você
não souber se defender de suas garras, é fácil se tornar um alvo.
— Não é um mistério. — Dou de ombros, agindo como se
não fosse grande coisa.
Mantenho minha verdadeira identidade em segredo, afinal,
aqui ninguém revela quem realmente é. Todos optam por
pseudônimos. Não é como se eu fosse a única com segredos.
Zion me olha no fundo dos olhos e eu mantenho o contato visual,
interrompendo o processo de construir o esboço da minha arte.
— Não se preocupe, não pretendo te dedurar. — Me lança
um sorriso condescendente.
Não sei se devo confiar nele. Provavelmente não. Kai e
diversos outros artistas discutem sobre desigualdade social e
meritocracia. Inclusive expressam isso através de suas artes, com
críticas nem um pouco veladas. Não imagino como eles reagiriam se
soubessem que sou filha de um dos maiores empresários do Japão,
vez que nossas realidades são bem diferentes. Todos aqui tentam
sobreviver da arte. A arte não é tudo o que eu tenho, mas é tudo o
que pretendo ter um dia.
— Deixa a menina em paz, Zion — Kai resmunga, ao
notar nossa interação.
— Não estou fazendo nada. Estava apenas elogiando o
esboço da Flora — mente, enquanto analisa minha tela. — Apesar
de que faltam alguns retoques…
— Se continuar espantando meus artistas com sua
intimidação, vou te proibir de vir até aqui. Já te avisei sobre isso. —
Kai parece sem paciência, apesar do tom de voz monótono.

Zion ergue os braços em sinal de rendição e se afasta.


Suas obras são agressivas, repleta de cobras, serpentes e
criaturas míticas. Além disso, o garoto se apresenta com uma
máscara de réptil que cobre todo o rosto. Desvio minhas íris para
meu esboço, não me afetando com seu comentário, mas o
levando em consideração. Preciso de retoques mesmo, pois essa é
a graça de um sketch.
Ergo o lápis, pronta para traçar novas formas, quando o
celular começa a vibrar no bolso da calça jeans. Solto um gemido
ao ler o nome de Liam no visor. Me afasto para um canto, buscando
privacidade para atendê-lo.
— Onde você está? — é a primeira coisa que pergunta
assim que aceito a ligação.
Faço uma careta, mesmo que ele não possa me ver.

— Que foi, virou meu pai?

— Não, seu pai jamais te bateria por sua insolência. Eu


ficaria contente em te dar algumas palmadas.
A frase dele me cala, e sinto todo o sangue do meu corpo se
direcionar para as bochechas e pescoço. Que babaca. Inspeciono o
ambiente, certificando-me de que ninguém presta atenção em mim
e falo:
— Bom, não é da sua conta. Estou resolvendo algumas
coisas pessoais.
— Responda à pergunta.

— Cuida da sua vida — retruco.

— Responda.
— Não.

Ele desliga na minha cara, o que me deixa com mais raiva


ainda. Volto para minha tela, mas não por muito tempo. Cerca
de quinze minutos depois, enquanto separo as tintas, uma
mulher vestida com saia lápis e blazer entra no estúdio. Kai se
levanta, aborrecido.
— Por Deus, vocês não leem a placa? Estamos
fechados. Volte quando abrirmos para a exposição.
— Desculpe, mas tenho assuntos a tratar com a… Flora.
— Ela hesita e lança um breve olhar em minha direção.
Nunca vi essa mulher antes. Ela empurra a armação dos óculos
sobre a ponte do nariz, e solto um suspiro. Isso já aconteceu uma
vez. Pessoas tentarem comprar meus quadros fora do estúdio, até
mesmo me seguirem pela rua para perguntar o valor.
— Meus quadros não estão à venda. — Me aproximo dela.
— Ainda. Mas podemos negociar no futuro.
— Senhorita, Liam solicita sua presença com urgência. Peço
para que me acompanhe. — A mulher esboça um sorriso sem
graça. Pisco com força, meu coração retumba na caixa torácica.
Aquele filho da puta…
Sem arriscar nem mais um segundo, pego meu material de
arte, despeço-me de Kai e saio ao encalço da mulher que sequer sei o
nome. Com elegância, ela caminha sobre os saltos altos, guiando-me
até a Limousine nada discreta estacionada do outro lado da rua.
— Entre, por favor, senhorita Phoenix. A propósito, me
chamo Kim. Sou assistente pessoal do senhor Diamond.
Entro no carro, a contragosto, pensando nas diversas formas
de fazer Liam sofrer. Quando chegamos em sua sede, solto uma
bufada de ar. Não sei por que ele precisa de mim aqui, mas desço,
seguindo Kim. Sinto pena dela por trabalhar para alguém tão… não
consigo nem mesmo encontrar a palavra correta para descrevê-lo.
Na recepção, há uma pequena comoção quando uma mulher
tenta subir. Alguns seguranças a rodeiam, na tentativa de barrar
sua entrada. Kim e eu desviamos e entramos no elevador. Ela
aperta o número correspondente ao escritório no painel, e ficamos
ali, em uma clima meio esquisito.
Assim que as portas se abrem, peço para que Kim espere e
nos dê privacidade. Ela não se opõe e diz que vai buscar um café.
Não bato antes de abrir a porta. Liam está sentado em sua
cadeira gigante, em toda sua glória e arrogância. Hoje, usa
apenas uma camiseta social branca. Nada de ternos e smoking.
Semicerro os olhos em sua direção.
— Como me achou?

Seus olhos azuis me olham com desdém.


— Rastreei seu telefone.

— Que ótimo! Invasão de privacidade. Talvez eu deva


entrar em contato com a polícia.
— E arruinar todo seu sonho de se tornar uma grande artista,
viver livre e unicamente em prol de seus dons de tinta na tela?
O jeito que ele diz, a forma como me olha. Ele sempre
soube. Desde o dia em que esteve lá, querendo comprar um dos
meus quadros. Meu corpo estremece com raiva.
— Não me provoque — aviso.

— Ou o quê?

— Talvez eu jogue café em você de novo. Quem sabe?


— Que madura, Phoe — desdenha. — Não me torne seu
inimigo outra vez. Te chamei aqui para tratarmos assuntos
importantes. Acredite em mim, você é a última pessoa que eu
gostaria de ver hoje.
— O sentimento é completamente mútuo! — Me sinto na
necessidade de dizer, porque suas palavras atingem mais fundo
do que eu gostaria.
Liam apenas me ignora, inatingível como sempre.

— Vamos viajar — anuncia.

— Como assim vamos? — Começo a rir com a ideia, porque


isso está completamente fora de cogitação. Não vou a lugar
nenhum com Liam, nenhum que se limite a Tóquio. — Isso é além
do nosso acordo.
— Não é. Vou para Boston a negócios. Vou ter um
evento importante lá e quero que me acompanhe.
Quando Diamond cita Boston, meu corpo inteiro congela.
Minha mãe foi para lá e nunca mais voltou. A ideia de reencontrá-la
me dá um frio na barriga, mesmo que eu não saiba onde ela mora,
ou o que aconteceu com ela. Não tenho um número de telefone, sua
localização ou qualquer coisa do tipo. Papai fez questão de apagá-la
de nossas vidas em uma tentativa desesperada de apagar as
memórias da mulher que amou e ainda ama. As vezes que tentei
encontrá-la em redes sociais também foram em vão. Naomi havia se
tornado um fantasma.
Alguns momentos se passam e Diamond arqueia as
sobrancelhas diante da minha falta de reação. Quando percebo
que possivelmente estou fazendo papel de boba, me endireito e
dou de ombros, fingindo não estar muito interessada.
— Desde que não leve muito tempo e você me
recompense por isso, acho que posso cogitar.
— É o que eu disse, Phoenix. Me ajude e tudo o que quiser
será seu.
Mordo meu lábio inferior, porque não sei se Liam tem o poder
de me dar tudo o que desejo, e isso inclui descobrir onde minha
mãe está. Não acho que devo pedir sua ajuda já que não quero que
ele saiba mais do que estou disposta a revelar. Sei que alguém
como Liam, com influência e contatos poderosos, conseguiria me dar
um endereço num piscar de olhos. Quando me dou conta, estou
mexendo no meu colar de trevo obsessivamente. Desvio o olhar
para longe, constrangida.
— É só isso? — Dou uma olhada na vista panorâmica.

— Sim, só isso. Devemos ir na próxima semana. Já


conversei com seu pai e ele concordou.
Isso me deixa surpresa, porque não esperava que papai
fosse ceder tão fácil. Só deixa mais explícito que, para Jim Ogawa,
seu império está acima da família. Ele trocaria qualquer coisa, até
mesmo sua única filha, para se dar bem nos negócios.
Me limito a acenar com a cabeça e deixo o escritório
sem dizer uma única palavra.
Na recepção, a mesma mulher de mais cedo permanece em
uma discussão calorosa com os seguranças, em uma tentativa
desesperada de chegar até o elevador. Paro por um instante,
inspecionando-a. O cabelo loiro em corte chanel, os olhos
cintilantes e grandes feito duas safiras extremamentes familiares.
Me sobressalto ao sentir um toque em meu braço. Dedos finos
estão envolta da minha pele.
— Você é a namorada do meu filho! Te vi em uma revista —
fala, com o tom de voz alegre. Eu pisco, a reconhecendo. Ela é a
mãe de Liam. Lembro-me de seu rosto quando pesquisei sobre os
Diamond no Google. Ela é linda. Parece uma boneca. —
Pode conversar por um instante?
Sem saber como reagir, concordo. Donna, seu nome, pelo
que me lembro, me puxa até que estejamos em um canto, com mais
privacidade.
— Preciso falar com Liam, será que pode me ajudar? — Ela
parece envergonhada em dizer isso, e eu resisto à vontade que
tenho de franzir o rosto tamanha confusão. — Ele proibiu minha
entrada. — Me dá um sorriso sem graça.
— Ah. — É tudo o que escapa da minha boca, porque
estou surpresa demais para dizer qualquer outra coisa. — Claro —
acrescento.
Estou chocada com a maneira como Liam trata sua família.
Minhas suspeitas se confirmam: ele não tem coração e é incapaz
de nutrir sentimentos bons por alguém. Rapidamente, tiro meu
celular do bolso da calça jeans e começo a digitar uma mensagem.
Phoenix: sua mãe está tentando falar com você, espero
que não aja feito um babaca e deixe ela subir.
Liam: acho que você devia cuidar da sua própria vida e
não, ela não pode subir.
Phoenix: então desça, seu idiota. Ou vou dar um jeito
de fazer ela chegar até aí.
Espero por uma resposta. No entanto, vários segundos se
passam e nenhuma notificação nova chega. Solto um suspiro,
olhando para cima. Donna me encara com expectativa, e me sinto
péssima por ser eu a ter que dar a notícia oficial de que seu
próprio filho não quer vê-la. Então, as portas do elevador se abrem
e ele começa a andar em nossa direção, com uma expressão tão
dura quanto um recorte de pedra.
— Falei para que não aparecesse aqui, nunca — Liam
diz, num tom de voz tão sério até mesmo para ele.
Estou tão ultrajada quanto Donna. Não sei qual é o problema
dele. Eu daria tudo para que minha mãe parecesse se importar
como ela, que fez questão de vir até o Japão para vê-lo. A mãe de
Liam engole em seco, sem reação.
— Podemos conversar em outro lugar? — questiona, o tom
de voz baixo, evitando atrair mais atenção desnecessária. Noto que
várias pessoas nos observam.
Diamond encurta a distância entre ele e Donna, então
começa a falar em alemão. Suas palavras são breves, consigo
entender apenas algumas, mas é o suficiente para que sua mãe
fuja com os olhos marejados. Ela sai como um furacão pelas portas
de vidro que se abrem automaticamente, e eu apenas o encaro,
horrorizada.
Abro a boca para perguntá-lo o que foi que ele disse, mas
Liam me interrompe:

— Fique fora dos meus assuntos familiares, Phoenix. Esse


é meu limite. — As palavras são curtas e grossas. Há um aviso
silencioso em suas íris. É como se ele dissesse: fique fora do
caminho ou farei da sua vida um inferno outra vez. Não é preciso
verbalizar a ameaça para que eu a entenda. Sustento seu olhar
gélido por alguns momentos antes de lhe dar as costas e sair em
direção a rua, ignorando os alertas vermelhos.
19

Não é muito difícil localizar Donna na rua. Me apresso para


tentar alcançá-la, mas ela entra em uma cafeteria e some do meu
campo de visão. Ao atravessar a porta, o sino tilinta, e avisto sua
cabeça loira destacada em meio às outras. Retomo o fôlego e
inspiro o aroma de café e frappuccino no ar. O lugar está gelado
devido ao ar-condicionado, então subo o zíper do suéter enquanto
caminho em direção à sua mesa, ao fundo do recinto.
Donna mal percebe minha aproximação, parece ocupada
demais olhando para uma mancha de suco no tampo de madeira.
É bem triste para falar a verdade.
— Oi. — Me sento no banco acolchoado em sua frente.

Ela desperta do transe, e me fita com surpresa.

— Oi. — Um sorriso contido cobre os lábios dela. Seus olhos


esquadrinham meu rosto com atenção. — Você é tão bonita
quanto nas fotos que vi.
Meu rosto esquenta involuntariamente.

— Obrigada. — Há uma pausa, porque não sei o que


dizer. Então preencho o silêncio com qualquer outra coisa. — O
seu japonês é ótimo.
— Eu queria ser diplomata antes de me casar — revela,
ajeitando uma mecha de cabelo atrás da orelha. — Durante
toda minha infância e adolescência, foquei em aprender o
máximo de outros idiomas que conseguisse. Aí fiquei grávida. —
Solta uma risadinha. — Os planos mudaram.
— Você desistiu, então. — O que era para ser
originalmente uma pergunta sai como afirmação. — Filhos devem
dar bastante trabalho.
— Ah… — Donna murcha de repente. É quase como se eu
tivesse acabado de tocar em um tópico muito sensível. — Eu não fui
exatamente uma mãe exemplar. Não sei se ele te contou.
— Na verdade, o Liam é meio fechado com assuntos que
envolvem o passado — é tudo o que posso dizer, porque, na
verdade, acho que Diamond nunca vai me contar nada,
considerando que nosso relacionamento é apenas uma fachada.
— Entendo. Certas coisas… acho que nunca mudam. Mas
eu não o julgo. Eu sei que mereço toda hostilidade.
Não sei o que Donna fez, então fico em silêncio, apreensiva.
Ela veio dos Estados Unidos para vê-lo, e pelo menos dá para notar
que tenta consertar o que quer que seja o estrago na relação
deles dois.
— Você vai ficar por muito tempo? — Mudo de assunto.

— Alguns dias. — Há uma pausa. — Você acha que um


dia Liam pode me perdoar?
Pelo pouco que conheço de Diamond, não acho que ele vá
perdoá-la. Liam se mostrou alguém impassível até agora. A única
vez que o vi sendo flexível foi com sua irmã mais nova, Brianna.
— Sim — minto.

A forma como a expressão dela passa de arrasada


para esperançosa faz eu me sentir completamente culpada.
— Liam e eu vamos viajar — atiro a informação,
desesperada para pararmos de falar sobre sua relação com ele. —
Para Boston. Semana que vem.
— Sério? Não sabia. Vou remarcar minhas passagens então.
Estou morando em Hartford. Talvez vocês possam me visitar um dia.
— Claro, é uma ótima ideia. — Sorrio, sustentando toda a
farsa que criei até o momento, toda a expectativa que eu plantei
em Donna. — Bom, eu preciso ir agora.
Faço menção de me levantar, mas Donna me interrompe e
pede meu número de telefone. Depois de anotá-lo, ela me dá um
abraço apertado e nos despedimos. Saio da cafeteria me sentindo
a pior pessoa do mundo. Talvez Liam esteja certo. Talvez eu
devesse me manter longe dos seus assuntos familiares.

— Já fez as malas? — Emi questiona assim que eu atendo


o celular, colocando-o no viva-voz.
Estou observando minha mala aberta na cama ao ouvir sua
indagação. Na verdade, não tenho certeza se tudo o que quero
levar vai caber nela. Preciso de bolsas, sapatos e uma variedade de
opções de roupas para usar em Boston. Já que irei aparecer na
mídia como namorada de um bilionário influente, é melhor que
esteja pronta para os cliques das câmeras.
— Neste momento. — Apoio o celular contra o ombro e
rosto enquanto começo a revirar meu closet.
— Tá ansiosa?

— Não. Estou apavorada, para falar a verdade.

— Por quê?

Ainda não contei para Emi sobre a ideia de procurar por


minha mãe. Nem sei se vou, por enquanto. Não quero que ela sinta
pena de mim. É o que vai acontecer se minha amiga souber que,
mesmo depois de todos esses anos sem qualquer tipo de contato,
eu ainda estou desesperada para saber qualquer coisa sobre Naomi.
— Ser namorada falsa do Liam em outro país parece ainda
mais sério. — Pego um blazer preto de um dos cabides e o enfio
na mala.
— É, mas pensa, você está meio que de férias. Vai viajar para
Boston e o melhor de tudo é que o dinheiro gasto não será o seu.
— Só que esse dinheiro gasto não deve fazer nem
cócegas quando se é Liam Diamond. Para ele, isso não vai
importar — garanto a ela, porque é a verdade.
— Tem razão, mas não esquece de mandar fotos! Ou me
contar se vocês dormirem em um hotel luxuoso com jacuzzi, luz de
velas e…
— Emi! — a interrompo, impedindo que ela complete a frase
e vá longe demais com sua imaginação. — Nada vai acontecer entre
a gente, tá legal? Isso eu te garanto. Eu prefiro beber água
sanitária a ter qualquer tipo de contato com Liam.
— Rá, duvido. Mas caso aconteça, eu quero ser a primeira a
saber de todos os detalhes. Quero saber como foi ou se doeu muito.
Na minha primeira vez, sangrei bastante e entrei em pânico…
Interrompo a voz de Emi e o jogo o celular na cama como se
fosse uma bomba. Sinto o constrangimento me abater. Como minha
melhor amiga, Emi sabe que sou virgem. Ren e eu já fizemos outras
coisas, mas nunca chegamos nos finalmentes… Nós tínhamos
idealizado que faríamos na faculdade quando nos mudássemos e ele
me desse o anel de sua avó, que estava com sua mãe, para
noivado. Só de pensar nisso meus ombros se curvam e uma onda de
melancolia me abate. Fizemos tantos planos juntos que agora não
passam de desilusões.
Meu celular vibra sobre a cama, afastando os pensamentos.
O seguro e leio as mensagens.
Emi: VOCÊ NÃO PODE ESCAPAR DESSE ASSUNTO
PARA SEMPRE!
Emi: sexo é normal, as pessoas transam o tempo todo.

Emi: você vai perder a virgindade um dia e vou comprar


um bolo para comemorarmos.
Contenho o gemido de frustração no fundo da garganta e
digito uma resposta.
Phoenix: cala a boca e pare de falar sobre a palavra com
S ou irei te bloquear.
Emi: a palavra com S é SEXO!!!!!
Bloqueio o celular e ignoro as mensagens de Emi enquanto
termino de arrumar as malas. Meu pai, como o habitual, não está
em casa. Hoje, no entanto, ele me mandou uma mensagem falando
sobre a viagem com Liam. Papai nunca me manda mensagens, a
não ser quando precisa me dar broncas. Agora, ele conversa
comigo apenas para falarmos sobre Diamond.
Acho que vou começar a ter pesadelos com diamantes.

Ouço uma batida na porta e murmuro um pode entrar.


Espero que a governanta ou uma das funcionárias apareça no meu
campo de visão, mas congelo quando a porta se abre e a figura
imponente de Liam é revelada. O terno de hoje é cinza claro. Ele
entra no quarto, sem ao menos pedir licença antes.
— O que você está fazendo aqui? — Cruzo os braços
em frente ao peito, surpresa.
Seus olhos me analisam de cima a baixo, e só então me dou
conta de que uso um pijama ridículo com estampa de ursos cor-
de-rosa. Seu cenho franze, e ele volta a atenção para meu rosto.
— Tive que adiantar a viagem. Vamos sair pela noite. —
De repente, sua inspeção passa para meu quarto. — É como eu
esperava.
— O quê? — questiono, confusa.

— Seu quarto. — Dá de ombros. — Esse ar… juvenil.

— O seu, por outro lado, deve ser semelhante a uma caverna.

Diamond senta na minha cama, ignorando a alfinetada. O


contraste entre ele e meu quarto é rídiculo. A parede lilás atrás de
si, a colcha florida e meus travesseiros de seda rosa… nada
encaixa nele. É quase como se ele destoasse o ambiente. O loiro
segura o meu urso de infância entre as mãos, arqueando
levemente as sobrancelhas.
— Aposto que ele tem nome — fala, cheio de ironia.

— Não tem — minto, na defensiva. — O sr. Polar não


gosta que estranhos o segurem.
Fico em silêncio. Percebo que sem querer confirmei a
teoria de Liam. Ele começa a respirar profundamente e um “v” se
forma entre as sobrancelhas.
— É tão rídiculo que seu quarto inteiro cheire a flores.

— Será que dá para parar de criticar tudo?

Noto um leve repuxar de lábios tomar conta da sua boca,


como uma espécie de sorriso.
Não sei qual é a de Liam hoje. Parece menos agressivo que
o habitual. Seu rosto é sério, mas não o tipo de seriedade fria que
sempre o acompanha. É como se ele estivesse de bom humor.
— Por que está aqui? — pergunto outra vez, desconfiada.

— Já disse. Vim avisá-la sobre a viagem.

— Então já pode ir embora.

— Não te ensinaram boas maneiras, pelo visto. É falta de


educação mandar alguém sair da sua casa. Ainda mais se esse
alguém for seu namorado. — Ele me olha com ironia, levantando-
se. Liam começa a se aproximar e eu me ultrajo, enquanto dou um
passo para trás.
Ficamos nessa dinâmica ridícula de você-avança-e-eu-recuo
até que minhas costas batam na superfície da parede. Ergo o rosto
para encará-lo de volta. Tudo o que encontro é o gelo ártico. Sinto
o arrepio estremecer minha coluna.
É como se uma chave tivesse virado em sua mente. Como se
o Liam descontraído sumisse e restasse apenas o babaca frio de
sempre. Um de seus dedos enrola uma mecha do meu cabelo. Com
a outra mão, ele resvala o polegar em meu queixo. Minha pele
parece queimar sob seu toque. Meu corpo entra em combustão,
sentindo o calor de sua proximidade, o gelo dos olhos azuis que
contrastam com o fogo que parece correr em minhas veias. Meu
coração bombeia sangue três vezes mais rápido e, por um
segundo, me questiono se ele não é capaz de escutar todas as
batidas descoordenadas.
— Eu disse: fique longe dos meus assuntos de família —
murmura contra meus lábios, seu hálito quente bate em meu rosto.
— Algo me diz que iremos nos divertir nessa viagem. — O brilho de
diversão sádica volta a tomar conta de seu olhar.
A promessa silenciosa paira no ar.
Ele vai retaliar.
Outro arrepio me estremece, pois sei que Liam não deixará
barato. Ele me deu uma ordem, eu a desobedeci. Invadi uma
parte de sua vida pessoal, enquanto mantenho meus próprios
segredos guardados a sete chaves, afastando-o do meu drama
com meus pais. A barreira que ultrapassei o deixou com raiva.
Como ele descobriu? Eu não sei.
— Não pode tratar as pessoas como se fossem uma peça
fútil do seu jogo. Sua mãe queria falar com você.
— Ela teve a vida toda para isso, e se você for inteligente,
não se meteria na nossa relação. É meu último aviso, passarinho.
Franzo o cenho para o apelido, mas permaneço em silêncio.
Meu nome significa fênix, um pássaro mítico que se transforma
em cinzas por auto-combustão e renasce. Quantas vezes Liam irá
me incendiar e quantas vezes terei que me refazer?
E se sou o passarinho, estou sob as garras de uma ave
de rapina. Sob o domínio dele.
Fico em silêncio, sustentando seu olhar frio. Diamond, enfim,
recua. O calor se vai. Ele me olha uma última vez sem dizer uma
única palavra antes de se virar e deixar meu quarto.
20

antes
O aroma da torta de amora flutua no ar enquanto minha
avó, Ana, me serve uma xícara de chá com especiarias. Depois de
correr sob a chuva, meu corpo adoeceu. Estou resfriado, cada parte
dos meus músculos doem, especialmente as pernas.
É um enorme esforço me manter sentado na cadeira da
cozinha. Bastian está à minha frente, limpando o balcão que usou
para fazer a torta. Meu irmão gosta bastante de cozinhar,
principalmente quando se trata de doces. É um talento, porém ele o
esconde. Como poderia um Diamond se tornar um mero confeiteiro?
Hernan jamais admitiria isso.
— Está se sentindo melhor? — nossa avó indaga.
— Sim. — Seguro a caneca com chá fumegante entre
as mãos. — Obrigado.
Olho para ela. Minha avó parece apreensiva. Além das rugas
em sua expressão por conta da idade, identifico as novas marcas,
as que indicam preocupação. Minha mãe e avó não mantêm mais
contato. Na verdade, é bem difícil que eles nos deixem visitá-la.
Sobretudo, nosso pai, Hernan. Há uma rixa antiga entre os
Diamond, lado paterno, e os Lawrence, maternos. O casamento de
nossos pais devia significar uma bandeira branca, só que as coisas
pioraram desde então.
Minha avó sempre diz que Hernan corrompeu minha mãe.
Não sei como Donna era antes dele, porque eu não existia. Mas
acredito no que vó Ana diz, porque tudo que está sob o domínio de
Hernan vira pó. Agora que estamos na Alemanha, me sinto seguro.
No entanto, sei que é questão de tempo para que nosso pai venha
atrás de nós.
— A gente não pode morar aqui? — A voz infantil de
Brianna paira no ar, atraindo minha atenção para si.
Ela acaba de cruzar o arco da cozinha, calçando pantufas
cor-de-rosa e segurando um prato cheio de cookies feitos por
Bastian. Há farelos do biscoito grudados em seus lábios e
bochechas. Ela está uma bagunça, mas parece feliz. Acho que todos
nós, se pudéssemos, mudaríamos para cá.
Nossa avó suspira com pesar, no entanto, mascara
a imponência com um sorriso.
— Não é tão simples, querida. — Ana coloca uma das
mãos sobre meu ombro.
Sei que ela percebe a mesma dúvida no meu rosto. E se ela
tentasse conversar com nosso pai? Não daria certo? Talvez eu
esteja apenas sendo ingênuo, assim como minha irmãzinha.
— Por quê? Aqui é tão legal! E não temos que falar inglês.
Brianna tem mais dificuldade para se adaptar a outros
idiomas que Bastian e eu. Ela ainda erra bastante frases e palavras.
Por isso, nossos pais contrataram dois professores particulares para
ensiná-la durante o tempo vago. Bree sempre reclama que está
cansada, mas eles nunca a ouvem e empurram uma série de
tarefas para ela.
— Não é fácil, Bree. Hernan e Donna são nossos guardiões
legais. Não dá para simplesmente virmos morar com a avó Ana
sem a autorização deles — Bastian diz, mal-humorado.
O silêncio recai sobre a cozinha e nossa avó chama Bree
para enfeitar o cabelo com fitas. Elas saem do cômodo, deixando
eu e meu irmão à sós.
— Não precisava ser duro com ela. — Olho para meu
chá. Meu reflexo aparece distorcido e distante na água.
— Eu não fui duro, fui realista. Estou cansado de vocês dois
se machucarem por minha causa. Não quero alimentar mais
desilusões em Brianna. É como dizer a ela que um dia a mamãe
vai levá-la para um parque ou fazer programas de garotas. Talvez
isso nunca aconteça. É a verdade.
Minha mandíbula tensiona com tanta força que chega a
doer. Não gosto quando Bastian tenta bancar o irmão mais velho
responsável, porque a culpa de estarmos aqui, indiretamente, é
dele.
As atitudes de nosso pai são injustificáveis, contudo, Bastian
deveria perceber que Hernan é sádico e que castigos
convencionais, como duas semanas sem tevê ou sem sair de casa,
não seriam métodos de correção dele.
A verdade é que somos peças de um quebra-cabeça que
não se encaixa.
Todos nós queremos o que não podemos ter.
— Você devia pensar mais em nós antes de agir — falo,
porque estou cansado de Bastian pensar apenas em si mesmo e na
sua diversão. — Tem que considerar que tudo o que você faz
não afeta somente a você.
Olho sobre o ombro quando ouço um estrondo. Bastian
acaba de jogar a forma com a torta de amora no balcão de
mármore. Ela derrapa e quase tomba, mas permanece firme. Ele
não ousa me encarar neste momento. Apenas continua virado de
costas, a cabeça pendendo entre os ombros. É como se ele
estivesse derrotado. Sua coluna está curvada feito um arco.
— Eu sei, tá legal? Só que antes nosso pai não pegava tão
pesado. Eram só castigos simples. Agora, é diferente. Ele está
testando nossos limites, indo longe. Não sei se é para me
pressionar, para que eu me interesse pelos negócios da família e
aceite o destino que ele tem para mim. Então, não posso mais
recuar. Vou fazer o que ele pede e, em troca, vou pedir para que
deixe você e Brianna em paz.
Permaneço em silêncio, porque não posso impedi-lo. Estou
fadado a viver às sombras de Bastian. Nunca serei o líder da nossa
família, nem o sucessor. Ele é o primogênito. É dele que nossos
pais esperam um destino brilhante.

