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Organizadores

Rosângela Maria Herzer dos Santos


Denise Bittencourt Friedrich
Ricardo Hermany
Betieli da Rosa Sauzem Machado

Autores

Aline Burin Cella Gisela Borghetti Velho


Amanda Demiquei Pohl Josiane Caleffi Estivalet
Ana Luiza Hernandez Juliana Beatriz de Paula
André Emílio Pereira Linck Juliana Scholante Iserhard
Carhla de Oliveira Alves Lucas Dadda de Lemos
Cássio Alberto Arend Patrícia De Carli
Claudia Perrone Patrícia Thomas Reusch
Cynthia Gruendling Juruena Patrick Birkan Beria
Dalva Simone Mesquita Selau Rafael madeira da Veiga
Denise Friedrich Ricardo Hermany
Elia Denise Hammes Rosana Helena Maas
Tais Ramos

COLETÂNEA DOS SABERES:


O DIREITO SOB A PERSPECTIVA DA ADVOCACIA

Porto Alegre
OABRS
2019
Copyright © 2019 by Ordem dos Advogados do Brasil
Todos os direitos reservados

UNIVERSIDADE DE SANTA CRUZ DO SUL

REITORA
Carmen Lúcia de Lima Helfer
Vice-Reitor
Rafael Frederico Henn
PRÓ-REITORA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO
Andréia Rosane de Moura Valim
COORDENADORA DE PÓS-GRADUAÇÃO LATO SENSU
Denise Bittencourt Friedrich

Capa
Carlos Pivetta

C658
Coletânea dos Saberes: O direito sob a perspectiva da Advocacia / Rosângela Maria
Herzer dos Santos [et al.] (Organizadores). – Porto Alegre: OABRS. 2019. 242p.

ISBN: 978-85-62896-18-7

1. Direito do Trabalho. 2. Direito Previdenciária. 3. Direito Processual Civil. I.


Machado, Betieli da Rosa Sauzem. II. Título.
CDU 340

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ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL - CONSELHO FEDERAL

DIRETORIA/GESTÃO 2019/2021

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Vice-Presidente: Luiz Viana Queiroz
Secretário-Geral: José Alberto Simonetti
Secretário-Geral Adjunto: Ary Raghiant Neto
Diretor Tesoureiro: José Augusto Araújo de Noronha

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Diretor-Geral: Ronnie Preuss Duarte

ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL - SECÇÃO DO RIO GRANDE DO SUL

Presidente: Ricardo Ferreira Breier


Vice-Presidente: Jorge Luiz Dias Fara
Secretária-Geral: Regina Adylles Endler Guimarães
Secretária-Geral Adjunta: Fabiana Azevedo da Cunha Barth
Tesoureiro: André Luis Sonntag

ESCOLA SUPERIOR DE ADVOCACIA

Diretora-Geral: Rosângela Maria Herzer dos Santos


Vice-Diretor: Darci Guimarães Ribeiro
Diretora Administrativa-Financeira: Graziela Cardoso Vanin
Diretora de Cursos Permanentes: Fernanda Corrêa Osório, Maria Cláudia Felten
Diretor de Cursos Especiais: Ricardo Hermany
Diretor de Cursos Não Presenciais: Eduardo Lemos Barbosa
Diretora de Atividades Culturais: Cristiane da Costa Nery
Diretor da Revista Eletrônica da ESA: Alexandre Torres Petry

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Secretária-Geral Adjunta: Claridê Chitolina Taffarel
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Corregedora: Maria Helena Camargo Dornelles

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Josana Rosolen Rivoli,
Regina Pereira Soares

OABPrev

Presidente: Jorge Luiz Dias Fara


Diretora Administrativa: Claudia Regina de Souza Bueno
Diretor Financeiro: Ricardo Ehrensperger Ramos
Diretor de Benefícios: Luiz Augusto Gonçalves de Gonçalves

COOABCred-RS

Presidente: Jorge Fernando Estevão Maciel


Vice-Presidente: Márcia Heinen
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PREFÁCIO - ESCOLA SUPERIOR DE ADVOCACIA DA OAB/RS

A obra foi desenvolvida por alunos e professores do Programa de Pós-Graduação em


Direito Latu Sensu da Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC, em parceria com a Escola
Superior da Advocacia do Estado do Rio Grande do Sul. Desse modo, o livro conta com seis
capítulos, nos quais é realizada a abordagem de temáticas atuais envolvendo várias questões
na área do Direito do Trabalho, Previdenciário, Processual Civil, Imobiliário, Urbanístico,
Notorial e Registral, além de temas envolvendo o Direito Eleitoral e Penal.
Na primeira parte são abordados temas relacionados ao Direito do Trabalho, que se
subdivide em três capitulos. Desta forma, Patrick Birkan Beria e Patricia Thomas Reusch
analisam se a execução provisória prevista no novo código de processo civil pode ser
aproveitada no processo trabalhista. Sendo assim, em um primeiro momento as autoras
apresentam um breve panorama histórico do regime jurídico aplicável à execução provisória.
Posteriormente, definem o conteúdo do instituto e a sua relação com a tutela jurisdicional.
Após, analisam o recurso aos mecanismos de integração normativa trabalhista no contexto
das teorias da lacuna e da constitucionalização do processo.
A seguir Rafael Madeira da Veiga e Cynthia Gruendling Juruena abordam a
pertinência e a viabilidade da qualidade de segurado especial para catadores de materiais
recicláveis. Primeiramente, realiza-se uma análise da Proposta de Emenda à Constituição –
PEC 309/2013, originalmente formulada pelo Movimento Nacional de Catadores de
Materiais Recicláveis – MNCR, após a conceituação do Segurado Especial e, por fim, um
estudo comparativo da categoria já existente e da proposta de incorporação de um nova
categoria “catadores de materiais”, usando como hipóteses científicas as características
normativas dessa categoria de contribuinte.
E Juliana Scholante Iserhard e Patricia Thomas Reusch analisam o dumping social e
a indenização por dano moral coletivo como salvaguarda dos direitos constitucionais na
seara trabalhista. Desse modo, a pesquisa observa primeiramente a formação e evolução do
Direito do Trabalho no Brasil, bem como sua influência na sociedade atual. Também
verificam os princípios Constitucionais balizadores do Direito do Trabalho que conferem
proteção ao trabalhador. Prosseguindo a reflexão, no sentido de explicitar o dumping social,
para então adentrar no dano moral coletivo e sua configuração, apontando também as partes
legitimas para propor a Ação Civil Pública, destacando jurisprudências com o intuito de
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demonstrar os entendimentos dos nossos tribunais atualmente.


Na sequência, o segunda parte da obra passa a abordar temas relacionados ao Direito
Previdenciário, se subdividindo em dois capitulos. Assim, Lucas Dadda de Lemos e Tais
Ramos se dedicam a verificar a inconstitucionalidade da desaposentação e a possibilidade
de reaposentação na seara previdenciária brasileira. Logo, os autores se propõe a analisar a
(im)possibilidade de ocorrer a reaposentação, após a decisão do Supremo Tribunal Federal,
de 2016, acerca da inconstitucionalidade da desaposentação.
Posteriormente, é analisada a aposentadoria especial no ambiente hospitalar por
Dalva Simone Mesquita Selau e Tais Ramos, através da verificação das particularidades da
aposentadoria dos trabalhadores que exercem suas atividades no referido ambiente, ou seja,
os que estejam exposto aos agentes biológicos, considerando, ainda, os requisitos da
habitualidade e permanência e a eficácia dos EPIS. Posteriormente, é realizada a análise
jurisprudencial acerca da aposentadoria especial no ambiente hospitalar.
A terceira parte da obra é dedicada a abordagem de temas que envolvem o Direito
Processual Civil, a qual se subdivide em três analises. Dessa maneira, Claudia Perrone e
Aline Burin Cella abordam a flexibilização procedimental como expressão da colaboração
no CPC/2015. Assim, no primeiro momento são apresentados os elementos que caracterizam
a colaboração como um modelo processual, bem como os elementos inerentes a sua
consideração como um princípio; no segundo momento destacam-se as três espécies de
flexibilizações procedimentais (legal, judicial e voluntária).
Patrícia De Carli e Josiane Caleffi Estivalet observam a autocomposição de conflitos
como ferramenta de redução da judicialização da saúde, ou seja, as autoras se debruçam em
analisar a possibilidade de utilização de ferramentas autocompositivas em matérias que
envolvam a administração pública e a sua prestação de serviços na área dos direitos
indisponíveis, como é o caso da saúde.
Já quanto ao tema que versa sobre a judicialização da saúde e a aplicação da tutela
provisória de urgência, as autoras Rosana Helena Maas e Ana Luiza Hernandez realizam
apontamentos relativos a judicialização e as novas confrontações das tutelas provisórias
frente ao Código de Processo Civil de 2015.
O quarto extrato é dedicado a abordagem de temas relacionados ao Direito
imobiliário, urbanístico, notorial e registral, o qual se subdivide em dois temas. Logo,
Amanda Demiquei Pohl e Ricardo Hermany realizam um estudo comparativo entre os
institutos da usucapião especial de imóvel urbano e o projeto more legal IV. Portanto, a partir
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do Projeto More Legal busca-se demonstrar seus efeitos práticos, aliando a isso ass inúmeras
situações de moradias irregulares ou clandestinas existentes no país.
Giselle Borghetti Velho e Elia Denise Hammes destacam a temática relativa ao
contrato de arrendamento rural e as suas implicações jurídicas na fixação do preço em
produto, oriundo do contrato particular, destacando que tal fixação de preço é contrária à
previsão legal, visto que a legislação não admite essa possibilidade de pagamento do
contrato.
Além disso, na quinta etapa são analisados temas relacionados ao Direito eleitoral, o
qual se subdivide em dois. Destarte, André Emílio Pereira Linck e Cássio Alberto Arend
centram-se na temática relacionada a Justiça Eleitoral moderna, destacando a necessidade
da jurisdição especializada nos casos interna corporis dos partidos políticos. Desse modo,
os autores ressaltam a autonomia dos partidos políticos em face à Justiça Eleitoral,
especialmente no que concerne à jurisdição dos conflitos interno dos mesmos.
Já Carhla de Oliveira Alves e Denise Friedrich discorrem sobre o empoderamento
feminino na política brasileira, ressaltando que lugar de mulher também é na política, ou
seja, as autoras se propõem a abordar os obstáculos e a importância do empoderamento
feminino na política, tendo em vista que a participação da mulher brasileira nos espaços
públicos, além de mudanças legais, depende também de mudanças culturais.
Por fim, a última divisão centra-se na temática do Direito Penal. Nesse sentido,
Juliana Beatriz de Paula e Patricia Thomas Reusch analisam o estado de coisas
inconstitucionais (ECI) e a falência do sistema penitenciário brasileiro, tendo como base
aArguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), nº 347, no Supremo
Tribunal Federal. Portanto, as autoras buscam identificar o que é e quais são os pressupostos
do referido instituto, relacionando-o ao sistema penitenciário brasileiro como uma nova
ferramenta para a tutela dos direitos fundamentais dos presos que cumprem penas de prisão
no país.
Certa de que a presente coletânea de artigos, com temática de diversas área do direito
possa contribuir com advocacia além de destacar aos ilustres autores, os quais desejamos
todo o êxito que merecem, desejamos uma excelente leitura.

Rosângela Maria Herzer dos Santos


Diretora-Geral da Escola Superior de Advocacia – OAB/RS
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APRESENTAÇÃO – UNIVERSIDADE DE SANTA CRUZ DO SUL

A presente obra representa a concretização de um projeto conjunto entre a Escola


Superior da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil do Rio Grande do Sul em
parceira com a Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC) com o objetivo de materializar
e perpetuar os melhores trabalhos elaborados em nível de especialização que ambas
instituições realizaram conjuntamente. Referido projeto nasceu de um desejo comum: levar
educação continuada aos lugares mais remotos e distantes dos centros de produção de
conhecimento a fim de qualificar aqueles que desempenham papel fundamental na
concretização dos direitos e da cidadania: a advocacia!
É com um sentimento de dever cumprido que apresento, na qualidade de
Coordenadora de Pós-Graduação lato sensu da UNISC, uma obra com esta envergadura,
fruto de um ato de coragem e nobreza que lançou os fundamentos de um longo e duradouro
projeto que uniu a ESA/RS; OAB/RS e a UNISC na árdua tarefa de, através da advocacia,
fazer cumprir os desideratos constitucionais, dentre os quais destaco o princípio matriz da
dignidade da pessoa humana. Princípio este que se concretiza através de uma advocacia
forte, qualificada, emancipada e ciente da sua importância na sociedade contemporânea que
busca junto e para o cidadão o direito à saúde, à educação, à participação democrática, à
correção de injustiças sociais, o direito a serviços públicos essências, etc. A
imprescindibilidade da advocacia evidencia-se diante do seu aporte constitucional.
Foi pensando nisso que os cursos oferecidos situaram-se na área do direito do
trabalho, do direito previdenciário, do direito imobiliário, do direito eleitoral, do direito
penal e processual civil. Especialmente quanto a este último, em 2015 trouxe importantes
avanços para a advocacia decorrentes de uma atuação ímpar da OAB Federal, na época
presidida pelo Dr. Cláudio Pacheco Prates Lamachia, que encheu os gaúchos de orgulho pela
irretocável representação da categoria e da luta incansável pela cidadania. A escolha das
áreas se deu por estarem atravessando mudanças profundas e importantes, bem como por
serem áreas de atuação que demandam uma visão sistêmica e qualificada daqueles que nelas
labutam, sob pena de perdas sociais irreparáveis.
Os trabalhos que hoje são trazidos a público foram construídos sob o olhar cuidadoso
de profissionais experientes, com expertise na área, razão pela qual a leitura e análise dos
textos é recomendada. Além da contribuição dos professores orientadores e de todo o corpo
docente, o sucesso também se deve ao olhar atendo e incansável trabalho do Dr. Ricardo
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Ferreira Breier, presidente da OAB/RS, e da Dra. Rosângela Herzer dos Santos, Diretora da
ESA/RS, grandes idealizadores e entusiastas do projeto.
Espero com a primeira obra contendo a síntese dos melhores trabalhos de
especialização dos cursos de Direito Eleitoral; Advocacia Trabalhista e Previdenciária;
Advocacia Imobiliária, Urbanística, Registral e Notarial; Direito Processual Civil; e
Advocacia Criminal, encorajando, os já corajosos envolvidos, a enxergar este ato como o
primeiro de muitas outras ações de perseverança, contrariando assim o mundo líquido,
carente de valores sólidos, que despreza o exemplo de ambiciosos projetos que demandaram,
e continuarão demandando, bases sólidas. Sem isso, os sonhos jamais se tornarão realidade.
Certamente os obstáculos não foram poucos para os advogados alunos das especializações
acima citadas. Mas, contrariando a modernidade líquida, perseveram e atingiram seus
objetivos e viram seus sonhos se tornarem realidade. Sejam assim exemplos para os
próximos.

Denise Bittencourt Friedrich


Coordenadora de pós-graduação lato sensu
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SUMÁRIO

PREFÁCIO - ESCOLA SUPEIOR DE ADVOCACIA DA OAB/RS- Rosangêla Maria


Herzer dos Santos .................................................................................................................. 6
APRESENTAÇÃO - UNIVERSIDADE DE SANTA CRUZ DO SUL - Denise
Bittencourt Friedrich ............................................................................................................. 9

I NOVOS TRATAMENTOS NO ÂMBITO DO DIREITO DO TRABALHO ........... 13

EXECUÇÃO PROVISÓRIA TRABALHISTA E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO


CIVIL- Patrick Birkan Beria e Patricia Thomas Reusch ................................................... 14
A PERTINÊNCIA E A VIABILIDADE DA QUALIDADE DE SEGURADO
ESPECIAL PARA CATADORES DE MATERIAIS RECICLÁVEIS – Rafael Madeira
da Veiga e Cynthia Gruendling Juruena ............................................................................. 29
DUMPING SOCIAL E A INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL COLETIVO COMO
SALVAGUARDA DOS DIREITOS CONSTITUCIONAIS NA SEARA
TRABALHISTA –Juliana Scholante Iserhard e Patricia Thomas Reusch ...................... 45

II ASPECTOS RELEVANTES DO DIREITO PREVIDENCIÁRIO NO INSTITUTO


DA APOSENTADORIA ................................................................................................... 62

A INCONSTITUCIONALIDADE DA DESAPOSENTAÇÃO E A POSSIBILIDADE


DE REAPOSENTAÇÃO NA SEARA PREVIDENCIÁRIA BRASILEIRA –Lucas
Dadda de Lemos e Tais Ramos ........................................................................................... 63
APOSENTADORIA ESPECIAL NO AMBIENTE HOSPITALAR –Mesquita Selau e
Tais Ramos .......................................................................................................................... 89

III ABORDAGENS CONTEMPORÂNEAS NO DIREITO PROCESSUAL CIVIL


........................................................................................................................................... 114

A FLEXIBILIZAÇÃO PROCEDIMENTAL COMO EXPRESSÃO DA


COLABORAÇÃO NO CPC/2015 – Claudia Perrone e Aline Burin Cella ................... 115
A AUTOCOMPOSIÇÃO DE CONFLITOS COMO FERRAMENTA DE REDUÇÃO
DA JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE – Patrícia De Carli e Josiane Caleffi Estivalet . 131
JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE E A APLICAÇÃO DA TUTELA PROVISÓRIA DE
URGÊNCIA – Rosana Helena Maas e Ana Luiza Hernandez ........................................ 147
12

IV MÚLTIPLAS PERSPECTIVAS DO DIREITO IMOBILIÁRIO, URBANÍSTICO,


NOTORIAL E REGISTRAL ......................................................................................... 161

ESTUDO COMPARATIVO ENTRE OS INSTITUTOS DA USUCAPIÃO ESPECIAL


DE IMÓVEL URBANO E O PROJETO MORE LEGAL IV – Amanda Demiquei Pohl
e Ricardo Hermany............................................................................................................ 162
O CONTRATO DE ARRENDAMENTO RURAL E AS IMPLICAÇÕES JURÍDICAS
DA FIXAÇÃO DO PREÇO EM PRODUTO – Giselle Borghetti Velho e Elia Denise
Hammes ............................................................................................................................. 175

V NOVOS DESAFIOS NO DIREITO ELEITORAL .................................................. 191

JUSTIÇA ELEITORAL MODERNA: UMA ANÁLISE DA NECESSIDADE DA


JURISDIÇÃO ESPECIALIZADA NOS CASOS INTERNA CORPORIS DOS
PARTIDOS POLÍTICOS – André Emílio Pereira Linck e Cássio Alberto Arend ........ 192
O EMPODERAMENTO FEMININO NA POLÍTICA BRASILEIRA: LUGAR DE
MULHER TAMBÉM É NA POLÍTICA – Carhla de Oliveira Alves e Denise Friedrich
........................................................................................................................................... 207

VI AS INCONSTITUCIONALIDADES PRESENTES NO DIREITO PENAL ....... 221

O ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL (ECI) E A FALÊNCIA DO


SISTEMA PENITENCIÁRIO BRASILEIRO – Juliana Beatriz de Paula e Patricia
Thomas Reusch .................................................................................................................. 222
13

I NOVOS TRATAMENTOS NO
ÂMBITO DO DIREITO DO TRABALHO
14

EXECUÇÃO PROVISÓRIA TRABALHISTA E O NOVO CÓDIGO DE


PROCESSO CIVIL

Patrick Birkan Beria1


Patricia Thomas Reusch2

RESUMO

A execução provisória do processo civil permite, em determinados casos, a efetiva


disponibilização do bem da vida deduzido em juízo, ao passo que o mesmo instituto, no
âmbito do processo do trabalho, encontra o seu limite máximo de desenvolvimento na
penhora. Atento a essa realidade, o presente artigo objetiva verificar se a técnica prevista
para a execução provisória no processo civil pode também ser aproveitada no processo do
trabalho, garantindo um acesso mais rápido do trabalhador ao seu crédito e dividindo entre
as partes o ônus do tempo do recurso. Inicialmente, apresenta um breve panorama histórico
do regime jurídico aplicável à execução provisória. Posteriormente, define o conteúdo do
instituto e a sua relação com a profundidade da entrega da tutela jurisdicional. Passo
contínuo, analisa o recurso aos mecanismos de integração normativa trabalhista no contexto
das teorias da lacuna e da constitucionalização do processo. Ao final, conclui que a
ferramenta civilista, além de superar a confusão entre executoriedade e imutabilidade,
mostra-se mais alinhada aos princípios constitucionais e aos ideais contemporâneos de
jurisdição do que aquela utilizada no processo do trabalho, situação que – conforme doutrina
especializada – configura modalidade de omissão, o que autoriza a importação subsidiária
da técnica processual civil.
Palavras-chave: Efetividade. Execução provisória. Novo código de processo civil. Processo
do trabalho. Subsidiariedade.