— Liam — a avó Ana chama, enquanto observo o céu


noturno através da claraboia que fica no quarto.
Olho para ela, parada no batente da porta. Está segurando
algo nas mãos que não consigo identificar. Ela se aproxima,
parando até que esteja próxima da cama, onde estou deitado.
— Trouxe algo para você. — Me sento no colchão, curioso.
Espero que ela desembrulhe o que quer que tenha entre os
dedos. Dois pontos de prata cintilam em meu campo de visão.
São abotoaduras. Minha avó as coloca na palma de minha mão.
— Na nossa tradição, o chefe da família fica com
as abotoaduras.
— O chefe da família? — Olho para ela, confuso. — Mas
o Bastian…
— Bastian não é um líder nato. Você é. Ele está acorrentado às
pressões e expectativas de Hernan. Você, por outro lado, é o que
é naturalmente.
Meu coração dispara por alguma razão.
— Você acredita que um dia eu possa… — Não completo
a frase, porque não consigo dizer em voz alta.
Acha que um dia eu possa ser o sucessor?
— Está destinado. — Há uma longa pausa silenciosa
enquanto trocamos olhares. — Agora, vou deixar você descansar.
Amanhã vou entrar em contato com o pai de vocês. Já fazem
três dias que estão aqui e ele sequer enviou um mísero recado.
Engulo em seco, mas não digo nada. O silêncio de Hernan
nunca é e nunca foi um bom sinal. Significa que ele está com
raiva. Raiva além do que qualquer um de nós podemos imaginar,
porém, por algum motivo, eu sinto nos ossos um pressentimento
ruim. Como o sol antes da tempestade.
— Não se preocupe. Durma, está bem? Estarei no meu
quarto. — A mulher pisca em minha direção, me dá um beijo
na testa como se eu ainda tivesse sete anos de idade e se vai.
Volto a olhar para a claraboia, tentando não me perder
nos meus próprios pensamentos.
21

Assim que chegamos no aeroporto de Boston, tenho certeza


que meu cabelo se assemelha a um ninho de pássaros. A mudança
de fuso-horário e clima só intensifica minha exaustão. Aqui, o ar
parece mais denso, como se uma manta de umidade envolvesse
meu corpo. A diferença entre Tóquio e Boston é perceptível.
Uma van nos aguarda no desembarque. Desde que entramos
no avião, Liam não trocou uma palavra comigo, como se eu fosse
invisível. No entanto, não permito que sua atitude me abale.
Enquanto o automóvel atravessa as ruas de Boston, observo a
arquitetura histórica que se destaca, um contraste marcante com a
modernidade de Tóquio. As folhas do outono começam a se espalhar
pelas calçadas, pintando a cidade com tons de vermelho e dourado.
Desgrudo meus orbes do vidro e fito o loiro, decidida
a provocá-lo um pouco.
— Ficou mudo? — questiono, arrancando um suspiro de seus
lábios.

— Nosso acordo requer que eu seja seu namorado apenas


em público — rebate.
Ou seja, enquanto estivermos longe dos olhares públicos,
ele fingirá que não me conhece. Afundo no assento do carro,
optando pelo silêncio. Ao chegarmos em um hotel cinco estrelas,
descemos do veículo após os seguranças se certificarem de pegar
nossas malas.
Kim, acompanhada por um segurança, se junta a nós no
elevador, enquanto os demais seguem por outro caminho com as
bagagens. Inesperadamente, Liam afasta uma mecha de cabelo
que cobre minha visão, a ponta dos dedos gelados resvalam em
minha bochecha. Me assusto com o contato inesperado e
estremeço. A assistente de Liam me lança um olhar confuso, e sou
forçada a me aconchegar contra o peito do Diamond.
Por um momento esqueço que, para todos, somos um
casal. Às vezes, é necessário reforçar essa imagem para evitar
qualquer suspeita. A mão de Liam pousa na base de minha coluna,
me deixando desnorteada. Ele me guia para fora quando as portas
de metal se abrem, conduzindo-me por um corredor. Kim se
despede, adentrando em uma das portas, enquanto Diamond e eu
seguimos para outra.
— Deixem as malas aqui — diz para seus
seguranças, apontando para um local vago perto da porta.
Eles obedecem e se retiram.
Inspeciono o ambiente ao ouvir o som da porta bater.
Estamos na cobertura, com uma vista incrível da cidade. Caminho
até ficar parada diante das amplas janelas, imersa no silêncio do
lugar, onde o único som que ecoa é da minha própria respiração.
Ao lançar um olhar sobre o ombro, noto que Liam está encostado
no corredor, me observando. As íris azuis ficam quase negras na
escuridão, e seu rosto é parcialmente iluminado pela lua e as luzes
da cidade.
Na sala, há apenas uma poltrona, lareira e um tapete que
parece persa. Nas paredes, belos quadros de paisagem adornam o
ambiente. Volto a observar o loiro.
— Vai ficar em pé aí feito uma assombração?
Ele se move até o canto do cômodo, onde agora noto
algumas garrafas de uísque. Enchendo seu habitual copo, ele
o entorna antes de responder:
— Só tem uma cama.
Assimilo as palavras, piscando com força. Liam não tira os
olhos de mim. Ele estuda cada uma das minhas reações.
Rapidamente me recomponho, tentando não deixar transparecer o
impacto da informação.
— Tanto dinheiro e não conseguiu nos colocar em um
lugar com dois quartos? — questiono secamente, porque esse
cenário é pior do que eu poderia imaginar.
Dividir um quarto com Liam parece um pesadelo.
— A questão, passarinho, é que as pessoas perceberiam.
Nós somos um casal para meus seguranças, Kim e todo o resto. Se
agirmos como dois estranhos, nossa farsa não se sustentará.
— Por isso me tocou no elevador? — indago, com
desdém. Ele me olha por alguns momentos.
— Não te toquei, não realmente. Aquilo não foi nada,
Phoenix. Acredite em mim. O dia em que eu te tocar, você não
vai querer que eu pare.
Meu Deus.
Meu rosto fica ruborizado e uma onda de calor percorre
meu corpo. Que merda é essa? Me sinto patética.
— Vou dar uma volta — anuncio, de repente, o
que surpreende Liam e até a mim mesma.
Preciso sair o mais rápido possível deste hotel. Por algum
motivo desconhecido, minha mente não para de imaginar
cenários em que Liam me toca. De verdade.
— Já são nove horas, Phoenix — diz, com reprovação. — Vá
dormir.
— Não, obrigada. — Abro minha bolsa e pego um tubo de
batom vermelho. Seus olhos me observam enquanto passo uma
camada nos lábios, ficando pronta. — Boa noite, Diamond.
— Garota teimosa — murmura, com sua expressão de
gelo, me seguindo pela porta.
Aperto o botão do elevador e olho sobre o ombro. Liam
permanece atrás de mim feito uma sombra. Franzo o cenho e
contenho minhas palavras enquanto seus seguranças nos
acompanham. Não posso dizer o que quero na frente deles,
ou estragaria tudo.
Começo a andar pela rua, com três homens em meu
encalço. Dois deles são seguranças, e o terceiro é o próprio Liam.
Ele se aproxima o suficiente para que seu braço roce no meu, e
então, num tom de voz baixo, diz para que só eu possa ouvir:
— Volte para o hotel.

— Não — devolvo.

Ele solta o ar de forma brusca pela boca. Não andamos muito


até que avisto uma casa noturna. Fito a fachada iluminada por
letras neons e percebo a expressão no rosto de Diamond que diz
você não ousaria. Sorrio, fazendo com que ele quase solte fumaça
pelas orelhas. Sua raiva é palpável
A fila não é tão grande, então, logo estamos dentro. Liam
pede para que os seguranças circulem e, em seguida, fala
enquanto adentramos no lugar:
— Você está encrencada, Phoenix Ogawa.

Ignoro-o e me movo até o bar. A música alta reverbera


pelo ambiente, fazendo o local pulsar. Gosto da sensação de
liberdade que me toma. Em Tóquio nunca pude sair muito e me
divertir verdadeiramente, já que sempre há um paparazzi à
espreita, aguardando por qualquer mínimo deslize meu.
Peço um drink com vodca e morango. Diamond permanece
em silêncio enquanto me sento em uma das banquetas, fingindo que
não o conheço. Sugo a bebida por um canudinho.
Quando começo a ficar meio alta, decido me juntar às
pessoas na pista de dança. Acho que despistei Liam, pois não o
vejo em lugar algum. Então, começo a dançar ao som da música,
sentindo meu corpo leve como uma pluma. Girando o corpo
enquanto balanço os quadris, vejo-o apoiado em uma das paredes,
ao lado do bar, os olhos fixos em mim e o rosto inteiro sério.
Um arrepio cobre minha pele.
No próximo momento, alguém se aproxima à minha
esquerda. É um homem. Ele começa a dançar junto comigo, mas
não dura muito. O estranho olha acima do topo de minha cabeça e
engole em seco. Franzo o cenho, e minhas costas colidem contra
uma muralha no próximo segundo. Quando sinto a mão em minha
cintura, sei que é Liam. Sua presença me consome, então decido
me entregar só por uma noite e desfazer as amarras que me
pretendem.
— Atrevida o suficiente para dançar com outro na
minha frente? — Os lábios roçam em meus ouvidos.
O calor se arrasta por meu corpo e suspiro, fechando os
olhos.
— Você não é meu namorado. Não de verdade.
— Não quer dizer nada.
— Quer dizer tudo.
Seus dedos se fecham ao redor da minha garganta, com
suavidade. Eu estremeço, me sentindo arder por todo canto.
— Certas coisas eu não estou disposto a compartilhar
com ninguém. Você dançando é uma delas.
O que ele está fazendo?
— Está vendo? — Os dedos se arrastam pela lateral do
meu peito. Reprimo o gemido sôfrego no fundo da garganta. —
Tem coisas que somente eu vou fazer você sentir, passarinho.
Quando percebo que ultrapassei uma linha perigosa demais,
me afasto, com o corpo em chamas. De repente, está muito
quente aqui dentro. Começo a abrir caminho pelo mar de pessoas
até a saída. Assim que alcanço a calçada e o ar gélido bate contra
mim, respiro, aliviada.
Atrás de mim, ouço uma risadinha grave e zombeteira.
— Com calor, amor? — A voz de Liam me alcança.
— Pro inferno — murmuro, irritada, sentindo o álcool
evaporar aos poucos do meu sistema.
Por sorte, seus seguranças nos alcançam depois que digo
isso. Então, silenciosamente, começamos a voltar para o hotel.

— Vou tomar banho — é o que digo assim que chegamos.


Pego minha mala e disparo em direção à única porta que resta
no corredor.
Uma suíte, é claro.
Entro no banheiro e me certifico de que fechei a porta antes
de começar a me despir. Opto pela banheira em vez do chuveiro, já
que meu corpo está tenso da viagem e pelos movimentos que fiz
na casa noturna, na pista de dança. Não sei quanto tempo passa,
mas ouço batidas na porta.
— O quê? — questiono, de olhos fechados, submersa na
água cheia de espuma e sais.
— Só tem um banheiro neste lugar, você poderia não
monopolizá-lo para sempre. — A voz de Liam soa abafada por
trás da porta, mas completamente compreensível.
— Já estou saindo.
— É sério, Phoenix. Não demore.
— Faça xixi nas calças — rebato. — Como é que você
costuma dizer? Ah! Lembrei. Não poderia me importar menos.
— Phoenix. — Sua voz contém um aviso claro.
Rolando os olhos, termino meu banho mais cedo que
gostaria. Leva algum tempo para que eu vista um pijama
confortável, então abro a porta. Liam está sentado na borda da
cama, os primeiros botões de sua camiseta abertos e uma expressão
de infelicidade no rosto. Ele fica de pé, erguendo-se em seus muitos
centímetros de altura a mais que os meus. As íris azuis se fixam em
mim, raiva exala delas.
Não digo nada e me deito na cama, ignorando-o. A porta do
banheiro bate. Me cubro até o queixo com o cobertor. Meu pijama
é de seda azul, com mangas longas e um short comprido, e ainda
assim, sinto frio. Ouço o barulho do chuveiro e permaneço inquieta,
me reviro de um lado para o outro enquanto tento pegar no sono.
A questão é que não consigo. Não sabendo que Liam vai
se deitar comigo a qualquer momento.
Quando a porta se abre, estou olhando para ela.
Diamond sai do banheiro, uma cortina de vapor formada atrás
de si e gotas de água escorrem pelo peitoral nu. Há apenas uma
toalha enrolada ao redor da cintura. Desvio o olhar rapidamente, tendo
certeza de que meu rosto está vermelho feito um tomate.
— O que foi, passarinho? Pode olhar, se quiser. Eu não
me importo.
Afundo o rosto no travesseiro, recusando-me a dar
esse gostinho para ele.
— É uma visão infernal você assim. Por favor, vista-se —
digo, a voz abafada.
— Péssima mentirosa. — Ouço seus passos se distanciando.
Desenterro meu rosto do travesseiro. Agora estou sozinha
no quarto. Liam retorna vestido, usando uma camiseta branca e
calça moletom. É um dos momentos em que reflito sobre o quão
jovem ele é. Sem o terno, abotoaduras e o cabelo perfeitamente
penteado… ele parece normal, exceto pela beleza clássica de
Hollywood. O rosto de um anjo, com os olhos azuis, lábios cheios e
cabelos loiros.
— Você deita nos pés — falo, esperando que concorde.
— Não. Vou me deitar em cima. Deite nos pés você.
Eu estava cogitando, mas agora que Liam diz, me recuso a
fazer isso. Vou ficar em cima, só para não dar o braço a torcer.
Diamond apaga a luz e mergulhamos no breu. Ainda assim, consigo
distinguir sua figura por conta de uma fresta na cortina que ilumina
o quarto.
A cama afunda com o peso dele, e sinto cheiro de sabonete e
pasta de dente. Há mais ou menos um braço de distância entre nós.
Me espremo o máximo que posso em uma das pontas da cama,
tomando cuidado para não cair. Estou tão cansada que não demora
muito para que eu pegue no sono. Acontece de forma natural,
quando percebo que estou em uma distância segura de Liam.
Ao acordar, quase me esqueço de onde estou. Pisco para
ajustar os olhos à claridade do quarto vazio e me direciono para
o banheiro, ainda meio grogue de sono.
Após escovar os dentes, sigo até a cozinha para fazer o café
da manhã, contudo, me surpreendo quando avisto Liam na
poltrona. Ele segura o telefone contra a orelha e, com a mão livre,
um charuto.
Suas palavras ressoam em alemão, e eu não entendo nada
do que ele diz. As íris se direcionam para mim enquanto continua
falando no aparelho. Me pergunto como ele acordou e se vestiu tão
silenciosamente. Talvez eu estivesse tão cansada que dormi que
nem pedra.
— Vista-se — Diamond murmura, voltando-se para
sua ligação.
Arqueio uma sobrancelha com a ordem, mas decido
não interrompê-lo enquanto está no telefone.
Volto para o quarto e pego um dos vestidos que trouxe,
já que o dia parece quente. É rosa claro, com saias bordadas,
sem mangas ou decote, no estilo tomara-que-caia.
Quando volto para sala, Liam está de pé. Ele abre a porta, sem
dizer nada. No momento em que saímos, avisto dois seguranças no
corredor que nos acompanham até à saída, onde uma Limousine nos
espera. A troca de línguas me deixa confusa. Nas ruas, todos
conversam em inglês, e eu tenho que me adaptar depressa.
— Para onde estamos indo? — Quebro o
silêncio. O loiro mal me olha ao responder:
— Leilão beneficente.
— E o café da manhã?
— Vai haver comida lá, não se preocupe.
O jeito como ele diz tudo é monótono. Inconscientemente
uma pontada de decepção me toma. Gostei de conhecer o outro
lado de Diamond noite passada. Lidar com sua frieza me incomoda.
Meu celular começa a vibrar dentro da bolsa me dispersando de
meus devaneios. Checo as notificações e vejo que há mensagens de
meu pai. Jim pergunta se chegamos bem e pede para que eu não
interrompa Liam nas reuniões de negócios. Me limito a responder que
o voo foi tranquilo. Estou prestes a guardar o aparelho quando uma
notificação vibra. O nome de Donna aparece no visor.
Meu corpo fica tenso. Lanço um breve olhar em direção
ao loiro, mas ele não presta atenção em mim.
Donna: oi! vocês já estão em Boston? Estou ansiosa
para nos vermos outra vez.
Donna: quando puder, me ligue.
Bloqueio a tela do celular, sem ter ideia do que responder.
Se Liam descobrir que sua mãe tem meu contato, provavelmente
surtaria. Não quero me transformar em um alvo ambulante para
ele, já que preciso mantê-lo ao meu lado como aliado.
Estacionamos diante de um prédio cercado por paparazzi’s.
Liam me orienta a sorrir e ficar próxima a ele ao sair do carro.
Encaro as câmeras com um sorriso, mantendo a postura ereta e o
braço entrelaçado ao seu. Nós caminhamos para dentro, deixando
os flash’s para trás.
O salão oval que nos recebe é deslumbrante, repleto de garçons
que servem aperitivos e taças de champanhe. Pessoas bem vestidas
estão espalhadas ao redor do salão, algumas em conversas animadas,
enquanto outras parecem discutir sobre negócios. Liam se dirige em
direção a alguns homens, e eu aproveito a oportunidade para comer.
Enfio alguns petiscos na boca, tentando ser discreta enquanto mastigo.
Me sobressalto ao sentir um toque no ombro.
Ao me virar, sou surpreendida por uma ruiva estonteante.
Seus olhos verdes me analisam de cima a baixo.
— Olá. — Ela esboça um sorriso estranho. — Você é
a Phoenix…
— Sim — respondo de boca cheia, sem querer.
— Eu estudei com Liam por um tempo. Nossos pais
são grandes amigos.
Não sei o que devo fazer com essas informações, então
permaneço em silêncio. Talvez ela e Liam tivessem um caso no
passado. Dá para ver que ela se sente desconfortável com a
minha presença.
— Vocês eram… — começo a dizer, e ela arregala os
olhos, me interrompendo.
— Não, claro que não. — Seu rosto inteiro fica vermelho. —
Nossos pais até cogitavam. Mas faz muito tempo. Agora Liam é…
um homem independente e poderoso.
Ela definitivamente sente algo por ele.
— Entendo. — Busco ao redor meus próximos aperitivos.
— Com licença.
Decido deixar a ruiva para trás. Não quero lidar com o drama
do passado de Liam. Se ele teve alguma namorada no colégio, é
um problema dele. Sirvo um copo de ponche de frutas e mordo um
canapé. Quando termino, retoco a camada de gloss usando um
espelho portátil e procuro por Diamond no salão.
Não é difícil encontrá-lo, já que a ruiva está no mesmo
círculo de pessoas. Estão próximos o bastante para que os braços
rocem. Sem motivo aparente, sinto algo em meu interior. Uma
espécie de incômodo. Como se pudesse sentir meu olhar sobre si,
ele vira o rosto, nossos olhares se travando.
Liam não se afasta, em vez disso, oferece uma taça de
vinho para ela.
Semicerro os olhos, experimentando uma sensação de
traição, mesmo ciente de que tudo não passa de uma farsa. Acho
que estou submersa demais na minha personagem. Me viro e
esbarro no ombro de alguém. O cara que me ampara é alto,
tem olhos bonitos e uma pinta charmosa no queixo.
— Desculpe — digo, envergonhada.
— Problema nenhum — responde, os olhos grudados em meu
rosto.
Suas mãos seguram meus braços de um jeito suave.
— Qual o seu nome? — questiona, quando dou um passo para
trás. — Não é todo dia que garotas bonitas tropeçam em mim.
Eu rio da cantada barata dele. Sinto algo perfurar
minhas costas. Sei que Liam deve estar observando tudo.
— Phoenix.
— Phoenix, me chamo Kyle. É um prazer conhecê-
la. Desculpe perguntar, você está acompanhada?
Antes que eu possa respondê-lo, uma voz grave o faz por
mim.
— Sim.
Como ele chegou tão rápido?
Os dedos gelados de Diamond envolvem a parte de trás do
meu pescoço e um arrepio percorre meu corpo. Kyle mal tem
tempo de reagir, porque Liam me força a andar colada a ele até um
dos cantos do salão. Nós estamos atrás de uma pilastra agora,
onde ninguém pode nos ver.
— Cuidado. — Me lança seu típico olhar de gelo.
— Cuidado você — retruco, com raiva de sua hipocrisia.
— Sirva vinho para mulheres e beijarei o primeiro que aparecer
na minha frente.
— Você não ousaria…
— Me teste — rebato.
Ele sustenta meu olhar por longos momentos, sem dizer
uma palavra.
— Sabe que vai estragar tudo, não sabe? — questiona,
o semblante sério. — Não pode flertar com ninguém enquanto
estivermos em um acordo.
— Digo o mesmo.
— Eu não estava flertando.
— Você provocou.
— Phoenix, vamos voltar para lá, e por favor, não torne
as coisas difíceis.
Eu não digo nada enquanto ele apoia a mão nas minhas costas
e me guia de volta para o evento. Ninguém repara em nós enquanto
nos aproximamos dos parceiros de Liam. Ele me apresenta para cada
um deles, e tudo o que faço é sorrir e dizer meu nome.
Como a maldita namorada perfeita.
22

Enquanto Liam leva minutos em uma longa conversa sobre


negócios, continuo sentada à mesa com cara de paisagem e
jogando tetris no celular. Não sei quando o leilão vai começar, então
permaneço aqui, ocasionalmente comendo um ou dois canapés.
Tudo em prol da recompensa final.
— Preste atenção — Liam diz, de repente, ao se aproximar.
Observo suas íris azuis com tédio. — Olhe discretamente para
onde eu indicar.
Seu perfume caro me inebria, contudo, foco minha atenção
no que ele me pediu. Avisto um homem grisalho que veste um
terno branco. Está entretido em uma conversa com três pessoas.
— Ele se chama Magnus. É um acionista que me passou a
perna quando comecei a tentar recuperar as indústrias Diamond.
Franzo o cenho, não sabendo aonde ele quer chegar.
O garoto continua:
— Noite passada, recebi uma mensagem anônima me dando
algumas coordenadas sobre um suposto pendrive escondido no item
dez que vai a leilão essa noite. Algo que coloca a cabeça de Magnus
em uma bandeja de prata. Parece que além de estúpido por tentar me
enganar e achar que ficaria impune, ainda deixou um rastro de
inimigos para trás sem despistá-los. Imagino que a informação
também tenha chegado, de alguma maneira, em seu ouvido.
— Você quer dar o maior lance — concluo a linha
de raciocínio.
— Sim. Mas tenho que fazer outra coisa durante este
tempo. Preciso que me faça esse favor.
— O que você vai fazer?

— Vou para uma reunião emergencial. Aqui… — Liam tira


o talão de cheque do bolso esquerdo do paletó. — Fique com
isso. Certifique-se de que o item dez seja meu até o final do dia.
O encaro em silêncio. Sua expressão é totalmente séria. Não
tenho ideia até onde vai a obsessão de Diamond por retaliar as
pessoas, o que me assusta. No entanto, isso não é da minha
conta. Pego o cheque no momento em que a abertura do leilão é
anunciada.
Liam se levanta, arrastando o dedo indicador e o anelar
sob meu queixo, e ergue meu rosto para encará-lo. Minha
pulsação triplica.
— Não me decepcione, passarinho.
É o que ele diz antes de se virar e ir embora. Após me
recompor, ajeito a saia do vestido e me encaminho para a área do
leilão, tomando um lugar discreto em uma das cadeiras das últimas
fileiras.
— É sua primeira vez? — A voz de Vanessa me faz olhar
para o lado; ela acaba de tomar a cadeira à minha esquerda.
— Sim — respondo, na tentativa de descobrir qual é a dela.
— Como ofertante, no caso.

— Entendo. — Ela ajeita os cabelos, puxando-os para frente.


— Vi que Liam saiu.

— Olha só, eu não sei o que você teve com Liam, ou o que
sente por ele, mas eu não vou fazer parte disso — a corto, antes
que possa completar sua frase.
O rosto dela cora.

— Eu só ia sugerir te fazer companhia.

Agora, sou eu quem me sinto constrangida. Limpo


a garganta, dizendo:
— Bom, tudo certo. Me desculpe, é que achei que…

— Eu estivesse tentando roubá-lo de você? Para ser honesta,


eu sempre o admirei de longe. Vou ser uma mentirosa se disser que
não tenho interesse. Mas ele está com você agora e respeito isso.
Sua honestidade me deixa perplexa e eu apenas aceno com a
cabeça, sem saber ao certo como agir. Ser a namorada de Liam é
um território desconhecido para mim. Eu sabia como ser a
namorada de Ren. Era fácil, sem dramas, e eu não precisava lidar
com fantasmas do passado, pois eu era a única na vida dele.
— Liam nos contou que você é uma artista e que seus
quadros são magníficos — Vanessa diz.
— Ele disse isso? — questiono, surpresa.

— Sim, também falou que você é boa com o piano. — Dá


de ombros. — Ele parecia orgulhoso.
Tenho vontade de rir, porque Vanessa só pode estar
imaginando coisas. De qualquer forma, Liam atua bem. Não tenho
motivos para aceitar isso como elogio, por mais que uma parte
idiota de mim queira acreditar que existe sim, ao menos, um
pouquinho de verdade por trás de tudo.
Me volto para frente e me dou conta de que já estamos
no item sete.
Peço licença a Vanessa e levanto, posicionando-me
algumas fileiras para frente, próxima do palco. Sento ao lado de
um senhor, segurando firme minha placa entre as mãos.
Os próximos itens são vendidos, até chegar o dez.

É nada menos que um quadro. Uma obra de um pintor sueco


que admiro. Magnus e algumas pessoas dão lances iniciais de
cinquenta mil dólares.
— Cem mil. — Ergo minha placa.

— Uau! Cem mil dólares. — O homem com o


microfone parece extasiado. — Alguém dá um lance maior?
— Cento e cinquenta mil — Magnus retruca.

— Trezentos — dobro.

Ele me lança um olhar chocado, a apenas algumas


cadeiras de distância, e reparo na forma como sua mão treme ao
redor da placa.
— Quatrocentos mil — insiste.

— Quinhentos — sentencio.

Um momento de silêncio preenche o ambiente. Fito de soslaio o


homem que começa a erguer a placa timidamente, para anunciar um
novo lance, até que ouço o barulho do martelo sendo batido.
— Vendido para a bela senhorita que deu o lance
de quinhentos mil dólares — o leiloeiro exclama.
Magnus se cala e os ombros se curvam. Percebo, porém, o
momento em que seus orbes se fixam em mim com uma certa
fúria exalando deles. Uma expressão que evidencia que isso não
vai ficar assim.
Uma salva de palmas eclode ao meu redor e eu apenas
sorrio polidamente, espantando o calafrio que me percorre.