INTRODUÇÃO

A doutrina e a jurisprudência trabalhistas sempre se mostraram resistentes ao


ingresso, em seu campo de atuação, de elementos processuais oriundos de outros ramos,
utilizando o critério da omissão, disposto no artigo 769 da Consolidação das Leis do
Trabalho, como verdadeiro mecanismo de proteção, já que, em tese, o regramento
procedimental específico atenderia de melhor maneira às demandas do direito laboral.
Ocorre, contudo, que, diante do respaldo atribuído às correntes que pregam uma
maior efetividade da tutela jurisdicional, todas amparadas no arcabouço principiológico do

1 Advogado, Graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
Especialista em Advocacia Trabalhista e Previdenciária pela Universidade de Santa Cruz do Sul. E-mail:
pberia@msn.com
2 Mestra em Direito pelo Programa de Pós-graduação Mestrado e Doutorado da Universidade de Santa Cruz
do Sul – UNISC. Linha de pesquisa Políticas Públicas de Inclusão Social. Conceito Capes 5. Pós-graduada
em Direito do Trabalho, Previdenciário e Processo do Trabalho – UNISC. Graduada em Direito – UNISC.
E-mail: patriciareusch@gmail.com
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Estado Constitucional, uma onda de reformas varreu o processo comum, particularmente o


processo de execução, operando profundas mudanças no formalismo previsto para a entrega
do bem da vida posto em juízo e tornando referência muitas de suas disposições.
O movimento despertado com as Leis 10.352/2001, 10.358/2001 e 10.444/2002,
chamadas de reforma da reforma por Cândido Rangel Dinamarco, bem como com a Lei
11.232/2005, que seguiu avançando com a Lei 13.105/2015 (Novo Código de Processo
Civil), expôs as impropriedades da tutela jurisdicional executiva trabalhista para o novo
século, denotando que há muito restou esquecida pelo legislador.
Aliás, diga-se de passagem que, se hoje o processo do trabalho ainda se mantém
razoavelmente atualizado, muito se deve aos avanços oriundos do processo civil, os quais,
por compatibilidade e por falta de previsão expressa, foram absorvidos pelo ramo laboral.
Nesse contexto, enquanto a execução provisória do processo do trabalho esbarra na
penhora, conforme previsto no artigo 899 da Consolidação das Leis do Trabalho,
reproduzindo a lógica encontrada no Código de Processo Civil de 1939 e na redação original
do Código de Processo Civil de 1973, o renovado processo civil permite, em sede de
execução provisória, a efetiva entrega do bem da vida pretendido, dispensando o
oferecimento de garantias em determinadas oportunidades, mormente na hipótese de crédito
de origem alimentar.
Logo, o instituto da execução provisória, frente ao considerável distanciamento
normativo existente no tratamento do tema entre os ramos cível e trabalhista, demanda maior
atenção doutrinária, situação que justificativa a realização do presente estudo, o qual objetiva
verificar se a técnica prevista para a execução provisória no processo civil pode também ser
estendida ao ramo trabalhista, garantindo um acesso mais rápido do trabalhador ao seu
crédito e dividindo entre as partes o ônus do tempo do recurso.
Atento a essa proposta, primeiramente, será feito um breve panorama histórico do
regime jurídico aplicável à execução provisória, com o intuito de analisar o tratamento
dispensado ao tema, no âmbito cível e trabalhista, no passar do tempo e nos diferentes
contextos institucionais.
Passo seguinte, será determinado o conteúdo do instituto execução provisória e a sua
relação com a profundidade da entrega da tutela jurisdicional.
Ao final, serão analisadas as técnicas de integração normativa processual no contexto
das teorias da lacuna e da constitucionalização do processo, o que, em conjunto com as
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informações obtidas nos tópicos anteriores, será capaz de indicar uma direção de resposta ao
problema de pesquisa.

1 PANORAMA HISTÓRICO DO REGIME JURÍDICO APLICÁVEL À EXECUÇÃO


PROVISÓRIA NO PROCESSO CIVIL E NO PROCESSO DO TRABALHO

A possibilidade de efetivação do comando sentencial em momento anterior à


formação da coisa julgada encontra, em terras brasileiras, o primeiro marco normativo nas
Ordenações Filipinas, haja vista a importação, por força do processo de colonização, da
legislação portuguesa, segundo posição relativamente pacífica na doutrina nacional, nesse
sentido, e por todos, Bueno (1999, p. 87).
Previam as Ordenações Filipinas, no Livro Terceiro, Título LXXXVI, item 3, que,
sobrevinda sentença, independentemente do manejo de qualquer mecanismo processual pela
parte executada, a execução prosseguia, inclusive com a perfectibilização dos devidos atos
expropriatórios, possibilitado-se também o levantamento de valores mediante o
oferecimento de garantia fidejussória.
Cessado o regime colonial e proclamado o Império no Brasil, apesar da nova
organização constitucional e administrativa de inspiração declaradamente norte-americana,
o direito processual civil seguiu basicamente o mesmo, de derivação europeia e regulado
pelo Livro Terceiro das Ordenações Filipinas, além de diversas leis extravagantes, conforme
referem Picardi e Nunes (2011, p. 93).
Apenas em 1876, é que se dá a reunião da sistemática de teses legislativas
processuais, todas derivadas do direito nacional, romano e consuetudinário, sob a rubrica de
Consolidação das Leis do Processo Civil, cuja organização, por incumbência do Governo
Imperial, coube ao Conselheiro Antônio Joaquim Ribas.
A chamada Consolidação Ribas preparou o ambiente para a execução provisória ao
prever, no artigo 1198, que a sentença podia ser executada quando recebida a apelação
somente no efeito devolutivo, sem estabelecer um procedimento diferenciado em relação à
execução definitiva.
Com o advento da República, houve a extensão do Decreto 737 de 1850,
disciplinador do processo comercial, para as questões cíveis, passando a execução provisória
a guardar previsão nos artigos 652 e 653 do referido diploma legal, os quais, a exemplo da
Consolidação Ribas, limitavam-se a autorizar o procedimento, prevendo a concessão de
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efeito suspensivo para os embargos apresentados na execução e para as apelações interpostas


em ações ordinárias.
A primeira Constituição Republicana, promulgada em 1891, instituiu a dualidade da
Justiça – Federal e Estadual – e das regras procedimentais, cabendo à União e aos Estados-
membros a competência para legislar sobre matéria processual.
Diante desse contexto, foram editados inúmeros códigos processuais estaduais,
alguns dos quais previam o instituto da execução provisória, como o da Bahia, o do Rio de
Janeiro, o do Paraná, o do Distrito Federal e o de São Paulo, sendo exceção o codex gaúcho,
o qual não admitia a existência de apelação sem efeito suspensivo (BUENO, 1999, p. 89-
91).
Reestabelecida a unidade legislativa processual da União, já sob a égide da
Constituição de 1937, entrou em vigor o Código de Processo Civil de 1939, encabeçado pelo
jurista Francisco Campos, cujo artigo 882 dispunha que as sentenças seriam exequíveis
quando transitadas em julgado ou quando recebido o recurso somente no efeito devolutivo,
admitida nesta última hipótese a execução provisória.
No mesmo diploma legal, o artigo 883 elencava os princípios observáveis nessa
modalidade de efetivação do pronunciamento judicial, como a impossibilidade de realização
de atos que importassem alienação de domínio e, sem a devida caução, levantamento de
dinheiro.
O Código de Processo Civil de 1973, fruto da técnica pregada pelo Mestre Enrico
Tullio Liebman, cuja elaboração restou conduzida pelo seu discípulo Alfredo Buzaid, em
sua redação original do artigo 588, simplesmente reproduziu a lógica do sistema anterior,
vedando a efetivação de atos de alienação em sede de execução provisória.
Nessa conjectura, a execução provisória servia “como espécie de aparelhamento da
execução definitiva” (COSTA, 2009, p. 61), de matriz notadamente cautelar, voltada a
assegurar o resultado útil da demanda por intermédio do adiantamento de atos executivos.
A Lei nº 10.444/2002, derivada da força atribuída às correntes que pregam uma maior
celeridade e efetividade no sistema processual, apresentou uma grande ruptura nos contornos
do instituto aqui estudado, reformulando o então artigo 588 do Código de Processo Civil.
Pela nova redação, a execução provisória passou a permitir, mediante caução, não só
o levantamento de valores em espécie, mas também a realização de atos de alienação de
domínio, dispensando-se, no caso de crédito alimentar, quando o exequente se encontrar em
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estado de necessidade, o oferecimento de qualquer garantia, observado o limite de sessenta


salários mínimos.
A Lei 11.232/2005, por sua vez, manteve basicamente a estrutura do revogado artigo
588, que já havia sido alterado pela legislação de 2002, promovendo, no fundo, alterações
na localização dos dispositivos – artigo 588 passou a ser o artigo 475-O – e redacionais
pontuais, a exemplo do parágrafo primeiro do artigo 475-I, o qual, mudando o enfoque da
parte final do revogado artigo 587, passou a conceituar execução provisória como aquela
iniciada mediante a interposição de recurso não recebido no efeito suspensivo (a redação
anterior falava de recurso recebido somente no efeito devolutivo).
A Lei 13.105/2015, disciplinadora do Novo Código de Processo Civil, seguiu
avançando na disciplina legal do instituto, chamado agora de cumprimento provisório de
sentença, aumentando as hipóteses de dispensa de caução e retirando a limitação de sessenta
salários mínimos.
Pela legislação processual civil em vigor, conforme consta do artigo 521, não será
exigida caução para levantamento de dinheiro ou para realização de atos de alienação de
domínio quando o crédito for de natureza alimentar, quando o credor demonstrar estado de
necessidade, quando pender agravo contra decisão de presidente ou vice-presidente de
tribunal que inadmitir recurso extraordinário ou especial e quando a sentença estiver em
consonância com Súmula do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça ou
em conformidade com acórdão proferido no julgamento de casos repetitivos.
Dessa forma, percebe-se que, na sistemática do processo civil, a execução provisória
experimentou diferentes fases de desenvolvimento, passando por momentos nitidamente
cautelares, por momentos de relativização (aceitando-se a satisfação do crédito mediante
caução) e por momentos, como o atual, de realização de atos satisfativos sem a prestação de
garantia.
No ramo laboral, inexistem etapas históricas relativas ao tratamento da execução
provisória, simplesmente porque o instituto permaneceu inalterado ao longo da história,
independentemente do enfoque, seja doutrinário, acadêmico ou jurisprudencial (COSTA,
2009, p. 63).
Com disposições datadas de maio de 1943, observando a lógica do Código de
Processo Civil de 1939, no único dispositivo dedicado ao tema, com redação dada por lei de
1968, a Consolidação das Leis do Trabalho admite a execução provisória até a penhora, na
linha do disposto no seu artigo 899.
19

2 EXECUÇÃO PROVISÓRIA E A PROFUNDIDADE DA ENTREGA DA TUTELA


JURISDICIONAL

Dada a previsão constitucional da inafastabilidade do controle judicial – artigo 5º,


XXXV, da Constituição da República, incumbe ao Estado o ônus de prestar uma tutela
jurisdicional adequada e efetiva (ALVARO DE OLIVEIRA; MITIDIERO, 2010, p. 28-31),
isto é, que, além de observar as especificidades do direito material posto em juízo, propicie,
por intermédio de medidas processuais pertinentes, a materialização da tutela do direito.
Nessa linha, Marinoni (2011, p. 292-293) adverte que o direito de ação não pode ser
pensado simplesmente como direito a uma sentença de mérito, concluindo que o direito à
tutela jurisdicional efetiva deve ser compreendido “como o direito à preordenação das
técnicas processuais necessárias e idôneas à concreta realização da tutela do direito,
englobando, entre outros, os provimentos e os meios de execução adequados”.
Assim, tratando-se de título com eficácia condenatória, executiva ou mandamental,
a efetividade da tutela jurisdicional depende da modificação do mundo físico, através do
desencadeamento de atos que visem a satisfação da obrigação constante no documento
caracterizado como capaz de demandar a atuação estatal.
Essa modificação do mundo físico, na hipótese de título judicial, pode ocorrer em
etapa anterior ou posterior ao trânsito em julgado da sentença de mérito, já que imutabilidade
e executoriedade são fenômenos que não se confundem, pois, ao passo que a imutabilidade
impede a rediscussão das questões suscitadas no processo, a executoriedade diz respeito à
produção imediata dos efeitos práticos que emanam da sentença.
Consequentemente, “não é o trânsito em julgado que produz os efeitos da sentença
e, portanto, forma o título executivo. Eles preexistem a tal momento, conforme provou
Liebman, exceção feita à certeza (efeito da declaração)” (ASSIS, 2010, p. 110).
Aliás, influenciado por essa forma de pensar, o artigo 475-I, §1º, do Código de
Processo Civil de 1973, acrescido pela Lei 11.232/2005, dispunha que a execução pautada
em sentença transitada em julgado é definitiva, já aquela baseada em sentença impugnada
mediante recurso ao qual não foi atribuído efeito suspensivo, provisória.
Na concepção tradicional, as duas espécies de execução apresentavam diferenças na
profundidade da entrega da tutela jurisdicional, dado que, enquanto a execução provisória
não permitia a efetiva concretização do direito material, a execução definitiva autorizava a
satisfação integral do direito (MARINONI, 2011, p. 205).
20

Contudo, essa tese resta superada pela constatação de que a provisoriedade não é
atributo da execução, mas sim do título sob o qual esta se funda, uma vez que os seus atos
são processados da mesma forma que os da execução definitiva (artigo 520 do Código de
Processo Civil de 2015).
Dentro dessa proposta, Assis (2010, p. 364) aduz que, embora de uso corrente, a
palavra provisório não representa adequadamente o fenômeno, visto que provisório é o
título, não a execução, a qual se processa da mesma forma que a definitiva, dividindo o ônus
do tempo do recurso e desestimulando a interposição de recursos com o propósito de protelar
o andamento do feito.
“Se é o título que é provisório, pode existir, em tese, execução completa e incompleta
fundada em título provisório” (MARINONI, 2011, p. 205), bastando, para evidenciar o
equívoco da doutrina anterior, que a execução provisória de despejo (Lei 8.245/91) sempre
foi uma execução completa.
Ao cabo, provisoriedade só pode expressar não definitividade, ou seja, inexistência
de coisa julgada no processo.
Execução provisória (rectius, execução pautada em título provisório), portanto, é a
atividade judicial pautada em cognição exauriente, alcançada por intermédio de decisão
atacada mediante recurso recebido sem efeito suspensivo, que objetiva a satisfação –
completa ou incompleta – do direito do credor antes do trânsito em julgado da decisão
recorrida.

3 O RECURSO ÀS TÉCNICAS DE INTEGRAÇÃO NORMATIVA PROCESSUAL


NO CONTEXTO DAS TEORIAS DA LACUNA E DA
CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO PROCESSO

A Consolidação das Leis do Trabalho, em seu artigo 769, refere que, nos casos
omissos, o direito processual comum será fonte subsidiária do direito processual do trabalho,
desde que compatível com o regramento celetista.
Pela visão clássica, o critério da omissão exerce a função instrumental de proteção
contra a inserção do formalismo imperante no processo comum, espelhado pela tese de que
o regramento procedimental específico atenderia de melhor maneira às necessidades do
direito laboral, conforme aduz Barbosa (2010, p. 20).
Não obstante, ao passo que o processo do trabalho seguiu estagnado, acumulando a
poeira da história, o processo civil passou por sucessivas modificações legislativas ao longo
21

do tempo, culminando na Lei 13.105/2015, o que dotou o sistema civilista de ferramentas


capazes de entregar uma tutela jurisdicional cada vez mais efetiva.
Assim, hoje, em uma completa inversão da lógica anterior, é o sistema processual civil,
estruturado a partir de um prisma constitucional de jurisdição, que influencia o trabalhista.
Paradoxalmente, a regra do artigo 769, a qual possibilitava a atualização indireta do
sistema processual trabalhista, é hoje “a responsável por seu estrangulamento” (BARBOSA,
2010, p. 20).
Faz-se desnecessário, porém, para colher os frutos das acertadas reformas do processo
civil, aguardar a demorada via legislativa, uma vez que, pela eficácia resultante das normas
constitucionais, dada a força normativa da Constituição, o processo do trabalho não deve ser
visto de maneira isolada e autônoma, mas sim na perspectiva do modelo constitucional do
processo, segundo nos ensinam Alvaro de Oliveira e Mitidiero (2010, p.16).
No contexto de um Estado Constitucional, a resposta oferecida pelo ordenamento
jurídico e a postura do intérprete devem obrigatoriamente observar os vetores
principiológicos constitucionais, como é o caso do devido processo legal, cujo conteúdo
expressa a necessidade de utilização de mecanismos aptos a entregar uma tutela jurisdicional
adequada, efetiva e tempestiva.
Além do mais, o princípio da proteção, na dimensão da norma mais favorável, impõe
ao julgador, na hipótese de existência de variadas normas e interpretações para regulação da
situação afirmada em juízo, o dever de aplicar a solução mais vantajosa ao trabalhador.
Dessa forma, estando a tecnologia processual a serviço da concretização de direitos
fundamentais, o critério da omissão não pode ser encarado simplesmente como vácuo
normativo, devendo guardar um significado mais elevado, qual seja, ausência de efetividade
do dispositivo celetista originário frente ao regramento processual comum.
Bobbio (1995, p.144), em seus estudos acerca da completude do ordenamento jurídico,
revela o efeito da passagem do tempo sobre as previsões legais, ao estruturar o conceito de
lacunas objetivas, as quais se originam do desenvolvimento das relações sociais, das novas
invenções e de todas as causas que provocam um envelhecimento do texto legislativo.
É comum também encontrar a classificação de lacunas em primárias e secundárias,
oriunda da doutrina alemã. No primeiro caso, as lacunas existem desde a gênese do
ordenamento, no segundo, as lacunas aparecem posteriormente e em razão de modificações
nas situações de fato ou no sistema de valores da ordem jurídica.
22

Diniz (2000, p. 95), “ante a consideração dinâmica do direito e a concepção multifária


do sistema jurídico, que abrange um subsistema de normas, de fatos e de valores”, classifica
as lacunas em três espécies, são elas: normativa, quando inexiste lei a regular a situação de
fato; ontológica, quando o desenvolvimento das relações sociais e o progresso técnico
acarretarem a superação da norma positiva; e axiológica, quando existe o preceito jurídico,
mas, se for aplicado, resulta-se uma solução injusta ou insatisfatória.
Tais contribuições teóricas comprovam que não se poder reduzir o alcance da
expressão omissão apenas ao nível das lacunas normativas, visto que “algumas ferramentas
e institutos podem não mais demonstrar vigor e isomorfia com as demais dimensões da
expressão fenomenológica do Direito”, pelo que perdem sua legitimidade jurídica e
demandam, consequentemente, o preenchimento de uma lacuna, conforme aduz Chaves
(2007, p. 415-416).
Nesse sentido, Leite (2010, p. 99-100) argumenta que a heterointegração entre o
sistema processual civil e o trabalhista pressupõe a interpretação evolutiva do artigo 769 do
texto consolidado, de modo a possibilitar a aplicação subsidiária do processo civil não
somente na hipótese de lacuna normativa, mas também quando a norma trabalhista
apresentar manifesto envelhecimento que impeça ou dificulte a prestação jurisdicional justa
e efetiva.
Logo, no atual panorama da ciência processual, onde o processo passa a ser meio de
concretização de direitos fundamentais, bem como diante das modernas teorias da lacuna, é
defeso ao intérprete trabalhista reduzir o critério da omissão ao seu viés clássico, mediante
um exercício hermenêutico divorciado dos princípios constitucionais, inviabilizando – pelo
fato de a Consolidação das Leis do Trabalho possuir expressa previsão – o recurso às técnicas
de integração normativa e a utilização de mecanismos originários de outros ramos
processuais.
Como ensina Schiavi (2014, p. 153-156), a preservação da autonomia do processo
trabalho não pode servir de empecilho para o acesso do trabalhador à Justiça do Trabalho e
ao célere recebimento do seu crédito alimentar.
Não se pretende, contudo, com as ponderações aqui lançadas, franquear o ingresso
desenfreado de normatizações processuais alienígenas na seara laboral, mas sim reafirmar o
ideário de que são as formas processuais que estão a serviço da realização do direito material,
não o contrário.
23

Para a devida utilização, as previsões oriundas de outros ramos jurídicos deverão


guardar harmonia com os fins do processo do trabalho e representar, ao mesmo tempo, um
incremento na direção do dever de entregar uma tutela jurisdicional adequada, efetiva e
tempestiva.