Quando volto para o hotel com o quadro de Liam, deixo-o


apoiado contra uma das paredes. Ele ainda não voltou, então
aproveito o momento de privacidade para fazer uma ligação
para Emi. Sei que ela deve estar louca por notícias, porque
ontem me deixou um monte de mensagens.
Ela atende no segundo toque.

— Finalmente! Achei que nunca mais fosse lembrar que


eu existo. Vocês dois estão em um hotel?
— Sim, estamos. — Rolo os olhos e oculto a parte em que
temos que dividir a mesma cama. Emi não deixaria essa
informação de lado e criaria centenas de fantasias sobre isso.
— E aí, aconteceu algo? — indaga, sonhadora.
— Claro que não. Tá cansada de saber que a gente não se dá
bem.

— Não acredito nisso.

— Problema todo seu — cantarolo. Logo em seguida, ouço-a


bufar.

O barulho da porta abrindo me faz desligar a chamada


sem ao menos dizer “tchau” para Emi. Giro nos calcanhares, e
encaro Liam, que olha para mim de volta. Ele quebra o contato
visual apenas para observar o quadro. Em seguida, inicia o
processo de desembalá-lo.
— Está aqui. — Diamond retira um pendrive pequeno de
trás do quadro, em um fundo falso.
— O que vai fazer com isso? — questiono, mas acaba
sendo uma pergunta retórica, já que Liam não responde, apenas
vira as costas e se dirige ao quarto.
Que forma incrível de demonstrar gratidão, penso com ironia.

Ligo para o serviço de quarto do hotel e peço algo para comer.


Enquanto espero, mando uma mensagem para Emi e explico que tive
que desligar. Ela responde apenas com alguns emojis. Meu pai não
falou mais nada desde que disse que estava tudo bem. Agora, me
concentro nas mensagens não respondidas de Donna.
Me sinto mal por ignorá-la, mas há coisas que estão fora
do meu alcance. Não posso me envolver a fundo em sua relação
com Liam. Isso o faria me odiar profundamente.
Sei que não devo torná-lo meu inimigo. É algo que
venho aprendendo com o tempo.
Quando um dos funcionários chega carregando meu almoço
num carrinho de prata, agradeço-o e levo a salada caesar e o
pedaço de bolo até a poltrona. Liam retorna à sala no exato
momento em que dou a última garfada no bowl com alface.
— Tem um jantar hoje à noite — anuncia, de maneira
fatídica. Ele caminha até mim, pegando o prato apoiado em um dos
braços da poltrona que contém a fatia do bolo.
Eu o encaro, arqueando as sobrancelhas.

— Você pode não roubar minha comida? Liam

me ignora, dando uma garfada no bolo.

— O jantar é às seis — continua. — Preciso que você


esteja pronta até lá.
Depois da segunda garfada, ele trava. Diamond alterna o
olhar entre mim e o bolo. Seu rosto começa a ficar vermelho e eu
franzo o cenho.
— Phoenix. — O loiro começa a tossir. — O que tinha nesse
bolo?

— Nozes. — Começo a me assustar com sua reação.

Ele me fita como se eu tivesse acabado de cometer um crime.


Como se eu fosse uma traidora.

— Sou alérgico a nozes.

— Como eu poderia saber? — questiono, levantando-


me. Liam não para de tossir. — Foi você quem roubou o bolo.
— Pegue água — ralha, entre os dentes.

Levanto-me apressada e busco a água, ignorando sua ordem


e o tom grosseiro, pois o desespero começa a se instalar. A ideia de
que Liam pode morrer por um simples pedaço de bolo me
atormenta, e mordo nervosamente o lábio inferior. Liam arranca
a garrafa das minhas mãos e começa a bebê-la.
Ele se acomoda na poltrona, iniciando o processo de despir-
se. A gravata, o terno e, em seguida, os botões da camiseta social.
Não sei o que devo fazer agora. Pela primeira vez, desejo que ele
me dê ordens. Observo atentamente enquanto ele despe, uma
cena meio antiquada, mas, dadas as circunstâncias, não posso tirar
os olhos dele. Se algo acontecer, se Diamond começar a
convulsionar ou algo do tipo, quero estar pronta. Conheço noções
básicas de reanimação. Talvez possa…
— Quer parar de me encarar como se eu fosse morrer?
— Quebra o silêncio, o tom de voz seco.
— E você vai morrer? — pergunto, porque preciso
estar pronta. — Talvez devamos ir até o hospital…
— Estou bem — me corta, abruptamente. Sua pele branca está
cheia de manchas vermelhas. — Não ingeri grande quantidade.
— Tem certeza?

— Tenho. Agora, preciso que você fique em silêncio para


que eu possa me recuperar.
— O que tem a ver? — indago, confusa.

— Sua voz… — começa a dizer de forma lenta, me


olhando com tédio. — Me irrita — completa.
Não sei porque, mas me sinto magoada. Liam e eu vivemos
em uma guerra de farpas trocadas. No entanto, nada do que ele
já tenha me dito antes me chateou tanto quanto isso. Cerrando o
maxilar, apenas me viro e o deixo para trás, sem me importar se
está tendo uma crise alérgica. Eu só queria ajudá-lo e, como
sempre, fui recebida com hostilidade.
Fito o quarto vazio e lembro de um dos meus propósitos aqui:
encontrar minha mãe. Não faço a mínima ideia de por onde começar,
então pesquiso sobre detetives particulares em Boston no Google.
Posso usar o dinheiro que Liam me deu no cassino. Não o gastei e
trouxe comigo para emergências. Acho que é mais que o suficiente.
Quando encontro o número de um, entro em contato por
mensagem. Não demora muito até que ele me responda e marque
um local para conversarmos. Tendo o endereço da cafeteria que o
homem me passa, guardo o celular na bolsa e me vejo
determinada a sair.
No caminho pela casa, encontro Liam e Kim na
sala, conversando.
— Os remédios são para controlar as reações — ela
diz, entregando-o um saco pardo.
— Obrigado, Kim. — Diamond me lança um olhar de

soslaio. Quando giro a maçaneta, ele questiona:

— Para onde vai?

Não o respondo. Tudo o que faço é fechar a porta atrás de


mim e apertar o botão para chamar o elevador. Aperto os olhos
quando ouço a porta se abrir e amaldiçoo a lentidão para a máquina
chegar no andar.
— Phoenix. — A voz dele ecoa atrás de mim.

Não me viro, nem digo nada.

As portas metálicas finalmente se abrem. Entro no elevador


e aperto depressa o número para a recepção. Contudo, Liam entra
junto antes que as portas se fechem. Solto uma lufada brusca de
ar, irritada com sua insistência. Não quero conversar com ele agora,
nem nunca mais.
Ele veste a camiseta de botões, mas a deixa aberta, como se
tivesse vestido às pressas para me seguir até aqui. O cabelo loiro está
bagunçado, e embora a reação alérgica pareça ter cessado, há
manchas avermelhadas espalhadas por alguns lugares de seu corpo.
— Não vai dizer nada?

Ele parece irritado com meu silêncio.

Dou de ombros.

— Isso tudo por que eu disse que sua voz era irritante?
— zomba, com o tom cortante.
Cruzo os braços em frente ao peito, olhando para o
lado oposto do elevador.
— Diga algo. Qualquer

coisa. O silêncio continua.

Então, de repente, Liam se aproxima tanto que solto uma


lufada de ar pela boca, completamente surpresa. Suas mãos
seguram meus ombros, e eu ergo o rosto para encará-lo. Meu
coração começa a bater mais forte conforme seu calor corporal
me abraça, e seus dedos se afundam suavemente na minha pele.
Congelo quando ele se inclina e me beija.
É um beijo brusco. Sua boca se choca contra a minha. Seus
lábios apertados sobre os meus. Meu corpo parece derreter em suas
mãos, me sinto como um floco de neve se desfazendo sobre uma
superfície lisa.
Coloco as mãos em seu peito para afásta-lo, mas meus
dedos se enroscam em sua camiseta, puxando-o mais para perto.
Nossas bocas se tornam urgentes. Uma das mãos de Liam desliza
pelas minhas costas e firma na base da minha coluna, puxando-me
ainda mais para perto.
A mão que resta em meu ombro puxa meu rabo de
cavalo, elevando minha cabeça, de forma que o beijo se torna
mais profundo. Quando o elevador começa a parar, Liam se
afasta. É a primeira vez que vejo algo diferente do gelo em seus
olhos. Estão quase… calorosos.
Engulo em seco, sem palavras.

— O que foi isso? — Resvalo a ponta dos dedos nos lábios.

— Está vendo? Agora você fala. — Termina de abotoar


a camiseta como se nada tivesse acontecido.
Ele me beijou só para que eu falasse?

As portas do elevador se abrem e hesito antes de sair. Lanço


um último olhar para Liam. Ao contrário de mim, não parece
ofegante, como se o beijo não tivesse acontecido. Entrando em seu
jogo, apenas o dou as costas e caminho para fora do hotel, sem
lançar um único olhar sobre o ombro ou dizer a ele para onde
estou indo.
23

Não acho que Liam esteja me seguindo, então peço o táxi


para a cafeteria. Estou nervosa porque esse é um grande passo.
Achar minha mãe vai significar muito para mim. Quero saber o
que aconteceu e o porquê de ela ter ido embora.
A cafeteria é como qualquer outra, semelhante às de
Tóquio. Na mensagem, Kevin, o detetive, disse que estaria usando
um chapéu azul. Não é difícil identificá-lo. Ele está em uma das
mesas isoladas do restante da cafeteria. Eu caminho em sua
direção, e puxo uma das cadeiras.
— Phoenix? — questiona, buscando uma confirmação.

— Sim. — O analiso.
Kevin não é tão velho. Parece estar no início dos quarenta
anos. Há uma barba rala que cobre seu queixo e os olhos são
escuros. Ele não parece intimidador, como achei que seria.
— Você precisa encontrar alguém — conclui, pela
breve mensagem que o mandei.
— Minha mãe — especifico. — Ela foi embora de Tóquio
quando eu era criança. Não sei nada sobre ela, desde então. Só
que veio para cá.
— Só preciso do nome — é tudo o que ele diz. — E dinheiro,
vivo. Este é o meu valor. Consigo informações dentro de três dias.
Ele desliza um pedaço de papel em minha direção.
Em silêncio, analiso a quantia que ele quer.
— Temos um acordo. — Sinto um frio na barriga. Kevin
estende a mão para mim e a aperto, selando meu destino.

Está na hora do jantar de Liam, mas, para ser honesta, não


estou a fim de encará-lo, muito menos de fingir ser sua namorada.
Meu humor está péssimo. Não sei se consigo sustentar nossa farsa
hoje; só quero limpar minha mente e fingir que não sou a Phoenix
Ogawa. Desejo ser qualquer outra pessoa, alguém que não
carregue uma bagagem pesada.
Desde que saí da cafeteria, tenho andado pelas ruas de
Boston. Paro em frente a uma galeria de artes cuja fachada
imediatamente me atrai. Feita de vidro, ela permite que eu olhe
para os quadros em exposição. São bonitos, abstratos.
Leio a placa que diz "apresente-se na noite livre, no sábado.
Qualquer arte é bem-vinda". Não resistindo, entro na galeria e pego
uma das fichas de inscrição. Após preenchê-la, a entrego para a
mulher que fica na recepção. Ela me dá um sorriso gentil, e eu
me despeço.
Ao pisar na calçada, um carro freia bruscamente em minha
frente. Reconheço os cabelos loiros e as íris azuis como gelo
inconfundíveis. Liam desce do veículo, arrumando a lapela do
terno. Rolo os olhos, sem tempo para seus jogos.
— Pare de me seguir — murmuro, quando ele começa
a andar atrás de mim na calçada. Sigo para o lado oposto do
automóvel.
— Te avisei sobre o jantar.

— Não dou a mínima.

Sua mão se fecha ao redor do meu pulso e ele me puxa


para si. Nossos corpos se chocam um contra o outro. Diamond olha
no fundo dos meus olhos e eu prendo a respiração por conta da
proximidade. Algumas pessoas passam por nós, intrigadas.
— Phoenix, por favor, não torne as coisas complicadas
— pede, num tom de voz baixo.
— Não tornar complicado?! — Aumento o tom de voz. — A
questão aqui, Diamond, é que você é um babaca em tempo
integral. Estou cansada da sua hostilidade e confusão. Não pode me
beijar porque acha que é conveniente. Eu não sou sua marionete.
Ele respira fundo e sua expressão se mantém séria.

— Eu não te beijei porque era conveniente. Te beijei porque


você tem a boca mais magnífica que já vi. Não paro de pensar
nisso. Você está me enlouquecendo.
É impossível respirar agora. Apenas o encaro, em silêncio, sem
saber o que dizer. Liam começa a me guiar até o automóvel e
desta vez não recuo. Eu o acompanho, até que estejamos
indo juntos para o jantar.

O jantar é na casa do pai da Vanessa, e tenho que conter o


suspiro no fundo da garganta assim que nos sentamos à mesa, pois a
conversa sobre negócios começa quase imediatamente. Além de
Diamond e eu, há outro homem e a ruiva presentes no jantar.

Ela me dá um sorriso pequeno e eu retribuo.

Quando terminamos de comer, ela me chama para ir até


seu quarto e aceito, após pedir licença. Nós subimos as escadas
intermináveis da mansão. O quarto de Vanessa é contido, não há
muitas cores, e ela parece alguém muito pragmática. Tudo está
organizado metodicamente.
Ela senta na cama e eu ocupo a poltrona.

— Agora podemos ter uma conversa de garotas — diz,


animada. — Esse prendedor no seu cabelo é de ouro? —
questiona, intrigada.
— Ah, é — respondo, meio sem graça. — Meu pai
gosta muito de objetos de ouro.
— Fiquei sabendo que ele é um grande homem.

— Sim, ele é. Às vezes, queria que ele fosse um


homem comum para que tivéssemos mais momentos juntos.
Vanessa assente com a cabeça. Ela não precisa dizer
nada para que eu saiba que ela me compreende.
— Tenho um encontro às escondidas depois do jantar —
anuncia, de repente, mudando a atmosfera tensa. Escondo a
surpresa.

— Bom, espero que se divirta.

Antes que eu possa dizer algo mais, uma batida na porta do


quarto me interrompe. Uma das empregadas entra e anuncia que
Liam está indo embora e que é para que eu o acompanhe.
Despedindo-me de Vanessa, eu desço a escadaria, onde Diamond
me espera ao fim. Ele engancha o braço no meu, me guiando até
o hall.
O pai de Vanessa se despede e, enquanto
caminhamos sozinhos até o carro, Liam diz:
— Cuidado.

Olho para ele, confusa.

— Com o quê?

— Vanessa. Ela se aproximou de você por conveniência.

— Por quê?

— Quer saber o motivo de estarmos juntos.

Fico em silêncio. Inspeciono seu rosto iluminado


parcialmente pela luz do luar. Sei que Liam é perspicaz. Observa o
que eu não vejo, então apenas acato suas palavras. Quando
estamos dentro da Limousine, ele se serve com um copo de uísque
e pousa uma das mãos em meu joelho.
Minhas íris imediatamente são atraídas para seu rosto.

— O que estava fazendo com um detetive? — indaga, ao


me fitar com atenção.
Como eu esperava, Liam não deixa passar nada.
— Isso não é da sua conta. Não interfere em nada no
nosso acordo.
— Você é da minha conta, Phoenix. Acredite em mim.

Fico em silêncio, porque essa é uma parte da minha vida que


não estou disposta a compartilhar. Pelo menos não por enquanto. É
algo íntimo e pessoal, algo que fará com que eu me sinta exposta e
despida para Liam, enquanto ele guarda todos seus segredos para
si mesmo.
Pelo resto do trajeto, nenhum de nós diz mais nada. Na
suíte, sou a primeira a ir para o banheiro. Desta vez, uso o
chuveiro, aproveitando o momento que estou sozinha para relaxar.
Meus músculos dos ombros estão tensos, a água quente ajuda a
desfazer a rigidez.
Quando saio do banheiro, usando meu pijama para dormir,
encontro Liam sentado na ponta da cama. Está com a camiseta
de botões aberta. A visão de seu peitoral definido completamente
nu faz com que meu coração dispare.
— Venha aqui, passarinho. — Sinaliza com a cabeça para
o espaço ao seu lado.
Hesitante, ando até ele e me sento na cama ao seu lado.
Agora, nossos braços estão se tocando. Olho para o rosto de
Liam. Seus olhos azuis me fitam de um jeito desconcertante. Ele
ergue o braço, a mão encaixando no meu pescoço, os dedos
posicionados sobre minha pulsação.
— Seu coração está acelerado.

Fico em silêncio, esperando.

— Se eu beijá-la outra vez, você vai começar a me odiar? —


O loiro move seu polegar para frente e para trás sobre minha pele.
Balanço a cabeça, negando, e é o suficiente. Liam corta a
distância entre nós. Sua boca toca a minha e ele me puxa para si,
enlaçando o braço ao redor da minha cintura. Agora, estou
montada em seu colo. Sinto sua rigidez abaixo de mim e meu corpo
arde de um jeito que nunca ardeu antes. Suspiro contra seus lábios,
afundando minhas mãos em seus cabelos.
A mão de Liam desliza por uma de minhas pernas expostas
no shorts de algodão e ele morde meu lábio inferior com força.
Abro os olhos, o encarando. Suas íris estão fixas em mim.

— Phoenix, você é a minha ruína. — Diamond roça o


nariz contra o meu.
— Então se torne a minha — peço, num sussurro.

— Nem mesmo alguém tão frio como eu seria egoísta a esse


ponto — fala, me tirando de cima de si.
É como se todo o desejo passasse e ele estivesse pensando
racionalmente. De repente, sua máscara de pedra está de volta em
seu rosto. Observo quando ele se levanta e me deixa para trás, indo
até o banheiro. Ouço a tranca da porta e continuo parada, os olhos
fixos para onde ele foi.
Começo a sentir o constrangimento e a raiva me consumir.
Como ele pode ser tão idiota? Me deito e viro de costas para o seu
lado da cama, me cubro com as cobertas como se pudesse apagar
a minha existência e toda a vergonha que me sufoca no momento.
Quando ele volta para dormir, não diz uma palavra.
24

antes
Pela expressão da avó Ana, percebo que a ligação que ela
teve com Hernan não foi nada boa. Ela parece apreensiva, mas
tenta esconder isso de nós, em vão. É possível lê-la como se fosse
um livro aberto.
— Vó — chamo, observando-a do batente de sua biblioteca.
Ela me fita, saindo do transe em que estava.

— Já comeu? Pedi para prepararem sopa para você. —


Sorri em minha direção de forma gentil.
— Já, estava ótima, obrigado.

Entro na biblioteca e me sento ao seu lado, em um sofá


confortável para leitura. Observo-a. Desde que acordamos, ela está
esquisita, absorta em seus próprios pensamentos. Isso quer dizer
que não teve êxito em fazer com que Hernan abaixasse a guarda.
— Seu pai está vindo buscar vocês. — Solta um longo suspiro.

Me sinto inquieto com a informação, mas não estou


surpreso. Sempre soube que, mais cedo ou mais tarde, ele viria. É
apenas uma questão de tempo para que finque as garras em todos
nós novamente.
— Sinto muito, Liam — continua, olhando para as próprias
mãos cruzadas sobre o colo. — Tentei conversar. Dizer que
poderia criar todos vocês…mas ele foi irredutível.
— Entendo — digo, porque sei que se ela pudesse, nos
aceitaria em sua casa com toda alegria do mundo.
Minha avó é a melhor pessoa que conheço.

Tento me distrair jogando xadrez com Brianna pelas


próximas horas. O tempo passa devagar, de forma agonizante,
porque sei o que está por vir. Vamos voltar para os Estados Unidos
e provavelmente mais punições vão recair sobre nós, e não vai
haver ninguém para nos salvar desta vez, pois Hernan vai se
certificar disso.
Estou colocando Bree para dormir quando Bastian aparece
no quarto com a expressão tensa.
Ele não precisa dizer nada, seus olhos anunciam tudo.

Nosso pai está aqui.

Depois de cobrí-la, eu e Bash descemos as escadas. Hernan


está na sala, os braços cruzados em frente ao peito e o rosto
completamente inexpressivo, sem revelar nada.
— Vamos embora — Hernan diz, calmamente. — Onde
está Brianna?
— Dormindo. — Quebro o silêncio.

— Vá buscá-la — ordena, irredutível.

— Está tarde — minha vó interrompe, adentrando no


cômodo. — Durmam aqui esta noite e saiam pela manhã. Bastian e
Liam também estão cansados.
— Ana — meu pai saúda, o desgosto quase palpável no tom
de voz. — Eu não preciso que me diga como criar meus filhos.
Isso não te diz respeito. Cuide da porra da sua vida, que aliás, já
está quase no fim.
Enrijeço. Bastian dá um passo à frente, mas minha avó
ergue a mão, impedindo-o.
— Você está na minha casa, Hernan. Exijo respeito.
Tenho seguranças prontos para chutá-lo para fora, sob a chuva.
— Ela maneia a mão em direção às janelas, sinalizando o
temporal que ricocheteia os vidros. — Acredito que tenha
esquecido quem sou, mas permita-me lembrá-lo. Sou Ana Diane
Lawrence, influente o suficiente na Alemanha para que você seja
visto como um zero à esquerda. O sangue que corre na veia dos
seus filhos também é meu sangue. A partir de agora, você vai
tratá-los da maneira correta, ou vou expor tudo na mídia.
— Isso arruinaria tanto sua reputação quanto a minha —
meu pai retruca, com dúvida refletida em seus olhos.
— A diferença é que apenas um de nós coloca o dinheiro
e influência acima da família.
Meu pai fica em silêncio.

— Tudo bem — recua, a raiva velada em suas íris. — Amanhã


nós partiremos e não haverá mais castigos extremos para vocês.
Como um passe de mágica. Basta ameaçá-lo quanto ao seu
dinheiro que ele repensa sobre tudo.
Patético.

Bastian e eu trocamos um olhar significativo e, em seguida,


subimos para nossos próprios quartos.

Na despedida, Brianna começa a chorar enquanto Bastian e


eu abraçamos nossa avó. Ela nos pede para ligarmos sem hesitar
caso qualquer coisa aconteça. Depois, percebo que Ana conversa
em particular com Hernan. Eles usam o tom de voz baixo
propositalmente para que não escutemos.
Ao fim, somos levados para o aeroporto em uma van.

Meu pai pergunta:

— Qual dos dois espertinhos teve a brilhante ideia de


fugir para a Alemanha?
— Eu — Bastian assume a culpa, sem rodeios. — Você
não vai fazer o que bem entender com meus irmãos. Não mais.
Bree está dormindo no banco de trás, alheia a conversa.
Acordamos muito cedo. Meus olhos estão pesados, mas me forço
a me manter em alerta.
Meu pai se mantém em silêncio e troca olhares com
meu irmão mais velho.
Acredito que ele não quer colocar tudo a perder, não por
isso. Bastian é sua aposta final, e Hernan sabe disso. Se meu pai
não tiver um sucessor, todo seu esforço vai ter sido em vão. Ele
precisa de Bash e não pode deixá-lo sair dos trilhos, o que inclui
não nos tratar mal.
Durante o voo para casa, finalmente entendo.

Algumas pessoas estão fadadas a infernos particulares.

Hernan criou o meu.


25

Fico cinco longos minutos encarando a tela do telefone,


onde Kevin me enviou o novo endereço de minha mãe. Quero
perguntar como ele descobriu tão rápido, mas, como detetive, sei
que não revelará suas fontes ou métodos.
Nervosa e com os dedos trêmulos, digito o endereço no
Google. Fica a trinta minutos daqui. Liam saiu há alguns momentos
para conversar no telefone. Espio pelo olho mágico antes de abrir
a porta. Desde que dormimos juntos ontem à noite, após o beijo,
nenhum de nós conversou nada sobre isso. A única palavra que
trocamos hoje foi “bom dia”.
Entro no elevador, apertando o botão. Quando as portas se
abrem no hall, vejo Diamond de costas para mim, com o telefone
apoiado contra a orelha. Dou meia-volta e saio pelos fundos,
onde os funcionários descartam o lixo. Na rua, peço um táxi.
Durante todo o percurso até o endereço, a sensação de que
vou vomitar me domina. Minhas mãos suam e meu coração bate
rápido. Preciso reunir todo meu autocontrole para me acalmar.
Não posso ter uma crise e estragar tudo.
Quando finalmente chego ao endereço, desço do táxi.

Encaro a fachada de tijolos da casa. É comum, como em um


daqueles seriados americanos. Não é tão grande, nem tão pequena.
Parece o ideal para uma família de tamanho médio. Pensar nisso faz
meu peito doer. Não quero acreditar que Naomi tenha outra família.
Fico parada na frente da propriedade, apenas uma
cerca branca me separa de me reencontrar minha mãe.
A porta se abre e uma mulher sai para a varanda. Seus
cabelos escuros estão soltos, e, exceto pelas novas rugas no
rosto, ela parece a mesma. Naomi não me nota, porque olha para
a direção oposta, parecendo contemplar a tarde ensolarada.
— Mãe — sussurro, quase inaudível, sentindo o nó
na garganta e meu coração disparar.
Tenho tantas perguntas. Quero saber por que ela não
voltou, por que foi embora e o que fez em todos esses anos.
Estou prestes a tomar coragem e ir em sua direção
quando tudo acontece.
A cena se desenrola em câmera lenta. É como se o
mundo parasse.
Um garotinho surge por trás da porta. Ele tem cabelo
castanho claro e segura um pedaço de papel. Daqui, posso
escutar seu grito empolgado:
— Mamãe, eu desenhei você e o papai!

Covinhas profundas surgem em suas bochechas quando ele


sorri, e eu fico estática. Meu coração murcha e morre dentro do
meu peito. Minha mãe foi embora e construiu uma nova família. Por
mais que sempre tenha pensado nessa possibilidade, não queria
aceitá-la, porque significava que eu a tinha perdido para sempre.
Ela nunca voltaria para casa, nunca falaríamos sobre garotos.
Nunca receberia conselhos quando eu precisasse.

Só percebo que estou chorando quando toco minha


bochecha e sinto os rastros molhados.
Não é justo.
Ela se ajoelha para ficar na altura do garotinho, meu irmão
mais novo que eu nunca soube que existia. Ela dá um beijo na
bochecha dele e observa o desenho que o pequeno segura entre
os dedos. Um homem aparece e se junta à cena de família feliz. Me
sinto uma estranha. E o pior de tudo, é que sou uma. Minha mãe
não me conhece, nunca teve interesse em me conhecer. Sou uma
espectadora de uma família perfeita que aparece em comerciais da
televisão.
É demais para mim.

Me viro para fugir, indo em direção oposta, sentindo-me


patética por ter acreditado que havia uma razão coerente para
ela ter deixado eu e o papai em Tóquio. Ela fez isso porque quis e
nunca se importou em voltar, pois tinha uma nova família.
Andando depressa, absorta em meus próprios pensamentos,
não é surpresa quando esbarro em alguém. Ergo o rosto, pronta
para pedir desculpas, mas permaneço em silêncio assim que
Liam me envolve em seus braços.

— Qual o problema, passarinho?

Ignoro que ele me seguiu até aqui e deixo que as lágrimas


escorram pelo meu rosto. Ele fica parado, como se eu fosse um
enigma e não soubesse o que fazer. É quase engraçado vê-lo
sem reação. Eu poderia rir se meu coração não tivesse sido
partido alguns momentos atrás.
De forma relutante, ele me abraça.

Liam Diamond está me abraçando para me consolar.