4 EXECUÇÃO PROVISÓRIA TRABALHISTA E O NOVO CÓDIGO DE


PROCESSO CIVIL

A Consolidação das Leis do Trabalho, no único dispositivo dedicado ao tema da


execução provisória, em perfeita identidade com os contornos cautelares do instituto vigente
na ordem processual civil contemporânea a sua edição, autoriza a execução provisória até a
penhora, na esteira do que consta do título 2 deste estudo.
Entretanto, como já destacado, ao passo que o instituto na esfera trabalhista seguiu
estagnado, a disciplina da execução provisória – no processo civil – avançou a ponto de
permitir, mesmo sem a prestação de garantia, a perfectibilização de atos de alienação de
domínio e a entrega de valores.
Sem dúvida, o sistema adotado pelo Código de Processo Civil se mostra mais
adequado aos princípios do processo do trabalho do que a própria previsão celetista
originária, uma vez que divide entre as partes o ônus do tempo do recurso e, em juízo prévio
de ponderação, destaca situações onde a dignidade humana do exequente prevalecerá sobre
o interesse meramente econômico do executado, como é o caso da possibilidade de dispensa
de caucionamento para levantamento de verbas de origem alimentar.
Inclusive, chega a ser surpreendente que a execução provisória, nos moldes em que
disciplinada no processo civil, não tenha sido concebida e gestada no âmbito trabalhista (DA
SILVA, 2007, p. 81), caracterizando uma verdadeira incongruência do sistema o fato de o
credor alimentar sujeito à jurisdição civil ter a possibilidade de obter a entrega do bem da
vida em momento anterior ao credor alimentar sujeito à jurisdição trabalhista.
Ciente de tais colocações, é imperioso reconhecer, baseado nas modernas teorias da
lacuna e nos ditames principiológicos do Estado Constitucional, especialmente a exigência
de prestação de uma tutela jurisdicional efetiva, que a previsão da parte final do artigo 899
da Consolidação das Leis do Trabalho, pela evolução da técnica processual, tornou-se um
empecilho para a materialização dos objetivos próprios do processo do trabalho.
24

Assim, a perda superveniente de efetividade da previsão originária celetista, quando


comparada ao mecanismo utilizado no processo comum, importa omissão capaz de autorizar
o recurso à técnica da subsidiariedade encapsulada no artigo 769 da Consolidação das Leis
do Trabalho, com a consequente importação da execução provisória civilista.
Nesse sentido, é o enunciado número 22 da 1ª Jornada Nacional sobre Execução na
Justiça do Trabalho, editado sob a égide do Código de Processo Civil de 1973, cuja redação
considera omisso o texto trabalhista consolidado no tocante à possibilidade de liberação de
créditos ao exequente em fase de execução provisória, entendendo plenamente aplicável o
regramento processual civil, “o qual torna aquela mais eficaz, atingindo a finalidade do
processo social, diminuindo os efeitos negativos da interposição de recursos meramente
protelatórios pela parte contrária, satisfazendo o crédito alimentar”.
Ainda, o enunciado número 69 da 1ª Jornada de Direito Material e Processual do
Trabalho na Justiça do Trabalho, também editada sob a égide do revogado diploma
processual civil, dispõe que “a expressão “... até a penhora...” constante da Consolidação das
Leis do Trabalho, art. 899, é meramente referencial e não limita a execução provisória no
âmbito do direito processual do trabalho, sendo plenamente aplicável o disposto no Código
de Processo Civil”.
Aliás, o tema é de tamanha relevância para o reencontro da execução trabalhista com
os seus ideais que está sub judice no Tribunal Superior do Trabalho, o que obstou, de
momento, qualquer manifestação da Corte, quando da edição da Instrução Normativa nº 39,
sobre a incidência no Processo do Trabalho das normas dos artigos 520 a 522 e § 1º do artigo
523 do Novo Código de Processo Civil.
Dentro desse contexto, a execução provisória civilista, pelo notório desenvolvimento
de sua técnica, constitui, quando comparada ao mecanismo do artigo 899 da Consolidação
das Leis do Trabalho, instrumento mais efetivo de tutela jurisdicional, amoldando-se
perfeitamente aos fins do processo laboral, pelo que merece integrar o seu quadro normativo.
25

CONCLUSÃO

A doutrina processual clássica, partindo de uma divisão matemática entre as fases de


conhecimento e de execução, tratou de visualizar na execução provisória um mecanismo de
aparelhamento para a futura e verdadeira execução, dotando-a de finalidade meramente
cautelar.
Não gera surpresa, assim, o fato de a Consolidação das Leis do Trabalho ter limitado
o desenvolvimento da execução provisória à etapa de garantia do juízo, entendimento
também materializado nos dispositivos processuais civis anteriores à vigência da Lei nº
10.444/2002.
Contudo, a executoriedade, entendida como a capacidade de produção imediata dos
efeitos decorrentes da sentença, não se confunde com a imutabilidade derivada da coisa
julgada, pelo que a efetivação da decisão, com ou sem a entrega da totalidade do direito
material, pode se dar em momento anterior ou posterior ao seu trânsito em julgado.
Com base nessa premissa, o que diferencia a execução provisória da definitiva não é a
profundidade na entrega da tutela jurisdicional, mas o título sobre o qual se fundam. Naquela
o título é provisório (é uma característica dele, não da execução), nesta o título é definitivo.
O sistema processual civil, através das seguidas reformas pelas quais passou, absorveu
com profunda intensidade esses argumentos, a ponto de permitir a total entrega do direito
material deduzido em juízo em sede de execução provisória, inclusive com dispensa do
oferecimento de garantias.
O processo do trabalho, por seu turno, denotando que restou há muito esquecido pelo
legislador, segue reproduzindo a lógica disposta no Código de Processo Civil de 1939 e na
redação original do Código de Processo Civil de 1973, inviabilizando a realização de atos
satisfativos em sede de execução provisória.
Desnecessário, contudo, para colheita dos frutos oriundos das acertadas reformas
promovidas no sistema processual civil, aguardar a demorada via legislativa, haja vista que
a leitura das técnicas de integração normativa, no contexto das teorias da lacuna e da
constitucionalização do processo, indica que o critério da omissão deve ser entendido
também como perda de efetividade do dispositivo originário diante das novas técnicas
jurídicas.
Dessa forma, é plenamente viável entender que o texto consolidado, no que diz
respeito à execução provisória, é omisso, situação que autoriza, por via da consequência,
26

importar o moderno instituto previsto no artigo 520 do Código de Processo Civil, dada a sua
total compatibilidade com os princípios e regras do processo do trabalho.
Aliás, os princípios constitucionais que pregam uma maior efetividade e celeridade
da prestação jurisdicional, bem como o princípio da proteção oriundo do direito do trabalho,
exigem que o aplicador do direito construa o seu raciocínio no sentido aqui proposto.
Sendo, então, a novel execução provisória civil aplicável ao processo do trabalho,
inexistem óbices ao cabimento da execução provisória trabalhista satisfativa,
independentemente da espécie de obrigação contida no título, e ao recebimento do crédito
do reclamante em etapa anterior ao trânsito em julgado da decisão de mérito, devendo o
julgador, diante do caso concreto, verificar se a hipótese demanda ou não a dispensa da
caução.
Elimina-se, com isso, uma insuportável contradição do sistema, pois, até então,
apenas o credor alimentício sujeito ao procedimento civilista é que podia pleitear a satisfação
do que lhe era devido enquanto pendente o julgamento de recurso desprovido de efeito
suspensivo.
Com a elevação do direito à razoável duração do processo ao plano dos direitos
fundamentais, a tese aqui disposta se impõe, não podendo o ônus do tempo do recurso ser
suportado apenas pelo recorrido, o qual já tem a seu favor uma decisão fundada em cognição
exauriente e prolatada por julgador competente.

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29

A PERTINÊNCIA E A VIABILIDADE DA QUALIDADE DE SEGURADO


ESPECIAL PARA CATADORES DE MATERIAIS RECICLÁVEIS

Rafael Madeira da Veiga3


Cynthia Gruendling Juruena4

RESUMO

O presente trabalho analisa a viabilidade da qualidade de Segurado Especial para catadores


de materiais recicláveis em meio a um contexto de regressão de direitos junto à Previdência
Social. Foi realizada uma análise da Proposta de Emenda à Constituição – PEC 309/2013,
originalmente formulada pelo Movimento Nacional de Catadores de Materiais Recicláveis
– MNCR, a conceituação do Segurado Especial e, por fim, um estudo comparativo da
categoria já existente e da proposta de incorporação da nova categoria “catadores de
materiais”, usando como hipóteses científicas as características normativas dessa categoria
de contribuinte. Objetivou-se, portanto, demonstrar a importância do trabalho dos catadores
de materiais recicláveis, compreendendo tal atividade como geradora de fonte de renda
imediata para milhares de trabalhadores e suas famílias e, também, como produtora de
serviços ambientais urbanos.

Palavras-chave: Segurado Especial, Seguridade Social, Previdência Social, Catadores de


Materiais Recicláveis, PEC 309/2013.

INTRODUÇÃO

O presente trabalho objetiva analisar a categoria previdenciária “Segurado Especial”,


verificando a possibilidade da inclusão do catador de material reciclável neste rol restrito de
segurado, dentro de um contexto de regressão de direitos com as consolidadas e vindouras
contra-Reformas da Previdência.
A partir disto, eis que surgem algumas questões a serem enfrentadas e respondidas ao
longo deste artigo: a) o trabalho de catação de materiais recicláveis é fruto da transformação
do mundo do trabalho e consequente flexibilização deste?; e b) é possível que trabalhadores
com condições de trabalho tão precarizadas conquistem direitos sob mediação do Estado no
âmbito de Políticas Públicas de Trabalho e da Previdência Social?

3
Especialista em Advocacia Trabalhista e Previdenciária pela UNISC/ENA. Graduado em Direito pelo Centro
Universitário de Brasília – UniCEUB. Integrante do Grupo de Pesquisa “Trabalho & Capital” vinculado à
UFRGS/USP/CNPQ/FEMARGS. Advogado. E-mail: rafaelmadeira.adv@gmail.com.
4
Doutoranda em Direito pela PUCPR. Mestre em Direito pela UNISC. Especialista em Direito Público - Centro
Universitário Leonardo da Vinci. Graduada em Direito - Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC).
Advogada. E-mail: cjuruena@gmail.com
30

Optou-se pelo método crítico-dialético para a presente investigação com a finalidade


de distinguir meros fatos do cotidiano de trabalho com o que essencialmente potencializa
esse trabalho, além de identificar a multiplicidade de causas determinantes para a valorização
da catação de materiais recicláveis e o avanço para a proteção social dos sujeitos envolvidos.
Ademais, realizou-se uma revisão bibliográfica multidisciplinar de obras dos campos das
Ciências Jurídicas, das Ciências Sociais, do Serviço Social e da Educação, dentre outras.

1 O MUNDO DO TRABALHO DOS CATADORES DE MATERIAIS RECICLÁVEIS

O trabalho do catador de material reciclável é um fenômeno histórico próprio de


sociedades industriais, com a produção de bens materiais descartados ainda no processo
produtivo ou após a comercialização e consumo. O fenômeno social ganha maior
visibilidade com os grandes contingentes de trabalhadores não incorporados as formas de
trabalho urbanas, após o êxodo rural, ou em consequência da modificação da matriz
produtiva, mais flexível e com a incorporação de alta tecnologia.
O sociólogo Jessé de Souza, em sua obra “A Ralé Brasileira”, que analisa a profunda
desigualdade social brasileira, nos possibilita a extração da narrativa na vida de um ex-
operário e, hoje, catador: “José, apesar de muito dedicado ao trabalho, não consegue mais
do que alguns bicos aqui e ali, o que garante a comida de alguns dias, mas não de todos.
Principalmente para seus filhos, que estão crescendo. José, então, engole a sua vergonha e
enfrenta a opção que lhe resta: catar lixo reciclável.” (2009, p. 262). A catação de materiais
recicláveis sempre esteve presente na sociedade urbana, mas dificilmente é reconhecida
socialmente como uma ocupação profissional, gerando ocultação da sua importância para
determinados segmentos. O preconceito e desvalor direcionado aos trabalhadores que a
exercem, revelam mais do que o incômodo do lixo remexido, do carrinho e da carroça com
sacos de lixo, dão vazão ao racismo de classe (SOUZA, 2009, p. 263).
A precariedade das relações de trabalho e a diminuição considerável do papel do
Estado como regulador das relações econômicas é característica basilar da cartilha neoliberal
imposta. A geração de maiores lucros passa pela intensificação da produtividade e a
utilização de um grande contingente de trabalhadores informais, “decorre que os postos de
trabalho não podem ser fixos, que os trabalhadores não podem ter contratos de trabalho, e
que as regras do Welfare tornaram-se obstáculos à realização do valor e do lucro, pois
31

persistem em fazer dos salários – e dos salários indiretos – um adiantamento do capital e um


‘custo’ do capital.” (Oliveira, 2011, p. 137).
Essa realidade é própria do universo dos catadores em que a sua relação com a indústria
da reciclagem baseia-se em entrega de grandes quantidades de resíduos em troca de valores
impostos pelo mercado de preços das matérias-primas. Ou seja, a comercialização do
produto do trabalho dos catadores, em regra, não leva em conta o trabalho despendido, sendo
apropriado e valorizado apenas pela indústria de transformação desse material em novos
bens de consumo.
Devemos reconhecer que a reconfiguração do mercado de trabalho no Brasil,
classificada como “reestruturação produtiva”, tem sua intensificação na década de 1990,
onde as exigências de uma nova forma de produção aliam-se a uma nova concepção e função
a ser desempenhada pelo Estado, significando perda para a coletividade da classe
trabalhadora e regressão em seus direitos até então conquistados (SILVA, 2011, p. 200).
Silva (2011) aponta como aspectos gerais da economia e da organização do trabalho no início
do século XXI: o desemprego maciço e prolongado e o trabalho precarizado; a expansão da
informalidade e as estratégias para enfrentá-la; a grande rotatividade no emprego e a
predominância das contratações com rendimentos mensais até o limite de dois salários
mínimos; o ingresso precoce dos pobres, e tardio das classes médias ao mercado de trabalho;
e, o agravamento da questão social e a financeirização do capital.
Em 2013, estimava-se o número expressivo de mais de 387 mil catadores de materiais
recicláveis no país, com uma média salarial de 1 (um) salário mínimo, tendo um corte de
raça em 66% considerados negros, além disso, a idade média dos catadores é de 39,4 anos.
Os dados expressos pela pesquisa do IPEA indicam que em tese mais de 1 milhão de pessoas
beneficiam-se da reciclagem por morarem no mesmo domicílio de um catador, sendo que
menos de 40% dessa força de trabalho possui registro formal de trabalho. Esse contexto
reflete na baixa remuneração média dos catadores, em torno de R$ 570,00, e apenas 15,4%
possuem contribuição previdenciária, chegando ao percentual mais positivo na região sul,
com 25,9% e o baixíssimo resultado de 6,2% na região nordeste (IPEA, 2013, p. 44-45).
A ressignificação dos resíduos e sua reintrodução na cadeia produtiva tem se mostrado
significativo, em especial, quando se trata da catação informal, sendo baixa a participação
da reciclagem por meios oficiais. Os dados coletados em estudo demonstram uma estimativa
reveladora sobre a importância desses trabalhadores informais, sendo que, do total de
resíduos reciclados no país por ano, entre eles, metais, plástico, papel/papelão, vidro, a coleta
32

seletiva formal é diretamente responsável por apenas, 0,7%, 17,7%, 7,5% e 10,4%,
respectivamente (GODECKE, 2014, p. 02).
A partir dos dados apresentados chega-se ao seguinte universo sobre os catadores de
materiais recicláveis: “em sua grande maioria, migraram do campo para cidade em busca de
novas oportunidades, e, estando excluídos do mercado formal de emprego no contexto
urbano, encontraram condições de geração de renda por meio de coleta, triagem e venda de
materiais passíveis de serem reciclados, principalmente papel, plástico, alumínio e ferro.”
(ALVES, 2016, p. 52). Frisa-se que o trabalho desenvolvido pelos catadores é caracterizado
por uma contradição central, de um lado, trabalhadores em condições precaríssimas de
trabalho, em condições extremamente perigosas e insalubres sob risco de acidentes e
adoecimentos, de outro, empresas reconhecidas como socialmente recuperadoras do
ambiente pela utilização de materiais descartados e sobrantes que servem de matéria-prima
para novos produtos comercializáveis (IPEA, 2016, p. 170).
O acompanhamento da “experiência de organização de processos socioprodutivos com
catadores de materiais recicláveis” possibilitou verificar a alienação do catador no processo
produtivo, seja como fornecedor e agregador de valor de determinadas matérias primas, seja
quanto a um sujeito necessário, mas propositalmente invisível para a indústria, ou seja, “as
empresas o desconhecem como partícipe do seu processo de trabalho, embora o integre ao
processo geral de produção dos reciclados.” (MOTA, 2002, p. 10 apud BORTOLI, 2009, p.
111).

2 A SEGURIDADE SOCIAL E O SEGURADO ESPECIAL

A partir dessa estrutura econômica, é possível iniciarmos a análise sobre a


superestrutura, mais especificamente sobre as formas jurídicas alçadas como interesse geral
pelo sistema jurídico brasileiro, mas que representam resposta à organização dos
trabalhadores frente à vulnerabilidade das relações de trabalho e meio de preservação do
modelo de desenvolvimento.
O Sistema de Seguridade Social brasileiro, inspirado na Convenção nº 102/1952 da
Organização Internacional do Trabalho – OIT, fundado a partir da Constituição Federal de
1988, nas palavras de Santoro (2015, p. 11), “assegura de forma organizada, a proteção do
indivíduo contra os chamados riscos sociais ou riscos de existência”. Atualmente, apesar das
descaracterizações legais que vem sofrendo, limitações de recursos disponíveis para
33

assegurar os Direitos Sociais e toda a concepção ideológica de redução de benefícios e


auxílios ao mínimo existencial, ainda assim, é um avançado sistema. Este é composto por
três políticas sociais: a Previdência Social, a Assistência Social e a Saúde (SILVA, 2011, p.
98).
Esse sistema é caracterizado por um subsistema de Previdência Social que presta
benefícios e auxílios mediante contribuição; às famílias em risco social ou existencial não
contribuintes são assistidas pelo subsistema de Assistência Social, de forma gratuita; e o
subsistema do Sistema Único de Saúde promove atendimento universal e gratuito. Por fim,
o subsistema de acolhida do desempregado é feita através do seguro-desemprego sob a
responsabilidade do Ministério do Trabalho e Emprego (IPEA, 2007, p. 28).
Nestes termos, evidencia-se que ocorreu uma combinação de paradigmas, quais sejam,
“universalista (saúde e previdência rural), contributivo (previdência urbana e seguro-
desemprego) e seletivo (Assistência Social)” (IPEA, 2009, p. 23).
Verifica-se que a Seguridade Social no Brasil é de caráter híbrido, ou seja, o país
manteve a formação original, própria dos regimes de seguro social, preservando benefícios
e auxílios já existentes em função das contribuições dos trabalhadores assalariados. E
agregou a perspectiva da proteção social para segmentos sociais não assalariados e sem
necessariamente estarem vinculados ao mundo do trabalho. Essa ampliação foi possível pelo
contexto de redemocratização da sociedade brasileira e o nível de organização dos
movimentos sociais e forças progressistas que equilibraram forças com setores que
privilegiam e militam pela redução da proteção social através do Estado (SILVA, 2011, p.
94).
Portanto, a qualidade de segurado não mais privilegia como capaz de participar da
Previdência Social apenas o trabalhador assalariado. Para assegurar a qualidade de segurado
basta à capacidade contributiva. Disto decorre a importante definição da natureza jurídica da
relação previdenciária compreendida como uma relação contratual, seja com a filiação
automática quando no exercício de atividade remunerada, seja como contribuinte facultativo,
que volitivamente realiza sua inscrição e contribuição. Sendo que essa relação contratual é
permeada da ocorrência de um “ato jurídico stricto sensu, em que a vontade consciente é
elemento essencial para a sua constituição, embora o resultado esteja previamente
estabelecido na lei e seja inalterável pela vontade dos interessados” (DUARTE, 2005, p. 08).
Assim, tanto a Lei de Custeio em seus princípios norteadores é fundada na capacidade
contributiva, como a própria Lei dos Benefícios, em seu art. 1º, inscreve que “A Previdência
34

Social, mediante contribuição, tem por fim assegurar aos seus beneficiários meios
indispensáveis de manutenção, por motivo de incapacidade, desemprego involuntário, idade
avançada, tempo de serviço, encargos familiares e prisão ou morte daqueles de quem
dependiam economicamente.” (BRASIL, 1991).
As Leis nº 8.212/1991 e nº 8.231/1991, nos artigos 11 e 9º, respectivamente,
apresentam o rol de segurados obrigatórios, entre eles, o Segurado Especial. Este possui uma
conceituação específica na Constituição Federal, conforme art. 195, §8º, “O produtor, o
parceiro, o meeiro e o arrendatário rurais e o pescador artesanal, bem como os respectivos
cônjuges, que exerçam suas atividades em regime de economia familiar, sem empregados
permanentes” (BRASIL, 1988). Sendo que a contribuição para esse segurado se realiza
mediante a aplicação de uma alíquota sobre o resultado da comercialização da produção.
A partir do texto constitucional percebe-se uma preocupação com o trabalhador ou
grupos, inclusive constituídos pelos seus núcleos familiares, que laboram por conta e risco e
em regime de economia familiar, tendo como principal objetivo a subsistência, sendo
economicamente pequena a produção de excedente. Tais atividades ainda que propiciem
renda para os trabalhadores e suas famílias têm como característica a instabilidade,
impedindo uma constância nominal no valor do fruto do trabalho (ALVES, 2017, p. 03)
Uma importante alteração da LBPS pela Lei nº 11.718/2008, com relação ao Segurado
Especial, diz respeito ao emprego de pessoas estranhas ao grupo familiar, mudança possível
por não haver vedação constitucional quanto ao auxílio eventual, apenas para contratações
permanentes (ALVES, 2017, p. 04). Ainda existem outras modificações ocorridas, que não
descaracterizam a condição de Segurado Especial, permitindo que diversifique sua atividade
laboral a fim de incrementar sua renda e até mesmo aumentar sua contribuição
previdenciária.
Um dos elementos caracterizadores da categoria tratada é a existência de atividade
voltada para a subsistência da família, sendo vedada a proteção legal para aqueles que
auferem renda de outras fontes, sejam elas atividades rurais, mas voltadas para o comércio
e lucro. Existem exceções que com fim de incrementar a renda desse segurado, que fica
suscetível as alterações climáticas e períodos de safra.
A contribuição do Segurado Especial, para o custeio da cobertura previdenciária está
vinculada ao produto da comercialização do excedente da sua produção, não sendo exigida
a contribuição mensal típica dos demais segurados da Previdência Social. Ademais, válido
frisar, que na qualidade de trabalhadores rurais, não se exige a contribuição para a concessão
35

de benefícios, devendo, no entanto, comprovar o exercício da atividade rural, não precisando


ser contínuo, obrigado a cumprir o tempo de carência, que se inicia com a comprovação
referida (ALVES, 2017, p. 05 e NASCIMENTO, 2017, p. 03). Conforme informações da
Previdência Social, a contribuição corresponde ao percentual de 2,3% incidente sobre o valor
bruto da comercialização de sua produção rural. Este percentual é composto da seguinte
maneira: 2,0% para a Seguridade Social, 0,1% para financiamento dos benefícios concedidos
em razão do grau de incidência de incapacidade laborativa decorrente dos riscos ambientais
do trabalho (SAT), e 0,2% para o SENAR (Serviço Nacional de Aprendizagem Rural).
Sempre que o segurado especial vender sua produção rural à adquirente pessoa jurídica,
consumidora ou consignatária, estas ficarão sub-rogadas na obrigação de descontar do
produtor e efetuar o respectivo recolhimento ao INSS.
De acordo com o art. 39 da LBPS, o Segurado Especial tem direito ao benefício
aposentadoria por idade ou por invalidez, de auxílio-doença, de auxílio-reclusão, de pensão
por morte e de salário-maternidade, todos no valor de apenas 01 (um) salário mínimo, caso
não contribuam facultativamente.

3 A PROPOSTA DE SEGURADO ESPECIAL PARA CATADORES

A proposta de tornar o catador em Segurado Especial foi concebida no seio do


Movimento Nacional de Catadores de Materiais Recicláveis – MNCR, numa perspectiva de
possibilitar o acesso desses trabalhadores à Previdência Social através de regras mais
simplificadas e modo de contribuição e valores adequados às instabilidades na geração de
renda mediante a comercialização do produto coletado.
Em que pese não ser uma iniciativa original, pois visa a inclusão de uma categoria
profissional dentro de regras já existentes (SILVA, 2013, pág. 306), evidentemente, é uma
proposta que resgata os princípios constitucionais próprios da Seguridade Social, como
universalização, equidade na forma de participação no custeio e seletividade e
distributividade. Nesse sentido, o projeto é adequado a realidade da posição do catador no
mercado de trabalho, “que se encontram na informalidade e/ou atuam no trabalho cooperado
ou associado, com limitada capacidade contributiva” (SILVA, 2013, p. 307).
A proposta foi, inicialmente, apresentada ao governo federal em dois momentos: em
2006, na grande marcha à Brasília que reuniu 1.200 catadores e, em 2008, no Festival Lixo
e Cidadania em Belo Horizonte, não tendo avançado pela falta de iniciativa do Poder
36

Executivo Federal (SILVA, 2013, p. 208). Em 2012, por iniciativa do Senador Rodrigo
Rollemberg (PSB/DF) foi apresentado um Projeto de Lei - PL que acrescentava ao art. 12,
inciso VII, da Lei nº 8.212/1991, ao art. 11, inciso VII, da Lei nº 8.213/ 1991 e ao art. 9º,
inciso VII, do Decreto nº 3. 048/1999, uma nova alínea incluindo o catador de material
reciclável, sendo aprovado sem nenhuma emenda e encaminhado para a Câmara dos
Deputados, onde recebeu a nomenclatura de PL nº 3.997/2012. Na Câmara dos Deputados,
o Projeto relatado pela Deputada Érika Kokay (PT/DF), teve uma pequena alteração na
redação da alínea “c” a ser acrescida ao art. 12 da Lei de Custeio, a fim especificar que a
qualidade de Segurado Especial seria oferecida ao catador com atuação em qualquer uma
das etapas da reciclagem – catação, triagem ou processamento dos materiais – sendo essa
atividade sua profissão habitual ou principal fonte de renda.
Por fim, em setembro de 2013, o Deputado Federal Padre João (PT/MG) propôs uma
emenda constitucional para alterar o § 8º do art. 195 da Constituição Federal, para dispor
sobre a contribuição para a seguridade social do catador de material reciclável que exerça
suas atividades em regime de economia familiar. Essa proposição foi denominada PEC nº
309/2013 e, após um pouco mais de um ano de tramitação, aguarda desde 10 de dezembro
de 2014, sua apreciação em Plenário.
Tendo em vista que a Deputada Érika Kokay (PT/DF) é uma das proponentes da PEC
nº 309/2013, acredita-se que o PL nº 3.997/2012 possa estar aguardando a tramitação e
aprovação da proposta de emenda à constituição. Assim, as alterações nas leis federais da
Previdência Social seriam obrigatórias em virtude da nova redação das regras
constitucionais, impedindo qualquer alegação de inconstitucionalidade em plenário.

4 ANÁLISE DA PROPOSTA DE EMENDA À CONSTITUIÇÃO – PEC 309/2013

Basicamente a PEC nº 309/2013 destacam em suas justificativas três condições da


realidade laboral dos catadores de materiais recicláveis que permitem a equiparação com os
Segurados Especiais. A primeira delas faz referência a um tipo específico de trabalho que
gera um desgaste físico intenso, que é o “trabalho braçal, exercido sob condições climáticas
adversas, enfrentando forte sol ou chuva” (JOÃO, 2013). A segunda é que o trabalho
desenvolvido pelo catador, em qualquer um de suas etapas, enquanto trabalho individual ou
em grupo, o objetivo final é agrupar a maior quantidade com a melhor qualidade de um
material específico para a sua comercialização. Por fim, a terceira condição é a importância
37

socioambiental do catador, na perspectiva da “lógica reversa” devolvendo para a indústria


original, os resíduos sólidos por ela produzidos, antes denominados lixos, e agora matéria-
prima para novos bens materiais.
Os projetos ainda registram que os catadores são trabalhadores de baixa renda com
irregularidade de rendimentos, sendo que tamanhas adversidades na busca da subsistência e
tamanho desgaste físico e emocional, exigiriam a redução em cinco anos para a concessão
da aposentadoria por idade, igual aos produtores rurais. Desta forma, o texto do §8º, do art.
195 da Constituição Federal, seria alterado para “o produtor, o parceiro, o meeiro e o
arrendatário rurais, o pescador artesanal e o catador de material reciclável, (...)” (BRASIL,
1988). Já o texto do inciso II, do §7º do art. 201 da Constituição Federal, teria a seguinte
redação, “sessenta e cinco anos de idade, se homem, e sessenta anos de idade, se mulher,
reduzido em cinco anos o limite para os trabalhadores rurais de ambos os sexos e para os
que exerçam suas atividades em regime de economia familiar, nestes incluídos o produtor
rural, o garimpeiro, o pescador artesanal e o catador de material reciclável”.
A aprovação da PEC 309/2013 produziria modificações infraconstitucionais, que
poderia ser operada pelo PL nº 3.997/2012, orientado pela aplicação do princípio
constitucional da equidade na participação do custeio, assegurando como meio de
contribuição, uma alíquota diferenciada de 2,3% sobre o resultado da comercialização
mensal do material recolhido e beneficiado (KOKAY, 2012).
Assim, a fim de coadunar com a alteração promovida pela PEC nº 309/2009, seria
alterada a alínea “c” do inciso VII do art. 12 da Lei nº 8.212/1991 (Custeio): “c) catador de
material reciclável que faça da catação, triagem ou processamento dos materiais recicláveis
sua profissão habitual ou principal fonte de renda”. E, alterando também a alínea “c” do
inciso VII da Lei nº 8.312/1991 (Benefícios) para: “c) catador de material reciclável”.
Atualmente, a PEC tem o número 309-A, com uma emenda a fim de acrescentar o
parágrafo 9º ao art. 195 da CF/198, onde se refere especificamente ao catador de material
reciclável que faça da catação, triagem ou processamento dos materiais recicláveis sua
profissão habitual ou principal meio de vida. A matéria ainda não foi votada.
38

5 CRITÉRIOS COMPARATIVOS PARA A QUALIFICAÇÃO DO SEGURADO


ESPECIAL

Para fins de qualificação do catador de material reciclável como Segurado Especial,


selecionou-se seis características próprias da categorização desse segurado: trabalho de
subsistência, regime de economia familiar, profissão habitual, condições (climáticas e
ambientais) adversas, produção irregular e trabalho útil à sociedade - e a elevamos a posição
de hipóteses para uma verificação científica.
A primeira hipótese, o trabalho de subsistência, refere-se a uma condição
socioeconômica do indivíduo e/ou grupo familiar, de baixa renda e que gera um excedente
mínimo na sua atividade laboral, sendo sua renda e seus ganhos bastante irregulares, muitas
das vezes comprometendo padrões de vida digna. Os empreendimentos da economia
solidária entre os catadores, como forma de sobrevivência pela exclusão do mercado formal
de trabalho, não impedem uma intensa exploração do trabalhador. Pois, por mais autônomo
que este seja, o produto precisa ser comercializado no mercado tradicional pela lógica
capitalista, “isto resulta no aumento do trabalho e na diminuição da qualidade da
alimentação, da condição de moradia e de vida da própria trabalhadora e do trabalhador,
sendo que estes têm que arcar com os custos ocultos do processo de produção” (IPEA, 2016,
p. 85-86).
Já sabíamos pela análise do contexto do mercado de materiais recicláveis que o catador
apesar de realizar todo o trabalho de garimpagem, coleta, triagem e processamento, ele
negocia o valor do material a partir do seu preço de mercado, muitas vezes definidos pelo
mercado de commodities, não tendo retorno financeiro do trabalho agregado, incorporado
pelo “atravessador”, que tem um ganho muito superior ao do trabalhador de fato.
A segunda hipótese, regime de economia familiar, refere-se ao envolvimento de
diversos membros familiares nas atividades laborais. Com isso, ao invés de empregados
contratados, mesmo que eles existam temporariamente, nesse regime, as pessoas que
compõem aquela família são as principais forças de trabalho. Esse quadro está sofrendo uma
transformação pela ampliação do mercado dos materiais recicláveis ao transformar os
resíduos em mercadorias, favorecendo a entrada de novos trabalhadores. Porém, ainda o
trabalho familiar é uma realidade, devido o desemprego maciço e o empobrecimento de
parcelas populacionais significativas, com destaque para os arranjos monoparentais
femininos (IPEA, 2016, p. 299). No universo dos catadores, isto é muito sintomático,
39

encontrando-se grupos familiares e, mesmo que organizados em cooperativas, estas com


muita frequência formam-se através de um núcleo ou diversos núcleos familiares.
Por isso, há diagnóstico em que essa rede familiar transformada em cooperativa de
material reciclável permite que reproduza opressões de gênero com relação à atividade
produtiva e também na exclusividade sobre os cuidados na relação reprodutiva. Além disso,
as diversas jornadas que a mulher é submetida, uma delas diz respeito à contribuição direta
no trabalho produtivo (IPEA, 2016, p. 96). Outra questão importante é a presença do trabalho
infantil, que inclusive foi tema de campanhas do Fórum Lixo e Cidadania e dos governos
nas diversas esferas, pois “a falta de qualificação profissional e de novas oportunidades
conduzem gerações de famílias a se sucederem no trabalho da catação” (IPEA, 2013, p. 08).
A terceira hipótese, profissão habitual, observa-se quando a atividade desempenhada
é a principal fonte de renda do indivíduo e de sua família. A partir de pesquisa realizada em
Campos/RJ, constatou-se que 258 catadores/as, exerciam suas atividades desde a infância
ou adolescência, através dos pais, sendo sua principal renda, mesmo quando beneficiados de
por programas de transferência de renda (IPEA, 2016, p. 300). Ademais, não sendo a
principal fonte de sustento, a partir de medidas estatais e da sociedade, a universalização da
reciclagem de materiais5 poderia gerar uma renda “estimada da ordem de R$ 8 bilhões por
ano na economia brasileira (IPEA, 2013, p. 13).
Como quarta hipótese, tem-se as condições (climáticas e ambientais) adversas,
facilmente identificadas pelas condições insalubres e periculosas de trabalho dos catadores
de materiais recicláveis. Podemos iniciar a análise dessa hipótese, com os números referentes
ao ambiente de coleta do material reciclável, segundo o IBGE, em sua Pesquisa Nacional de
Saneamento Básico (PNSB), no ano de 2008, indicava que 50,8% dos municípios brasileiros
não tinham aterro sanitário controlado, levando seus resíduos para os “lixões”, que tem um
potencial enorme de danos e riscos à saúde pública, à segurança pessoal e ao meio ambiente
(IPEA, 2013, p. 16).
As condições de trabalho nas ruas, em lixões ou em galpões trazem uma série de riscos
ao catador de material reciclável sendo considerada uma atividade com grau máximo de
insalubridade, “a exposição ao calor, a umidade, os ruídos, a chuva, o risco de quedas, os
atropelamentos, os cortes e a mordedura de animais, o contato com ratos e moscas, o mau
cheiro dos gases e a fumaça que exalam dos resíduos sólidos acumulados, a sobrecarga de

5
O estudo está analisando o potencial econômico da reciclagem de aço, alumínio, celulose, plástico e vidro.
40

trabalho e levantamento de peso, as contaminações por materiais biológicos ou químicos etc.


(...)” (IPEA, 2013, p. 06). Diversas são as condições de vulnerabilidade e os riscos de
doenças ocupacionais que se agrava pela inexistência de mecanismo de proteção individual
e segurança social, por meio de normativas que zelem pelo catador. Este como autônomo e
informal é colocado na posição de provedor da sua renda e da sua própria proteção (IPEA,
2016, p. 189).
A penúltima hipótese, produção irregular, dialoga com a questão do trabalho de
subsistência, de conseguir pouco excedente e quando da comercialização da produção ter
dificuldade de acessar os melhores mercados. A falta de uma profissionalização e melhoria
na gestão da catação impede uma produção regular ou mais rentável. De forma que “o
trabalho aprisionado nos estágios mais primitivos do processo da reciclagem ainda sofre
largos obstáculos para a apropriação de tecnologias que possibilitem a agregação de valor
na comercialização dos materiais” (IPEA, 2016, p. 260).
Por isso, diversos programas que foram desenvolvidos ao longo dos anos, em especial,
Pró-Catador e CATFORTE, visam uma capacitação e qualificação para melhor qualidade da
catação, beneficiamento dos materiais, gestão das cooperativas e acesso a estrutura para
disputa de mercado. Também fazem parte desses programas as iniciativas de formação de
redes de comercialização. Tudo isto, faz-se necessário, pois a comercialização da produção,
frente à dificuldade de agregar o valor do trabalho em si, é quem pode possibilitar melhores
rendimentos para o catador. Esses arranjos de comercialização tendem a ser mais
impactantes positivamente para as cooperativas menores e menos estruturadas, elevando o
valor da produção ao agregar-se com o conjunto de produção em rede (IPEA, 2013, p. 23).
A principal medida para buscar uma produção mais efetiva e comercialmente
favorável é o trabalho conjunto em associações e cooperativas, em alguns casos conseguindo
fazer a comercialização direta junto à indústria da reciclagem, mas também sendo
possibilidade de aumentar o poder de barganha. Além disso, “o trabalho coletivo em
cooperativas permite viabilizar o investimento em infraestrutura (como a construção de
galpões) e maquinários (prensas, veículos) para melhorar as condições de trabalho, o que,
individualmente, não seria possível” (IPEA, 2013, p. 22).
Para concluir, a última hipótese, o trabalho útil à sociedade, diferentemente dos atuais
Segurados Especiais, os catadores de materiais recicláveis não produzem alimentos.
Conforme já destacado ao longo deste trabalho, o catador atua na etapa final da cadeia de
consumo, talvez esteja na ponta oposta aos atuais segurados vinculados à agricultura e a
41

pescaria. Porém, o tratamento de materiais recicláveis impede que toneladas de resíduos


sólidos sejam confundidas com “lixo” e venham a ser depositadas em grandes extensões de
terra chamadas de “lixões” ou aterros.
Assim, os dados disponíveis sobre a importância da reciclagem para o meio ambiente
são inquestionáveis mostrando-se útil socialmente. Porém, o predomínio de descarte ainda é
a condução de materiais para lixões e aterros por ser mais barato, “entretanto, essa
‘economia’ por parte das prefeituras é transformada em externalidades negativas na forma
de contaminação do solo, poluição hídrica e emissões atmosféricas” (IPEA, 2010, p. 21).
Desta forma, em vista do cumprimento do Plano Nacional de Resíduos Sólidos
(PNRS), a regra deve ser a criação de um sistema no trato do resíduo sólido, que tenha como
corolário a diminuição drástica dos resíduos destinados aos aterros. E, o benefício ambiental,
justifica-se economicamente, pois “segundo dados do Ministério das Cidades (BRASIL,
2009a), o valor médio contratual de aterramento em 2007 para amostra de 30 municípios era
de R$ 22,64 por tonelada, sendo esse valor assumido como o benefício gerado pela
reciclagem com relação à disposição final de resíduos sólidos.” (IPEA, 2010, p. 21).
O trabalho socioambiental do catador é evidente tendo como objeto de trabalho a
aplicação da “lógica reversa” ao fazer os resíduos retornarem pela cadeia produtiva que ele
pertence e poder se transformar em um novo bem. Ademais, essa ocupação tem gerado
milhares de empregos que ao mesmo tempo beneficiam as cidades e a indústria com o
reaproveitamento de matérias-primas mais vantajosas (IPEA, 2013, p. 07). A partir da
análise das seis hipóteses escolhidas: trabalho de subsistência, regime de economia familiar,
profissão habitual, condições (climáticas e ambientais) adversas, produção irregular e
trabalho útil à sociedade, evidenciou-se que os catadores de materiais recicláveis preenchem
as formalidades exigidas atualmente para a caracterização do Segurado Especial.

CONCLUSÃO

A PEC nº 309/2013 tem o mérito de ser uma iniciativa dos próprios sujeitos que serão
beneficiados da institucionalização de uma modalidade própria de contribuição
previdenciária e consequentemente da cobertura da Seguridade Social. A ampliação da
cobertura previdenciária de catadores de materiais recicláveis justifica-se pela quantidade de
benefícios que essa ocupação tem gerado para a sociedade brasileira: ambientalmente, ao
reduzir os resíduos sólidos destinado aos “lixões” ou aterros e diminuindo impactos
42

desastrosos para o meio ambiente; economicamente, com a aplicação da “lógica inversa”,


barateamento das matérias-primas e gerando novos valores de uso e de troca; socialmente,
oferecendo e gerando milhares de empregos diretos e indiretos, seja na catação, triagem,
processamento, comercialização e transformação dos resíduos sólidos em novos bens.
Como visto, a PEC nº 309/2013 cumpre os princípios constitucionais da Seguridade
Social, previstos no art. 194 da CF/1988, sendo medida fundamental para a ampliação da
cobertura previdenciária na busca incessante e necessária para a sua universalização.
Ademais, resta afastada qualquer oposição sobre falta de recurso para o oferecimento do
benefício, lembremos que o potencial de ganho, ainda não desenvolvido, da reciclagem
brasileira, é de R$ 8 bilhões, que a partir da aplicação da alíquota de 2,3%, geraria o
financiamento para as prestações previdenciária advindas da inclusão do catador como
Segurado Especial.
Por fim, há que se destacar que a Pesquisa Nacional de Amostragem por Domicílio
(PNAD, 2012) constatou que pouco mais de 15% dos trabalhadores com a reciclagem no
país eram contribuintes da Previdência Social. Dada as condições em que estão submetidos
é quase um heroísmo a contribuição previdenciária, frente ao descaso do Estado e a relação
desigual que estabelecem com as empresas atravessadores e a grande indústria de
transformação. De forma alguma “se pode ignorar que estes trabalhadores realizam, sem
vínculo empregatício formal e a devida contribuição para a previdência social, o trabalho
que caberia às próprias empresas, de responsabilizar-se pelo ciclo de vida dos produtos que
ela injeta no mercado” (IPEA, 2016, p. 92).
Esse percentual reduzido de contribuições previdenciárias é alarmante frente às
condições de trabalho em que o catador está submetido e que dificilmente serão alteradas
devido às peculiaridades do contexto do trabalho com a catação de materiais recicláveis. A
aplicação de alíquota reduzida pode, sim, gerar um estímulo para que esses trabalhadores se
convençam da importância da contribuição e de programar defesas contra infortúnios
laborais e da própria condição etária. Evidente que um trabalho de divulgação e educação
previdenciária será fundamental para que progressivamente os catadores de materiais
recicláveis façam parte do rol de segurados da Previdência Social.
43

REFERÊNCIAS

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catadores na construção de sua autonomia político pedagógica. 2016. 139 f. Programa de
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45

DUMPING SOCIAL E A INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL COLETIVO


COMO SALVAGUARDA DOS DIREITOS CONSTITUCIONAIS NA SEARA
TRABALHISTA

Juliana Scholante Iserhard6


Patricia Thomas Reusch7

RESUMO

O presente estudo teve como objetivo a análise do dano moral coletivo como finalidade de
salvaguardar os direitos trabalhistas vilipendiados em caso de ocorrência de dumping. Para
isto, a pesquisa observa, primeiramente, a formação e evolução do Direito do Trabalho no
Brasil, bem como sua influência na sociedade atual. Não obstante, analisa os princípios
Constitucionais balizadores do Direito do Trabalho que conferem proteção ao trabalhador.
Prosseguiu a reflexão, no sentido de explicitar o dumping social, para então adentrar no dano
moral coletivo e sua configuração, para tanto necessário apontar também as partes legitimas
para propor a Ação Civil Pública, ação pertinente em casos de dumping, destacando-se
jurisprudências com o intuito de demonstrar os entendimentos dos nossos tribunais
atualmente. Por fim, necessário refletir acerca dos pressupostos essenciais a serem
ponderados pelos julgadores quanto à fixação do quantum indenizatório cabível e sua
destinação em caso de dano moral coletivo por decorrência de dumping, buscando não
apenas compensar o dano à sociedade, mas estimular o agressor a não cometer outro dano
desta natureza para a coletividade.

Palavras-chave: Dumping Social. Dano Moral Coletivo. Direitos Trabalhistas.

INTRODUÇÃO

O presente estudo tem como objetivo propor uma reflexão acerca do dumping social
nas relações trabalhistas, bem como os conflitos gerados por esta prática na sociedade,
ponderando-se a respeito de sua ilegalidade e da possibilidade de incidência de dano moral
coletivo como forma de resguardar os citados direitos sociais.
Para tanto o estudo discorrerá, primeiramente, a respeito da evolução história do
direito do trabalho em âmbito nacional e a respeito dos princípios constitucionais correlatos
à proteção do trabalho e do trabalhador.