Será que estou sonhando? Gostaria de estar, então eu


acordaria e jamais teria visto minha mãe com sua nova família.
Mas essa é a realidade. Tão triste que meu único ombro amigo no
momento é a pessoa que mais detesto.
No próximo segundo, Liam começa a me carregar em seus
braços como se eu não passasse de uma pluma. Considerando
seus músculos, é visível que ele leva a sério a academia.
Ele me solta apenas quando paramos em frente a um ponto
de táxi. Não há seguranças ao nosso redor, Liam veio sozinho.
Quando estamos dentro do automóvel, minhas lágrimas já pararam
de cair. Agora, resta apenas a sensação esquisita no meu peito.
Como uma espécie de vazio.

Liam pede para que o taxista vá para o endereço indicado.


Só percebo que não vamos para o hotel quando paramos o carro
em frente a uma lanchonete temática chamada Banana Split.
Olho para Liam, franzindo o cenho, quando saímos do carro.
— Quando Brianna estava triste, fazia eu ou meu irmão
mais velho trazer ela aqui.
— Uma lanchonete chamada Banana Split? — Alterno
meu olhar entre ele e a fachada colorida do estabelecimento.
É difícil imaginá-lo dentro de um lugar como esse, mas é
exatamente onde nos encontramos nos próximos momentos.Para
minha surpresa, os atendentes estão todos vestidos de bananas.
Escolhemos uma mesa e nos sentamos.
Olho para Liam, aguardando sua próxima ação. Ele pega
o menu e começa a ler em voz alta:
— Milkshake de banana feliz e caramelo, banana split feliz
com duas bolas de sorvete de creme, waffles recheados com
banana feliz e chantilly. — Ele faz uma pausa para me encarar com
o semblante sério. — Qual dessas opções te faria se sentir melhor?
Eu rio, fungando.
— Acho que o milkshake de banana feliz e caramelo.
— Ótima escolha. — Ele acena para uma das garçonetes.
Com prontidão, a mulher se aproxima com prontidão
usando a fantasia de banana gigante.
— Um milkshake de banana e uma garrafa de água, por favor
— pede e ela anota no bloco imediatamente.
Quando a atendente se retira, observo Liam com curiosidade.
Não compreendo por que ele está fazendo isso por mim,
demonstrando seu lado… humano. Diamond permanece em silêncio,
não faz nenhuma pergunta ou força a barra comigo, o que me leva
a decidir ser sincera.
— Eu estava procurando por minha mãe. — Olho para a
mesa e começo a mexer em um guardanapo. — Ela foi embora
quando eu era criança.
— Você a encontrou?
— Sim. — Engulo em seco, respirando fundo. — Mas ela tem
uma nova família. — Meu tom de voz sai baixo, quase inaudível. —
Pensei que haveria uma explicação coerente para ela ter me
deixado. Para nunca ter enviado nenhum tipo de mensagem. Mas
ela estava feliz, seguindo em frente como se eu nunca tivesse
acontecido. Como se ela não tivesse me deixado esperando por
todo esse tempo.
— Como se sente agora? — questiona
cautelosamente, fazendo-me voltar a olhar para seu rosto.
Sua figura está embaçada através dos meus olhos marejados.
— Me sinto traída, triste e com raiva. Muita raiva — admito.
— Já me senti assim em relação aos meus pais. Sei
bem como é. Criamos expectativas sobre essas pessoas que,
naturalmente, deveriam nos amar e nos proteger. Depois que
entendi como o mundo funciona, que todos agem por motivos
inteiramente egoístas, parei de me decepcionar com eles. Ou
qualquer um. — Dá de ombros, como se a matemática fosse
simples.
Refletindo sobre suas palavras, percebo que Liam não
espera nada de ninguém. Parece que ele se blindou, tornando-se
independente e protegendo-se das expectativas, da esperança de
que um dia as coisas seriam diferentes.
— E a sua mãe? — pergunto, antes que possa me conter.
— Ela disse para mim que se arrependia, que queria seu perdão.
— Minha mãe agiu de forma egoísta quando eu e meus
irmãos mais precisamos dela. Agora, posso fazer por mim mesmo
o que ela não fez. Não preciso mais dela.
Seu tom de voz é calmo, porém irredutível, assim como
a expressão no seu rosto.
Ele não pretende perdoá-la. Nunca.
Não sei o que ela fez, mas aposto que foi algo horrível
para Liam não se esquecer.
O milkshake de banana chega, acompanhado da água.
Mergulho o canudo dentro da taça, começando a prová-lo. O sabor
é uma explosão doce. Agora entendo a razão de colocarem a
palavra feliz em cada item do cardápio. Me sinto um pouco melhor.
Observo ao redor e percebo que a maioria das pessoas
presentes são pais acompanhados de seus filhos. Liam e eu
somos os únicos que parecem deslocados no cenário. Até porque
ele usa um terno.
— Obrigada por isso — falo, porque sinto necessidade.
— Tudo bem.
— A sua irmã tem sorte de ter tido você e seu irmão mais
velho.
Liam pode não demonstrar muito, mas sei que ele faria
qualquer coisa para proteger Brianna. Não há nada no mundo que o
impeça disso.
— Você quer voltar para o hotel? — questiona, fugindo
do assunto.
Talvez o passado dele seja mais complicado do que
eu imagine. Solto um suspiro.
— É, pode ser. Vou me apresentar em uma exposição de
artes amanhã. Preciso pintar um quadro.
— Tenho uma reunião amanhã, às duas.

— A exposição é às três. — Batuco os dedos sobre o tampo


da mesa. Um silêncio esquisito recai sobre nós. — Quer aparecer
por lá?
— Vou tentar — é tudo o que diz.
Liam deixa alguns dólares sobre a mesa, mais que o suficiente
para pagar nossa conta. Nos levantamos e saímos. Desta vez, uma
Limousine nos espera. Nem percebi quando ele a solicitou.
No trajeto de volta para o hotel, penso no quanto o dia hoje
foi estranho. Liam e eu tivemos uma conversa inteira sem farpas.
Ele me levou à lanchonete que sua irmã costumava frequentar, e
agora estamos retornando para o hotel com um silêncio
reconfortante, sem ressentimentos.
A vida é mesmo estranha.
26

A exposição de artes está cheia de gente. Seguro contra o


peito o quadro que irei exibir. Passei a noite toda pintando-o.
Quando Liam acordou, eu estava indo dormir. Cheguei trinta
minutos atrasada, porque acordei duas horas da tarde e fui às
pressas tomar banho. Além disso, o engarrafamento não ajudou.
Liam deixou apenas um bilhete sobre a cômoda, dizendo que
havia ido para a reunião.
Mordo o lábio inferior nervosamente e entrego meu quadro
para um dos organizadores. Acho que é como os pais se sentem ao
deixar os filhos no primário pela primeira vez. Um misto de
hesitação e ansiedade.
Observo enquanto meu quadro é pendurado em uma das
alas. Particularmente, estou orgulhosa de minha pintura. Ela foi
pessoal, trabalhada o máximo que consegui com o tempo
limitado. Fico parada em frente à tela e logo outras pessoas se
juntam ao meu redor para observá-la.
— Que quadro esquisito — alguém diz.
— Eu adorei! — Outra voz comenta.
— É lindo, mas meio assustador — a terceira
pessoa acrescenta.
Paro de prestar atenção na conversa ao meu redor. Como
artista, sei que nem todos irão gostar do meu trabalho, então
não dou a mínima. Alguém para ao meu lado, dizendo:
— Que quadro incrível, não acha?
Viro o rosto, pronta para responder, mas me calo ao avistar
o rosto do homem que estava com minha mãe. Este cara é o pai do
meu irmão, que nem sabe que existo. Sinto meu corpo estremecer,
minhas mãos começam a suar e minha mente se esquece de como
pronunciar as palavras.
— Está tudo bem? — Franze o cenho. — Você parece pálida.
— Desculpe, é que não comi nada hoje. — Uma meia
verdade. — Mas estou bem.
Seus olhos esquadrinham meu rosto, e ele solta uma
risadinha.
— Que engraçado. Você parece com minha esposa. Só
que mais jovem.
Eu sorrio, sem graça, sentindo náuseas.
— Fico feliz que tenha gostado do quadro — é tudo o que
digo.
Ele finalmente percebe o crachá de identificação de artista
no meu peito.
— Ah! Foi você quem pintou o quadro. Ele está à venda?
Acho que ficaria ótimo na minha sala de estar. Eu e minha
esposa gostamos muito de pinturas.
— Não pensei sobre isso — admito. — Mas podemos negociar.
— Penso por alguns momentos. — Bom, na verdade, pode levá-
lo. De graça.
— Sério?
— Sim, só preciso assiná-lo. — Dou de ombros, fingindo
que não estou prestes a vomitar meus órgãos.
Tiro uma caneta da bolsa e assino a tela com o nome
Phoenix Ogawa. Eu poderia usar meu pseudônimo, Flora, mas quero
que minha mãe saiba. Quero que ela veja meu nome, que o
assombre tanto quanto a ideia de vê-la outra vez me assombrou
todos esses anos.
— Vou avisar aos organizadores que você irá retirá-lo.
Seu nome…?
— Garret Jones.
— Ótimo, sr. Jones. Espero que o quadro fique bom em
sua sala de estar. — Me distancio antes que ele possa dizer
qualquer outra coisa ou que eu desista.
Deixo o nome dele com o organizador que pendurou meu
quadro, depois vou até o banheiro da galeria, aproveitando que
está vazio. Respiro profundamente, me encarando através do
espelho. O que é que estou fazendo?
Depois que saio, me surpreendo ao encontrar Liam. Ele
está parado no meio da galeria, as mãos enfiadas no bolso e
olhando para um dos quadros. As pessoas ao redor dele percebem
sua presença, que se destaca em meio às outras, mas ele parece
absorto a esse tipo de atenção. Ou simplesmente se acostumou.
Me aproximo, pensando que ele não nota minha
presença, contudo o loiro fala:
— Seu quadro já foi vendido? Perguntei para um dos
organizadores se podia levá-lo e disseram que estava reservado.
Escondo a surpresa no meu rosto. Diamond queria um
dos meus quadros?
— Outra pessoa insistiu muito para levá-lo. — Escondo
a verdade.
Finalmente, ele volta seu olhar para mim. As íris azuis,
quando encontram as minhas, desencadeia uma descarga elétrica
por todo meu corpo. É como se eu tivesse levado um choque.
Não entendo por que isso está acontecendo. Me sinto vulnerável
na presença de Liam.
— Por quantos milhares terei que subornar o gerente
desse lugar para que deixe eu levar seu quadro? — Arqueia as
sobrancelhas em minha direção.
Uma sombra de sorriso começa a se formar em meus lábios.
— Faço um quadro exclusivamente para você, sr. Diamond.
— E quanto vai me custar?
— Nada. É um presente.
— Eu quero gastar meu dinheiro com você. Por favor,
me permita.
Franzo o cenho.
— Quinhentos dólares — ofereço.
— Barato.
— Mil.
— Não faz nem cócegas.
— Dez mil.
— Tudo bem, mas esperava mais de você.
— Quer que eu cobre quanto? Quinhentos mil dólares? —
questiono, confusa.
— Se você achar necessário, pagarei. Não coloco preço na
arte de ninguém, muito menos na sua. O que você me pedir,
acharei justo.
— Então cem mil, e serão doados para as instituições que
eu escolher.
Algo cintila em seus olhos.
— Feito.
Sorrio para ele, mas o sorriso se desfaz assim que vejo
Garret se aproximar. E ele não está sozinho. Ao seu lado, está
ninguém menos que minha mãe.
— Aqui está ela, a artista de quem te falei! Reservei o
quadro para nós — anuncia, ansioso.
Então, nossos olhares se encontram, e o mundo todo para de
girar. De repente, não me lembro de como respirar. Naomi Ogawa
— agora Jones — me encara como se tivesse visto um fantasma.
— Nix? — ela sussurra, usando o apelido de
infância. Tenho vontade de vomitar.
De repente, Liam me ampara, passando um dos braços ao
redor dos meus ombros e segurando-me contra si. Abro a boca
para falar, contudo, nenhuma palavra sai. Não sei o que dizer, ou
como reagir, apenas a observo. Garret parece perdido.
— Você conhece a artista? — ele indaga,
surpreso. Ela o ignora.
— Meu Deus. Você está uma mulher crescida. — A frase
deixa um gosto amargo em minha boca.
— O que você esperava? — consigo questioná-la. — Que,
depois de todo esse tempo, eu continuasse a mesma garotinha
esperando pela mamãe? Você não sabe quantas noites passei
olhando pela janela. — Meus olhos começam a se encher de
lágrimas de raiva. — Não sabe quantas vezes me questionei sobre
o que eu fiz de errado para que minha própria mãe tivesse ido
embora.
Desta vez, são os olhos dela que se enchem de
lágrimas. Como ela ousa?
— O quadro que você gostou… — Me volto para Garret. —
É a visão que eu tive de Naomi indo embora.
A compreensão atinge Garret. A minha pintura é da
perspectiva da porta. É o cenário de uma mulher se distanciando,
sob a chuva, de costas, com uma mala sob o braço.
— Preciso ir embora. — Busco os olhos de Liam.
Ele assente com a cabeça. Nossa pequena discussão
atraiu alguns olhares das pessoas na galeria.
— Vamos embora — ele concorda. — O motorista está lá fora.
— Phoenix, espere. — Minha mãe tenta segurar meu braço,
mas eu me desvencilho antes mesmo que ela possa me tocar.
— Não. Por favor, continue fazendo o que você faz de
melhor, que é ignorar minha existência — murmuro, antes de Liam
e eu sairmos da galeria.
No automóvel, ficamos em silêncio. Quando estamos no
nosso quarto do hotel, ele pergunta se estou com fome e balanço
a cabeça em negativa. Estou sentada na poltrona, pensando em
tudo o que aconteceu nas últimas horas. Liam acendeu a lareira, e
fico observando o fogo.
— Quer que eu a deixe sozinha? — Liam questiona, meio
relutante.
— Não.
— O que posso fazer por você, passarinho?
Liam Diamond se ajoelha à minha frente, colocando uma
das mãos sobre meu joelho. O toque incendeia minha pele, e me
uno a ele no chão. Seus olhos parecem quentes. Devagar, encaixo
minha boca na sua.
O beijo começa e logo se intensifica conforme suas
mãos deslizam por meu corpo. Arfo contra seus lábios assim
que seus dedos roçam em meu seio sobre o tecido da blusa.
Meu coração bate forte, ameaçando explodir a qualquer
momento. Fogo parece correr em minhas veias. Liam não para
de me beijar enquanto nos deitamos no tapete, seu corpo se
posicionando entre minhas pernas.
Não quero que ele pare.
Nunca.
O puxo mais contra mim, como se fosse possível. Liam
quebra o beijo, olhando no fundo dos meus olhos.
— Tem certeza?
— Tenho.
É o suficiente para que Diamond comece a tirar sua camiseta
social. Quando seu peitoral nu está exposto, admiro todos os músculos
que esculpem seu corpo. Então, tiro minha blusa, depois a calça jeans.
Agora, estou apenas de sutiã e calcinha. Me sinto exposta e
envergonhada. Liam roça o polegar em meu lábio inferior.
— Linda, sonnenschein.
Não tenho tempo para perguntá-lo o que significa a palavra
em alemão, porque, no próximo segundo, ele abre o fecho do meu
sutiã. Eu o quero tanto que dói. Liam deixa uma trilha de beijos por
meu pescoço até que sua boca esteja ao redor do meu seio. Ele
coloca um dos mamilos na boca e eu gemo, sentindo como se meu
corpo estivesse em combustão.
O loiro insere um dedo dentro de mim, após colocar a
calcinha para o lado. Me sinto tão molhada que me dá vergonha,
mas ele não parece se importar com isso. Introduzindo o segundo
dedo, eu arqueio as costas, desejando que ele esteja dentro de
mim de uma vez por todas.
— Liam, por favor — imploro, contra sua boca.
Minha súplica surte efeito, porque ele se distancia para
pegar sua carteira, onde há um preservativo. Após tirar a calça, ele
volta a se posicionar no meio das minhas pernas. O calor da lareira
não permite que eu sinta frio, nem o tapete abaixo de mim.
Quando ele está pronto, me dá um beijo breve nos lábios
antes de começar a me penetrar. A dor que me atravessa é quase
alucinante. Sinto meu corpo estremecer e fecho os olhos com força.
— Phoenix — fala, o tom de voz grave e quase inaudível.
— Abra os olhos.
O encaro. Seu rosto está franzido. Liam tira uma mecha
de cabelo que cai sobre meus olhos.
— Você é virgem?
Sinto meu rosto pegar fogo. A dor é substituída por vergonha.
— Sim — admito.
Espero por uma reação, mas seu rosto permanece neutro.
Às vezes, eu desejo conhecer todos os seus pensamentos. Liam é
tão hábil em ocultar o que sente que parece injusto.
Ele volta a me beijar devagar e então move os quadris. Me
remexo, sentindo desconforto. Dá para perceber que ele está
sendo cuidadoso. É quase como se eu fosse feita de porcelana.
Liam é delicado e gentil. Tão cuidadoso que sinto algo se aflorar
em meu peito.
De repente, o incômodo é substituído lentamente pelo prazer.
Enlaço minhas pernas ao redor de sua cintura, e ele vai mais fundo,
aumentando a velocidade. Abro os olhos no momento em que Liam
quebra o beijo. É a imagem mais bonita que já vi em toda minha vida.
Seu rosto, parcialmente iluminado pelo fogo, a pele alva
corada, os lábios entreabertos, olhos fechados e cabelo loiro
caindo sobre sua testa… Diamond estremece sobre mim.
Seu peito sobe e desce em um ritmo profundo. Ele abre
as pálpebras, e o azul pálido me encontra.
Queria poder pintá-lo neste momento.
Liam me puxa contra seu peito, e permanecemos deitados
em frente à lareira, sobre o tapete. O silêncio que nos envolve é
reconfortante. A sonolência toma conta do meu corpo até que eu
adormeça em seus braços.

Quando acordo, não continuo mais no tapete. Estou no


quarto, deitada na cama e sozinha. Me sento e olho ao redor. Já é
dia, e as cortinas balançam com o vento que atravessa a janela.
Os raios solares lançam seu brilho dourado ao meu redor,
iluminando tudo.
Coro ao me dar conta de que estou sem roupas. Na cômoda
ao meu lado, algo chama atenção. Há um buquê de rosas
vermelhas e um pedaço de papel grudado nelas. Sorrio ao segurar o
bilhete. Começo a ler as palavras escritas à mão por Liam.
Phoenix,
Saí porque havia um assunto urgente para resolver,
não pense que fugi. Não encontro nenhum adjetivo que possa
descrevê-la, então quero que saiba que me deixou sem palavras.
Liam
O sorriso em meu rosto aumenta, a ponto de minhas
bochechas doerem. Nunca imaginei que Liam Diamond poderia
escrever bilhetes como esse. De bom-humor, me levanto e vou até
o banheiro, tomar banho. Depois que me visto com um vestido
vermelho de verão, ligo para Emi.
Ela atende no quarto toque.

— Finalmente! Da última vez que você me ligou, desligou


na minha cara.
— Desculpe, Liam tinha chegado na hora.

— Então… quer me dizer algo?

— Nós nos beijamos — compartilho, revelando apenas


isso por enquanto. Não quero admitir que perdi a virgindade.
O grito estridente de Emi faz com que eu afaste o telefone
da orelha, fazendo careta.
— Conte tudo! Todos os detalhes!

Relato para ela como ocorreu o primeiro beijo. Emi parece


tão alegre e empolgada que chega a ser hilário. Quando encerramos
a ligação, ouço uma batida na porta do quarto. Ajeito os cabelos,
pensando que é Liam, porém, quando giro a maçaneta, encontro
um segurança em minha frente. O corredor está vazio.
— Sr. Diamond solicitou que levasse a senhorita até o
local onde ele a espera.
Escondo o sorriso.

— Claro, só vou pegar minha bolsa.

Começo a me virar, então ele me puxa e coloca uma das


mãos sobre minha boca. Meu coração dispara. Sou arrastada para
trás. Tento lutar, mas ele é mais forte que eu. Meu grito sai
abafado. Um pano é pressionado contra meu nariz e, então, aos
poucos, meus membros amolecem.
Não, não, não.
Em um segundo, desmaio.
PARTE III
“Há partes de mim que não posso esconder
Eu tentei e tentei um milhão de vezes Bem
vindo ao meu lado sombrio.”
— Darkside, Neoni.
27

aos 16 anos
É véspera de Natal e nossa casa está silenciosa. Se fôssemos
uma família normal, estaríamos reunidos à mesa, celebrando juntos.
No entanto, não é isso o que acontece. Observo a neve cair, sentado
na janela do meu quarto.
Daqui de cima, vejo o momento exato em que o carro de meu
pai chega em casa. Acho que todos já estão dormindo. Olho no
relógio, os ponteiros indicam que já passa das duas horas da manhã.
Observo quando ele sai do carro acompanhado por uma mulher
que definitivamente não é minha mãe. Seus cabelos longos e
negros contrastam com o vestido inadequado para o clima. Travo
minha mandíbula ao vê-los atravessarem a porta da frente. Mamãe
está fora da cidade; ela nunca passa as datas festivas aqui. No
fundo, Donna sabe que Hernan aproveita as festividades para
passar dos limites. Embora ele tenha se mantido na linha
ultimamente, graças a ameaça de nossa avó, ainda fico em alerta.
Receoso quando a chave irá mudar em sua cabeça.
Risos e o estouro de uma garrafa de champanhe ressoam
no andar de baixo, acompanhados pelos gemidos que perturbam o
ambiente. Após algum tempo, tudo volta ao silêncio habitual, e a
porta se fecha.
A mulher sai sozinha para o pátio e anda até os portões.
Meu pai não dá a mínima para ela. Foi apenas uma das suas
diversões noturnas.
Permaneço próximo à janela, até que ouço a porta do quarto
de Brianna abrir.
Sei porque seu quarto fica à esquerda, bem ao lado do meu.
O de Bastian é ao lado do corredor, acho que ele é o único que se
livra de toda a barulheira, já que dorme distante das escadas.
Levanto-me, consciente de que Bree às vezes tem
pesadelos e me chama. Talvez ela tenha tido um esta noite. Ao
sair para o corredor, encontro sua porta entreaberta. Empurro-a
até que se abra, e então paro.
Hernan está ao lado de sua cama. Daqui, não consigo
discernir o que está acontecendo, pois a luz do corredor ilumina
parcialmente seu quarto. Ele se vira, assustado. Meus olhos captam o
movimento rápido que ele faz para subir o zíper da calça jeans.
Caminho até a cama de Bree e puxo o cobertor. Ela está
dormindo profundamente, abraçada ao seu urso de pelúcia. Está
vestida. Mas e se eu tivesse chegado alguns momentos mais tarde?
O pensamento me dá ânsia de vômito.

Fito Hernan. Estamos perto agora. Olho no fundo dos seus


olhos, onde uma expressão de culpa é evidente. Dá para ver que
ele está no meio termo entre bêbado e sóbrio, mas mesmo assim,
aparenta mais sóbrio que bêbado.
— Vim checar Brianna. — Coloca uma das mãos sobre
meu ombro. — Vamos.
Deixo que ele me conduza para fora do quarto, até seu
escritório. Fico parado, inerte, observando-o encher um copo de
uísque. A raiva começa como uma fagulha e, de repente, um
incêndio. Meu corpo treme e, num impulso, avanço sobre Hernan.
Minhas mãos se fecham em sua garganta, tão firmes que mal
lhe resta tempo de raciocinar.
As costas de Hernan batem contra o armário de bebidas,
chacoalhando-o. Uma garrafa se estilhaça no chão, fazendo um
estrondo. Quero matá-lo. Minha mente fica em branco. Há apenas o
desejo de vê-lo caído, sem ar e pulsação. Tudo se torna vermelho.
Desde o verão passado, cresci mais que Bastian e ganhei
músculos na academia. Se antes ele tinha poder sobre mim, agora
não é nada. Sou mais alto, mais forte. Posso me defender. Não
sou mais o moleque que aceitou dar voltas pelo pátio sob a chuva.
— Liam… — diz, ofegante, de forma entrecortada.

Quero ir até o fim. Aperto mais meus dedos. Seu rosto


inteiro está vermelho. Hernan parece patético agora, incapaz de
desfazer o aperto ao redor de seu pescoço. Conheço diversas
formas de encerrar isso, graças ao treinamento que tive com aulas
de lutas e autodefesa, mas escolho esta, para que eu possa olhar
em seus olhos enquanto ele dá o último suspiro.
No entanto, ouço o momento em que Bastian chega. Ele abre
a porta e imediatamente corre até mim, me puxando para trás.
Mesmo assim, não é o suficiente para fazer com que eu solte
Hernan. Ele precisa me imobilizar, mas não dou o braço a torcer.
Tento me desvencilhar de Bastian, em vão. Desfiro um soco
em seu rosto quando tento avançar outra vez e ele me segura.
Meu irmão cambaleia e eu acerto a mandíbula de Hernan. Dá para
ouvir o estalo de seu maxilar se deslocando. Bastian não deixa com
que eu continue; ele me joga no chão e, finalmente, me prende
sob si, aplicando técnicas de jiu jitsu.
— Me solta, porra! — ralho, tentando sair.

— Acalme-se, Liam. Qual é o seu problema? — grita de volta.

Fico em silêncio, tentando recuperar o fôlego. A risada


histérica de Hernan corta o ar. Ele olha para mim e Bastian como
se fôssemos uma atração de circo. Os dentes estão pintados de
sangue.
— Solte ele, Bastian — fala, escorado contra a parede,
sem fôlego.
— Ele vai matá-lo se eu fizer isso.

— Deixe.

As palavras parecem surpreender meu irmão.

— Liam é como eu — Hernan continua. — Ele é um


Diamond da cabeça aos pés. É o que você nunca vai conseguir ser,
Bastian. É uma pena que tenha sido o primogênito.
Meu irmão não parece compreender, contudo, eu
entendo perfeitamente.
Essa parte sombria dentro de mim, que nutriu o desejo de
matar Hernan, é exatamente do que ele está falando. Uma parte
que foi despertada hoje e que não sei como controlar.
Seu monstro reconhece o meu.

Quando Bastian percebe que desisti de fugir, ele me solta.


Agora, tenho a liberdade para avançar contra Hernan, para enforcá-
lo outra vez, mas e depois? Nossa família se tornará uma desgraça.
Serei preso, e Brianna provavelmente me odiaria, pensando que
arruinei nossa família. Me transformaria num assassino a sangue
frio perante a sociedade e meus irmãos.
Bastian me olha como se não me reconhecesse, como se não
soubesse quem sou agora.
Sem dizer uma palavra, eu me levanto. Um dia, serei o
sucessor. Vou tomar esse império para mim. Vou me tornar tão
poderoso que homens como Hernan serão diminuídos diante
dos meus pés.
Serei sutil, cuidadoso. Aparentemente inofensivo aos
olhos, não representarei nenhuma ameaça.
Lobo em pele de cordeiro.
Vou reinvindicar o que é meu por direito. E, quando
tudo estiver concluído, farei questão de garantir que Hernan
viva seu próprio inferno na Terra.
28

— Desculpe, senhor. Acabei pegando no sono. Não vi a


senhorita Ogawa sair — Bradley, o segurança do turno
noturno, murmura.
Mantenho o rosto inexpressivo enquanto caminho até ele.
Paro quando há apenas alguns centímetros de distância entre nós
e acerto um soco na boca do seu estômago. Ele cai no chão,
segurando o próprio abdômen. Na minha frente, estão todos os
seguranças contratados por mim e uma Kim apreensiva.
Tive uma reunião emergencial e por isso precisei deixar
Phoenix no hotel. No entanto, quando retornei, ela não estava.
Apenas seu celular e bolsa foram deixados para trás. Tenho um
pressentimento ruim. Bradley adormeceu, e Jonathan, o segurança
que devia trocar de lugar com ele, não compareceu e nem atende às
minhas chamadas.
Não sei o que houve. Com as câmeras do hotel em
manutenção e com nenhum dos seguranças da área externa
sabendo me dizer quando ela saiu, fico sem resposta. Isso não
me deixa nem um pouco contente.
— Vocês compreendem que esta é uma falha séria
de segurança? — Mantenho o tom de voz baixo.
Todos os cinco seguranças reunidos na parte de trás do
hotel acenam com a cabeça.
— Estão todos demitidos.