6
Especialista em Advocacia Trabalhista e Previdenciária - UNISC. Graduada em Direito UCS. Endereço de
e-mail: julianascholante@gmail.com
7
Mestra em Direito pelo Programa de Pós-graduação Mestrado e Doutorado da Universidade Santa Cruz do
Sul - UNISC. Linha de pesquisa Políticas Públicas de Inclusão Social. Conceito Capes 5. Especialista em
Direito do Trabalho, Previdenciário e Processo do Trabalho - UNISC. Graduada em Direito UNISC.
Endereço de e-mail: patríciareusch@gmail.com
46

Por conseguinte, abordará conceito de Dumping Social na esfera trabalhista.


Outrossim, discorrer-se-á acerca do papel desta prática como instrumento para afastar os
direitos sociais garantidos aos trabalhadores por intermédio da Constituição Federal em
nosso país. Por fim, será analisado o entendimento dos tribunais referente à prática de
dumping social e, se é cabível e em que hipóteses seriam admissíveis indenizações por dano
moral coletivo decorrente desta prática.
Por fim tratará a respeito do conceito de dano moral coletivo bem como os requisitos
necessários para a caracterização do dano moral coletivo no meio trabalhista. Igualmente,
elucidar-se-á sobre a legitimidade para propor tal ação, bem como sobre a finalidade das
condenações por dumping social e dano moral coletivo e os critérios utilizados para sua
quantificação e destinação.

1 FORMAÇÃO HISTÓRICA E CONSTITUCIONAL DO DIREITO DO


TRABALHO

O trabalho sempre existiu ao longo da história, no entanto, não com a sua atual
conjuntura. No início das civilizações a escravidão era o único trabalho que havia, e, apesar
deste modelo de trabalho ter se modificado constantemente, é possível afirmar através dos
registros históricos que a escravidão nos acompanhou até o século XIX. A criação da
máquina a vapor e a Revolução Industrial geraram uma verdadeira transformação nas
relações trabalhistas, a busca pelo lucro e as condições precárias que eram impostas aos
trabalhadores ensejaram a luta pela proteção ao trabalhador e melhores condições de
trabalho. Assim, o trabalho ganhou status e proteção Constitucional.
Nesta senda, discorrer-se-á sobre a evolução do direito do Trabalho no Brasil, bem
como os princípios constitucionais norteadores do Direito do Trabalho vigentes em nosso
país.
No Brasil houve um largo período onde a economia era fundamentalmente agrícola,
com sua base firmada nas relações escravistas de trabalho, logo, não há o que se falar em
Direito do Trabalho, visto que apesar do trabalho ser desenvolvido não há uma relação de
emprego, propriamente dita, para que o Direito pudesse regular.
Nesta trajetória, Delgado (2009, p. 99 -100) atribui especial relevância a abolição da
escravidão, através da Lei Áurea, para as relações trabalhistas. Inclusive a utiliza como
47

referência para o prelúdio da necessidade de regras e intervenção Estatal nas relações de


trabalho.
Entre 1888 e 1930, não ocorreram regulamentações expressivas tratando do Direito
do Trabalho no Brasil, foi a partir de 1930, na Era Getúlio Vargas, que começa a surgir uma
política trabalhista, contudo, apenas com a promulgação da Constituição de 1934 que o
constitucionalismo social, foi efetivamente sedimentado no Brasil.
Segundo Martins (2014, p. 11), em 1937 eclode uma fase intervencionista do Estado,
resultante do Golpe de Getúlio Vargas, o qual, inspirada na Carta del Lavoro e na
Constituição polonesa, instituiu o “sindicato único, imposto por lei, vinculado ao Estado,
exercendo funções delegadas de poder público”. Não obstante, foram criados o imposto
sindical e estabelecida a competência normativa dos tribunais do Trabalho, alcançando a
submissão das relações trabalhistas e a intercessão do Estado em todo o âmbito laboral.
Nesta fase, em apenas 10 anos foram decretadas mais de 150 leis novas de proteção
social e de regulamentação do trabalho em todos os seus setores. Assim, em 1943, surge o
Decreto-Lei nº 5.452 /43, a Consolidação das Leis Trabalhistas, a CLT, como meio de
sistematizar e reunir as leis decretadas até o momento.
Com sucintas alterações, mesmo após o golpe militar ocorrido no país em 1969,
finalmente, em 05 de outubro de 1988 foi promulgada a Constituição do Brasil, seu texto
trouxe inovações expressivas aonde colocou o homem como objeto principal. A Carta
Magna alçou novo valor e significação do coletivo e social, resgatando profundamente a
Dignidade da Pessoa Humana e a edificando como valor máximo em nosso ordenamento.
Martins (2014, p. 64) explica o papel fundamental da Constituição como origem do
direito do trabalho, e aduz que “a constituição cuida da organização, constituição e
composição da Justiça do Trabalho, nos artigos 111 a 117, principalmente quanto à
competência desta Justiça, no seu artigo 114”.
Nesta senda é possível observar uma grande evolução nas relações trabalhistas,
especialmente no último século. Vislumbra-se que em decorrência do fenômeno
denominado socialismo constitucional houve uma preocupação constante e crescente em
proteger e dar garantias aos trabalhadores, alçando o Direito do Trabalho como meio de
atingir a Dignidade da Pessoa Humana, princípio norteador de nossa Carta Magna vigente.
Desde 1934 as normas de Direito do Trabalho são tratadas pela Constituição Federal,
no entanto, somente em 1988 que a Carta Magna passou a aludir o trabalho como um direito
fundamental social, em seu artigo 1º, III. Analisando seu texto, já em seu artigo 6º prevê o
48

trabalho como direito social, no artigo 7º de seu texto, pode se observar que a Carta Magna
traz em seus incisos numerosas garantias mínimas nas relações trabalhistas, tanto para
trabalhadores urbanos como para os rurais.
Neste sentido, os direitos que abarcam a dignidade humana estão elencados “no rol
dos direitos da personalidade, bem como ancorados no conjunto dos direitos fundamentais”,
assim ocorre uma proteção especial ao direito a vida, a integridade psicofísica e moral do ser
humano, visando impedir que a mesmas sejam violadas. (MELLO E MOREIRA, 2015, p.
100)
É necessário observar a importância da proteção destinada ao trabalho humano bem
como o valor social atribuído a ele, considerando que ao desrespeitar tal proteção o
empregador contende com a dignidade da pessoa humana e, por consequência, com os
direitos fundamentais e o mínimo existencial, visto que este é pressuposto essencial para
concretização dos mesmos.
Os artigos que compõe nossa Constituição, voltados ao Direito do Trabalho, buscam
proteger a condição natural do trabalhador, assim como a liberdade laboral, e, em especial,
o de possuir um trabalho digno.
Considerando que o mercado de trabalho no qual a força de trabalho é oferecida
possui um excesso de oferta de mão de obra e, não obstante, a concentração de renda induz
grande parte das pessoas a oferecer sua força de trabalho, a intervenção do Estado se faz
necessária para colocar limites no empregador, visando garantir o caráter social do trabalho,
e não a sua diminuição a simples mão-de-obra. Isto posto, é possível vislumbrar o caráter de
direito fundamental social presente no Direito do Trabalho, uma vez que garante as
melhorias para o trabalhador nivelando as desigualdades entre o Estado e o capital, e
possibilitando a intervenção positiva do Estado perante as relações trabalhistas.
Para tanto, nossa Carta Magna compõe princípios que visam a efetividade desta
equiparação no âmbito trabalhista. Como o princípio da proteção, que tem por objetivo
equilibrar a desigualdade existente na relação de emprego, assim, “se deve proporcionar uma
forma de compensar a superioridade econômica do empregador em relação ao empregado,
dando a este último superioridade econômica. ” (MARTINS, 2008, p. 61)
O princípio da primazia da realidade no Direito Trabalhista possui a pretensão de
proteger o empregado na relação de trabalho, considerando que muitas vezes a realidade se
dá de forma diferente da que fora pactuada no momento da admissão ou, não obstante, visa
49

também, de um modo geral, garantir que direitos que não foram pactuados sejam
legitimados, fundamentando-se em outros tipos de prova que não a documental.
No que tange o princípio da indisponibilidade ou irrenunciabilidade dos direitos
trabalhistas é necessário ponderar sobre a condição de subordinação atribuída ao trabalhador
através do contrato de trabalho, pela hipossuficiência no qual se encontra o trabalhador em
relação ao empregador, foi vedada qualquer transação que levasse o trabalhador a dispor de
seus direitos, podendo esta ser passível de nulidade (absoluta) ou anulabilidade (relativa), ou
seja, faz se necessário o crivo do judiciário uma vez que o empregador busque a
flexibilização da norma, no escopo de garantir efetividade às previsões legais. (VECHI,
2009, p. 328)
Entretanto, necessário frisar que é possível flexibilizar determinadas normas, aliás, o
próprio texto da lei já traz em seu corpo algumas exceções, contudo, não sem passar pelo
crivo do judiciário, no escopo de garantir efetividade às previsões legais.

2 DUMPING SOCIAL NA ESFERA TRABALHISTA

No período pós-guerra intensificou-se uma ordem econômica internacional, neste


viés surgiu a globalização, que possuía o objetivo de estimular as trocas comerciais entre
países, como forma de promover economicamente as pátrias menos favorecidas.
Impende destacar o papel que a globalização possui no dumping social atualmente o
processo é derivado da necessidade de expansão do sistema capitalista e, para se adquirir
essa expansão foi necessário conquistar novos mercados para obter maiores lucros e
acumular riquezas.
Nesta perspectiva, o dumping trataria, em um primeiro momento, de regras que
impedissem uma concorrência desleal de mercado, trazendo este tema para a seara
trabalhista, é possível observar que como consequência desta prática comercial cria-se a
necessidade de minimizar os custos e maximizar os lucros, estes em detrimento de direitos
trabalhistas, ocasionando a afronta dos direitos trabalhistas e previdenciários básicos.
Dumping social pode ser conceituado como a prática econômica de gestão
empresarial baseada na concorrência desleal, suprimindo direitos trabalhistas e
previdenciários como meio de alcançar maior lucro. Esta prática prejudica não apenas os
trabalhadores, mas outros empresários que cumprem com as normas trabalhistas,
comprometendo assim todo o mercado. (SANTOS, 2015)
50

A concorrência desleal na esfera trabalhista reside na ausência de efetividade dos


direitos trabalhistas em determinados países, como consequência desta prática tem-se o
baixo custo dos produtos, ocasionando na possibilidade da empresa em aumentar seus
recursos e vender seus produtos com preço reduzido (PINTO, 2011, p.142).
Complementando, Souto Maior (2007) explana:
(...) é por esta razão que a violação dos direitos trabalhistas gera um dano não
somente ao contrato individual de trabalho, mas a toda a sociedade. É um
dano social porque prejudica direitos fundamentais dos trabalhadores e,
consequentemente, contribui para o desequilíbrio da cadeia econômica
capitalista. Portanto, a existência de dano social deve ser severamente punida. As
agressões ao Direito do Trabalho acabam atingindo uma grande quantidade de
pessoas. Dessas agressões, o empregador muitas vezes se vale para obter
vantagem na concorrência econômica com relação a vários outros
empregadores. Isto implica, portanto, dano a outros empregadores não
identificados que, inadvertidamente, cumprem a legislação trabalhista, ou
que, de certo modo, se veem forçados a agir da mesma forma. O resultado é
a precarização completa das relações sociais, que se baseiam na lógica do
capitalismo de produção. Nesse sentido, aliás, não é nenhum exagero dizer que a
própria empresa perde a sua legitimidade de atuar no mercado, uma vez que
fere frontalmente o preceito constitucional da função social da propriedade,
que refletiu na própria atuação negocial, conforme regulação do novo Código
Civil. (grifo nosso)

Destarte, o Poder Judiciário trabalhista passou a compreender por dumping social a


violação reiterada dos direitos trabalhistas, já que os custos mais baixos do trabalho
representariam, em tese, uma distorção da concorrência, na medida em que permitiram a
venda de produtos a preços bem mais baixos do que aqueles produzidos em condições que
tenham que obedecer a todas as garantias trabalhistas.
Com o objetivo de formar medidas antidumping foi elaborado o Enunciado nº 4 da
1ª Jornada de Direito Material e Processual na Justiça do Trabalho, ocorrido em 2007 no
TST, dispõe que essa violação reincidente e inescusável aos direitos trabalhistas gera dano
coletivo, já que, com tal prática, desconsidera-se, propositalmente, "a estrutura do Estado
social e do próprio modelo capitalista com a obtenção de vantagem indevida perante a
concorrência".8

8
4. “DUMPING SOCIAL”. DANO À SOCIEDADE. INDENIZAÇÃO SUPLEMENTAR. As agressões
reincidentes e inescusáveis aos direitos trabalhistas geram um dano à sociedade, pois com tal prática
desconsidera-se, propositalmente, a estrutura do Estado social e do próprio modelo capitalista com a obtenção
de vantagem indevida perante a concorrência. A prática, portanto, reflete o conhecido “dumping social”,
motivando a necessária reação do Judiciário trabalhista para corrigi-la. O dano à sociedade configura ato
ilícito, por exercício abusivo do direito, já que extrapola limites econômicos e sociais, nos exatos termos
dos arts. 186, 187 e 927 do Código Civil. Encontra-se no art. 404, parágrafo único do Código Civil, o
fundamento de ordem positiva para impingir ao agressor contumaz uma indenização suplementar,
como, aliás, já previam os artigos 652, d, e 832, § 1º, da CLT. (grifo nosso)
51

O dumping social fere, não apenas os direitos fundamentais já dispostos neste


trabalho, mas os dispositivos Constitucionais que tratam da ordem econômica de nosso país.
Nesta senda, é evidente que a prática de dumping, ou seja, o desrespeito aos direitos
trabalhistas com o intuito de reduzir os custos da produção de bens ou serviços, é uma séria
ofensa não só a dignidade da pessoa humana, mas aos valores sociais do trabalho e da livre
iniciativa, à ordem econômica e à livre concorrência.
Não é sempre que os valores públicos, do bem-estar social, direitos humanos e
igualdade, devem ceder ao privado, ao capitalismo e sua busca desenfreada por lucro, do
mesmo modo que a livre iniciativa e a livre concorrência não podem prevalecer a outros
princípios constitucionais fundamentais. Estes devem sim devem ser para que não sejam
cometidas injustiças capazes de acabar com a confiança no mercado brasileiro ou os direitos
fundamentais do cidadão. (DINIZ, 1995, 40-42)
A Organização Mundial do Comércio – OMC e a Organização Internacional do
Trabalho – OIT foram apresentadas como possível solução ao dumping dois institutos, o
primeiro chamado de cláusula social e o segundo de selo social, ambas visavam emitir
normas que compelisse aos países integrantes cumprir e cobrar de seus parceiros econômicos
a efetiva proteção do trabalho e do trabalhador como o cumprimento de normas trabalhistas
mínimas.
Até o presente momento nenhuma dessas soluções alternativas foram colocadas em
prática pelos organismos internacionais. O que significa que não há nenhum controle
repressivo efetivo contra o dumping pela Organização Mundial do Comércio. Assim, o dano
moral coletivo coloca-se como a medida antidumping encontrada pelos tribunais trabalhistas
para tentar sujeitar os empregadores as leis laborais e tornar tais leis efetivas em nosso
ordenamento.
Nesse sentido, a V Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal do
Superior Tribunal de Justiça aprovou o Enunciado 455 reconhecendo a existência dos danos
sociais, senão veja-se:
[...] a expressão “dano” no art. 944 abrange não só os danos individuais, materiais
ou imateriais, mas também os danos sociais, difusos, coletivos e individuais
homogêneos a serem reclamados pelos legitimados para propor ações
coletivas.

Neste aspecto, procurando adentrar no campo do dano moral coletivo


especificamente, o qual é objeto deste trabalho, o jurista Bittar Filho (2005, p. 43-66) o
52

conceitua como “a injusta lesão da esfera moral de uma dada comunidade, ou seja, é a
violação antijurídica de um determinado círculo de valores coletivos”.
Silva (2008) afirma que “enquanto no dano social a vítima é a sociedade; o dano
moral coletivo tem como vítimas titulares de direitos individuais homogêneos, coletivos ou
difusos”.
Contudo, impende destacar, as lesões decorrentes do dumping social são de caráter
patrimonial à coletividade dos trabalhadores e concomitantemente afetam a ordem
econômica, enquanto no dano moral coletivo, as lesões são de índole extrapatrimonial.
Nessa acepção instruem Souto Maior, Moreira e Severo (2012, p. 44) que o “dano
moral coletivo, que tem natureza jurídica de dano extrapatrimonial coletivo causado pelo ato
ilícito; e o “dumping social”, que tem natureza jurídica do dano material coletivo
(mensurável ou não) ”, ambos provêm de ato ilícito e seriam cumuláveis.
É de suma importância esclarecer que a coletividade possui bens de natureza
extrapatrimonial, admitidos e amparados pelo Direito Constitucional e infraconstitucional,
passíveis de defesa pelos instrumentos processuais adequados à tutela jurisdicional coletiva.
Assim, considerando a natureza subjetiva do dano extrapatrimonial, na área dos
direitos metaindividuais, importa somente a ocorrência de lesão a um direito ou interesse
juridicamente protegido, se caracteriza pela sua presunção, ou seja, quando constatada a
ofensa ao bem jurídico tutelado há necessidade de compensação mediante pagamento de
indenização à coletividade (dano in re ipsa) , com exceção das pessoas jurídicas, as quais
necessitam provas o dano efetivo a sua personalidade para configuração de dano moral
coletivo. (Pinto Junior, 2012)
Feitas tais observações, no sentido de auxiliar a compreensão da configuração do
dano moral por dumping social trabalhista, dá-se continuação ao assunto expondo decisões
dos Tribunais do nosso país referente ao dano moral coletivo em situações em que é cabível
dentro do direito do trabalho. Por conseguinte, faremos considerações acerca das partes que
detém legitimidade para propor ações de indenização coletiva em decorrência da prática de
dumping social, para, finalmente, avaliarmos o quantum indenizatório e os meios para
calcular sua justa dimensão.
53

3 DANO MORAL COLETIVO DECORRENTE DA PRÁTICA DE DUMPING


SOCIAL NO ENFOQUE JURISPRUDENCIAL E OS REQUISITOS PARA
FIXAÇÃO DA QUANTIFICAÇÃO DA INDENIZAÇÃO

O dumping social insere-se no instituto do Direito Coletivo do Trabalho, no que cerne


sua natureza jurídica, considerando que adentra os interesses e direitos difusos e coletivos,
direitos humanos de terceira dimensão, assim, por sua natureza social, somente pode ser
postulado em juízo por intermédio de um dos legitimados preceituados na legislação vigente,
“ou seja, por meio dos autores ideológicos, que defendem em nome próprio, direitos alheios,
com a devida autorização legal” (SANTOS, 2015, p. 67).
Assim, somente as instituições listadas nos dispositivos legais apontados detêm
legitimidade para postular os direitos e interesses difusos e coletivos, posto que “a coisa
julgada que se produzirá implicará em efeitos erga omnes e ultra partes. ” (SANTOS, 2015,
p. 68)
A lei nº 7.347/85, que regulamenta a ação civil pública, prevê expressamente a
possibilidade do reconhecimento de dano moral coletivo, ao prever, no artigo 1º, IV 9, a
referência à responsabilidade por danos morais e coletivos causados "a qualquer outro
interesse difuso ou coletivo” (NOGUEIRA LEI, 2014)
A Lei nº 8.078/90, em seu art. 81, por seu turno, traz a definição de direitos difusos
e coletivos, ao estabelecer que a defesa coletiva será exercida quando se tratar de interesses
ou direitos difusos, coletivos ou individuais homogêneos10
Do mesmo modo, tem-se o Enunciado nº 76 da 1ª Jornada de Direito Material e
Processual na Justiça do Trabalho, onde entende ser cabível o ajuizamento de ação civil
pública para reparação de dano moral coletivo.11

9
Art. 1º Regem-se pelas disposições desta Lei, sem prejuízo da ação popular, as ações de responsabilidade
por danos morais e patrimoniais causados: (Redação dada pela Lei nº 12.529, de 2011).
(...)
IV - a qualquer outro interesse difuso ou coletivo. (Incluído pela Lei nº 8.078 de 1990)
(...)
10
I - interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de
natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato;
II - interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de
natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte
contrária por uma relação jurídica base;
III - interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes de origem comum.
(grifo nosso)
11
AÇÃO CIVIL PÚBLICA. REPARAÇÃO DE DANO MORAL COLETIVO. TRABALHO FORÇADO OU
EM CONDIÇÕES DEGRADANTES. LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO. I
– Alegada a utilização de mão-de-obra obtida de forma ilegal e aviltante, sujeitando o trabalhador a condições
degradantes de trabalho, a trabalho forçado ou a jornada exaustiva, cabe Ação Civil Pública de reparação por
54

Rocha (2002, p. 280) explica que “no meio ambiente do trabalho, em especial, a
tutela à segurança e à saúde do trabalhador carrega caracteres essencialmente difusos e
coletivos”.
O Enunciado nº 4 da ANAMATRA prevê a possibilidade de o magistrado conceder
indenização suplementar extra petita, quando observar a configuração de dumping de
maneira reiterada pelo empregador. Embora louváveis as determinações contidas no referido
enunciado, buscando a defesa da garantia de efetividade dos direitos fundamentais, as
disposições contidas nos artigos do Código de Processo civil precisam ser observadas. Não
obstante, é imperativo destacar a ausência de legitimidade da parte para pleitear, em nome
próprio, direito da coletividade.
Neste viés tem-se uma decisão do Tribunal Regional do Trabalho da 1º Região, em
sede de Recurso Ordinários sob o nº 00000317020135010241, este aponta as ações coletivas
como meio de mitigar o dano moral coletivo pela prática de dumping social, pois entende
que a titularidade de tais direitos é da coletividade, e por este motivo não poderia ser
postulado ou deferido em ação individual.
Corroborando tal entendimento analisar-se-á um julgado do Tribunal Regional do
Trabalho da 2º Região onde, em primeira instância, a Caixa Econômica Federal foi
condenada a pagar a soma de um milhão de reais a título de dumping social, contudo, em
segunda instância (RO: 00012362120135020302) a condenação foi reformada sob o
arrazoado da ausência de pedido neste sentido impede que o juiz o conceda de oficio, com a
justificativa de que obsta os princípios constitucionais do devido processo legal,
contraditório e ampla defesa.
Contudo, contrariando as decisões acima dispostas, transcreve-se abaixo a decisão
do Tribunal Regional da 4º Região, onde, em sede recursal (RO: 00009839420125040663),
manteve a condenação por dumping social de oficio prolatada ainda em 1º instância, ao
ponderar que as demandadas vinham desrespeitando a ordem jurídica trabalhista de maneira
reiterada, visto o número expressivo de ações que tramitavam naquela vara com o mesmo
polo passivo, assim, entendeu ser pertinente a fixação de indenização de ofício pelo
magistrado, “para proteção da coletividade e da ordem jurídica, em virtude de seu
compromisso ético com a proteção da dignidade da pessoa humana e do trabalho.”

dano moral coletivo. II – Legitimidade do Ministério Público do Trabalho para o ajuizamento da ação civil
pública na tutela de interesses coletivos e difusos, uma vez que a referida prática põe em risco, coletivamente,
trabalhadores indefinidamente considerados.
55

Visando uniformizar as decisões a respeito da (im)possibilidade de conceder


indenização por dumping social extra petita em ações individuais, o Tribunal Superior do
Trabalho se pronunciou defendendo a necessidade da observação ao procedimento legal
cabível para que ocorra a condenação pela prática de dumping social, em que se assegure o
contraditório e a ampla defesa em todas as fases processuais, isto não se verifica possível
quando ocorre decisão de ofício, diante da ausência de pedido, de contestação e de instrução
processual, nesse sentido. (TST, 2013)
Em suma, através da análise dos julgados é possível vislumbrar que a jurisprudência
ainda é muito disforme quanto à configuração ou não de dumping social, há discrepâncias,
em especial, na possibilidade de concessão de indenização moral coletiva por dumping social
“de oficio” e extra petita, por parte do magistrado.
No que tange a finalidade das condenações por dano moral coletivo em decorrência
da prática de dumping social, faz-se necessário destacar que a doutrina e jurisprudência não
é uníssona quanto a natureza jurídica das condenações, contudo, boa parte da doutrina e
julgados acredita que a função das mesmas seja a compensação da vítima através da
indenização pelos danos suportados, no caso, o dano social a coletividade, assim como a
punição, que deve possuir caráter pedagógico, assim como busca desestimular o
cometimento do ato danoso novamente.
Importante destacar que no caso objeto deste estudo, ou seja, quando ocorre ofensa
a direitos essencialmente transindividuais, caracterizados pela ausência de identificação da
vítima, difere-se em muito das funções típicas relativas aos danos individuais, restaria
prejudicada a função compensatória, devendo prevalecer às funções sancionatória, em
relação ao ofensor, e dissuasória, diante de terceiros. Complementando tal entendimento,
Neto e Caumont (2016) lecionam:
Além disso, na fixação do quantum indenizatório, também deverá ser observada a
função sancionatória e dissuasiva, haja vista que, na esfera dos direitos
transindividuais, a função compensatória, que prevalece na seara dos danos
individuais, fica prejudicada, dada a inviabilidade de identificação dos sujeitos
atingidos.

Portanto, a concepção contemporânea da responsabilidade civil visa além de reparar


os danos materiais e compensar os danos extrapatrimoniais, também punir o causador do
ilícito e dissuadi-lo a não praticar os mesmos atos.
No tocante à função punitiva Facchini Neto (2007, p. 28) ressalta que a intenção
contida na função dissuasória da responsabilidade é de prevenir práticas antijurídicas,
objetiva que o causador do dano não reitere sua conduta,
56

Sobre o escopo da aplicação de sanção por dumping social, elucida que “seu
propósito é inibir a repetição do ilícito; anular o lucro obtido pelo réu com a atitude de
agressão ao ordenamento; e fazer crer a todos os demais empregadores, concorrentes do réu,
que o respeito à ordem jurídica não lhes representa um prejuízo concorrencial. ” Souto Maior
(2007)
Feitas as reflexões referentes ao dano moral coletivo, bem como os requisitos
necessários para sua caracterização, é necessário tecer algumas considerações sobre a
fixação do quantum indenizatório. Nesse sentido, Sérgio Gabriel (2004, p. 259) traz em rol
taxativo a classificação dos critérios para fixação da indenização por dano moral:
Assim, poderíamos dividir os critérios para fixação da indenização por danos
morais em positivos e negativos.
Nos positivos, deveria ser observado: condição econômica, pessoal e social do
ofendido; condição econômica do ofensor; grau de culpa; gravidade e
intensidade do dano; hipótese de reincidência; compensação pela dor sofrida
pelo ofendido; desestímulo da prática delituosa.
Nos negativos, observar-se-ia: enriquecimento do ofendido; viabilidade
econômica do ofensor.
De qualquer forma, além da observação desses critérios, a aplicação deve ser
norteada pelos princípios da razoabilidade, proporcionalidade e equidade.

Reis (1999, p. 141), da mesma maneira, defende os critérios expostos acima, e


acrescenta critérios individuais, não somente a respeito do caso em particular, mas do senso
individual de cada julgador, “cabe ao juiz aferir as provas utilizando-se do seu boni
arbitrium, que está intimamente ligado aos seus padrões culturais, sociológicos,
sensibilidade e, particularmente, valores axiológicos”.
No que diz respeito à destinação das indenizações pagas em sede de dano moral
coletivo, Augustin e Almeida (2009) ensinam:
Assim, a conduta antijurídica que atinge interesses coletivos há de ser
exemplarmente rechaçada pelo sistema político-jurídico, concretizando-se por
meio de uma reparação coletiva considerada suficiente para inibir novas
investidas. O valor da condenação imposta pelo juiz deve ser revertido a
fundos nacionais, estaduais ou municipais (art. 13 da Lei 7.347/85), cujos
recursos destinam-se à reconstituição dos bens lesados, e revestir-se de um
caráter sancionatório-pedagógico, visto ser dessa atividade repressiva
jurisdicional que surge o efeito almejado pela lei, qual seja: o de prevenir a ofensa
a direitos transindividuais. (grifo nosso)

Corroborando este entendimento tem-se uma decisão do Tribunal Superior do


Trabalho, que apresentou como solução para enquadrar a destinação do quantum
indenizatório na Lei 7.347/85 seu encaminhamento para o Fundo de Amparo ao Trabalhador,
como ilustra a Acordão colacionado:
57

RECURSO DE REVISTA. DANO MORAL COLETIVO. DESTINAÇÃO DA


INDENIZAÇÃO DEFERIDA. FUNDO DE AMPARO AO TRABALHADOR -
FAT. ARTIGO 13 DA LEI N.º 7.347/85. Cinge-se a controvérsia a saber a quem
deve ser revertida a indenização deferida em ação de indenização por dano moral
coletivo. Na diretriz do art. 13 da Lei n.º 7.347/85, a indenização para a
coletividade de trabalhadores a título de compensação pelos danos sofridos deve
ser revertida ao Fundo de Amparo do Trabalhador - FAT para o custeio de
programas assistenciais. Desse modo, a indenização por dano moral coletivo
não pode ser revertida aos membros da categoria profissional do Sindicato
autor, mormente diante do fato de que a condenação a dano moral coletivo
não é voltada diretamente à pessoa do trabalhador lesado, ou ao seu
representante, já que suas consequências extrapolam a esfera individual dos
envolvidos e repercutem nos interesses extrapatrimoniais da coletividade.
Recurso de Revista conhecido e provido. MULTA DO ART. 475-J DO CPC.
INAPLICABILIDADE AO PROCESSO DO TRABALHO. VIOLAÇÃO DO
ART. 880 DA CLT. A aplicação subsidiária do Código de Processo Civil ao
Direito Processual do Trabalho, de acordo com a doutrina e a jurisprudência
unânimes, exige dois requisitos: a ausência de previsão na CLT e a
compatibilidade da norma supletiva com os princípios do Processo do Trabalho.
Observa-se que o fato preconizado no art. 475-J do CPC possui disciplina própria
no âmbito do Processo do Trabalho, nos arts. 880, 882 e 883 da CLT, que preveem
o prazo e a garantia da dívida por depósito ou a penhora de bens quantos bastem
ao pagamento da importância da condenação, acrescido das despesas processuais,
das custas e dos juros de mora. Recurso de Revista conhecido em parte e provido
(TST - RR: 18543220105030111, Relator: Maria de Assis Calsing, Data de
Julgamento: 24/06/2015, 4ª Turma, Data de Publicação: DEJT 26/06/2015)

Em suma, considerando as decisões apresentadas neste estudo é possível verificar


uma unicidade no caráter sancionador- pedagógico das condenações, o caráter punitivo
apesar de nem sempre ser apreciado pelo magistrado, também aparece em algumas decisões.
Tais finalidades, juntamente aos pressupostos como a condição econômica do ofensor, o
grau de culpa, a gravidade e intensidade do dano, a hipótese de reincidência e o desestímulo
da prática delituosa, contribuem para formar o quantum indenizatório que será devido à
coletividade e repassado ao Fundo de Amparo ao Trabalhador, como determina a Lei de
Ação Civil Pública, meio para demandar direitos coletivos.

CONCLUSÃO

Considerando que o trabalho é uma das práticas mais antigas do mundo, e que a
sociedade ao longo da história manteve-se em constante mudança e evolução, é natural que
estas transformações se refletissem no âmbito social.
Foi no início do século XIX que começaram a instituírem-se regramentos para o
trabalho humano, a partir deste momento, lentamente, difundiu-se cada vez mais direitos aos
trabalhadores, a ascensão do comunismo e do fascismo, a criação do Ministério do Trabalho,
a elaboração das Constituições da Alemanha e México e a Declaração dos Direitos Humanos
58

foram o ápice da conquista de direitos e trouxeram seus efeitos para o Brasil, a partir de
1930, no governo de Getúlio Vargas começou a surgir uma política trabalhista, que culminou
em 1943 na criação da Consolidação das Leis Trabalhistas.
Com o advento da Constituição Federal em 1988 o trabalho ganhou especial
proteção, a Constituição trouxe consigo inúmeras transformações, especialmente no Direito
do Trabalho, elevando o trabalho a preceito fundamental em nosso ordenamento jurídico,
elemento primordial para a concretização da Dignidade da Pessoa Humana.
A Constituição trouxe consigo diversos princípios a serem analisados com o intuito
de proteger o trabalho e o trabalhador, tido como hipossuficiente na relação laboral, buscou
assim, estabelecer regras mínimas para o trabalhador, e, neste mesmo viés, estabelecer
garantias à condição social do mesmo.
Contudo, a globalização ganhava espaço no âmbito internacional e nacional e, apesar
das garantias advindas da Constituição iniciou-se um processo de aviltamento dos direitos
trabalhistas, o capitalismo e a busca por lucro culminou no aparecimento de casos de
dumping social, aonde, reiteradamente, empresas deixaram de cumprir as normas mínimas
de trabalho determinadas pela Constituição.
Assim, como meio de obstar tal prática, nosso ordenamento passou a admitir a
indenização por dano moral coletivo, visto que considera a afronta reiterada aos direitos
trabalhistas uma agressão não apenas a direitos fundamentais garantidos em nossa Carta
Magna, mas também a toda a sociedade, visto que contribui para o desequilíbrio da ordem
econômica e social. Esta novidade trouxe consigo complicações, por se tratar de um dano
não material, com base na doutrina e dos julgados nesta seara pode-se fazer uma compilação
dos requisitos necessários para a caracterização desta espécie de dano.
Ao avaliarmos a jurisprudência em específico, sobre a possibilidade de dano moral
coletivo nos casos de dumping, percebe-se que a simples prática de desrespeito aos direitos
trabalhistas, por si só, não configura dano moral coletivo, é preciso que esta conduta aconteça
reiteradas vezes, assim como o pleito por dano moral coletivo deve ocorrer através de Ação
Civil Pública, por intermédio dos órgãos legitimados para propor a referida ação. A
condenação, nestes casos, de acordo com grande parte dos julgados analisados, não pode
ocorrer extra petita ou ex officio pelo magistrado, entretanto tal entendimento ainda não se
encontra consolidado.
Por fim, buscamos os pressupostos necessários para fixar o quantum indenizatório
porquanto a grande dificuldade encontrada pelos magistrados em dirimir tal questão, uma
59

vez que a doutrina apresenta parâmetros, sem, no entanto, estabelecer limites. A destinação
da indenização devida à coletividade, em casos de condenação em decorrência de dumping
social trabalhista deve ser encaminhada para o Fundo de Amparo ao Trabalhador, como
determina a Lei n.º 7.347/85, em seu artigo 13.
Concluindo, a legislação ainda não se encontra consolidada, assim como há diversos
posicionamentos divergentes na jurisprudência no que tange a configuração do dano moral
coletivo como consequência da prática de dumping. Por tratar-se de dois temas polêmicos e
em constante evolução impossível extrair conclusões absolutas sobre o assunto, sendo este
trabalho um apanhado de ideias, princípios e conceitos com o objetivo de auxiliar na reflexão
sobre o tema.

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62

II ASPECTOS RELEVANTES DO
DIREITO PREVIDENCIÁRIO NO
INSTITUTO DA APOSENTADORIA
63

A INCONSTITUCIONALIDADE DA DESAPOSENTAÇÃO E A POSSIBILIDADE


DE REAPOSENTAÇÃO NA SEARA PREVIDENCIÁRIA BRASILEIRA

Lucas Dadda de Lemos12


Tais Ramos13

RESUMO

Este trabalho trata acerca da possibilidade de reaposentação e da desaposentação na seara


previdenciária brasileira. Estes institutos estão dentro da previdência social, a qual é a
espécie do gênero chamado seguridade social, previsto na Carta Magna de 1988 e que
também tem como espécies a saúde e a assistência social. A desaposentação surgiu no
cenário jurídico brasileiro em meados dos anos 90, após o cancelamento de dois benefícios
inicialmente previstos na Lei nº 8.213/1991, e posteriormente revogados, no ano de 1994.
Tais benefícios previam a possibilidade do aposentado que continuava trabalhando receber
benefício previdenciário, sendo eles o pecúlio e o abono de permanência em serviço. Como
havia falta de legislação acerca do tema, a desaposentação acabou sendo alvo de muita
discussão doutrinária e jurisprudencial durante cerca de 20 anos, e sua situação foi definida
apenas no ano de 2016, em julgamento com repercussão geral na Suprema Corte Brasileira,
a qual definiu a inconstitucionalidade do referido instituto. Desta forma, após o julgamento
do STF, a reaposentação surgiu com a finalidade de beneficiar o aposentado no Regime
Geral de Previdência Social, procurando aumentar o valor de seus benefícios no caso de o
jubilado seguir vertendo contribuições após ter se aposentado. Assim, por meio do método
hipotético-dedutivo, a pesquisa responde sobre a (im)possibilidade de ocorrer a
reaposentação, mesmo com a definição da Suprema Corte Brasileira acerca da
inconstitucionalidade da desaposentação.

Palavras-chave: Seguridade Social. Previdência Social. Aposentadoria. Desaposentação.


Reaposentação.

INTRODUÇÃO

O presente trabalho visa à discussão dos institutos da desaposentação e da


reaposentação, debatendo acerca do reconhecimento da inconstitucionalidade do primeiro e
o nascimento do segundo.

12
Pós-Graduando em Direito do Trabalho e Previdenciário na Universidade de Santa Cruz do Sul
(UNISC)/Escola Nacional da Advocacia/ Conselho Federal da OAB (ENA/CFOAB). Graduado em Direito
pelo Centro Universitário Cenecsita de Osório (UNICNEC). Advogado. E-mail: lc.dadda@gmail.com.
13
Doutoranda em Direito Político e Econômico na Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM), com período
sanduíche na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Mestre em Direitos Sociais e Políticas
Públicas, Graduada em Direito e Especialista em Direito Processual Civil pela Universidade de Santa Cruz
do Sul (UNISC). Advogada, Professora orientadora da Pós-graduação Lato Sensu em Advocacia Trabalhista
e Previdenciária da Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC)/ Escola Nacional da Advocacia/ Conselho
Federal da OAB (ENA/CFOAB). E-mail: taisramos@gmail.com.
64

O Direito está em constante mudança e a seara previdenciária está inclusa nesta esfera.
Desta forma, uma legislação mais antiga acaba por se tornar obsoleta, tendo em vista o
surgimento de novas discussões doutrinárias e jurisprudenciais acerca de fatos jurídicos (e
previdenciários) que vêm surgindo com o passar dos anos. É o caso da reaposentação e da
desaposentação, as quais não possuem previsão legal no ordenamento jurídico brasileiro.
A questão demonstra-se complexa, já que em determinadas situações o aposentado
continua contribuindo para o sistema (em alguns casos, durante vários anos), o que ensejaria
a ele ter direito a outra aposentadoria, que poderia até ser mais vantajosa do que aquela que
é recebida.
Após muita discussão jurisprudencial, o STF, no ano de 2016, julgou um caso de
repercussão geral acerca da desaposentação, e considerou que a mesma não era
constitucional. E logo na sequência surgiu um novo instituto: a reaposentação, a qual ainda
é relativamente nova no cenário jurídico brasileiro.
A problemática dessa pesquisa é se há a possibilidade de ocorrer a reaposentação,
mesmo com a definição da Suprema Corte Brasileira acerca da inconstitucionalidade da
desaposentação.
Parte-se do pressuposto que existem diferenças entre a reaposentação e a
desaposentação. Uma delas, já mencionada, é que a primeira surgiu apenas após uma
definição jurídica acerca da situação da segunda. Vale dizer que há distinção entre as duas
na hipótese do tempo de contribuição, quer dizer, na contagem para o possível recebimento
de um segundo benefício. Na reaposentação, a contagem seria iniciada apenas no caso das
contribuições feitas após a aposentadoria, o que não é o caso da desaposentação.
Portanto, o objetivo geral deste trabalho é definir a possibilidade da reaposentação e
se ela é viável na justiça brasileira.
Como objetivos específicos, pretende-se conhecer o surgimento da desaposentação e
demonstrar a sua inconstitucionalidade e verificar o nascimento da reaposentação e
identificar a situação atual deste instituto na seara previdenciária brasileira.
Acerca da metodologia empregada, utilizar-se-á o método hitotético-dedutivo, por
meio de pesquisa bibliográfica acerca dos conceitos e institutos; também elaborar-se-á
pesquisa jurisprudencial nos principais tribunais brasileiros, no que tange aos julgados sobre
desaposentação e reaposentação.
A pesquisa foi dividida em dois momentos. No primeiro, fez-se uma abordagem acerca
do surgimento da desaposentação e da sua declaração como inconstitucional, em julgamento
65

realizado pelo STF, após discussão jurisprudencial acerca do assunto. Ademais, conceituou-
se a aposentadoria e as suas quatro espécies (por idade, por invalidez, por contribuição e
especial), e também foi explanado o posicionamento de importantes autores acerca da
possibilidade de desaposentação, os quais analisaram sua viabilidade econômica e jurídica.
No segundo momento, analisou-se o nascimento da reaposentação, pesquisou-se
acerca das suas possibilidades, foram analisadas notícias, bem como julgados recentes sobre
o tema. Também foi feita uma análise da situação atual da reaposentação em nosso país.
Importante ressaltar que a discussão acerca dos institutos é importante, tendo em vista
que, além do aspecto da falta de legislação citado anteriormente, a reaposentação e a
desaposentação estão em constante evidência nos tribunais brasileiros, sendo alvo de
inúmeros debates, pois são assuntos “novos” no cenário jurídico nacional. De modo
particular, principalmente a reaposentação, pois seu seguimento vincula-se a definição de
inconstitucionalidade da desaposentação, ocorrida em 2016 pela Suprema Corte brasileira,
como foi citado anteriormente.
Ademais, ponto importante a destacar é que o debate e as explanações acerca dos dois
institutos demonstram-se de fundamental importância, de forma que o esclarecimento evita
a possibilidade de trazer alguma confusão entre os mesmos. Como vimos brevemente, e
como veremos no decorrer do trabalho, a reaposentação e a desaposentação possuem larga
diferença, principalmente na prática.
Portanto, entende-se que fazendo a distinção, através de exemplos, ficará mais fácil
entender o que ocorre na previdência brasileira atualmente.
Finalmente, tudo isto, vale dizer, deve surgir a fim de que ocorra uma definição ao
aposentado, para que ele receba uma remuneração digna, satisfazendo as suas necessidades
pessoais, independentemente de ser ou não (re)aposentado. Esta é uma das contribuições que
este trabalho pretende fazer.