Não fico para ouvir o que nenhum deles tem a dizer. Suas
súplicas não me farão voltar atrás. Espero que Phoenix tenha saído
para fazer algo e volte em segurança. Kim tem que praticamente
correr atrás de mim para me alcançar. As portas do elevador quase
fecham antes que ela entre comigo. Talvez eu devesse tê-la
deixado com Phoenix esta manhã, teria sido mais útil que todos
esses homens juntos.
Assim que chego no quarto, recebo uma ligação. Peço
licença para Kim e me retiro em direção à suíte.
— Liam Diamond? — a voz do outro lado da linha questiona.

— Sim.

— Estamos com a garota.

A frase é suficiente para que eu entenda o que está


acontecendo. Phoenix foi sequestrada. Me forço a manter meu
lado racional no controle. Mantenho o tom de voz calmo quando
questiono:
— Quanto vocês querem?

— Não queremos seu dinheiro. Queremos acesso a todos


servidores internos das indústrias Diamond, do mundo inteiro.
Dá-los acesso significa o fim de tudo o que tenho até
agora. Minha mandíbula trava, e tenho que me conter para não
atirar o telefone na parede.
— Quantos dias?

— Três.

A chamada encerra.

PHOENIX
Meu pulso amarrado dói, assim como minha cabeça. Não
enxergo nada, pois meus olhos estão vendados. Não sei há quanto
tempo estou presa aqui, mas parece uma eternidade. Meu pai
sempre me alertou de que algo assim poderia acontecer um dia,
que homens loucos por dinheiro poderiam pedir um resgate alto por
mim. Nunca imaginei que isso realmente pudesse acontecer, no
entanto, aqui estou eu.
Ouço o barulho de uma porta se abrindo e me encolho na
cadeira em que estou sentada.
A venda é arrancada dos meus olhos, revelando dois
homens encapuzados à minha frente. Não consigo ver nada além
de seus olhos escuros.
— Água. — Um deles estende a garrafa em minha direção.

Não sei se devo aceitá-la, talvez tenha algo na bebida.


Contudo, se quiserem me matar vão fazer de qualquer forma. É
apenas uma questão de tempo. Com a mão que não está
presa, seguro a garrafa.
Começo a bebê-la, até que não sobre uma gota.

— Está com fome? — outro deles pergunta, e apenas


assinto em concordância.
Tento não demonstrar todo medo que sinto no momento.
Meu coração bate em um ritmo desordenado. Não sei se eles
pretendem fazer algo comigo.
— Vamos mandar comida, mas não é igual à que a
princesa deve estar acostumada — responde, e ambos riem.
Engulo em seco. Definitivamente sabem quem eu sou. Me
pergunto por quanto tempo eles devem ter bolado um plano como
esse. Agora, não desejo nada além de voltar para Tóquio e viver sob
as asas do meu pai para sempre. Ao menos lá, me sentia segura.
Não digo nada, porque não pretendo irritá-los. Um deles sai
da sala. É um quarto com uma cadeira, sem janelas e com apenas
uma porta que dá para um corredor escuro. Não faço a mínima
ideia de onde estamos.
— Ligamos para seu namoradinho quase agora — o outro
homem informa, cruzando os braços em frente ao peito. — Se
tudo der certo, iremos libertá-la em breve.
Então é disso que se trata? De Liam e não de meu pai? É de
se esperar que alguém como Diamond tenha acumulado uma
longa lista de inimigos. Quando a comida chega, purê de batatas
com arroz, não reclamo. Apenas mastigo e engulo.
Assim que termino, os dois homens saem da sala e ouço a
tranca da porta de metal fechar. Tenho vontade de chorar,
porque estou sozinha, com frio e medo. Engulo o nó na garganta
e penso que Liam virá a qualquer momento.
Pelo menos, é no que quero acreditar.
29

antes
Após ter visto Hernan no quarto de Brianna, todas as noites
durmo em um colchão ao lado de sua cama, com a justificativa de
que sou eu quem tenho tido pesadelos. Bree nunca se opôs,
apenas me faz assistir My Little Pony antes de dormir. Bastian
acredita que estou apenas ajudando-a a pegar no sono, enquanto
meu pai mal passa as noites em casa após o episódio.
Hernan e eu fingimos que nada aconteceu. Não contei para
Bastian, pois ele não sabe controlar suas emoções. Se eu senti
vontade de matar Hernan, meu irmão mais velho, sendo protetor
como é, não sei o que faria. Isso o consumiria de culpa para sempre.
É melhor que o peso do segredo corroa apenas um de nós.

— Bree, posso te perguntar algo? — Pauso o


desenho. Estamos prestes a dormir, e ela veste seu pijama
temático de pôneis.
— Sim, mas pergunta logo, preciso descobrir o que
a Applejack está prestes a fazer!
— O papai, ele… costuma vir aqui à noite? — Estou
tenso, torcendo para que minha irmã não perceba.
— Não. — Sua resposta me alivia intensamente, como se
um peso saísse de minhas costas.
— Quero que você tranque a porta quando for dormir, tudo
bem?

Ela franze o cenho, confusa.

— Por quê?

— Porque é melhor que seja assim. Já ouviu sobre


bandidos que assaltam casas?
Me sinto péssimo por plantar essa ideia em Brianna, mas
quero que ela se previna a partir de agora. Quero que ela se
prepare para à noite. Que esteja segura.
Ela hesita.

— Você acha que bandidos vão entrar aqui?

— Não sei, Bree. Mas tranque a porta, está bem?

— Então continue dormindo aqui até que eu me sinta


segura para trancar a porta e ficar sozinha.
— Combinado.

Mostro a ela como trancar a porta do jeito correto,


explicando a importância de conferir se realmente está fechada. Ela
assente e finalmente despauso o desenho. Me deito no colchão ao
seu lado e, pela primeira vez em dias, consigo ter um sono mais
leve, sem pensamentos ruins.
Pela manhã, me arrumo para o colégio, assim como Bree e
Bastian. Minha mãe está em casa hoje, mas permanece na sala,
assistindo tevê. Não se junta a nós para o café da manhã. Me
pergunto se ela não imagina o que seu marido faz quando ela
não está presente, porém duvido que se importe. Se ela
realmente se importasse, não sairia tanto de casa, nos deixando
aqui, sozinhos com ele ou os empregados.
— Amanhã é aniversário da Bree — Bash diz em um tom
de voz baixo, mordendo um pedaço de donut.
Apoiado contra o balcão com uma tigela de cereal, lanço
um olhar para nossa irmã mais nova, sentada à mesa, comendo
panquecas e assistindo desenhos no tablet.
— Estava pensando em fazer um bolo para ela e levá-la
até um parque de diversões. Acho que a mamãe nem sabe que
dia é amanhã.
— Vou falar com ela — resmungo de boca cheia, deixando
a tigela de lado.
Donna assiste a um reality show enquanto pinta as unhas
dos pés. Às vezes, é ela quem parece a adolescente, não nós.
— Mãe. — Chamo sua atenção quando me aproximo.

— O que foi, querido? — indaga, dispersa, os olhos presos na


tevê.
— Você planejou algo para a Bree?

Ela me olha como se eu fosse um idiota, e percebo que


ela não faz a mínima ideia do que estou falando.
— É aniversário dela amanhã — esclareço, com
pouca paciência.
— Ah! — Ela parece surpresa. — Achei que fosse domingo.

— É amanhã.

— Amanhã tenho compromisso.

— Deixe-me adivinhar, salão de beleza? — Minha voz sai


carregada de amargura e acho que ela percebe, porque para
de pintar as unhas dos pés e me lança um olhar meio culpado.
— Vou dar dinheiro para que vocês a levem ao cinema
ou algo do tipo, tudo bem?
— Não, não está tudo bem. O fato de eu e Bastian termos que
assumir o papel de pais de Brianna não é legal, mãe. A Bree precisa
de você, mas você nem tenta, não é? Tudo o que te importa
é a aparência do seu cabelo e aplicações de botox.

Sei que minhas palavras a ofendem profundamente, pois


seu rosto cora e vejo a raiva atravessar seu rosto.
— Olhe o jeito que fala comigo, apesar de tudo, continuo
sendo sua mãe. A Bree vai entender que não posso comparecer.
Vocês todos deveriam entender. Não falta nada a vocês. Têm
acesso às melhores escolas, roupas, lugares e dinheiro para a
faculdade. Não é o suficiente?
— O seu erro, Donna… — Uso seu nome propositalmente,
o que parece ultrajá-la. — É achar que dinheiro compra afeto,
lembranças e amor — completo com tom de voz frio. — Mas não
se preocupe, quando você cair em si, vai ser tarde demais.
Não espero por sua resposta, apenas viro as costas e saio da
sala, furioso. Não entendo qual é o problema dela. No fundo, acho
que Hernan e Donna não queriam ser pais, e muito menos estão
preparados para isso. Eles apenas aceitaram as consequências de
uma noite de sexo sem proteção e os benefícios que uma linhagem
iria lhes proporcionar.
Bastian nem pergunta como foi a conversa com nossa mãe,
acho que minha expressão entrega tudo. Ele dá dois tapinhas em
meu ombro e diz que não precisamos dela, mas é mentira. Nós
dois nos convencemos disso durante a infância, enganando a nós
mesmos até agora. Ela nunca esteve nas apresentações do colégio,
ou quando trocamos de faixa no karatê. Nunca esteve nos diversos
prêmios de honra que recebi.
Sua negligência vai além, é por isso que Hernan sempre
fez tudo o que achou que deveria fazer.
Agora, não preciso de nenhum deles. Não sou mais
uma criança e não busco mais aprovação.
30

— Parece que ninguém vai vir te salvar, princesa — um


dos homens encapuzados debocha, escorado contra a porta.
Já faz alguns minutos desde a chegada dele e preferia
quando estava aqui sozinha. Meu estômago se retorce de dor
outra vez. Não me dou o trabalho de respondê-lo. Em seguida,
outro homem entra no cômodo, com um celular nas mãos.
— Tape a boca dela.

Começo a protestar, mas é inútil. Em questão de segundos,


uma fita cobre minha boca. Eles iniciam uma ligação no viva-voz.
— Seu tempo está se esgotando, Diamond. É nosso
último aviso — ralha um dos homens, irritado.
— Sinto muito, mas o valor é maior do que estou disposto a
pagar. — A voz de Liam soa clara e alta do outro lado da linha.
O valor é maior do que estou disposto a pagar.
A frase ecoa na minha mente diversas vezes. Quero
acreditar que tudo não passa de um pesadelo, uma mentira, porém
é real. Estou presa aqui e a única pessoa que poderia me salvar
acabou de me jogar na cova de leões.
Ele não espera por uma resposta, simplesmente desliga na
cara dos meus sequestradores. Me sinto tão exausta que não há
lágrimas para derramar. Os encapuzados começam a despejar
murmúrios e xingamentos. Não presto atenção no que eles estão
dizendo, apenas sucumbo ao cansaço, fechando os olhos.

Acordo com uma comoção do outro lado da porta antes que


ela se abra de maneira brusca. Policiais adentram à sala, todos
armados, e me libertam. Embora sinta alívio, as lágrimas não vêm.
Ao ser conduzida para fora, olho para trás, percebendo que
estava em uma casa abandonada. Embora espaçosa, a fachada
está praticamente caindo aos pedaços. Os dois criminosos, agora
desmascarados e algemados, são conduzidos para dentro de uma
viatura.
Uma policial me faz perguntas durante todo o trajeto até
a delegacia e informa que meu pai está à minha espera.
Adormeço durante o percurso. Ao acordar, encontro meu
pai na porta do departamento policial. Seu abraço me transmite a
promessa de que esse pesadelo logo chegará ao fim e é tudo o que
desejo. Olho ao redor, mas não avisto Liam, o que me deixa com
raiva.
Eu devia esperar. Afinal, ele sempre deixou claro que a
ambição e poder são seus principais focos. Fui ingênua ao pensar
que, por trás de sua máscara fria, poderia haver um coração.
Liam Diamond não possui coração. Ele é apenas um
homem frio usando pessoas para suas necessidades pessoais.
É a primeira vez que começo a chorar.

— Está tudo bem agora, querida — meu pai diz,


apertando-me em seus braços. — Vamos voltar para casa.

No primeiro dia de volta para casa, permaneci trancada em


meu quarto o dia todo. Recebi algumas mensagens de Ren e uma
cesta de sua família, porém o ignorei. Meu pai redobrou a
quantidade de seguranças, por prevenção, e me sinto melhor desta
forma. Sei que os homens que me sequestraram são apenas
subordinados, o que significa que a pessoa por trás disso ainda
está livre. Por ora.
Ouço batidas na porta, o que me faz estremecer. Agora,
qualquer mínimo barulho está me assustando. Só relaxo
quando ouço a voz de Emi abafada atrás da madeira e a abro.
Ela salta sobre mim assim que me vê e caímos para trás na
cama.

Minha amiga me abraça tão forte que começo a sufocar.

— Emi, você está me esmagando — murmuro, rindo de


seu exagero.
— E daí? Quando seu pai disse que te sequestraram, quase fui
para os Estados Unidos atrás de você. — Ela se distancia e vejo seus
olhos marejados. — Sério, nunca mais me assuste dessa forma.
— Há uma pausa. — Eles não…

— Não — a interrompo. — Ninguém me tocou, ou

machucou. Ela suspira, visivelmente aliviada.

— E o Liam, onde ele está?

— Não quero falar sobre ele. Nunca mais.

Minha amiga franze o cenho, mas não retruca. Desde que


cheguei a Tóquio, Diamond não me enviou uma mensagem
sequer. Sei que ele também está de volta. Ouvi meu pai
conversando com ele no telefone mais cedo, marcando uma
reunião. Não quero vê-lo nem em um milhão de anos. Quero
contar tudo o que aconteceu para meu pai, mas sinto vergonha.
Vergonha por ter me entregado a alguém que me
descartou como se eu não valesse nada.
Ele é um canalha.

Só de lembrar sinto um ódio profundo, então me esforço


para mantê-lo longe dos meus pensamentos.
Para ocupar a mente, e pela milésima vez, Emi e eu
estamos assistindo um filme inspirado em um dos romances do
Nicholas Sparks. Mas somos interrompidas quando a governanta
me informa que tenho visita.
Meu coração começa a bater mais forte. Deixo Emi no
quarto e desço as escadas. É quando percebo que está chovendo.
O barulho dos trovões retumba pela casa inteira.
Eu o observo pela janela.
Liam está parado no meio do pátio, sendo atingido pela
chuva torrencial que cai lá fora. Acho que é a primeira vez que ele
se assemelha a um humano. Que vejo as emoções em seu rosto.
Pela primeira vez, ele parece um homem derrotado. Um
anjo caído, com o cabelo loiro molhado grudado na testa e as
roupas encharcadas. Sua mandíbula se tenciona quando seus olhos
travam nos meus. Leio a súplica silenciosa presente neles.
Por favor, me deixe entrar.
E eu quase cedo, quase. Contudo, apenas me afasto da
janela e fecho as cortinas, sentindo meu coração afundar e
congelar dentro do peito.
Não posso deixar que ele e nem ninguém me machuque outra
vez.

Nunca mais.

Faz três semanas desde que minha vida, aparentemente,


voltou ao normal. Estou fazendo aromaterapia e tendo o
acompanhamento de uma psicoterapeuta toda segunda, para que eu
possa controlar minhas reações pós-sequestro. Fiquei dez dias sem
sair de casa e sofrendo com pesadelos, até que decidi que não
poderia viver assim para sempre e busquei ajuda. Voltei a dormir
bem e a me sentir segura, inclusive, neste momento, sou
acompanhada pelo meu segurança. Ele fica comigo em qualquer
ambiente em que eu esteja, e isso não me incomoda. Ele se mantém
distante, para que eu possa ter privacidade, como agora.
Esta manhã vim até o Hide & Art pintar, sem me importar com
o quão estranho pareça ter um guarda-costas aqui. Mas agora todos
sabem que sou Phoenix Ogawa, não Flora. Não escondo mais minha
identidade, até porque seria impossível. Apesar dos esforços
de Jim Ogawa para manter o sequestro fora da mídia, Liam e eu
ainda somos considerados o casal do momento, o que é uma
grande ironia, visto que não nos vemos desde que ele apareceu na
porta da minha casa durante o temporal.
Meu pai está mais flexível desde que fui sequestrada e não
tem dito nada sobre eu estar me inserindo profundamente no
mundo da arte. Acho que, por ora, ele quer que eu fique aqui em
Tóquio, onde pode colocar os olhos em mim. Ir para Harvard é
estar em outro continente, onde ele se torna imponente. Acho que
isso o amoleceu.
Solto um suspiro audível quando percebo que estou pintando
os olhos dele. É uma droga como minha mente sempre dá um jeito
de se associar a Liam Diamond.
Queria que tudo voltasse a ser como era antes de conhecê-lo.
Abaixo a mão com o pincel, desistindo do quadro.
Pego minha bolsa e resolvo sair do ateliê. Tenho andado
muito estressada ultimamente, nem mesmo a pintura pode aliviar
isso. Acho que preciso começar aulas de ioga ou algo do tipo.
— Senhorita Phoenix — o segurança chama, fazendo-me
olhar sobre o ombro enquanto caminho. — Há ordens do seu pai
para que a leve para almoçar com ele.
— Tudo bem.
Nós entramos no carro e logo chegamos ao restaurante.
Avisto papai sentado sozinho próximo às janelas. Me sento à sua
frente.
— Phoenix — ele me cumprimenta, tenso. — Temos
que conversar sobre um assunto sério.
Franzo o cenho, estranhando a apreensão em seus olhos.
— Diga.
— Sua mãe me ligou. Ela me disse que você foi atrás dela.
Faço uma pausa antes de responder:
— E daí?
— Ela queria saber sobre a possibilidade de… passar alguns
dias em Tóquio, com você. Se quiser, é claro.
Fico em silêncio, sentindo meu coração bater tão forte que
parece que vai sair do meu peito. Não sei o que responder. Isso é
algo que sempre quis. Sonhei com o dia em que minha mãe voltaria
para Tóquio e nós teríamos uma tarde de garotas. Porém, esse era
um sonho da Phoenix ingênua e, no momento, ela está morta.
— Diga a ela que não precisa vir.
A resposta parece surpreender meu pai.
— Tem certeza? Sei que isso deve ser importante para você.
— Tenho. Eu não quero vê-la. Ela fez a escolha dela, pai.
Ela escolheu nos deixar e ter uma nova família. Se eu não tivesse
ido atrás dela, ela jamais me procuraria.
Meu pai não diz nada. Não faço a mínima ideia do que
ele pensa no momento.
— Me desculpe, Phoenix. Por ter sido ausente e por não
escutá-la. Quero que você siga o caminho que escolher e que
seja feliz.
Suas palavras me surpreendem na mesma medida que me
deixam feliz. Nossos pratos chegam e continuamos em uma
conversa. É algo que nunca fizemos antes, mas eu gosto. Apesar
de tudo, foi ele quem permaneceu, de seu jeito, mesmo que
distante. Ele quem manteve comida na mesa enquanto minha mãe
explorava o mundo, formando uma nova família.
Pode ter passado longe de ser o pai perfeito, no entanto,
ele ficou comigo. Nós dois experimentamos a dor do abandono.
— Então, já sabe o que vai vestir? — Emi questiona.
Estamos no meu quarto, revirando o closet em busca de algo
legal para vestir. Vamos até Shibuya esta noite, em uma balada. É a
primeira vez que vou sair depois de todo esse tempo. Ainda me
sinto meio insegura, mas, tenho os seguranças e Emi, que prometeu
que não vai deixar com que nada aconteça comigo. É um passo
importante para mim, porque não quero deixar com que o trauma
me reprima de viver minha própria vida. Preciso começar a seguir
em frente.
Escolho um vestido que nunca usei. É preto, se molda
perfeitamente ao meu corpo e é bem ousado. Emi aprova minha
escolha, então começamos os penteados e maquiagem, já que ela
veio vestida.
Deixo os cabelos soltos, o que é quase raro, e passo uma
camada de batom vermelho nos lábios. Quando terminamos, os
seguranças do meu pai nos guiam até o carro. Ele só concordou
que eu saísse com a condição de que iria acompanhada com seus
homens de confiança, apenas os melhores.
Assim que chegamos no endereço, somos recebidas por uma
fachada moderna e futurista. Luzes neons dançam pelo interior do
lugar, junto com a batida da música. A pista de dança, situada no
coração do ambiente, é constituída por palcos individuais e
coletivos. Há uma garota dançando em um pole dance, atraindo
muitos olhares para si.
— Tá a fim de um drink? — Emi grita, sobre toda a
barulheira.
— Por que não?
Então, começamos a ir em direção aos bares. Os balcões
estão cheios. Bartenders habilidosos misturam coquetéis exóticos
e coloridos, servidos em copos de cristal. Garrafas de bebidas
importadas estão exibidas nas prateleiras, transformando o
cenário em algo sofisticado.
Emi e eu decidimos pedir três shots de vodka cada.
Não queremos ir com calma.
Depois de tomar cada um deles, enfileirados, estamos prontas
para ir até a pista de dança.
A música reverbera no ambiente enquanto nós dançamos
juntas. Em algum momento, homens se aproximam de nós, e
pelo canto do olho, vejo os seguranças se agitarem. Antes que
eles possam agir, eu mesma os dispenso. Não estou aqui para
causar confusões.
Quando meus pés começam a doer, decido me sentar em
um lounge da balada, em um canto reservado. Minha amiga vem
até mim com duas garrafas de cerveja, dançando mesmo que a
música chegue abafada e distante no lugar que estamos.
— Toma. — Ela estende a garrafa em minha direção e
a aceito. — Viu alguém bonitinho?
— Não estou interessada nisso. — Me forço a piscar
para manter a visão focada.
Começo a entornar a garrafa. Quando acaba, me levanto, e
Emi me segue de volta para a pista. Não sei quanto tempo ficamos
lá, dançando e bebendo drinks, mas nos divertimos muito. Me sinto
livre aqui e esqueço de todos os problemas. Em algum momento, Emi
começa a se sentir enjoada e então decidimos ir embora.
Me despeço dela assim que o motorista para o carro em
frente à sua casa. Esperamos que ela entre em segurança e,
então, ao invés de ir embora, peço ao motorista:
— Me leve até a propriedade de Liam Diamond.
31

O som insistente que ressoa na madeira me desperta do


sono. Olho para o relógio sobre a cômoda, que marca meia-noite.
Com uma expressão irritada, me levanto e giro a maçaneta,
revelando um dos seguranças, que parece um tanto apreensivo.
— Desculpe interromper seu sono, senhor. Temos
um problema.
— Diga.

— Há uma mulher no portão que se recusa a sair sem vê-lo.


Ela diz ser Phoenix Ogawa e exige que o senhor a receba.
Exige?
— Abra — é tudo o que digo, voltando para meu quarto.

Não posso evitar que a dúvida tome conta de mim. Visto


uma camiseta branca e desço as escadas para o primeiro andar.
Puxando a cortina da sala, observo o exato momento em que
Phoenix entra na minha propriedade. Ela usa um vestido curto que
molda seu corpo perfeitamente. Os pés nos saltos vacilam, e ela
parece se esforçar para se manter firme.
Ela para e olha para a estátua no meio do jardim, a
mesma que mandei trazer de um artista de Roma.
A escultura parece fascinar Phoenix. Mas, então, ela começa
a empurrá-la.
— Senhor, ela está quebrando sua escultura — o
segurança diz atrás de mim, como se eu fosse cego.
— Deixe.

— Senhor, mas… é avaliada em cem mil dólares.

— Eu disse para que deixe. E se algum segurança tocar


nela, acordará no inferno no mesmo segundo. Avise todos.
Sem dizer uma única palavra, ele acata a ordem e envia a
informação através dos rádios comunicadores. Observo da janela
enquanto Phoenix destrói a escultura, chutando o resto dos
estilhaços com os saltos. Ela para quando bate o dedo do pé, e
posso ouvir o xingamento que escapa de seus lábios daqui.
Solto um suspiro.

Autodestrutiva.

Abro a porta, mas ela nem percebe quando saio. Está frio
aqui. O vento gélido bate contra mim, e me pergunto como ela não
está congelando usando apenas um vestido curto.

— Passarinho.

Minha voz sai num sussurro, baixa o suficiente para que


ela não escute, mas, de alguma forma, seu rosto se vira em
minha direção como se um ímã a atraísse para mim.
— Você é um traidor! — grita. Sua voz ecoa pelo espaço

todo. Definitivamente, está bêbada.

Phoenix começa a andar em minha direção, e eu espero,


apoiado contra o batente da porta. Ela tropeça e cai bem nos meus
braços. A seguro, inalando o cheiro de frutas vermelhas que exala
de seu cabelo. A garota está uma bagunça, porém continua linda.
Os olhos dela me lembraram a curva de uma lágrima, com a dobra
epicântica. Ela os pisca para mim e cora em seguida. Estamos
perigosamente perto.
— Posso soltá-la ou você vai voltar a cair? — pergunto, com
a voz suave, ainda mantendo-a por perto.
Phoenix se desvencilha do meu toque de forma brusca e
se afasta quase como se eu estivesse em chamas.
Ela passa por mim, entrando na minha casa e
esbarrando propositalmente no meu ombro.
— Você não vai dizer nada? Não vai nem se desculpar?
— questiona, indignada.
Então se trata disso, um pedido de desculpas. Só consigo
reparar no quão bonita ela é. Ainda mais com raiva. Phoenix se
senta no sofá, derrotada, quando percebe que não direi o que ela
quer ouvir. No entanto, estou disposto a escutar tudo o que ela
tem a me falar, mesmo que seja ruim.
— Eu odeio você — sussurra, olhando para as próprias mãos.

Escondo minhas emoções. Visto minha máscara fria. Não


deixo que ela saiba que eu me importo, nem que suas palavras
rompem todas as barreiras que construí. Me certifiquei de que
fossem indestrutíveis o suficiente para que nada e nem ninguém
alcançasse meu coração. Mas aqui está ela. Pouco mais de um
metro e sessenta, vestido preto e a aparência de um anjo. Um
passarinho que fez seu ninho no meu peito.
Ela pode me fazer sangrar. A única.

Me sinto vulnerável, exposto, porém não demonstro. Fico ali,


ouvindo Phoenix desabafar por trinta minutos, acusando-me de tê-la
usado e utilizando todos os xingamentos possíveis para me definir.
Monstro, babaca, idiota sem coração… e outros de sua lista
que parece ser infinita.
— Como consegue? Você disse que não estava disposto a
pagar o valor que eles queriam. Você, Liam Diamond, bilionário…
— O que você não entende, Phoenix, é que eles não
queriam dinheiro, mas, sim, todas as minhas indústrias. Não sabe o
que sacrifiquei por elas. É tudo o que tenho. Tudo o que me resta.
Ao dizer isso, observo sua reação. Seus olhos
ficam magoados, e ela evita me encarar.
— Isso não é verdade. É uma pena que pense dessa
forma. As indústrias não eram tudo o que tinha. Mas, você está
certo, é tudo o que te resta agora.
Eu a perdi.

— Entendo.

Há tantas coisas que quero dizer, mas não sei por onde
começar, ou se devo começar. Acho que Phoenix ficará melhor sem
mim. Ela é como uma flor delicada que ao menor dos descuidos,
terá suas pétalas secas. Sem a germinação certa, ela não
florescerá. E com suas raízes teimosas, que frequentemente
crescem em direções erradas…
Não sei se posso cultivá-la.