1 O INSTITUTO DA DESAPOSENTAÇÃO

Começando, de forma minuciosa, a análise do instituto da desaposentação, é


importante trazer a este trabalho breves linhas acerca da aposentadoria, seu conceito e
espécies.
66

A aposentadoria está prevista no artigo 201 da Constituição Federal. Castro e Lazzari14


ensinam que os valores recebidos na aposentadoria substituem “em caráter permanente (ou
pelo menos duradouro), os rendimentos do segurado, e asseguram sua subsistência, assim
como daqueles que dele dependem”.
É um benefício do Regime Geral da Previdência Social15, sendo devido aos seus
segurados16, conforme dispõe o artigo 18 da Lei nº 8.213/1991:
Art. 18. O Regime Geral de Previdência Social compreende as seguintes
prestações, devidas inclusive em razão de eventos decorrentes de acidente do
trabalho, expressas em benefícios e serviços:
I - quanto ao segurado:
a) aposentadoria por invalidez;
b) aposentadoria por idade;
c) aposentadoria por tempo de contribuição;
d) aposentadoria especial; 17

Portanto, dentro da aposentadoria existem quatro espécies, que valem tanto para
trabalhadores urbanos como para trabalhadores rurais, como rege o princípio da igualdade.
Terão direito a aposentadoria aqueles que efetivarem as respectivas contribuições e se
enquadrarem nos requisitos específicos de cada espécie.
Aspecto importante a ressaltar é que o aposentado pode continuar a laborar, mesmo
após ser concedido o benefício; a exceção ocorre nas hipóteses de aposentadoria por
invalidez (artigos 46 da Lei nº 8.213/199118 e 168 do Decreto nº 3.048/199919) e

14 CASTRO, Carlos Alberto Pereira de; LAZZARI, João Batista. Manual de Direito Previdenciário. 20. ed.
Rio de Janeiro: Forense, 2017. p. 437. Livro em PDF. Disponível em:
<https://forumdeconcursos.com/direito-previdenciario/livros-14/>. Acesso em 07 jul 2018.
15
Possui previsão legal na Lei nº 8213/1991, é compulsório, quer dizer, obrigatório para todos os trabalhadores
da iniciativa privada (Celetistas, domésticos, trabalhadores rurais, autônomos, empresários, trabalhadores
avulsos, produtores rurais, garimpeiros, entre outros). Também permite a inclusão de segurados facultativos,
atendendo ao princípio da universalidade. CASTRO, Carlos Alberto Pereira de; LAZZARI, João Batista.
Manual de Direito Previdenciário. 20. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017. Livro em PDF. Disponível em:
<https://forumdeconcursos.com/direito-previdenciario/livros-14/>. Acesso em 07 jul 2018.
16
Os segurados estão vinculados diretamente ao RGPS e dividem-se em dois grupos, quais sejam, os segurados
facultativos (que não desenvolvem atividade laborativa, mas contribuem) e obrigatórios (que contribuem para
o sistema em razão de sua atividade laborativa). Os últimos subdividem-se em cinco espécies, sendo elas o
empregado, empregado doméstico, trabalhador avulso, segurado especial e contribuinte individual. AMADO,
Frederico. Curso de Direito e Processo Previdenciário. 9. ed. Salvador: JusPodvim, 2017.
17
BRASIL. Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991. Dispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social
e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/Ccivil_03/Leis/L8213cons.htm>.
Acesso em: 11 ago 2018.
18
BRASIL. Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991. Dispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social
e dá outras providências. Art. 46. O aposentado por invalidez que retornar voluntariamente à atividade terá
sua aposentadoria automaticamente cancelada, a partir da data do retorno. Disponível em: <
http://www.planalto.gov.br/Ccivil_03/Leis/L8213cons.htm>. Acesso em: 11 ago 2018.
19
BRASIL. Decreto nº 3.048, de 06 de maio de 1999. Aprova o Regulamento da Previdência Social, e dá outras
providências. Art. 168. Salvo nos casos de aposentadoria por invalidez ou especial, observado quanto a esta
o disposto no parágrafo único do art. 69, o retorno do aposentado à atividade não prejudica o recebimento de
sua aposentadoria, que será mantida no seu valor integral. (Redação dada pelo Decreto nº 4.729, de 2003).
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D3048.htm>. Acesso em: 11 ago 2018.
67

aposentadoria especial (artigo 57, § 8º, Lei nº 8.213/199120). Neste último caso, o
beneficiário está impedido de trabalhar em ambientes onde há contato com agentes nocivos,
sendo liberado o serviço em outros lugares21.
Por outro lado, a norma legal também refere que o aposentado não poderá receber
outro benefício da Previdência Social, exceto salário-família e reabilitação profissional,
conforme dispõe o artigo 18, § 2º, da Lei nº 8.213/199122.
Ainda no tocante a aposentadoria, explanar-se-á, sucintamente, as quatro espécies
existentes.
A primeira é a aposentadoria por invalidez, possui previsão legal nos artigos 42 a 45
da Lei nº 8.213/1991. O segurado receberá este benefício nas hipóteses de doença ou
acidente e se, após avaliação de exame médico-pericial, for considerado incapaz e
insusceptível de reabilitação23. Como já mencionado anteriormente, aquele que foi
aposentado por invalidez não poderá voltar a laborar, caso contrário, terá o seu benefício
cancelado.
O benefício da aposentadoria por idade está previsto nos artigos 201, § 7º, II, da
Constituição Federal, e 48 a 51 da Lei nº 8.213/1991. Prevê que o trabalhador pode requerer
a aposentadoria e receber o benefício ao atingir a idade estipulada pela legislação. No caso
da aposentadoria urbana, é de 65 anos para os homens e 60 anos para as mulheres; com
relação à aposentadoria rural, a lei determina a idade de 60 anos para os homens e 55 anos
para as mulheres24.

20
BRASIL. Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991. Dispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social
e dá outras providências. Art. 57. A aposentadoria especial será devida, uma vez cumprida a carência exigida
nesta Lei, ao segurado que tiver trabalhado sujeito a condições especiais que prejudiquem a saúde ou a
integridade física, durante 15 (quinze), 20 (vinte) ou 25 (vinte e cinco) anos, conforme dispuser a lei. [...] §
8º. Aplica-se o disposto no art. 46 ao segurado aposentado nos termos deste artigo que continuar no exercício
de atividade ou operação que o sujeite aos agentes nocivos constantes da relação referida no art. 58 desta Lei.
(Incluído pela Lei nº 9.732, de 11.12.98). Disponível em: <
http://www.planalto.gov.br/Ccivil_03/Leis/L8213cons.htm>. Acesso em: 11 ago 2018.
21
CASTRO, Carlos Alberto Pereira de; LAZZARI, João Batista. Manual de Direito Previdenciário. 20. ed. Rio
de Janeiro: Forense, 2017. p. 438. Livro em PDF. Disponível em: <https://forumdeconcursos.com/direito-
previdenciario/livros-14/>. Acesso em 07 jul 2018.
22
BRASIL. Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991. Dispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social
e dá outras providências. Art 18: [...] § 2º. O aposentado pelo Regime Geral de Previdência Social–RGPS
que permanecer em atividade sujeita a este Regime, ou a ele retornar, não fará jus a prestação alguma da
Previdência Social em decorrência do exercício dessa atividade, exceto ao salário-família e à reabilitação
profissional, quando empregado. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/Ccivil_03/Leis/L8213cons.htm>. Acesso em 11 ago 2018.
23
GLASENAPP, Ricardo Bernd. Direito Previdenciário. São Paulo: Pearson Education do Brasil, 2015. p. 74,
75.
24
HORVATH JÚNIOR, Miguel. Direito Previdenciário. Barueri, SP: Manole, 2011. p. 57 e 58.
68

O terceiro inciso previsto na legislação de benefícios da previdência social trata da


aposentadoria por tempo de contribuição, que foi incluída por meio da Emenda
Constitucional nº 20/98 e substituiu a aposentadoria por tempo de serviço. Sua previsão legal
está nos artigos 201, § 7º, I, da Constituição Federal, e 52 a 56 da Lei nº 8.213/1991.
Existem duas possibilidades de concessão desta modalidade de aposentadoria: a
primeira é a aposentadoria integral, a qual não leva em conta a idade, e possibilita ao homem
com 35 anos de contribuição e a mulher com 30 anos de contribuição se aposentar. A
segunda hipótese diz respeito à aposentadoria proporcional (que vale para os segurados que
entraram no sistema antes da Emenda Constitucional nº 20/1998), e leva em conta o tempo
de contribuição e a idade do requerente. Assim sendo, o homem deve ter 30 anos de
contribuição e no mínimo 53 anos de idade; já a mulher dever ter 25 anos de contribuição e
no mínimo 40 anos de idade25. Os professores podem se aposentar com 30 (homem) e 25
(mulher) anos de serviços prestados26.
Além do mais, cabe frisar que o fator previdenciário27 incide nesta espécie de
aposentadoria. A Lei nº 13.183/2015 fez substanciais alterações no tocante a este aspecto,
incluindo uma soma entre contribuição e idade e criando assim a regra 85/95 pontos (para
mulher e homem, respectivamente). A legislação ainda prevê o aumento gradativo da
pontuação até o ano de 2026, onde passará a valer a regra de 90/100 pontos (para mulher e
homem, respectivamente)28.
Por fim, a última espécie prevista na legislação é a aposentadoria especial,
regulamentada nos artigos 57 e 58 da Lei nº 8.213/1991. Ela prevê o benefício ao segurado
que tenha sido exposto a agentes nocivos químicos, físicos ou biológicos, estando sujeito a
condições que ponham em risco a sua integridade física ou a saúde, conforme o tempo
previsto para o benefício ser concedido, variando entre 15, 20 ou 25 anos, conforme o caso29.

25
HORVATH JÚNIOR, Miguel. Direito Previdenciário. Barueri, SP: Manole, 2011. p. 52.
26
GLASENAPP, Ricardo Bernd. Direito Previdenciário. São Paulo: Pearson Education do Brasil, 2015. p. 76.
27
Previsto no artigo 29, § 7º da Lei nº 8.213/1991. Trata-se de um cálculo efetuado nas aposentadorias por
tempo de contribuição, incluído pela Lei nº 9.876/1999, em razão que havia grande temor acerca do
desequilíbrio financeiro que este tipo de aposentadoria poderia causar ao sistema previdenciário. Este cálculo
leva em consideração a idade e o tempo de contribuição do requerente da aposentadoria, bem como leva em
conta a expectativa de vida que é fixada através da tábua construída pelo IBGE. SANTOS, Marisa Ferreira
dos. Direito Previdenciário Esquematizado. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2016. Livro em PDF. Disponível em:
<https://forumdeconcursos.com/direito-previdenciario/livros-14/>. Acesso em 07 jul 2018.
28
AMADO, Frederico. Curso de Direito e Processo Previdenciário. 9. ed. Salvador: JusPodvim, 2017. p. 728,
729.
29
SANTORO, José Jayme de Souza. Manual de Direito Previdenciário. 4. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos,
2015. p. 57, 58.
69

Feita esta breve explanação acerca das quatro modalidades de aposentadoria existentes
na seara previdenciária brasileira, passamos a uma análise mais detalhada do instituto da
desaposentação.

1.1 Surgimento

É de grande magnitude trazer a esta pesquisa alguns artigos do texto original da Lei nº
8.213/1991:
Art. 81. Serão devidos pecúlios:
[...]
II - ao segurado aposentado por idade ou por tempo de serviço pelo Regime Geral
de Previdência Social que voltar a exercer atividade abrangida pelo mesmo,
quando dela se afastar;
Art. 82. No caso dos incisos I e II do art. 81, o pecúlio consistirá em pagamento
único de valor correspondente à soma das importâncias relativas às contribuições
do segurado, remuneradas de acordo com o índice de remuneração básica dos
depósitos de poupança com data de aniversário no dia primeiro.30
[...]
Art. 84. O segurado aposentado que receber pecúlio, na forma do art. 82, e voltar
a exercer atividade abrangida pelo Regime Geral de Previdência Social somente
poderá levantar o novo pecúlio após 36 (trinta e seis) meses contados da nova
filiação.31
[...]
Art. 87. O segurado que, tendo direito à aposentadoria por tempo de serviço, optar
pelo prosseguimento na atividade, fará jus ao abono de permanência em
serviço, mensal, correspondendo a 25% (vinte e cinco por cento) dessa
aposentadoria para o segurado com 35 (trinta e cinco) anos ou mais de serviço e
para a segurada com 30 (trinta) anos ou mais de serviço.
Parágrafo único. O abono de permanência em serviço será devido a contar da data
de entrada do requerimento, não variará de acordo com a evolução do salário-de-
contribuição do segurado, será reajustado na forma dos demais benefícios e não se
incorporará, para qualquer efeito, à aposentadoria ou à pensão.32 (grifo do autor).

30
BRASIL. Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991. Dispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social
e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/Ccivil_03/Leis/L8213cons.htm>.
Acesso em: 13 ago 2018.
31
BRASIL. Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991. Dispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social
e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/Ccivil_03/Leis/L8213cons.htm>.
Acesso em: 13 ago 2018.
32
BRASIL. Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991. Dispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social
e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/Ccivil_03/Leis/L8213cons.htm>.
Acesso em: 13 ago 2018.
70

Deste diploma legal extraem-se dois benefícios previdenciários, sendo eles o pecúlio
e o abono de permanência em serviço. Ambos foram extintos após a entrada em vigor da Lei
nº 8.870/1994.
O pecúlio compreendia na devolução, por parte da Previdência Social, de valores de
contribuições que haviam sido feitas pelo aposentado (por idade ou tempo de contribuição),
na hipótese em que o mesmo voltasse a laborar33 após ser jubilado pela autarquia federal.
Já o abono de permanência em serviço consistia em uma porcentagem (25% da
aposentadoria) devida ao segurado que optasse por continuar trabalhando e não se
aposentasse, mesmo tendo alcançado os requisitos mínimos para a aposentadoria por tempo
de serviço, a qual, na época, estipulava a idade 35 anos para o homem e 30 anos para a
mulher34. Vale dizer, esta porcentagem não era incorporada nos valores da aposentadoria
concedida futuramente.
Com o cancelamento destes benefícios, nasceu o argumento de que a Previdência
Social estaria enriquecendo de forma ilícita35 em razão que o aposentado continuaria
contribuindo ao sistema previdenciário brasileiro, apesar de já estar aposentado e, portanto,
não receberia uma contrapartida desse período contributivo vertido.
Neste diapasão, a desaposentação surgiu em meados dos anos 90, após a edição da já
mencionada Lei nº 8.870/1994. Este instituto nada mais é do que a renúncia àquele direito
adquirido pela aposentadoria, de forma que o aposentado utiliza o tempo de contribuição
que já havia sido considerado na concessão do benefício, a fim de efetuar novo cálculo
previdenciário, para, assim, formular um novo pedido de aposentadoria36.
A título de exemplo, supõe-se que um homem aposentou-se por contribuição aos 50
anos, mas seguiu trabalhando e contribuindo até os 65 anos, tendo direito a aposentadoria
por idade. Nesta hipótese, haveria uma renúncia ao primeiro benefício, seriam somados os
tempos de contribuição que ocorreram antes e depois da concessão da aposentadoria e o
cidadão, contando oh tempo total, solicitaria nova aposentadoria, desta vez por idade.

33
AMADO, Frederico. Curso de Direito e Processo Previdenciário. 9. ed. Salvador: JusPodvim, 2017. p. 960
e 961.
34
CASTRO, Carlos Alberto Pereira de; LAZZARI, João Batista. Manual de Direito Previdenciário. 20. ed. Rio
de Janeiro: Forense, 2017. p. 587, 588. Livro em PDF. Disponível em: <https://forumdeconcursos.com/direito-
previdenciario/livros-14/>. Acesso em 07 jul 2018.
35
SARUBO, Vitor André Pereira. Desaposentação no Regime Geral. Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 10 dez.
2012. Disponível em: <http://www.conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=2.41071&seo=1>. Acesso em: 13
ago 2018.
36
GOES, Hugo. Manual de Direito Previdenciário: teoria e questões. 14. ed. Rio de Janeiro: Ferreira, 2018. p.
358.
71

Para arrematar a explicação feita acima, Marisa Ferreira dos Santos 37 ensina:
Não raro, o aposentado continua a trabalhar e participar do custeio do regime
previdenciário, embora sem direito a nenhuma cobertura em razão dessa nova
filiação (art. 18, § 2º, do PBPS). Acresce ao reduzido valor de sua aposentadoria
o da remuneração pela atividade que passa a exercer, e continua apagar
contribuição previdenciária incidente sobre esse valor (novo salário de
contribuição). Com o passar do tempo, acaba concluindo que não pode mais
trabalhar e, como não tem direito à cobertura previdenciária em razão da atividade
que passou a exercer, arca com a perda desses rendimentos.

Frederico Amado38 salienta que a desaposentação produz efeitos benéficos ao


segurado:
Há uma série de hipóteses em que a desaposentação será útil ao segurado. É
possível que o pagamento de novas contribuições previdenciárias após a
aposentadoria eleve a renda mensal inicial do benefício, a depender do seu valor,
com a incidência mais tênue do fator previdenciário, havendo interesse em
renunciar a aposentadoria e requerer uma nova.

No âmbito do RPPS (Regime Próprio de Previdência dos Servidores Públicos), há


previsão referente a esta situação e possui o nome de reversão, como salientam Castro e
Lazzari39:
No âmbito da Administração Pública Federal o assunto é tratado como reversão,
cujo conceito, previsto na redação atual do art. 25 da Lei n. 8.112/1990, é o de
retorno à atividade do servidor aposentado. A reversão está regulada pelo Decreto
n. 3.644, de 30.11.2000. O servidor que retornar à atividade perceberá, em
substituição aos proventos da aposentadoria, a remuneração do cargo que voltar a
exercer e somente terá os proventos calculados com base nas regras atuais se
permanecer pelo menos cinco anos no cargo. A reversão nada mais é do que a
desaposentação, pois possibilita ao servidor contar o tempo anterior para cálculo
da nova aposentaria a ser concedida futuramente.

Mas, na esfera do RGPS, é importante destacar que a desaposentação advém apenas


de discussões jurisprudenciais e doutrinárias.

37
SANTOS, Marisa Ferreira dos. Direito Previdenciário Esquematizado. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2016. p.
425, 426. Livro em PDF. Disponível em: <https://forumdeconcursos.com/direito-previdenciario/livros-14/>.
Acesso em 07 jul 2018.
38
AMADO, Frederico. Curso de Direito e Processo Previdenciário. 9. ed. Salvador: JusPodvim, 2017. p. 1021.
39
CASTRO, Carlos Alberto Pereira de; LAZZARI, João Batista. Manual de Direito Previdenciário. 20. ed. Rio
de Janeiro: Forense, 2017. p. 483, 484 .Livro em PDF. Disponível em: <https://forumdeconcursos.com/direito-
previdenciario/livros-14/>. Acesso em 07 jul 2018.
72

É de suma importância relatar que os debates jurídicos sobre o assunto iniciaram-se no


ano de 199640, quando foi publicado o primeiro artigo tratando sobre o assunto
desaposentação, por Wladimir Novaes Martinez41.
A partir de agora, analisar-se-á o posicionamento de alguns autores no que tange ao
direito a desaposentação.
Iniciamos com Agostinho e Salvador42, os quais entendem que:
A este aspecto, indubitavelmente, o ato positivo da aposentação ganha contornos
jurídicos da disponibilidade, inserindo-se no patrimônio jurídico do tutelado como
de direito disponível, já que sua vontade, justificada pelo seu fim, ganha relevo
dentro da essência da tutela previdenciária.

Qualificando o ato positivo da aposentação, que resulta na aposentadoria, como


um direito disponível, o horizonte norteador da Desaposentação ganha novos ares,
já que o titular de direitos, delibera, a seu exclusivo crivo exercer ou não tal
prerrogativa, que, repita-se, trata-se de direito disponível.

Com o mesmo entendimento posicionam-se Castro e Lazzari43, os quais defendem o


direito a desaposentação. Ademais, Fábio Zambite Ibrahim44 também segue a esteira dos
autores citados.
Por outro lado, Frederico Amado45 apresenta-se contra o instituto, assim como Marisa
Ferreira dos Santos46:
A nosso ver, a desaposentação configura um ônus não previsto em lei, sem
previsão de custeio, que onera todo o sistema previdenciário. [...] Por isso,
concluímos que, à falta de norma específica, a desaposentação não tem guarida no
direito brasileiro.

40
“A Desaposentação já era tratada em 1996 pelo Prof. Wladimir Novaes Martinez, em um artigo intitulado
‘Direito à Desaposentação’, no 9.º Congresso Brasileiro de Previdência Social, pela editora LTr, em São Paulo,
razão de que sua atual notoriedade no seio social, deve ser compreendida à luz da necessidade premente da
própria sociedade, destinatária da tutela jurídica, em buscar mecanismos que visam a evolução e o
aprimoramento dos direitos sociais insculpidos na Lei das Leis”. SALVADOR, Sérgio Henrique;
AGOSTINHO, Theodoro Vicente. Direito Previdenciário [livro eletrônico]. 4. ed. São Paulo: Editora Revista
dos Tribunais, 2017. Sem paginação. Biblioteca Thomson Reuters ProView. Disponível em:
<https://proview.thomsonreuters.com/library.html?sponsor=UNISC-3>.
41
“Creditam-se ao Professor Wladimir Novaes Martinez os primeiros estudos sobre o tema”. SANTOS, Marisa
Ferreira dos. Direito Previdenciário Esquematizado. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 426. Livro em PDF.
Disponível em: <https://forumdeconcursos.com/direito-previdenciario/livros-14/>. Acesso em 07 jul 2018.
42
SALVADOR, Sérgio Henrique; AGOSTINHO, Theodoro Vicente. Direito Previdenciário [livro eletrônico].
4. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017. Sem paginação. Biblioteca Thomson Reuters ProView.
Disponível em: <https://proview.thomsonreuters.com/library.html?sponsor=UNISC-3>.
43
CASTRO, Carlos Alberto Pereira de; LAZZARI, João Batista. Manual de Direito Previdenciário. 20. ed. Rio
de Janeiro: Forense, 2017. p. 485. Livro em PDF. Disponível em: <https://forumdeconcursos.com/direito-
previdenciario/livros-14/>. Acesso em 07 jul 2018.
44
IBRAHIM, Fábio Zambitte. Curso de Direito Previdenciário. 20. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2015. p. 724.
45
AMADO, Frederico. Curso de Direito e Processo Previdenciário. 9. ed. Salvador: JusPodvim, 2017. p. 1023,
1024.
46
SANTOS, Marisa Ferreira dos. Direito Previdenciário Esquematizado. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2016. p.
431. Livro em PDF. Disponível em: <https://forumdeconcursos.com/direito-previdenciario/livros-14/>.
Acesso em 07 jul 2018.
73

Os autores contrários a desaposentação alegam que o instituto acaba por onerar a


Previdência Social. Então este é outro ponto de discussão, se a desaposentação causa ou não
desequilíbrio financeiro ao sistema da Previdência Social.
Novamente, trazemos o posicionamento de Marisa Ferreira dos Santos47, a qual alerta
que a desaposentação é maléfica e prejudica o sistema. Por outro lado, Ibrahim48 afirma que
a desaposentação não traz prejuízo financeiro no sistema de seguridade social.
Como rapidamente pode ser visto, o tema é polêmico. Salienta-se que inexiste norma
legislativa sobre a desaposentação, contudo, este assunto já foi alvo de julgamento com
repercussão geral no STF, no ano de 2016. No tópico a seguir, serão analisados, de forma
detalhada, estes dois aspectos, além de outros pontos relevantes.