Phoenix solta um suspiro brusco quando olha para o próprio


pé. Seu dedão está sangrando, consequência da vandalização que
ela fez no meu jardim. Vou buscar o kit de primeiros socorros que
há na minha cozinha. Quando volto, me ajoelho à sua frente.
— Vamos cuidar do seu machucado. — Começo a limpar
o sangue seco de sua pele.
O corte não é profundo, porém extenso. Com um pouco de
álcool num pedaço de algodão, seguro seu tornozelo com firmeza.
— Vai arder — aviso, pressionando-o contra o
machucado antes mesmo que possa reagir.
Phoenix estremece e solta um palavrão. Termino de colocar
o band-aid, ignorando todos seus murmúrios.
— Por que você tem que fingir que se importa? —
resmunga, parecendo arrasada.
Porque me importo, mas não digo isso em voz alta.
Phoenix arranca um fiapo vermelho da bolsa que está
usando. O fio da costura desprende e ela o quebra com os dedos,
segurando-o. Agora, com os cabelos soltos ao redor de seu ombro,
sinto vontade de beijá-la até que se esqueça do meu próprio nome.
Assim, me tornaria um simples rapaz apaixonado por uma bela
moça. Não haveria perigo, nem nada que envolvesse o sobrenome
Diamond. Eu seria dela, e ela seria minha. Simples assim.
— Akai ito — murmura, olhando no fundo dos meus olhos.
— Fio vermelho? — questiono, ainda ajoelhado em sua frente.

Estamos tão perto que posso sentir o seu cheiro inebriante.


Quero trazê-la para meus braços, mas sei que não é apropriado
no momento. Não posso ser tão egoísta a este ponto.
— Sabe o que significa a expressão, sem tradução literal?

— Não.

— Essa frase é usada para descrever uma crença relacionada


ao destino ou ao amor. Ela sugere que mesmo que duas pessoas não
possam estar juntas e estejam separadas pelas circunstâncias atuais,
elas sempre acharão o caminho de volta uma até a outra.
Phoenix segura minha mão, enrolando o fio em um dos
meus dedos e, depois, no próprio mindinho. Seus olhos cor de
avelã encontram os meus. Não resisto ao impulso de colocar a
mecha que cai sobre sua visão atrás da orelha. A cabeça dela se
inclina quando meus dedos resvalam em sua bochecha.
— Durma aqui essa noite — peço, não querendo que ela
vá embora.
— E acordar sozinha pela manhã? — questiona, desfazendo
o fio ao redor de seu dedo e se levantando. — Adeus, Liam.
Eu não a impeço de ir. Só me certifico de que ela está
segura, de longe, entrando no automóvel que sei que é designado
por seu pai, com seus novos seguranças. Então, quando ela parte,
me sinto mais vazio que o habitual.

— Espera, deixa eu ajeitar a câmera — murmura Bastian,


enquanto aguardo impaciente, sentado na cadeira do escritório.
Normalmente, faço videochamadas com parceiros de
negócios, mas Bastian está longe disso. Ele é meu irmão mais
velho. Já faz um tempo desde a última vez que conversamos. Como
ele mora na França, é difícil nos encontrarmos pessoalmente ou até
mesmo online com frequência, considerando minha agenda agitada
na indústria. Além disso, ele é proprietário de uma confeitaria de
sucesso, então acho que entende.
A câmera para de tremer e finalmente o rosto dele
aparece na tela.
Ele parece exausto, com a barba por fazer cobrindo seu
maxilar, contudo, mesmo assim, sorri para mim da mesma
maneira de quando éramos apenas pirralhos. Bastian é assim,
sempre cheio de calor e sentimentos, o oposto de mim.
— Então, como estão as coisas aí em Tóquio? — questiona.
— A Bree disse que te visitou.
— Agitadas. Sim, ela ficou uns dias por aqui. E a
Georgina, está bem? — refiro-me à esposa dele.
Bastian ri.

— Se ela te ouvisse a chamando assim, atravessaria a tela


do computador só para estrangulá-lo. Mas, sim, tirando os enjoos,
Gina está bem. Estamos com o pré-natal em dia.
Bastian e Gina esperam um bebê. Eles descobriram a gravidez
há cerca de quatro meses. Eles merecem ser felizes depois de tudo
o que passaram para ficarem juntos. Por mais que eu não diga ou
demonstre, fico satisfeito por Bastian ter encontrado o caminho para
a vida que sempre desejou.
— Por que me ligou? — meu irmão questiona, depois
de alguns momentos de silêncio.
— Há uma… — Não consigo completar a frase. É quase como
se uma força invisível me impedisse.
Ele arqueia uma sobrancelha.

— Uma…? — repete e dá para ver que está se divertindo.

— Uma… — Respiro fundo, travando a mandíbula. — Uma


pirralha insolente que tentou me sabotar, invadir meu escritório,
jogou café na minha camiseta. — Vomito as palavras e arranco
uma gargalhada do meu irmão mais velho. — Essa garota… que
não sai da minha cabeça. Que está me deixando louco.
— Nunca imaginei que fosse te ouvir dizer essas palavras,
irmãozinho. Finalmente! Grande dia! Gina me deve uma grana.
— Como assim?

— Apostei que você iria se apaixonar até os vinte e


quatro. Ela disse que era impossível, que você não tem coração.
— Engraçadinhos — murmuro, irritado. — Me ajude, não sei
o que fazer. Quero me livrar disso que sinto.
— Por que quer se livrar? Amar é bom, cara. Tenho certeza de
que ela deve ser muito boa para ter despertado tudo isso em você.
— Esse é o problema. Ela é boa demais. Eu não quero
corromper a pureza dela. Eu sinto como se fosse destruí-la.
A expressão de Bastian muda. Agora, ele assume a
postura de irmão mais velho experiente.
— Escuta, Liam, você não é mais aquele garoto que esperava
afeto de nossos pais, nem aquele que achava que não merecia ser
amado. Você é um homem agora. Lembra quando você ficava
assustado com as brigas de nossos pais e se escondia no armário?
— Um pequeno sorriso triste delineia seus lábios. O tempo parece
parar, ouço apenas o farfalhar do vento e a cortina do escritório
balançando. Uma a uma, as lembranças invadem minha mente.
Me remexo, inquieto, e Bastian completa:

— Está na hora de sair deste lugar. Sozinho.


32

— Está indo para o lado errado — murmuro para o


motorista, pois o Hide & Art fica em outro local.
— Perdoe-me, senhorita Phoenix. Há ordens expressas de
seu pai para que a leve no endereço sugerido.
Afundo no banco, murmurando. Deixei um quadro no ateliê
e queria voltar para pegá-lo, mas, pelo visto, não será possível.
Não sei para onde estamos indo, então apenas espero até que
cheguemos no local. Observo atentamente o prédio de dois
andares com a fachada coberta. Há uma pequena fila do lado de
fora e franzo o cenho.
— Que lugar é esse?

— É a inauguração de uma nova galeria. Seu pai achou


que gostaria.
Intrigada, desço do carro. Acho que é a galeria mais bonita
que já vi em toda minha vida. A fachada é feita de mármore e a
vitrine é extensa, mas está vazia. Assim que desço do automóvel,
congelo, porque o avisto. Encostado em um conversível do outro
lado da rua, está ninguém menos que Liam, me olhando com
atenção.
Faz umas quatro semanas desde que fui até sua casa e
quebrei a escultura. Meu rosto cora quando me lembro. Não me
orgulho disso, até porque sou defensora da arte, porém eu
estava bêbada e com o coração partido.
— Está me perseguindo? — Cruzo os braços sobre o peito.

— Não.

— O que quer, então?

Ele estende a mão.

— Quero que você me acompanhe.

Alterno meu olhar entre a palma estendida e seu rosto,


sopesando. Meu coração bate forte. Por fim, escolho me
proteger. Não seguro sua mão, mas o acompanho. Ele ultrapassa
a fila da galeria, o segurança apenas o deixa passar.
Assim que atravessamos o hall de entrada do lugar, congelo. Cada
quadro nas paredes é exposto com uma luz suave que destaca os
detalhes dos traços. São minhas artes. Com certeza, há dedo do
meu pai aqui. Guardo todas as minhas obras no porão de
casa. Ele deve ter permitido que Liam as trouxesse para cá.
O piso sob nossos pés é revestido por um tapete macio que
absorve sons. A atmosfera deste lugar está incrível e discreta, além
de que tudo é sofisticado. No centro do salão, está a arte da fênix
que usei o isqueiro para dar o toque final. Estou sem palavras.
— O que é isso? — sussurro, deslumbrada.

— Sua galeria.

— Você a construiu?

— Pedi que construíssem. — Dá de ombros, como se não


fosse grande coisa. — Há uma sala de artes no andar de cima.
— Me mostre — exijo.

Liam me guia até uma escadaria luxuosa, com uma elegante


balaustrada. Subimos os degraus e, ao alcançarmos o topo, fico
boquiaberta. Há estantes cheias de todo material de pintura
possível. É como uma biblioteca, mas em vez de livros, está repleta
de tintas e pincéis. Ao centro, uma imponente mesa de mogno,
cercada por cadeiras confortáveis e suporte para telas.
Sem conseguir me conter, dou pequenos pulos até alcançar a
fênix impressa no centro do tampo de madeira. Abaixo dela, há os
dizeres: Phoenix's Gallery. Este é o nome do lugar. Começo a
dançar, ignorando o olhar de Diamond que parece perfurar minhas
costas. Contudo, ao me virar, paro abruptamente, voltando à minha
expressão habitual de raiva.
Limpo a garganta, ignorando a diversão que cintila em
seus olhos azuis.
— Não pense que pode me comprar com um lugar desses.
— Cruzo os braços e adoto uma postura defensiva. — Ainda estou
magoada.
— Eu sei.
— E ainda te odeio — acrescento. — Isso aqui não muda
nada.

— Também sei disso.

— Então, qual sua pretensão? — Olho para ele, desconfiada.

Diamond usa uma camiseta de botões preta que destaca


a cor de suas íris. Ele dá um passo à frente, mantendo toda a
sua elegância, com a altura imponente e porte atlético.
— Apenas que você seja feliz e realize todos seus sonhos. E
que me escute.
Engulo em seco. As palavras dele são perigosas, assim como o
jeito que me olha. Acho que nunca vi seu rosto tão caloroso antes.
É quase como se ele estivesse… Não.

Isso não é possível.

Homens como Liam não são capazes de sentir amor.

— Diga o que você tem para dizer — falo, esperando.

— Lembra quando te avisei que ser vista comigo poderia te


colocar como um alvo? Eu não estava brincando, Phoenix. John
Mellon, o pai de Vanessa, tem ligações com Ryo aqui em Tóquio. O
sr. Ogawa e eu trabalhamos ocultamente durante todo esse tempo
para reunir provas que possam prendê-los. Ao final do dia, estarão
atrás das grades. Eles sabiam que estaríamos em Boston e, através
de registros antigos, que estavam no pendrive misterioso, descobri
que aquela propriedade abandonada pertencia a Magnus. Eles três
se juntaram em um plano de vingança e usaram você como isca.
Eu deveria ter desconfiado desde o início, quando os sócios de John
solicitaram reuniões acerca de uma proposta…
Fico em silêncio e absorvo as informações. Minha
cabeça começa a doer. Estou cansada desse assunto.
— Você não tinha como saber — é o que falo.

— Eu devia ter esperado.

— Mas o que isso tem a ver com o fato de você ter posto
todo seu império acima da minha vida? — questiono, ficando
mais irritada do que eu gostaria.
— Não coloquei. Apenas fiz parecer que sim. Eu sempre estou
um passo à frente. Já havia enviado meus homens para ir atrás de
você enquanto negociava com os sequestradores. Eles eram tão
amadores que encontramos sua localização em pouco tempo. Na
última ligação, os policiais já cercavam a propriedade. Sei que fiz
você acreditar que não dava a mínima, mas é mentira. Teria
sacrificado tudo por você, entregado tudo em uma bandeja de
prata, se fosse necessário. A questão é que, comigo, você continua
sendo um alvo. Não desejo isso. Quero que esteja segura e bem, e
não sei se posso garantir isso.
— Você não pode escolher por mim. — Engulo em seco. —
Mesmo que eu me torne um alvo ao seu lado, não pode tomar
decisões como essa. Eu quero ficar com você, Liam. Não me
importa quantos riscos eu tenha que correr.
— Se algo acontecesse com você, eu jamais me perdoaria. Me

aproximo até que apenas alguns centímetros nos separe.

— Não quero mais viver baseada em suposições.


Estou tomando mais cuidado a partir de agora.
— Phoenix. — Diamond parece receoso. O conflito interno
é evidente em seus olhos.
— Liam — imploro.
— Você, sonnenschein, vai me fazer perder tudo um dia. —
O loiro corta o espaço entre nós e roça os lábios em minha orelha,
enviando uma onda de arrepios por meu tronco. — E ficarei feliz em
ser um homem arruinado, desde que eu tenha você.
Meu coração começa a bater mais forte.

— O que sonnenschein significa?

— Raio de sol.

Me encho de esperança.

— Isso quer dizer que você vai ficar comigo?

Ele olha no fundo dos meus olhos quando responde:

— E onde mais eu poderia ficar? Lembra do que me disse?


Que duas pessoas poderiam estar ligadas pelo destino? Não importa
para onde eu queira fugir, meu destino final sempre será você,
passarinho. — Há uma pausa. — Mas antes de tudo, existe algumas
coisas que quero que saiba. Sobre mim. Meu passado. E se quiser
ficar comigo mesmo depois de tudo, meu coração será seu por
inteiro.
— Então me conte — sussurro, nossos narizes se

roçando. No próximo segundo, Liam começa a falar.


33

aos 19 anos
O enterro da avó Ana aconteceu há alguns dias, e desde que
soube que ela deixou todo seu testamento para Bastian, tudo o que
consigo me recordar é de uma das últimas conversas que tivemos,
ano passado.
Antes de ingressar oficialmente em Stanford, decidi visitá-la
durante as férias. Era um passo e tanto para mim. Iria me mudar
para longe de meus irmãos e, por algum motivo, senti a
necessidade de vê-la antes da mudança. Talvez eu pressentisse,
lá no fundo, que tínhamos pouco tempo.
Lembro que estava nevando na Alemanha. Nos sentamos
em frente à lareira e ela me ofereceu uma caneca de chocolate
quente, como se eu ainda fosse um pirralho. Minha avó sempre
sabia exatamente o que cada um de nós precisava, mesmo que
não disséssemos uma palavra. Era como se ela pudesse nos ler, de
dentro para fora.
Não foi uma surpresa quando ela cortou o
silêncio, questionando:
— O que está tirando sua paz, minha criança?

— Vou para longe dos meus irmãos — começo, relutante. —


Deixá-los com Hernan e Donna… parece que estou abandonando-os
numa cova de leões.
— E o que mais?

— Eu o odeio — admito, em voz alta. — Eu odeio


Hernan, mas tenho que me transformar nele para que minha
família seja livre.
Ela me lança um olhar apreensivo, com o cenho franzido.
Parece que a avó Ana também não entende. Ninguém nunca vai
entender. Guardo o segredo mais obscuro de Hernan, e por anos
isso me corrói. Não posso contar para ninguém, nem mesmo
para minha vó.
— O que você pretende?

— Vou tirar tudo dele. A faculdade é apenas o primeiro


passo. Vou me manter longe e, discretamente, trabalhar para que
ele se torne tão miserável quanto ele já me fez sentir um dia.
— É sobre vingança — conclui. — Você não é como
ele, Liam… — Sua mão pousa sobre a minha, e eu me afasto,
me sentindo mais gelado que nunca.
Mesmo com a lareira, tudo que sinto é o frio me
abraçando, como um cobertor.
— Você está errada, vó. — Olho para o fogo crepitando
em nossa frente. — Eu sou ele.
A memória se dispersa de minha mente.

Entendo porque ela tomou essa decisão. O que ela viu


naquele dia… apenas raiva. Rancor. Ressentimento. Minha avó
tinha princípios fortes. Para ela, um coração bom era mais valioso
do que uma mente voraz. Para os Diamond, é ao contrário.
Eu sou um Diamond.

É por isso que retornei para Boston, é por isso que, neste
exato momento, estou parado em frente à propriedade de meus pais.
Soube que eles estão se divorciando e que Bastian e Brianna se
mudaram. Estão morando juntos. Aqui, será apenas Hernan e eu.
Bato na porta e espero alguns momentos.

A governanta abre para mim. Sou recepcionado pelo ar frio


do interior da casa. Aceno com a cabeça em um cumprimento e
deixo minha mala no hall enquanto caminho até o escritório, o
único lugar onde poderia encontrá-lo.
Assim que abro a porta, o vejo sentado atrás da mesa. Há
uma garrafa de uísque vazia sobre o tampo de madeira, e ele
não consegue esconder a surpresa quando me vê. Hernan tenta
ser rápido ao esconder o saco plástico com comprimidos, mas é
tarde demais.
— Que lástima. — Ajeito a gravata do meu smoking.

— O que veio fazer aqui? — questiona, miserável, com


a camiseta toda abarrotada e a barba por fazer no rosto.
— Queria vê-lo. Me disseram que você estava no fundo
do poço, então tive que conferir com meus próprios olhos.
Ele enrijece na cadeira.

— O que você quer?

— Vim passar as férias aqui. — Me aproximo de sua mesa. —


Como se sente agora que está sozinho? Que não te restou nada? —
A frieza no meu tom de voz é o bastante para que ele me olhe
como se uma segunda cabeça tivesse nascido no meu tronco.
Nunca falei com Hernan assim antes. Me mantive recluso
durante esse tempo todo. No entanto, chegou a hora de retaliá-
lo. Esse é o momento em que ele está fraco.
— Está errado. — Oferece um sorriso falso. — Tenho
as empresas.
— Que logo irão falir — lembro-o deste detalhe
importante. Seu maxilar se trava. — Acha que não sei que todos
seus sócios estão pulando fora do barco? Você destruiu seu
casamento, sua família, sua honra. Ninguém mais quer ter você
por perto. Sem alianças, você se torna inútil, assim como o
legado que tentou proteger de um jeito falho.
— E quem irá resgatar o barco, você? — diz, com ironia.
— Você não é o Bastian e nunca será.
— Está certo. — Dou de ombros. — Não sou Bastian e nunca
serei, porque ele nunca te destruiria. Nunca retalharia. Meu irmão é
do tipo que apenas se distancia. Eu não. Quero que você pague por
tudo o que fez com todos nós.
— Você é apenas um moleque insolente. Não tenho medo de
você.
Pela forma que ele respira, sei que está mentindo. Meu pai
era imbatível, mas isso quando eu tinha quinze anos e era uma
criança. Agora, não. Olho para ele e tudo que sinto é pena,
vontade de vê-lo rastejando, comendo poeira.
— Deveria — é tudo o que falo antes de virar as costas e
sair de seu escritório.
34

— O que é que aconteceu depois que você o visitou?


— questiono, receosa.
Tudo o que Liam compartilhou até agora foi difícil de digerir.
As portas da exposição já abriram, é possível ouvir a
movimentação lá embaixo e o burburinho de conversas. Contudo,
aqui em cima é uma ala restrita, garantindo nossa privacidade.
— Eu fui embora, voltei para a Califórnia e a faculdade. Na
época, ainda não tinha os recursos necessários para derrubá-lo.
— E você conseguiu?

— Sim.

— O que você fez? — Começo a mexer nervosamente no meu


colar.

Estou sentada no tampo de madeira, enquanto Diamond


permanece em minha frente, encostado contra a parede,
mantendo uma distância considerável entre nós. O silêncio que
antecede sua resposta é desconfortável.
— Tirei tudo dele. Me inseri em seu círculo. Usei o resto da
minha poupança para investir junto com seus sócios. Transformei
seus inimigos em meus aliados. Observei ele se enfiar em um
buraco profundo, miserável e, quando ele sabia que já não havia
nenhum caminho, transferiu tudo o que havia sobrado para meu
nome, me fazendo prometer que o daria uma porcentagem caso
conseguisse me reerguer.
— Você não cumpriu com sua palavra — presumo, o tom
de voz baixo.
— Não — concorda, sem qualquer resquício de
arrependimento em seu rosto. — Deixei Hernan para trás. Sem
nada. Nunca mais ouvi falar sobre ele, ou soube do seu paradeiro.
É provável até mesmo que esteja morto.
— Você não sente arrependimento?

— Não. Acredito que o que ele colheu é apenas consequência


do mal que semeou. O que ele teria feito com Brianna se eu não
tivesse intervido… — Seus olhos se tornam vazios, opacos, sem
qualquer tipo de sentimento.
Compreendo todo o ódio que Hernan incitou em Liam. Só
de imaginar a cena que ele testemunhou naquela noite, me dá
calafrios. Ou as vezes em que ele sofreu com as punições. Não
imagino como um pai possa fazer tudo isso com seus próprios filhos.
— Eu não estou aqui para julgá-lo. — Desço da mesa. — Não
posso imaginar como vocês enfrentaram tudo isso sozinhos, nem o
segredo que você teve que manter para não arruinar seus irmãos.
Isso é altruísmo. Você fez o que pode para que Bastian e Brianna
pudessem ser quem são hoje em dia. Pessoas boas que
merecem seus finais felizes.
— Você entende? — ele pergunta, em um tom de voz baixo.
— Entende o que estou disposto a fazer por quem amo? É por isso
que achei que você estaria melhor sem mim. Se aqueles homens
tivessem machucado você…
— Eu estou bem — o interrompo, me aproximando. Não
quero permitir que cenários ruins ocupem sua mente neste
momento. Acho que ter que reviver o passado já é o suficiente. —
E eu não me importo com tudo o que você me disse. Só me
importa o agora.
Coloco minha mão sobre seu rosto, e Liam se inclina
contra minha palma.
— Vamos para casa — diz, e eu concordo.

— Vamos para casa — repito.

Agora que não estou bêbada, posso observar melhor a


propriedade em que o loiro reside. É uma construção de dois
andares, pintada de cinza, exalando modernidade. Há um pequeno
jardim à esquerda, uma garagem e o local que era ocupado por
sua estátua está vazio, o que faz com que meu rosto arda de
constrangimento.
Dentro da casa, a sala reflete uma atmosfera impessoal que
se estende pelo restante do ambiente. Uma lareira, um mini bar e
um sofá de couro preto com três lugares compõem o cenário. Nada
de tevê ou qualquer tipo de eletrodomésticos.
— Dá para perceber que você é um grande fã de cores
— digo, com ironia.
Liam tira o terno, ficando apenas com uma camiseta social.

— Não gosto de cores. Me dão dor de cabeça.

— Tá bom, drácula — murmuro, indo até a prateleira


posicionada sobre a lareira. Há um porta-retrato dele com Brianna
e Bastian. Todos os três eram crianças, sentados na grama de um
jardim bonito.
Fixo meu olhar em um quadro pendurado na parede. É bem
interessante. Uma mulher caindo de um penhasco, com uma flecha
em suas costas. Me surpreendo ao ver a assinatura com as siglas
LD do artista.
— Você quem pintou isso?

— Sim.

Encaro-o, boquiaberta.

— Quando pretendia me contar que é um artista?

— Não sou artista, você é. Isso era apenas um hobbie


que minha avó materna incentivava. Nada demais.
— É uma obra-prima. Modéstia não combina com

você. Ele suspira, sentando-se no sofá.

— Tem razão. Eu só não queria que você ficasse triste achando


que poderia ter uma nova concorrência. E está claro que eu
sou melhor que você. — Arqueia uma das sobrancelhas.

— Rá. Nos seus sonhos, Diamond.

Uma sombra de sorriso ocupa seu rosto.

— Já volto — fala, enquanto sobe as escadas.

Fico sozinha no andar debaixo até que Lotus aparece,


abanando o rabo. Eu me ajoelho, fazendo carinho em suas orelhas.
O cachorro lambe meus dedos e eu rio. Lotus corre para a cozinha
e o sigo. Ele sai pela tela para cachorros que há embutida na porta
e deita no jardim.
Me assusto quando sinto o peitoral de Liam atrás de mim. Mal
notei quando ele se aproximou. Olho para trás. Diamond trocou de
roupas, usa uma camiseta simples e calça moletom. Meu coração
começa a bater mais forte no peito.
— O quê? — questiona, as mãos grandes seguram
minha cintura.
— Nada, é só que… quando você usa roupas normais,
sem ternos e gravatas, parece tão jovem. Tão lindo.
Diamond sorri. Acho que é a primeira vez que o vejo
sorrindo de verdade e, nossa, acho que nunca vou me acostumar
com isso. Ele é tão bonito que me deixa sem fôlego.
— Você está corando, sonnenschein — sussurra em
meu ouvido.
Inesperadamente, Liam me pega em seus braços. Solto um
suspiro, surpresa, e ele começa a me carregar pelas escadas.
Estou sorrindo feito idiota quando ele me joga em sua cama,
fazendo-me soltar um grito. Meus cabelos voam sobre meu rosto,
e eu olho em sua direção, indignada.
Consigo ajeitar as mechas a tempo de ele me atacar. Ele
está sobre mim agora, posicionado entre minhas pernas e, devagar,
sua boca encontra a minha. Derreto assim que nossas línguas se
tocam e moldo minha mão em sua nuca.
Sua ereção pressiona contra mim e eu arfo, aumentando
a intensidade com que nos beijamos.
Liam desce as mãos para debaixo de minha blusa e apalpa
meu seio esquerdo. Sua boca muda de lugar, posicionando-se em
meu pescoço. De forma ágil, ele desce as alças da blusa pelos
ombros, deixando-me exposta, já que estou sem sutiã.
Sua boca engole meu mamilo e eu gemo, puxando a barra
de sua camiseta com as mãos.
— Tira — peço, prestes a entrar em combustão. Quero vê-
lo inteiro desta vez. Sem nada.
Liam se afasta para remover a camiseta, assim como a calça
que está vestindo. Termino de me despir e nós ficamos parados
por alguns momentos, olhando um para o outro feito dois idiotas.
— Você é perfeita — diz, antes de voltar a me beijar
com ferocidade.
Agora, suas mãos estão por toda parte, assim como as
minhas querem o tocar em todo lugar. Quero decorar cada parte
dele, entender o que ele gosta. Quais sons ele faz. Quero tudo.
— Phoenix — Liam sussurra contra meus lábios, antes
de descer, até que esteja no meio de minhas coxas.
Não entendo o que ele está fazendo com a língua ou com a
boca, mas o prazer que me invade com a novidade é avassalador.
Ren e eu nunca fizemos nada do tipo antes. Apenas com as mãos.
Liam continua, até que o prazer se torne insuportável, até que eu
quase não consiga respirar e minhas pernas estejam trêmulas.
Então, uma onda de calor cresce em meu interior. Eu
tremo, contendo o gemido no fundo da garganta e fechando os
olhos com força.
Meu peito desce e sobe num ritmo intenso e meu coração
bate tão forte que acho que vai explodir.
Abro as pálpebras, encontrando o azul dos olhos de Liam.
Ele está sem cueca agora, completamente despido, ajoelhado entre
minhas pernas.
— Vire de costas — fala e obedeço.

Ainda deitada, sinto o corpo de Liam me envolvendo por


completo, seus braços estendidos em cada lado do meu corpo. Ele
começa a me penetrar lentamente. É rápido, profundo, um misto
de dor e prazer que me faz prender a respiração.
Aos poucos, meu corpo se adequa ao dele. Os movimentos
dele começam devagar, ganhando intensidade e ritmo
gradualmente. Liam encontra seu próprio compasso, nossos olhares
se encontram. Sua boca se choca contra a minha e ele me devora.
O beijo é urgente, desesperado. A mão dele se fecha sobre a minha
e nossos dedos se entrelaçam.
Tudo o que sinto agora é prazer e algo que vai além, algo
que ainda não posso compreender, mas que enche meu peito por
completo. Liam solta um gemido rouco enquanto intensifica a
velocidade. Sua mão quase esmaga a minha e olho para ele no
exato momento em que alcança o ápice. Ele trava a mandíbula e
mantém os olhos no meu enquanto estremece após me penetrar
pela última vez.
Então, desaba sobre mim.

Seu corpo imenso me esmaga contra o colchão. Não


consigo me mover e respiro com dificuldade. Liam é tão pesado
que me esforço para dizer:
— Estou ficando sem ar.

Ele rola para o lado, deitando-se com os braços apoiados


atrás de sua cabeça. Pela primeira vez, Liam parece vulnerável.
Seus olhos fechados, respiração pesada, músculos superiores
flexionados. O corpo dele parece ter sido esculpido, como a estátua
que quebrei em seu jardim.
Em silêncio, Liam me puxa contra seu peito.

— Phoenix? — Corta o silêncio confortável.

— Oi — murmuro, de olhos fechados, a cabeça


descansando no seu corpo, prestes a cair no sono.
— Ich lieb dich. — É o que ouço antes de minhas
pálpebras cederem e dormir.
35

Hoje é o grande dia, enfim.

Estou usando um smoking azul escuro, quase preto, e confiro


minha aparência no espelho quando Phoenix chega por trás de mim,
enrolada apenas em um lençol.
Ainda não me acostumei com o quão linda ela é. Seus
braços enlaçam minha cintura e ela me dá um abraço apertado,
ficando na ponta dos pés para tentar alcançar meu ombro. Me viro
e dou um beijo em sua testa.
— Bom dia, passarinho.
Ela sorri e em seguida esboça uma cara engraçada
de descontentamento.
— Queria ir com você — murmura, referindo-se à cerimônia
de melhor CEO do Japão que terei que comparecer em breve.
Phoenix e o pai têm outros planos hoje. Eles vão para outro
evento. Um que o sr. Ogawa é obrigado a comparecer. Quando se é
importante, é de se esperar que as pessoas requisitem sua
presença nesse tipo de coisa.
— Vamos nos ver em breve. Serão só algumas horas —
falo, mas entendo, porque já estou com saudades.
Phoenix tem passado todos os finais de semana aqui em
casa desde que dormimos juntos pela última vez. Faz duas semanas
que acordo com seu cabelo longo e sedoso roçando no meu rosto.
Acho que nunca dormi tão bem antes. Às vezes, tinha pesadelos ou
acordava no meio da noite. Agora, não há nada além da serenidade
que sua presença me proporciona.
— Tudo bem, mas não vou esperar que você saia do
trabalho. Te encontro lá.
— Como quiser — é tudo o que digo. Outro fato curioso
sobre mim é que simplesmente não sei dizer não a ela.
Semana passada, minha garota me fez assinar um cheque
de cem mil dólares para uma instituição de câncer, depois de
assistir um filme em que a personagem morria por conta da doença
e não ficava com seu grande amor. Depois, me fez levá-la até o
cinema, o que detesto, para ver um romance melodramático.
Agora, estou aqui, entregando a chave do meu escritório
para que ela me espere lá.
— Não perca — digo e Phoenix assente, começando a se
vestir.
Ela trouxe sua roupa para cá e uma necessaire, então não
precisa voltar para casa para se arrumar. Minha garota veste um
quimono vermelho com detalhes brancos. Gosto quando ela usa as
roupas tradicionais daqui. Quando termina, amarra os cabelos em
um rabo de cavalo, algo que me deixa louco para beijar seu
pescoço exposto.
— Acho que estou pronta — diz, se olhando no espelho do
meu quarto.
— Está linda — falo, porque é verdade.

Phoenix sorri.

— O que tem de errado com você? Parece tão apaixonado


— zomba, presunçosa.
Essa garota… Meu Deus. Eu faria tudo por ela.

— Vamos? — Estendo a mão em sua direção e ela


aceita, entrelaçando os dedos nos meus.

Após deixar Phoenix no evento em que encontrará seu pai, eu e


Kim vamos até a premiação. Não sei o que esperar do resultado,
porém, ao menos, estou entre os finalistas. Não me contento com o
segundo ou terceiro lugar, mas irei me contentar caso aconteça.
Pela primeira vez, sinto que poder não é tudo o que quero.

Depois de Phoenix, tenho visto as coisas com outros olhos.


Com um olhar mais simples e grato. Sou grato por ela ter entrado
na minha vida e permanecer. Isso é o suficiente para mim.
— Acho que estamos atrasados. — Kim quebra o silêncio.
Olho para o relógio em meu pulso e confiro. De fato, a
premiação começou há quinze minutos. Peço para que o motorista
dê um jeito de achar um atalho e sair do trânsito. Não posso
perder o evento.
Após alguns momentos, finalmente chegamos no arranha-
céu, no coração de Shibuya. Ao atravessar as portas do salão, o
homem no microfone faz o anúncio:
— E agora, para o melhor CEO do Japão do ano, resolvemos
premiar alguém que se mostrou ágil nos resultados e causou
impactos positivos em nossa sociedade. Este é Liam Diamond.
A multidão aglomerada no recinto começa a aplaudir.
Caminho até o palco, subindo pela lateral. O homem me entrega
o troféu de ouro em formato de globo. Era para Phoenix fazer
isso, conforme a tradição, mas ela não pôde vir. Agradeço e faço
um pequeno discurso sobre como pretendo continuar gerando
resultados positivos e, enfim, estou livre. Foi mais rápido e fácil
do que eu esperava. Estou satisfeito.
— Parabéns, senhor. — Kim sorri em minha direção.

— Obrigado. Este prêmio não teria acontecido sem você.

Algumas pessoas vêm até mim em forma de


cumprimento. Converso com alguns homens que tenho interesse
em realizar projetos em conjunto. Não sei quanto tempo passa,
mas quando percebo, noto que há diversas mensagens de
Phoenix em meu celular. Peço licença e me retiro para lê-las.
Phoenix: pronto, já posso sair.

Phoenix: qual o resultado???

Phoenix: você conseguiu??

Phoenix: estou indo para o escritório.


Me despeço de todos e dispenso Kim pelo restante do dia,
indo em direção ao automóvel. O engarrafamento me atrasa, o
que me deixa um pouco impaciente. Assim que chego na indústria,
a porta do meu escritório está entreaberta.
Não vejo Phoenix em lugar nenhum. Coloco meu novo
troféu na estante e envio uma mensagem para ela, enquanto dou a
volta em minha mesa para sentar na cadeira. No entanto, assim
que encosto no banco, ele desaba. Enquanto estou no chão,
tentando entender que porra acabou de acontecer, a garota
aparece, rindo feito uma hiena.
Me levanto, encarando-a com os olhos sérios.

— O que foi isso?

— Minha vingança por você ter me mandado para a

cadeia. Franzo o cenho.

— Acho que está meio tarde para se vingar.

— Claro que não! Foi hilário.

Chamo alguém da manutenção para arrumar a cadeira.


Não sei como Phoenix fez isso; deve ter desparafusado algo, mas
não importa. Ela sorriu, mesmo que às custas de minha queda.
Nesse caso, o fim justifica os meios.
— Não vai ficar bravo? — questiona, enquanto me sento
no tampo da mesa.
— Não — respondo. Sou incapaz de sentir raiva dessa garota
atrevida que entrou como um furacão e preencheu todos os espaços
da minha vida. Ela é meu calcanhar de aquiles e reconheço isso.
— A propósito, parabéns pela premiação, sr. Diamond.
— Phoenix caminha até mim, beijando meus lábios.
Estou prestes a falar algo sujo para ela quando o
funcionário da manutenção chega. Não leva muito tempo para
consertar. Como imaginei, apenas alguns parafusos foram soltos.
Quando ele se vai, tranco a porta, me voltando para Phoenix.
— Está na hora da sua punição — anuncio.

Vejo seu rosto se encher de expectativa.

— Como pretende fazer isso?

— Tire a faixa do vestido — peço e é o que ela faz. O


quimono se abre, revelando a lingerie que ela veste por baixo.
Imediatamente, sinto excitação ao ver a renda branca
exposta. Segurando a faixa, peço para que ela se vire e a amarro
ao redor de seus olhos como uma espécie de venda. Meus dedos
passeiam entre seus seios, descem até o fim de sua barriga e
mergulham dentro da calcinha. Ela está encharcada, o que me
surpreende. Mal começamos.
— Pule as preliminares — murmura quando roço meus
lábios nos seus.
Começo a beijá-la, então giro seus quadris e a posiciono
sobre a mesa. Preciso tanto dela que meu corpo dói. Tirando o
cinto e afastando seus joelhos com os pés, começo a penetrá-
la assim que desço a calça.
Nós dois gememos.

Não duro bastante dessa vez. O ritmo é rápido, forte,


desesperado. Tenho que tapar a boca de Phoenix para que os
gemidos dela não ecoem pelo lugar inteiro. Assim que ela goza,
mordendo minha mão que está sobre seus lábios, eu travo a
mandíbula, investindo algumas vezes antes de chegar lá também.
— Não se mexe muito. — Phoenix passa a máscara de
argila em meu rosto.
Estou odiando, mas não digo isso a ela, porque sei que a
deixaria chateada. Apenas fico parado enquanto ela se contenta em
passar uma massa verde que endurece meu rosto. Acho que nem
consigo mexer a boca para falar direito. Não sei como as mulheres
gostam dessas coisas.
Quando termina, ela começa a passar a coisa na própria
pele. Há difusores ao nosso redor. Toda vez que Phoenix vem para
cá, me certifico de que ela continue com a aromaterapia. O cheiro
de óleos extraídos de plantas e raízes flutua no ar. Ela dorme bem à
noite sempre que fazemos isso. Me preocupo com seu bem-estar
depois do que passou. Em segredo, contratei mais seguranças para
ela. Eles sempre estão cercando a propriedade do sr. Ogawa, que
não se opôs quando sugeri.
— Por que tem que passar isso? Você já é tão linda.
— Quebro o silêncio enquanto observo-a ficar verde.
— É para que a pele fique mais bonita e saudável —
diz, como se fosse óbvio.
Solto um suspiro, pois esta é uma discussão em vão. Phoenix
não vai concordar comigo, e não conseguirei fazê-la considerar o meu
ponto. Quando seu rosto todo está coberto pela máscara, ela se
aninha ao meu peito. Lotus dorme aos nossos pés, roncando.
Ela dá play no filme que iremos assistir, chamado
Querido John. Não sei se gosto disso.
— Liam?

— Sim?
— Um dia irei conhecer sua família? — Olha para mim,
cheia de expectativa.
Não sei o que responder. Após tudo o que aconteceu,
minha única família se resume a Bastian e Brianna. Sendo que os
dois moram em continentes diferentes.
— Sim, vamos visitar Bastian uma hora — respondo.
Quem sabe consiga reunir Brianna por lá também.
Talvez, finalmente possamos ser uma família de verdade.
36

Natal dos Diamond - Parte I


Definitivamente, o Natal é a época do ano que eu mais gosto.
É a primeira vez que passo fora de Tóquio e estou muito empolgada,
diferente de Liam, que parece possuído pelo espírito do Grinch. Ele
odiou o gorro natalino que dei para ele de presente.
Agora, estamos chegando na casa de seu irmão, Bastian.
Pousamos há algum tempo na França, que começa a nevar. Vi
neve poucas vezes em minha vida, então praticamente grudo o
rosto no vidro do carro para observar os flocos que caem do céu.
Assim que uma casa de campo aconchegante surge na
estrada, eu observo as luzes que cobrem a fachada e a guirlanda
pendurada na porta. Quando o automóvel para de se mover, eu
salto. Minhas Uggs afundam na grama e eu olho para cima,
finalmente vendo os chamuscos de neve de perto. Um floco derrete
bem na ponta do meu nariz e eu espero enquanto Liam tira as
malas do carro junto ao motorista.
A porta da frente se abre e um homem loiro surge no meu
campo de visão. Sei que ele é irmão de Liam pela semelhança
assustadora. Devolvo o gesto quando ele acena em nossa
direção. Liam está todo sério enquanto caminhamos até a
entrada. Bastian me recebe com um abraço caloroso.
— Estava muito ansioso para conhecê-la, Pho —
fala, arrancando uma careta de Liam.
— Pho? — meu namorado rebate.

— É o apelido que arranjei para ela. Deixa de ser ranzinza


— Bastian diz e eu rio.
— Liam não tem o espírito natalino. Também estava
ansiosa para conhecer você, Bash.
— Ótimo, já são melhores amigos — meu namorado
murmura enquanto entra, deixando nós dois para trás no hall.
— Liam detesta o Natal porque nossos pais nunca… —
Bastian para de falar, lançando-me um olhar significativo. Acho que
entendo. Ele só tem memórias ruins. Brigas, gritos, punições.
Tenho tentado ser paciente com ele. — Vamos, vou te apresentar à
minha esposa.
Sigo Bastian pela sala, que tem uma enorme Árvore de Natal
com presentes em sua base. A lareira está cheia de meias coloridas.
Parece que o irmão de Liam e sua esposa gostam tanto desse
feriado quanto eu. Entramos na cozinha, onde há uma mulher de
costas para nós.
— Gina, essa aqui é a Phoenix, a namorada do Liam
— Bastian chama sua atenção.
Ela se vira de imediato, revelando a barriga de gravidez. Gina
é linda, tem cabelos cacheados, pele negra e um sorriso gentil. Ela
anda até mim e me abraça do jeito que dá por conta do bebê que
está carregando.
— Você é linda! — Fico um pouco envergonhada com
o elogio. — Está com fome? Bash fez alguns biscoitos.
— Com leite, por favor — peço, e ela imediatamente me
serve com um copo cheio e um prato de biscoitos em formato de
Árvore de Natal.
Estou sentada na mesa, ouvindo enquanto Gina conta sobre
os doces que Bastian faz em sua confeitaria e os que irá preparar
para o Natal, quando Liam entra no cômodo. Ele cumprimenta
Gina, faz algumas perguntas sobre o bebê e volta a se isolar na
sala. Não sei o que deu nele desde que embarcamos para cá.
Quando termino de comer, agradeço Gina e sigo Liam.
No entanto, encontro apenas Bastian, sentado sozinho em uma
das poltronas. Parece meio decepcionado.
— Ele subiu para o quarto — fala, derrotado. — Achei que
talvez pudesse ficar feliz em estar aqui.
Mordo o interior da minha bochecha, porque não sei o que
dizer.
— Vou conversar com ele — respondo, enfim, depois
de alguns momentos.
— É a terceira porta à esquerda.

Subo as escadas, encontrando caminho para o lugar onde


Liam se enfiou. A porta está destrancada, então tudo o que tenho
que fazer é girar a maçaneta e empurrar. Ele está em pé em frente
à janela, com as mãos enfiadas nos bolsos de sua calça.
Fecho a porta atrás de mim e me aproximo, tocando
suas costas.
— O que há de errado? Por favor, converse comigo.

Liam fica em silêncio. Quando acho que ele não vai


dizer nada, se vira para me encarar.
— Não gosto do Natal.

— Por quê?

— Porque isso sempre representou… solidão. Estou


acostumado a passar sozinho, desde que tinha dez anos. Não havia
ninguém, apenas eu e o silêncio. Nossos pais não se importavam
em manter as aparências. Cada um deles ia para um lugar, então
Bree, Bastian e eu ficávamos com a babá, que apenas nos colocava
para dormir. Ou, quando estavam em casa, tudo que dava para
ouvir eram os gritos das brigas. Estar aqui… não sei como agir. Isso
é novo. E, para ser sincero, só consigo pensar na sensação. Eu me
sentia vazio, passarinho.
— Mas não precisa mais ser dessa forma. Vamos ressignificar o
Natal, tudo bem? O que faria você se sentir melhor agora?
— Você — responde, de imediato. — É o suficiente.

— Vamos voltar lá para baixo, então.


Liam não retruca. Ele deixa com que o arraste até o
andar debaixo.
— Vou buscar a Bree no aeroporto — Bash anuncia,
de repente.
Eu olho para meu namorado.

— Por que não o acompanha enquanto fico aqui,


fazendo companhia para Gina?
— Tudo bem — cede, o que parece surpreender a mim e
a Bastian.
Eles vestem os casacos e então saem, avisando que há dois
seguranças ao redor da propriedade, caso precisemos deles. Gina e
eu observamos pela janela enquanto a SUV se afasta pelo asfalto.
Ela parece nervosa, já que não para de mexer na bainha do suéter.

— Acho que isso vai acabar mal — murmura, fazendo-me


franzir o cenho. Quando nota a confusão no meu resto, esclarece.
— Bree me disse que trouxe Donna, agora há pouco, por
mensagem. Bastian não sabe, tampouco Liam.
Agora compreendo seu nervosismo, porque começo a ficar
preocupada também. Liam definitivamente não está pronto para ver
Donna, muito menos agora, quando está se sentindo vulnerável com
as memórias do passado.
— O que fazemos? — questiono, tensa.

— Só nos resta esperar e vermos como as coisas vão


se desenrolar.
— O Bastian conseguiu perdoá-la?

— Sim, mas isso faz parte de quem ele é. Ele viu que Donna
se arrependeu e estava disposto a dá-la uma segunda chance, mas,
por outro lado, entendo Liam. Isso não é uma obrigação. É algo
que acontece de forma natural.
— Tem razão — concordo.

Gina e eu vamos para a cozinha. Começo a ajudá-la com


a louça e pergunto:
— Qual o sexo do bebê?

— Menino — responde, sorrindo. — Ainda não decidimos o


nome. Bastian está ansioso para que nasça.
— Ele parece ser muito bom para você.

— Sim, é. — Há uma pausa. A mulher prepara um molho no


fogão que cheira maravilhosamente bem. — Foi difícil convencê-lo
a ajudar com os preparativos de hoje. Ele não daria conta de tudo
sozinho. Há duas noites que ele dorme mal, arrumando a casa toda
para receber vocês. — Ri, divertida. — É raro Liam contatá-lo, sei
que é muito ocupado com as empresas, mas Bash sente falta disso.
— Ele nunca visitou vocês antes?

— Não. Liam é muito reservado. Antes, quando o conheci, ele


tinha dezenove anos. Era mais aberto, de certa forma. Não sei o que
aconteceu, depois que nos casamos, e ele assumiu a presidência
das indústrias, é quase como se tivesse se tornado um fantasma.
Sabe, eu sou muito grata a você, Phoenix.
— A mim? — questiono, surpresa, terminando de lavar
os pratos.
Me viro para encará-la. Gina desliga o fogão e olha em meus
olhos.

— Sim. O Liam começou a ligar para Bastian para falar sobre


você. Pode parecer besteira, mas isso deixou meu esposo feliz. Criou
uma aproximação entre eles, tanto que vocês vieram para cá este
Natal. — Sorri. — Espero que, no futuro, possamos repetir isso.
Eu sorrio de volta, meu peito se aquece com suas palavras.
Pergunto a Gina sobre seu trabalho, porque sei que ela é uma
escritora de sucesso. Ela diz que está fazendo uma pausa por
conta da gravidez e que não sabe quando poderá voltar a se
dedicar às suas obras. Depois que ela me dá uma cópia de seu
livro, nós ouvimos o carro se aproximar da propriedade.
A conversa foi tão fluída que até havia me esquecido do
cenário catastrófico que poderia acontecer. Quando Bastian abre a
porta, está com uma expressão exausta, segurando duas bagagens.
— Ele foi embora — diz, fazendo meu coração errar
uma batida.
— Para onde?

— Não sei. Liam viu nossa mãe e surtou. Acha que eu fiz
de propósito, mas não sabia que ela viria. Fiquei tão surpreso
quanto ele.
— Vou tentar ligar para ele — começo a dizer, mas
murcho assim que vejo seu telefone no braço do sofá.
Brianna e Donna entram na casa, com expressões tristes.
Os olhos de Donna estão marejados, e ela me cumprimenta
brevemente antes de ir para a cozinha, como se estivesse
envergonhada. Brianna me abraça, murmurando um pedido de
desculpas.
— Está tudo bem. — Tento confortá-la. — Logo ele deve
voltar.

Para ser honesta, não sei se acredito nas palavras


que deixaram minha própria boca.
Ela me solta e me dá um sorriso triste.

— Queria que as coisas pudessem ser diferentes. Que


Liam pudesse perdoar nossa mãe.
Nenhum deles entende, nem mesmo Donna. O que Liam
teve que passar foi… pesado. Todo ressentimento que ele sentiu,
por anos, não irá sumir de uma hora para outra. Acho que apenas o
tempo pode acalmar a guerra em seu coração. Nem mesmo eu
tenho esse poder.
Uma hora se passa sem qualquer sinal de Liam. Bastian fica
na cozinha com sua esposa e Brianna, enquanto Donna e eu
estamos sentadas na sala, em um silêncio tenso. Não sei se ela tem
ressalvas sobre mim, porque nunca fiz nenhum movimento para
ajudá-la com Liam. Sempre ignorei suas mensagens e tentativas de
contato, na intenção de protegê-lo. Eu não iria agir contra o que ele
desejava, que era se manter distante.
— Eu não devia ter vindo — começa a falar, cortando
o silêncio. — Acho que ele nunca irá esquecer.
— Liam está muito magoado. Ele pode fingir que não se
importa, ou que não tem um coração, mas é tudo fachada. Sei
que, no fundo, ele se importa tanto que não consegue conter suas
emoções, como hoje.
— Não sei mais o que fazer. — Seus olhos começam a
encher de lágrimas, o que parte meu coração. Não gosto de ver
nenhum deles sofrendo dessa forma. Nem Liam, tampouco sua
mãe. — Queria poder voltar no tempo e consertar as coisas. Queria
não ter sido uma mãe horrível.
— Deixe Liam processar as coisas no tempo dele. —
Observo as janelas. A neve começa a se tornar mais espessa, e
tenho que mascarar toda a preocupação que estou sentindo. — Um
dia, talvez ele olhe para tudo de outra forma.
O silêncio que se segue é ocasionalmente interrompido pelas
fungadas de Donna. Ela chora por alguns minutos, até que Bree
entre na sala e tente consolá-la com os biscoitos de Bastian.
O céu se torna escuro, e ainda não há nenhum sinal de Liam.
Estou no nosso quarto agora, olhando pela janela enquanto roo a
unha do polegar. Não costumo fazer isso, mas a situação toda me
tornou uma pilha de nervos e ansiedade. Quero apenas que ele
volte para cá em segurança, para que, assim, eu possa tentar
acalmá-lo de alguma forma.
— Por favor, volte para casa — digo para ninguém,
enquanto observo a neve cair mais depressa.
37

Natal dos Diamond - Parte II


Sabia que ter vindo para cá no Natal não seria uma boa ideia.
Bastian, com seu coração molenga e tentando juntar os cacos da
minha relação quebrada com Donna, a convidou de surpresa para
cá. Nem esperei nenhum deles dizer nada. Assim que a vi, dei as
costas e saí do aeroporto.
Eu estava com tanta raiva que não me importei em caminhar
até a cidade. Já havia vindo para Paris antes, mas nunca no inverno.
É quase como na Alemanha, porém menos agressivo. Todas as lojas
estão decoradas com enfeites natalinos, e me sinto tão ranzinza que
me surpreende ainda não ter vandalizado algo.
Agora, estou dentro de uma taverna, o único lugar que
achei sem luzes de fada e guirlandas.
Peço uma caneca de cerveja com espuma. Geralmente, bebo
apenas uísques, porém, no momento, não me importo com isso.
Quero apenas qualquer tipo de bebida alcoólica que me faça esquecer
completamente do péssimo dia que estou tendo até agora.
Uma silhueta se aproxima à minha esquerda. Estou pronto
para dispensar quem quer que seja quando vejo que se trata de
um garoto. Deve ter entre dez e treze anos, então não sei o que
ele faz aqui dentro. Suas roupas estão todas surradas, e ele usa um
chapéu.
— Senhor, por acaso pode me dar algumas moedas?
— pergunta, fazendo-me tatear os bolsos.
Assim que encontro minha carteira, tiro todas as notas que
tenho e entrego a ele. Seus olhos se arregalam, e ele me agradece
antes de sair correndo pela porta. Solto um suspiro e penso em
Phoenix, no que ela deve estar fazendo agora, ou se está
decepcionada comigo. Porém, tenho certeza de que ela compreende.
O rádio antigo sobre o balcão anuncia a chegada de uma
nevasca e instrui os moradores locais a não saírem durante ela. O
lugar está praticamente vazio, com exceção de mim, dois homens
que jogam sinuca e o bartender, que é um senhor de idade. Ele
olha em minha direção com seus olhos enrugados e se aproxima da
mesa.
— Você não é daqui. — Quebra o silêncio.

— Alemanha.

— Imaginei. — Há uma pausa. — Onde está sua família? Hoje


é Natal.
— Minha família não se importa com meus limites. É por
isso que estou aqui.
— Mas estão vivos? — questiona, fazendo-me franzir o cenho.
— Se estão vivos, é o que importa.

Ele deve perceber a expressão no meu rosto,


porque continua:
— Quando se é jovem, achamos que temos todo o tempo do
mundo. Brigamos com quem amamos, agimos com orgulho… até
que o tempo passa, as pessoas se vão para sempre e você nunca
poderá dizê-las o que realmente importa. A vida é simples, jovem
rapaz. Somos nós quem complicamos tudo.
Suas palavras me incomodam.

— Está dizendo que se arrepende por coisas que não fez?

— Todos nós temos arrependimentos na vida — fala e,


com isso, me dá as costas para limpar o outro lado do balcão.
Me levanto, deixando o dinheiro na mesa para cobrir a
cerveja. Ao abrir a porta, dou um passo para trás assim que o
vento gélido bate contra meu rosto. A neve está quase cobrindo a
rua inteira e não há mais pessoas circulando nas ruas, assim como
os comércios estão fechados.
Parece que terei que esperar um pouco.

Estou sentado aqui há horas, aguardando o momento em


que poderei retornar para à casa de Bastian. O dono da taverna
parece não se importar, já que sempre está focado em fazer alguma
coisa, mal notando minha presença. Como estou sem meu celular,
não posso mandar uma mensagem para Phoenix, o que me deixa
irritado, porque todos eles devem pensar que algo ruim
aconteceu comigo.
Aguardo mais um pouco até que a neve pare de cair. É noite
quando finalmente saio e peço um táxi. Demora bastante tempo para
chegar, levando em consideração que as estradas estão
congestionadas por conta da neve. Assim que o carro estaciona,
desço sem ter ideia das horas, apenas observando a casa.
É Brianna quem abre a porta. Vestida com um moletom
enorme, ela se aproxima até ficar em minha frente e, para minha
surpresa, ela desfere um soco em meu braço. Não faz nem cócegas,
mas arqueio as sobrancelhas pela ação inusitada.
— Por que sumiu, babaca?

— Precisava pensar, aí fiquei preso em uma taverna por


causa da tempestade.
— A Phoenix ficou te esperando, mas acabou pegando no
sono. Ela pediu para que eu a acordasse caso você aparecesse.
— Vou lá para dentro daqui a pouco. Deixe-a descansar.
A viagem foi longa.
Bree fica em silêncio. Sei que há coisas que gostaria de me
dizer, no entanto, mas não é o momento. Ela apenas me faz
companhia enquanto não mostro intenção de entrar, até que
percebo que minha irmã está congelando e a arrasto para dentro.
O calor da sala nos abraça assim que atravessamos a soleira e
fecho a porta.
Na sala, há apenas um Bastian exausto. Pela sua expressão,
sei que irá me dar uma bronca. Mas o ponto é que não sou mais um
moleque. De qualquer forma, fico parado, esperando.
— Bom, Gina, Phoenix e nossa mãe caíram no sono. Restou
apenas nós dois acordados, te esperando. — Cruza os braços em
frente ao peito. — Antes que você venha com sua amargura,
quero te informar que eu não sabia que ela viria. Foi uma surpresa
para mim e para você. A diferença é que prefiro encarar as coisas,
não fugir feito criança.
Não digo nada, apenas me sento no sofá. Bree está
parada em minha frente, mexendo nervosamente nas mãos.
— A ideia foi minha — admite, tensa. — A mamãe não
queria vir, mas eu a convenci de que seria bom.
— Para você — completo, a interrompendo. — Seria bom
para você e Bastian.
Bree se encolhe diante do meu tom de voz cortante, baixando
os olhos para suas botas.
— É, mas achei que você pudesse a desculpar.
Caramba, nunca vai ser o suficiente pra você?
Me torno completamente frio. É tudo o que sou capaz
de sentir no momento.
— Não. Eu nunca irei perdoá-la, nem mesmo se ela morresse.
— Me levanto.

Meus irmãos permanecem tão rígidos quanto estátuas diante


das minhas palavras. Subo as escadas, me retirando e deixando-os
para trás. Abro a porta do quarto com cuidado, evitando fazer
muito barulho. A raiva ainda pulsa em mim, tornando difícil pensar
com clareza. Não suporto que me digam como devo me sentir ou o
que devo fazer.
No entanto, todo esse sentimento se dissipa ao ver o rosto
sereno de Phoenix enquanto ela está em um sono profundo. Seu
cabelo se espalha pelo travesseiro, e seu peito sobe e desce em
um ritmo tranquilo. Ela parece tão em paz que me acalma.
Me aproximo, tirando os sapatos antes de me deitar ao seu
lado. Com ela, tudo é simples. Enterrando o rosto na curva do seu
pescoço, inspiro o cheiro inebriante, uma mistura de baunilha e o
shampoo de frutas que ela usa. Phoenix se remexe, indicando que
acordou. Seu corpo gira na cama, e uma de suas mãos molda o
lado do meu rosto. O toque dela é quente e suave.
— Onde estava? — questiona, sonolenta. O quarto
está escuro, mas a luz do luar atravessa as janela,
permitindo-me enxergá-la.
— Fiquei preso na cidade por conta da neve. — Fecho
os olhos quando seus dedos acariciam meu rosto.
— Eu te amo — Phoenix diz, inesperadamente, fazendo-
me abrir os olhos.
É a primeira vez que ela me fala essas palavras, e embora eu já
tenha as expressado em alemão, duvido que tenha entendido.
— Amo você — devolvo, beijando-a.

Então, adormeço em seus braços.

Ao despertar, percebo que Phoenix não está ao meu lado.


Não tenho noção por quanto tempo dormi, mas a luminosidade lá
fora indica que já é dia. Observo a paisagem. Um manto espesso
de neve cobre toda a superfície daqui. Ouço risadas no andar de
baixo e enrijeço, imaginando todos sentados à mesa alegres.
Talvez eu seja o único estraga-prazeres. Após um banho e
trocar de roupa, desço as escadas, absorvendo a cena aqui
embaixo. Bastian está na poltrona com Gina em seu colo, enquanto
Phoenix e minha mãe ocupam o sofá. No centro, Bree faz mímica.
Ela faz cara feia e ajeita uma gravata invisível.

Todos riem e eu me encosto na parede, semicerrando


os olhos em sua direção. Ninguém percebe minha presença,
estão entretidos demais na palhaçada de Brianna.
— Deixe-me adivinhar, seu nome começa com L — Phoenix
fala, sorrindo, enquanto Bree continua com as caretas e
movimentos que sugerem alguém dando ordens.
Minha irmã mais nova assente, sem pausar o teatro.

— Tá legal, você é o Liam, já entendemos — Gina


fala, parecendo se divertir. — Agora é a vez da…
Ela para a frase, os olhos encontrando os meus. De
repente, todo mundo percebe minha presença e a atmosfera
muda. É quase como se eu fosse uma pedra em seus sapatos.
— Bom dia — murmuro, saindo da sala e indo para a cozinha.

Começo a cortar um pedaço de bolo que está na mesa, junto


com pães doces e outras dezenas de iguarias que definitivamente
foram preparadas pelas mãos de Bastian. Quando dou a primeira
mordida, ouço a voz de Phoenix atrás de mim:
— Dormiu bem?

— Sim — respondo quando termino de mastigar.

— Vamos assistir O Grinch daqui a pouco..

— Não estou a fim — interrompo, antes que ela


possa completar a frase.
Phoenix fica em silêncio e, mesmo que não possa vê-la, sei
que deve estar chateada. Não quero fingir que as coisas estão
boas com Donna aqui. Eles todos podem continuar fazendo mímica
e rindo, mas não irei participar.
— A gente pode conversar? — questiona.

— Agora não.

Ouço-a suspirar e seus passos se distanciam. Tomo café da


manhã sozinho e saio pelos fundos. O jardim de Bastian está
coberto por um telhado. Acho que o mandou construir para o
inverno. Fico alguns momentos sozinho e então volto para dentro.
Donna não está mais na sala, então me sento no sofá.
Bastian ocupa a poltrona, me dando um olhar esquisito.

— Onde está Phoenix? — questiono, não a vendo.

— Foi para a sauna com Donna e a Bree.

Me sinto incomodado com a informação. Sei que estou sendo


babaca e egoísta, contudo, não quero que minha mãe tenha a
afeição de Phoenix. Logo, serei o vilão para todos, até mesmo para
ela, que é a única que me entendia, até então.
— Espero que se canse de bancar o idiota — murmura.
— Não precisa tratar Bree mal, nem sua namorada.
— Você não entende — me limito a dizer.

— Entendo que você tá agindo feito um pentelho

mimado. Começo a me irritar.

— Cale a boca.

A resposta faz com que Bastian levante do sofá e aponte


um dedo em minha direção, próximo ao meu rosto.
— Da próxima vez que for um babaca, vou fazer com que
se arrependa.
Eu me ergo também, sentindo a raiva correr por todo
meu corpo, em quantidades que não sou capaz de administrar.
— Não aponte o dedo para mim — aviso, o tom de voz
baixo e ameaçador.
De repente, Gina entra na sala, com um rolo de cozinha
nas mãos. Ela aponta para nós dois e sinaliza para a porta.
— Saiam da minha casa, os dois! Se vão se comportar
como animais, façam isso lá fora. — Permanecemos em silêncio, e
meu irmão parece descrente, mas Gina insiste, os olhos como o de
uma leoa. — Agora! Resolvam suas diferenças lá. Não tragam
estresse para mim e meu bebê.
Eu saio primeiro, e Bastian vem em seguida. Agora, estamos
os dois em pé do lado de fora, a neve caindo sobre nossas cabeças.
Inesperadamente, ele me joga no chão. A queda é
amortecida pela neve, mesmo assim sinto uma pontada de dor
atravessar minhas costas. Começamos a rolar pelo quintal feito
dois idiotas, um emaranhado de braços e pernas, enquanto ambos
tentamos assumir o controle ao mesmo tempo.
— Seu babaca mesquinho — Bastian resmunga,
enquanto tento prendê-lo no chão com as pernas.
Após um soco nas minhas bolas, a dor se espalha pelo meu
corpo. Travo o maxilar, conseguindo imobilizá-lo com uma chave de
braço. Sem fair play, ele atira um punhado de neve no meu rosto,
forçando-me a recuar enquanto meus olhos ardem pelo gelo.
Pisco diversas vezes, tentando me livrar da sensação.
Aproveitando o momento de vulnerabilidade, ele aplica o
Kimura, torcendo meu braço para trás e para cima em direção às
minhas costas. A pressão é desconfortável pra caramba, e meu
pulso começa a formigar com a intensidade, irradiando a dor
para o cotovelo.
— Você ganhou — falo, sem fôlego, e Bastian me solta.

— Está contente agora que minha esposa nos expulsou de


casa? — questiona, quando me sento na neve.
— Não — digo, porque é verdade. Estou congelando, e
minha pretensão não era fazer mal à Gina, muito menos agora que
está grávida. — Será que já podemos voltar para dentro?
— Peça desculpas.

— Você também.

Nós trocamos um olhar e nos levantamos. Bastian e eu


batemos na porta e esperamos que Gina a abra. Ela alterna o olhar
entre nós dois, arqueando as sobrancelhas. Nós devemos estar
num estado deplorável por conta de nossa pequena luta. Sinto a
neve derreter no meu cabelo.
— Desculpe, Gina — falo, inexpressivo, sem orgulho.

— Desculpe, meine perle. Vamos nos comportar, prometo


— Bastian acrescenta.
Seus olhos suavizam e ela finalmente nos dá
passagem, deixando com que nós entremos.
38

Natal dos Diamond - Parte III


Phoenix sai da sauna e vem direto para nosso quarto,
enrolada em uma toalha. Estou terminando de secar meu cabelo
com um secador e tirar a neve das roupas quando ela passa por
mim, em silêncio, e começa a revirar a mala.
Sei que o jeito como falei com ela mais cedo a chateou,
então termino o que estou fazendo e me sento na cama, dando um
tapa no lugar vago ao meu lado.
— Vem aqui — peço, o mais gentil que consigo.
Phoenix veste um dos meus moletons gigantes que para em
seus joelhos e se aproxima, receosa. Ela senta ao meu lado e
seguro sua mão, fazendo-a me encarar.
— Me desculpe, sonnenschein. Agi imaturamente e
não queria chateá-la.
— Tudo bem — responde, depois de alguns momentos.
Phoenix começa a mexer em seu colar de trevo. — Escuta, será
que você pode conversar com sua mãe?
— Não.

— Então deixe que ela fale, por apenas cinco minutos. Por
favor. — Os olhos castanhos no tom de avelã que tanto me
fascina permanecem fixos em mim, cheios de esperança.
— Cinco minutos — murmuro, mal-humorado. — E será tudo.

Phoenix agradece, sorrindo em minha direção. Como


sempre, ela consegue arrancar qualquer coisa de mim. Minha
garota veste uma calça moletom e pede um segundo, saindo do
quarto. Quando ela volta, Donna está atrás dela, meio hesitante,
como se eu fosse mordê-la ou algo do tipo.
— Estarei na sala. — Phoenix me lança um olhar que
significa não seja tão duro.
Donna entra, fechando a porta. Então, somos só nós dois
aqui. Ela fica em pé em minha frente, me olhando com
arrependimento. Seus cabelos loiros estão soltos ao redor do
ombro, e reparo que Brianna está cada dia mais parecida com ela,
mas guardo o pensamento apenas para mim.
— Eu sei que não me quer por perto e entendo. Eu causei
dor a todos vocês. Sempre penso sobre isso e no quanto talvez não
mereça uma segunda chance. Mesmo com seus irmãos, neste
momento, sinto que não pertenço aqui, que não sou digna do
perdão deles… — Há uma pausa enquanto seus olhos se enchem de
lágrimas. — Eu só queria que soubesse que eu me odeio por ter
deixado Hernan fazer o que quisesse, que não há um dia sequer
que eu não queira ir atrás dele, encontrá-lo e fazê-lo pagar por
tudo. Se eu pudesse mudar o passado, saiba que eu mudaria, sem
ao menos hesitar.
— Isso é tudo? — questiono, depois de alguns momentos
de silêncio.
— Eu só…queria que pudesse me desculpar. Que
pudéssemos recomeçar.
— Não consigo. — Sou honesto.

Derrotada, Donna deixa o quarto aos soluços. Fico parado,


com os olhos fixos na porta entreaberta, processando tudo o que
ela disse e a dor em seus olhos. Sei que ela está sofrendo, e há
duas partes de mim guerreando no momento. A que é faminta por
retaliação e a que a minha avó tentou preservar.
Você não é como ele, Ana disse, anos atrás.
A parte sombria está vencendo a guerra, no entanto. Não
sei como controlá-la. Não sei como fazê-la parar.
De repente, sou atingido com memórias do passado.

— Você não pode fazer isso — Hernan resmunga, quando


mando os empregados tirarem todos seus pertences do quarto
que antigamente o pertencia.
Agora, sou dono de tudo isso. Dono desta mansão. A
propriedade Diamond é minha. Ele assinou os termos, transferiu
tudo para meu nome, me fez o sucessor em troca de que eu
resgatasse as indústrias e lhe desse dinheiro para levar uma
vida modesta, apenas com o suficiente, nada de luxo.
Concordei, mas, honestamente, não dou a mínima para
Hernan. Finalmente atingi meu propósito. Agora, só preciso que
ele suma da minha frente. Nunca mais quero vê-lo.
— Posso. Eu sou o Diamond sucessor. Você mancha o
meu sobrenome.
— É porque eu concordei que fosse! — Hernan se torna
histérico enquanto mantenho a calma.
— Joguem tudo nas ruas — ordeno aos empregados,
referindo-me às malas com os seus pertences. — Longe da
minha calçada, claro.
Hernan tenta avançar sobre mim, porém os seguranças o
seguram. Agora, ele parece patético. Tão patético que tudo o
que consigo sentir é pena. Não há mais um tostão furado para
ele. Finalmente, está miserável.
— Você não é um homem honrado, Liam. Sua palavra não
vale de nada — continua gritando, enquanto é arrastado para fora.
E quem disse que eu queria ser alguém honrado? Meu
propósito era esse. Deixá-lo miserável. Acabar com seu
reinado. Começar o meu.
É a nova era dos Diamond. E será liderada por mim.
Depois desse dia, nunca vi Hernan ou ouvi falar sobre ele. Seus
pais na Alemanha nunca entraram em contato depois que ele levou
nossa família à ruína. Nem procuraram a mim ou meus irmãos para
saber se estávamos bem. Agiam apenas para não manchar a própria
imagem, enquanto nós éramos relegados ao fundo do poço.
Agora, as indústrias Diamond são sinônimo de poder como
nunca.
Decido ir para o andar debaixo, tentando não pensar no que
minha avó acharia disso tudo. No quanto de desgosto eu a traria
se estivesse viva.
Meus irmãos, Gina e Phoenix estão assistindo Grinch, usando
um projetor que transmite a imagem em uma das paredes. Tomo o
lugar vago ao lado de Phoenix, e ela me olha, enquanto estuda
minha expressão neutra. Sei que ela está sondando para saber
como foi a conversa com Donna, mas não dou qualquer sinal que a
dê uma resposta concreta.
Donna se junta a nós alguns momentos mais tarde, sem
evidências de choro em seu rosto.
Surpreendentemente, o clima não se torna tenso.

— Quem quer me ajudar a montar uma torta? — Gina


cantarola, depois que o filme acaba, levantando-se.
— Eu vou. — Bastian se põe de pé, mas ela o empurra
de volta para a poltrona.
— Nada disso, você já fez o suficiente. — Os olhos escuros
de Gina percorrem a sala até que param em mim. — Você é o único
que ainda não contribuiu em nada.
Com isso, ela se retira e vai para a cozinha. Phoenix me lança
um olhar divertido. Solto um suspiro antes de me levantar e seguir
a esposa de Bastian.
— O que quer que eu faça? — Puxo as mangas do
meu suéter para cima.
— Preciso organizar a bancada, pré-aquecer o forno e
trocar o pano da mesa. Hoje é a véspera de Natal, precisamos que
tudo esteja organizado.
Em silêncio, começo a fazer as coisas que Gina pediu.
Limpo a bancada, que está cheia de farinha e tigelas sujas, depois
ligo o forno e troco o pano da mesa. Quando tudo está pronto,
minha cunhada agradece, e eu saio no momento em que Donna
entra no ambiente para ajudá-la.
Fico parado no corredor, por algum motivo.

— São nozes? — Donna questiona.

— Sim, vamos colocar um pouco no recheio para


dar crocância.
— Liam é alérgico a nozes, acho melhor não.

Intrigado, eu finalmente entro na sala. Não sabia que


Donna se lembrava disso.
Bash está com um violão apoiado sobre a perna
esquerda, dedilhando-o enquanto Bree e Phoenix cantam uma
versão desafinada de Carol of the Bells. Faço careta e elas riem.
— Parem, por favor — peço, sentando-me no sofá.

— Segura a onda, Grinch — Bree retruca.

Elas continuam a cantar, até que eu esteja quase implorando


para que terminem, então, param. Próximo da meia-noite, iniciamos
a arrumação da mesa todos juntos. Bastian coloca os pratos em
exibição. Há tortas doces e salgadas, frango, purê e comida para
um batalhão inteiro.
Antes de jantarmos, Gina e Bastian guiam uma oração.

Logo após isso, nós começamos a nos servir.

Em algum momento, estamos bebendo vinho em frente à


lareira, prestes a abrirmos os presentes. Trouxe alguns para meus
irmãos e um para Phoenix. Bastian gargalha quando vê que ganhou
um par de meias de Bree. Eu lhe dei uma camiseta social de
botões porque não consegui pensar em nada. Brianna me deu
pedaços de carvão embalado, o que arranca risadas de todo
mundo e até mesmo eu não sou capaz de conter o sorriso.
— Pirralha insolente — murmuro, deixando o carvão de lado, e
ela apenas pisca os olhos azuis inocentemente em minha direção.
— Agora, os meus! — Donna anuncia, empolgada. Ela
entrega um presente para cada um dos filhos. Seguro o meu,
hesitante. É uma caixa pequena e leve. Não sei o que pode
conter aqui dentro.
Bastian é o primeiro a abrir o dele. Ganhou um manual de
como ser um bom pai. Bree fica com uma pulseira de ouro, e, por
fim, olho dentro da caixa e congelo. São as abotoaduras que a
avó Ana me deu há algum tempo. Achei tê-las perdido.
Como não digo nada e nem mostro o presente, Phoenix
começa a abrir o dela. Sentindo algo esquisito no peito, me forço a
me concentrar em sua reação. Dei a ela uma pulseira com
pequenos diamantes. Ela arregala os olhos, surpresa.
— Que injusto — Bree murmura.

— Obrigada. Amei! — Phoenix estala um beijo breve na


minha boca, e peço licença para fumar.
Saio para a varanda, observando a noite noturna e o
céu estrelado, a caixinha com as abotoaduras no bolso. Acendo
um charuto nos lábios, enquanto contemplo o silêncio da noite.
As risadas soam abafadas e distantes daqui. Depois de alguns
momentos, ouço a porta abrir e olho sobre o ombro.
Me surpreendo assim que vejo Donna, mas me volto para a
frente.

— Como conseguiu isso? — Quebro o silêncio.


— Um dia, encontrei essas abotoaduras em uma das
gavetas de Hernan — admite. — Então as guardei, mas acabei me
esquecendo.
Provavelmente ele as tinha visto no meu quarto e as pegou
para si. Fico em silêncio, refletindo no quanto essas abotoaduras
significam para mim. E no quanto me ressenti quando percebi
que as havia perdido.
— Obrigado — consigo dizer.

— De nada.

Ouço seus passos se distanciando, então acrescento:

— Eu te desculpo.

O silêncio que se segue é ensurdecedor. Minha mãe está em


cima da varanda, me olhando com os olhos marejados. Termino o
charuto, o apago e descarto em uma lata de lixo que fica no quintal.
— Obrigada — fala, finalmente entrando em casa.

Olho para cima. A maior estrela do céu parece cintilar


em minha direção, como se estivesse aprovado.
Volto meu rosto para a janela. Vejo Phoenix sentada no
tapete da sala, rindo de algo que meus irmãos estão dizendo,
enquanto Donna se senta ao seu lado. É a primeira vez que sinto
meu peito cheio. Como se o vazio não existisse mais. Como se
tudo estivesse como deveria ser para sempre.
Aqui. Com a minha família.

Essas pessoas que, mesmo sem admitir, eu amo.

Esse é o segredo para que eu me torne alguém melhor.


No meio da madrugada da noite de Natal, levanto para usar
o banheiro, tendo o cuidado de me desvencilhar de Phoenix, que
dorme tranquilamente em meus braços. Enquanto lavo as mãos,
contemplando o silêncio, um baque abafado no corredor faz com
que eu entre em alerta.
Saio do banheiro do quarto de hóspedes e abro a porta.
Gina está apoiada contra a parede, arfando. Um dos quadros está
estilhaçado ao chão. Ao notar a parte inferior de sua camisola
encharcada, compreendo a situação. A bolsa dela estourou,
provavelmente desequilibrando-a e resultando na queda do quadro
que causou o barulho.
Ela me fita com os olhos arregalados.

— Minha bolsa estourou — fala, assustada. — Temos


que acordar Bastian.
— O que estava fazendo aqui? — Me aproximo dela
para evitar que pise na bagunça de vidros cortados.
— Vim trazer cobertores extras para a Brianna.
As temperaturas despencaram mais.
Primeiro, a ajudo, mantendo a calma. Nunca passei por uma
situação dessas antes. Acompanho Gina até o andar de baixo, já que
é mais fácil do que subir as escadas até a suíte dela e de meu irmão.
Nós vamos devagar, um degrau de cada vez, cuidadosos para evitar
qualquer acidente até que ela se senta na poltrona, respirando
aliviada.
— Vou acordá-lo — aviso. — Não se levante.

Ela assente, tentando se controlar, mas dá para ver em seu


rosto que está apavorada. Gina é apenas um ano mais nova que eu,
que tenho vinte e três anos. Ela ainda é uma pirralha,
considerando que está prestes a se tornar oficialmente mãe pelos
próximos momentos.
Subo a escadaria depressa e acordo Bastian, que desperta
em alerta do sono profundo e não leva um minuto para estar no
andar debaixo. Agora, somos nós três aqui.
— Está nevando muito para irmos para o hospital — meu
irmão mais velho diz, apreensivo. — Vamos ter que chamar o
médico para cá, mas são três horas da manhã.
Acho que nunca vi Bastian assim antes, à beira de um
colapso. Por mais que tente parecer calmo para não apavorar
Gina, ele está suando de nervoso mesmo com a temperatura
negativa lá fora. Meu irmão apanha o telefone com a mão trêmula,
então pego o aparelho dele e tomo a frente da situação.
Para nossa sorte, o médico diz que chegará em duas
horas por conta do clima e do feriado.
— Ouvi alguns barulhos — Donna murmura ao juntar-se a
nós na sala, após descer as escadas. Envolta em um roupão
felpudo, ela examina cada rosto no recinto, captando a tensão no
ar. — O que há de errado? — Franze o cenho.
— Minha bolsa estourou — Gina diz, agora deitada no
sofá, cercada por travesseiros e almofadas. Tentamos deixá-la o
mais confortável possível.
— Vou chamar Brianna. Talvez possa ajudar, já que
está cursando enfermagem.
Bash xinga, percebendo que esqueceu deste detalhe, e, para
ser honesto, eu também. Não pensei em acordá-la. Acho que estou
absorvendo o nervosismo deles dois. Quero ligar para o médico,
ameaçá-lo ou suborná-lo para que chegue o mais rápido possível ou
até mesmo mandar um helicóptero para buscá-lo. De repente,
estou preocupado demais com esse bebê que nem nasceu ainda.
Quando Brianna vem, começa a acompanhar o intervalo de
contrações. Cada vez que Gina geme de dor, Bastian tenta
acalmá-la, segurando sua mão.
— Respire fundo, logo o médico irá chegar — minha irmã
fala, mas seus olhos revelam uma certa incerteza.
Às cinco horas, as dores de Gina ficaram mais fortes e as
contrações vêm num intervalo curto de tempo. O médico
finalmente chega, para nosso alívio. Com toda a agitação, Phoenix
finalmente desperta do sono e se junta a nós na sala. O doutor
trouxe duas parteiras consigo. Eles nos expulsam para organizar o
ambiente. As mulheres encapam o sofá com um forro e higienizam
o local para que Gina deite outra vez, além de colocar ervas para
criar um cenário propício e outros elementos que não entendo.
Agora, estamos todos aqui, esperando, enquanto Bastian
fica com sua esposa.
Bree e minha mãe se sentam à mesa, Phoenix come os
biscoitos que sobraram da ceia para mascarar o nervosismo, e
eu me apoio contra a bancada da pia.
Nos primeiros resquícios dos raios solares que invadem
as janelas, ouvimos o choro agudo tomar conta do lugar inteiro.
São pulmões fortes. Finalmente, depois de alguns
momentos, uma das parteiras diz que podemos voltar para lá. Nós
nos aglomeramos ao redor de Gina, que segura seu filho contra o
peito, com os olhos marejados. Ele é tão pequeno.
— Ele é tão lindo — Phoenix sussurra, encantada.

— Mal posso esperar para poder segurá-lo — Donna


acrescenta enquanto Bree parece fascinada, em silêncio.
— Qual o nome? — Corto o silêncio.

— Grayson. Era nossa opção principal. Acabamos de nos


decidir — Bash diz, sorrindo. Acho que é a primeira vez que o
vejo chorar.
Olho ao redor. Grayson tem bastante gente disposta
a defendê-lo com unhas e dentes.
Incluindo eu.

Estou à procura de Bash para me despedir quando o


encontro no quarto do bebê, segurando Grayson cuidadosamente
nos braços. O ambiente está todo decorado com ursos de pelúcia e
as paredes pintadas em um azul que me lembra o mar. Paro no
batente, observando-o acalmar o pequeno com cuidado. Bastian
solta um suspiro. Gina está dormindo um pouco, se recuperando do
parto. Agora, há uma equipe inteira aqui cuidando dela. Bastian
preferiu não levá-los ao hospital, por conta do frio e das pistas
estarem congestionadas. Muitos acidentes acontecem nesta época
do ano, então entendo sua preocupação.
— Não chore — fala, o tom de voz baixo e suave. — Estou
aqui.

Então, meu irmão começa a cantar Beautiful Boy de


John Lennon enquanto o embala nos braços.
Close your eyes
Feche os olhos
Have no fear
Não tenha medo
The monster’s gone
O monstro foi embora
He’s on the run and your daddy’s here
Ele fugiu e o papai está aqui
Beautiful, beautiful, beautiful
Lindo, lindo, lindo
Beautiful Boy
Lindo garoto
Sinto orgulho dele. Bastian encontrou seu final feliz e
construiu uma família, uma em que seu filho será muito amado.
Uma em que não há dor, apenas cuidado. Isso é o certo, não o
que tivemos em nossa infância.
— Você é um ótimo pai — falo, o tom de voz baixo,
atraindo sua atenção para mim.
Bastian vira o rosto em minha direção. Parece cansado,
mas feliz. Ele sorri.
— Obrigado. Um dia, espero que você experimente isso.

Fico em silêncio, porque não consigo me imaginar sendo pai.


Ainda. Tenho muito que aprender antes disso. Não quero ser
alguém indigno quando receber um filho de Phoenix. Quero ser
alguém bom. Quero ser… como Bastian. Agora, percebo que o mais
próximo de uma figura paterna que tive foi meu irmão mais velho.
Era ele quem estava lá comigo quando eu temia os trovões. Quando
eu me escondia no armário, por conta das brigas de nossos pais,
era ele quem ia me tirar de lá.
Está tudo bem, Bastian prometia. Você vai ficar bem, ele
falava. Tem que sair daí uma hora. Eu vou ficar com você esta noite.
— Obrigado — falo, quando as memórias dissipam.
Meu irmão franze o cenho, confuso.

— Pelo o quê?

— Estamos indo embora — mudo de assunto, apoiando-


me contra o batente da porta. — Mande notícias. O motorista
está à espera de mim e Phoenix lá embaixo.
— Não vou poder acompanhá-lo até a porta porque estou
segurando Gray, mas boa viagem. Foi bom ter você, Bree, a nossa
mãe e Phoenix aqui. — Há uma pausa. — Espero que possamos
nos reunir outra vez.
— Seria bom — concordo.

A resposta parece surpreendê-lo. Me despeço de Gray e desço


as escadas, encontrando Phoenix na soleira. Ela usa luvas, touca e um
casaco. Donna e Brianna se despediram mais cedo. Nós iríamos
embora amanhã, no dia vinte e seis, mas, com o nascimento de
Grayson, queremos dar privacidade e espaço para Bastian e Gina com
o bebê. Todos nós quatro remarcamos as passagens.
— Vamos para casa? — Phoenix diz, segurando as malas
e me olhando com seus olhos avelãs encantadores.
— Vamos para casa — concordo, abraçando-a antes de
entrar no táxi que parte em direção ao aeroporto.
Casa é qualquer lugar onde ela está e a partir de hoje
nunca mais deixarei meu passarinho ir embora.

FIM
AGRADECIMENTOS
Quero agradecer a todo mundo que esteve correndo
comigo nos bastidores para que esse livro fosse lançado. Sem
vocês, não estaríamos aqui.
Escrever sobre o Liam foi um desafio para mim, então
também não posso deixar de ser grata a todas minhas leitoras
que pediram por isso e ficaram tão ansiosas quanto eu quando
decidi transformar a ideia toda em uma série.
Esse foi apenas o volume II.

Nos encontraremos no futuro, para dar vida à história da


Bree. E, caso alguém aqui esteja interessado em acompanhar as
notícias, recomendo que me siga no Instagram (@lov3lyloser).
Com amor,
Lovely.

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