1.2 Discussão jurídica e julgamento pelo STF

Não há previsão legal referente à desaposentação até o momento, mas é de grande valia
ressaltar que ocorreram movimentações com relação à inclusão do instituto na esfera legal
previdenciária brasileira por algumas vezes. Entretanto, os dispositivos que tratavam acerca
desta possibilidade foram vetados, sendo que a última tentativa ocorreu na edição da Lei nº
13.183/201549.

47
“Os regimes previdenciários públicos no Brasil adotam o sistema de repartição simples, alimentado pela
solidariedade. Reparte-se o todo pelo número de necessitados de proteção social previdenciária.
A desaposentação poderia ser admitida, talvez, se estivéssemos diante de regime de previdência de
capitalização, em que o segurado financia o próprio benefício numa espécie de fundo de administração, cuja
finalidade seria a concessão de um benefício futuro com base em tais contribuições. Entretanto, o constituinte
de 1988 optou por regime de previdência baseado na solidariedade, em que as contribuições são destinadas à
composição de fundo de custeio geral do sistema, e não a compor fundo privado com contas individuais”.
SANTOS, Marisa Ferreira dos. Direito Previdenciário Esquematizado. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 428.
Livro em PDF. Disponível em: <https://forumdeconcursos.com/direito-previdenciario/livros-14/>. Acesso em
07 jul 2018.
48
“A desaposentação não prejudica o equilíbrio atuarial do sistema, pois as cotizações anteriores à aquisição
do beneficio são atuarialmente imprevistas, não sendo levadas em consideração para a fixação dos requisitos
de elegibilidade do benefício. Se o segurado continua vertendo contribuições após a obtenção do benefício,
não há igualmente vedação atuarial à sua revisão, obedecendo-se assim as premissas jurídicas e atuarias a que
se deve submeter a hermenêutica previdenciária”. IBRAHIM, Fábio Zambitte. Curso de Direito
Previdenciário. 20. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2015. p. 725.
49
BRASIL. Mensagem nº 464, de 04 de novembro de 2015. A Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991, passa a
vigorar com as seguintes alterações: Art. 18. [...] § 2º. O aposentado pelo Regime Geral de Previdência Social
que permanecer em atividade sujeita a esse Regime, ou a ele retornar, não fará jus a outra aposentadoria desse
Regime em consequência do exercício dessa atividade, sendo-lhe assegurado, no entanto, o recálculo de sua
aposentadoria tomando-se por base todo o período contributivo e o valor dos seus salários de contribuição,
respeitando-se o teto máximo pago aos beneficiários do RGPS, de forma a assegurar-lhe a opção pelo valor da
renda mensal que for mais vantajosa.
Art. 25. [...] § 2º. Para requerer o recálculo da renda mensal da aposentadoria, previsto no § 2º do art. 18 desta
Lei, o beneficiário deverá comprovar um período de carência correspondente a, no mínimo, sessenta novas
contribuições mensais.
74

Ibrahim50 frisa que:


a ausência de previsão legal, em verdade, traduz a real possiblidade do indivíduo
em demandar o desfazimento de sua aposentadoria, computando-se assim o tempo
de contribuição anterior com o novo tempo obtido após o ato de concessão do
benefício a ser revertido. O atendimento desta importante demanda social não
produz qualquer desequilíbrio atuarial ou financeiro no sistema protetivo, além de
atender de maneira adequada os interesses dos segurados.

O INSS, indo de encontro ao pensamento do jurista, não concede a desaposentação,


argumentando justamente que falta legislação referente ao assunto. Além do mais, alega que
a lei veda o recebimento de dois benefícios previdenciários51 ao mesmo tempo. Por fim, o
órgão estatal considera que a aposentadoria, após ser concedida, possui caráter irrenunciável,
havendo exceção a esta regra apenas nas hipóteses de anulação por fraude ou qualquer outro
tipo de ilegalidade ao sistema da Previdência Social52.
Como, administrativamente, o INSS não concedia a desaposentação pelos motivos
acima citados, a questão passou a ser alvo de demandas jurídicas oriundas de aposentados
que seguiam trabalhando e que almejavam o aumento em seus rendimentos.
O primeiro registro, no âmbito do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, vem do ano
de 2000, conforme jurisprudência abaixo colacionada:
PREVIDENCIÁRIO. RENÚNCIA À APOSENTADORIA POR TEMPO DE
SERVIÇO, COM EXPEDIÇÃO DE CERTIDÃO DE TEMPO DE SERVIÇO. É
perfeitamente válida a renúncia à aposentadoria, visto que se trata de um direito
patrimonial de caráter disponível, inexistindo qualquer lei que vede o ato praticado
pelo titular do direito. A instituição previdenciária não pode contrapor-se à

Art. 28-A. O recálculo da renda mensal do benefício do aposentado do Regime Geral de Previdência Social,
previsto no § 2º do art. 18 desta Lei, terá como base o salário de benefício calculado na forma dos arts. 29 e
29-B desta Lei. § 1º. Não será admitido recálculo do valor da renda mensal do benefício para segurado
aposentado por invalidez. § 2º. Para o segurado que tenha obtido aposentadoria especial, não será admitido o
recálculo com base em tempo e salário de contribuição decorrente do exercício de atividade prejudicial à saúde
ou à integridade física. § 3º. O recálculo do valor da renda mensal do benefício limitar-se-á ao cômputo de
tempo de contribuição e salários adicionais, não sendo admitida mudança na categoria do benefício
previamente solicitado.
Art. 54. [...] § 1º. Os aposentados por tempo de contribuição, especial e por idade do Regime Geral de
Previdência Social poderão, a qualquer tempo, ressalvado o período de carência previsto no § 2º do art. 25
desta Lei, renunciar ao benefício, ficando assegurada a contagem do tempo de contribuição que serviu de base
para a concessão do benefício. § 2º. Na hipótese prevista no § 1º deste artigo, não serão devolvidos à
Previdência Social os valores mensais percebidos enquanto vigente a aposentadoria inicialmente concedida.
Art. 96. [...] III - não será contado por um regime previdenciário o tempo de contribuição utilizado para fins de
aposentadoria concedida por outro, salvo na hipótese de renúncia ao benefício, prevista no § 1º do art. 54 desta
Lei. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Msg/VEP-464.htm>.
Acesso em 14 ago 2018.
50
IBRAHIM, Fábio Zambitte. Curso de Direito Previdenciário. 20. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2015. p.724.
51
SANTORO, José Jayme de Souza. Manual de Direito Previdenciário. 4. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos,
2015. p. 74.
52
CASTRO, Carlos Alberto Pereira de; LAZZARI, João Batista. Manual de Direito Previdenciário. 20. ed. Rio
de Janeiro: Forense, 2017. p. 484. Livro em PDF. Disponível em: <https://forumdeconcursos.com/direito-
previdenciario/livros-14/>. Acesso em 07 jul 2018.
75

renúncia para compelir o segurado a continuar aposentado, visto que carece de


interesse. Apelação e remessa oficial desprovidas. 53

O Egrégio Tribunal posicionou-se favorável ao instituto da desaposentação. Em 2005


o STJ foi ao encontro do que havia sido decidido pelo TRF454, conforme pode ser analisado
por meio das jurisprudências abaixo anotadas:
RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA.
APOSENTADORIA. RENÚNCIA. POSSIBILIDADE. CONTAGEM DO
TEMPO DE SERVIÇO. RECURSO PROVIDO.
1. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça tem reiteradamente se firmado
no sentido de que é plenamente possível a renúncia de benefício previdenciário,
no caso, a aposentadoria, por ser este um direito patrimonial disponível.
2. O tempo de serviço que foi utilizado para a concessão da aposentadoria pode
ser novamente contado e aproveitado para fins de concessão de uma posterior
aposentadoria, num outro cargo ou regime previdenciário.
3. Recurso provido55.
PREVIDENCIÁRIO. RECURSO ESPECIAL. RENÚNCIA A BENEFÍCIO
PREVIDENCIÁRIO. POSSIBILIDADE. DIREITO PATRIMONIAL
DISPONÍVEL. ABDICAÇÃO DE APOSENTADORIA POR IDADE RURAL
PARA CONCESSÃO DE APOSENTADORIA POR IDADE URBANA.
1. Tratando-se de direito patrimonial disponível, é cabível a renúncia aos
benefícios previdenciários. Precedentes.
2. Faz jus o Autor à renúncia da aposentadoria que atualmente percebe –
aposentadoria por idade, na qualidade de rurícola – para o recebimento de outra
mais vantajosa – aposentadoria por idade, de natureza urbana.
3. Recurso especial conhecido e provido56.

Apesar de reconhecer a renúncia da aposentadoria para o período ser somado a futuro


pedido, o STJ entendia que o aposentado deveria devolver os valores referentes ao benefício
cancelado:

53
BRASIL. Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Apelação Cível 2000.04.01.079647-2, do Tribunal de
Justiça do Paraná, PR, 06 de outubro de 2015, Sexta Turma, Rel. João Surreaux Chagas. Disponível em:
<https://jurisprudencia.trf4.jus.br/pesquisa/imprimir.php?selecionados=%27TRF400078020%27&pp>.
Acesso em: 22 ago 2018.
54
“Em plena percepção acerca desta notória disponibilidade da aposentadoria previdenciária, o Colendo
Superior Tribunal de Justiça já há alguns anos, através de suas ínclitas duas Turmas Julgadoras da matéria, já
assentou acerca deste prisma, ou seja, o Guardião da Legislação Federal, englobando a análise de todos os
diplomas jurídicos previdenciários correlatos, através de vários e reiterados julgados asseverou sobre a
disponibilidade jurídica da prestação previdenciária”. SALVADOR, Sérgio Henrique; AGOSTINHO,
Theodoro Vicente. Direito Previdenciário [livro eletrônico]. 4. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
2017. Sem paginação. Biblioteca Thomson Reuters ProView. Disponível em:
<https://proview.thomsonreuters.com/library.html?sponsor=UNISC-3>.
55
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso em Mandado de Segurança 14.624 (2002/0043309-8), do
Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, RS, 30 de junho de 2005, Sexta Turma, Rel. Min. Hélio Quaglia
Barbosa. Disponível em:
<https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=562867&num_r
egistro=200200433098&data=20050815&formato=HTML>. Acesso em: 22 ago 2018.
56
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 310.884 (2001/0031053-2), do Tribunal de
Regional Federal da 4ª Região, RS, 23 de agosto de 2005, Quinta Turma, Rel. Min. Laurita Vaz. Disponível
em:
<https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=573654&num_r
egistro=200100310532&data=20050926&formato=HTML>. Acesso em: 22 ago 2018.
76

AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO ESPECIAL. RENÚNCIA À


APOSENTADORIA PELO REGIME GERAL DE PREVIDÊNCIA SOCIAL
PARA FINS DE FUTURA CONCESSÃO DE APOSENTADORIA POR
OUTRO REGIME DE PREVIDÊNCIA. DEVOLUÇÃO DOS PROVENTOS
RECEBIDOS.
1. Mantido o acórdão do Tribunal Regional que assegurou ao recorrido o direito
de renunciar à aposentadoria que goza pelo Regime Geral de Previdência Social
para obter certidão de tempo de serviço para fins de averbação e futura concessão
de aposentadoria por outro regime de previdência, mediante a devolução dos
proventos já recebidos, nada há a dispor acerca da pretensão de repetição.
2. Agravo regimental improvido57.

Entretanto, o STJ, em julgamento de recursos repetitivos datado de 2013, firmou o


entendimento de que não havia obrigatoriedade de devolução dos valores auferidos na
aposentadoria pretérita:
RECURSO ESPECIAL. MATÉRIA REPETITIVA. ART. 543-C DO CPC E
RESOLUÇÃO STJ 8/2008. RECURSO REPRESENTATIVO DE
CONTROVÉRSIA. DESAPOSENTAÇÃO E REAPOSENTAÇÃO. RENÚNCIA
A APOSENTADORIA. CONCESSÃO DE NOVO E POSTERIOR
JUBILAMENTO. DEVOLUÇÃO DE VALORES. DESNECESSIDADE.
1. Trata-se de Recursos Especiais com intuito, por parte do INSS, de declarar
impossibilidade de renúncia a aposentadoria e, por parte do segurado, de dispensa
de devolução de valores recebidos de aposentadoria a que pretende abdicar.
2. A pretensão do segurado consiste em renunciar à aposentadoria concedida para
computar período contributivo utilizado, conjuntamente com os salários de
contribuição da atividade em que permaneceu trabalhando, para a concessão de
posterior e nova aposentação.
3. Os benefícios previdenciários são direitos patrimoniais disponíveis e, portanto,
suscetíveis de desistência pelos seus titulares, prescindindo-se da devolução dos
valores recebidos da aposentadoria a que o segurado deseja preterir para a
concessão de novo e posterior jubilamento. Precedentes do STJ.
4. Ressalva do entendimento pessoal do Relator quanto à necessidade de
devolução dos valores para a reaposentação, conforme votos vencidos proferidos
no REsp 1.298.391/RS; nos Agravos Regimentais nos REsps 1.321.667/PR,
1.305.351/RS, 1.321.667/PR, 1.323.464/RS, 1.324.193/PR, 1.324.603/RS,
1.325.300/SC, 1.305.738/RS; e no AgRg no AREsp 103.509/PE.
5. No caso concreto, o Tribunal de origem reconheceu o direito à desaposentação,
mas condicionou posterior aposentadoria ao ressarcimento dos valores recebidos
do benefício anterior, razão por que deve ser afastada a imposição de devolução.
6. Recurso Especial do INSS não provido, e Recurso Especial do segurado
provido. Acórdão submetido ao regime do art. 543-C do CPC e da Resolução
8/2008 do STJ.58

57
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental no Recurso Especial 600.419 (2003/0184621-
1), do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, RS, 29 de novembro de 2005, Sexta Turma, Rel. Min. Hamilton
Carvalhido. Disponível em:
<https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=595510&num_r
egistro=200301846211&data=20060206&formato=HTML>. Acesso em: 22 ago 2018.
58
BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1.334.488 (2012/0146387-1), do Tribunal Regional
federal da 4ª Região, SC, 08 de maio de 2013, S1 – Primeira Seção, Rel Min. Herman Benjamin. Disponível
em:
<https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=1186178&num
_registro=201201463871&data=20130514&formato=HTML>. Acesso em: 22 ago 2018.
77

Desta forma, em 12 de junho de 2013, a primeira seção do STJ, através do


Informativo nº 0520, entendeu que:
DIREITO PREVIDENCIÁRIO. DESAPOSENTAÇÃO E DESNECESSIDADE
DE DEVOLUÇÃO DOS VALORES RECEBIDOS EM RAZÃO DA
APOSENTADORIA ANTERIOR. RECURSO REPETITIVO (ART. 543-C DO
CPC E RES. 8/2008-STJ).
É possível a renúncia à aposentadoria por tempo de serviço (desaposentação)
objetivando a concessão de novo benefício mais vantajoso da mesma natureza
(reaposentação), com o cômputo dos salários de contribuição posteriores à
aposentadoria anterior, não sendo exigível, nesse caso, a devolução dos valores
recebidos em razão da aposentadoria anterior. Precedentes citados: AgRg no REsp
1.270.606-RS, Sexta Turma, DJe 12/4/2013; AgRg no REsp 1.321.325-RS,
Segunda Turma, DJe 20/8/2012, e AgRg no REsp 1.255.835-PR, Quinta Turma,
DJe 12/9/2012. REsp 1.334.488-SC, Rel. Min. Herman Benjamin, julgado em
8/5/2013.59

Por outro lado, o Ministro Herman Benjamin, em seu voto no julgamento acima
referido, ressaltou que a devolução dos valores era importante, pois, desta forma, a
aposentadoria antiga seria desfeita por completo e, assim, ocorreria um equilíbrio financeiro
na Previdência Social60.
Na esfera da Justiça Federal, assim como o entendimento do ministro, o TRF4 defendia
que os valores da aposentadoria renunciada deveriam ser devolvidos:
PREVIDENCIÁRIO. PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO RETIDO. REMESSA
OFICIAL AFASTADA. PEDIDO DE DESAPOSENTAÇÃO NEGADO
ADMINISTRATIVAMENTE. AUSÊNCIA DE NORMA IMPEDITIVA.
DIREITO DISPONÍVEL. DEVOLUÇÃO DOS MONTANTES RECEBIDOS
EM FUNÇÃO DO BENEFÍCIO ANTERIOR NECESSÁRIA.

59
BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Informativo nº 0520, de 12 de junho de 2013. Disponível em:
<https://ww2.stj.jus.br/jurisprudencia/externo/informativo/?acao=pesquisarumaedicao&livre=@cod=%27052
0%27>. Acesso em: 22 ago 2018.
60
Nesse ponto é importante resgatar o tema sobre a possibilidade de renúncia à aposentadoria para afastar a
alegada violação, invocada pelo INSS, do art. 18, § 2º, da Lei 8.213⁄1991. Este dispositivo apenas veda a
concessão de prestação previdenciária aos segurados que estejam em gozo de aposentadoria, não sendo o caso
quando esta deixa de existir pelo seu completo desfazimento. [...] Tal premissa denota o quanto a devolução
dos valores recebidos pela aposentadoria objeto da renúncia está relacionada ao objetivo de obter nova e
posterior aposentação. Primeiramente porque, se o aposentado que volta a trabalhar renuncia a tal benefício e
não devolve os valores que recebeu, não ocorre o desfazimento completo do ato e, por conseguinte, caracteriza-
se a utilização das contribuições para conceder prestação previdenciária não prevista (a nova aposentadoria)
no já mencionado art. 18, § 2º. Além disso, ressalto relevante aspecto no sentido de que o retorno ao estado
inicial das partes envolve também a preservação da harmonia entre o custeio e as coberturas do seguro social.
É princípio básico de manutenção do RGPS o equilíbrio atuarial entre o que é arrecadado e o contexto legal
das prestações previdenciárias. Não é diferente para o benefício de aposentadoria, pois, sob a visão do segurado,
ele contribui por um determinado tempo para custear um salário de benefício proporcional ao valor da base de
cálculo do período contributivo. Evidentemente que o RGPS é solidário e é provido por diversas fontes de
custeio, mas a análise apartada da parte que cabe ao segurado pode caracterizar, por si só, desequilíbrio atuarial.
BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1.334.488 (2012/0146387-1), do Tribunal Regional
federal da 4ª Região, SC, 08 de maio de 2013, S1 – Primeira Seção, Rel. Min. Herman Benjamin. Disponível
em:
<https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=1186178&num
_registro=201201463871&data=20130514&formato=HTML>. Acesso em: 22 ago 2018.
78

1. A concessão da assistência judiciária gratuita não está ligada a comprovação de


miserabilidade do postulante, mas sim a impossibilidade deste arcar com os custos
e verba honorária, sem prejuízo ao atendimento de suas necessidades básicas e de
sua família, sendo certo que o ônus da suficiência de recursos cabe a parte
contrária.
2. Não tendo o decisório hostilizado reconhecido obrigação de conteúdo
pecuniário e sendo o valor atribuído à causa inferior ao limite de sessenta salários
mínimos estabelecido pela legislação, não se conhece do reexame necessário.
3. É perfeitamente válida a renúncia à aposentadoria, visto que se trata de um
direito patrimonial de caráter disponível, inexistindo qualquer lei que vede o ato
praticado pelo titular do direito. A instituição previdenciária não pode se contrapor
à renúncia para compelir o segurado a continuar aposentado, visto que carece de
interesse.
4. Se o segurado pretende renunciar à aposentadoria por tempo de serviço para
postular novo jubilamento, com a contagem do tempo de serviço em que esteve
exercendo atividade vinculada ao RGPS e concomitantemente à percepção dos
proventos de aposentadoria, os valores recebidos da autarquia previdenciária a
título de amparo deverão ser integralmente restituídos.
5. Declaração de inconstitucionalidade do parágrafo 2º do art. 18 da Lei 8.213/91
rejeitada.61

Contudo, como a demanda de processos relacionados à desaposentação aumentou


consideravelmente ao longo dos anos, a Suprema Corte brasileira passou a tratar deste
instituto em julgamento com repercussão geral, quer dizer, o que fosse definido pelo Colendo
Tribunal serviria como um norteador para os demais processos acerca do assunto.
Então, em 2014 iniciou-se o debate no STF acerca da desaposentação. O julgamento
foi finalizado apenas no mês de outubro do ano de 2016, pois a ministra Rosa Weber havia
pedido vista.
Por sete votos a quatro prevaleceu o entendimento de que a desaposentação é inviável
sem previsão legal62, devendo, portanto, ser criada uma lei tratando sobre o tema. Votaram
a favor da tese vencedora os então ministros Dias Toffoli, Teori Zavascki, Edson Fachin,
Luiz Fux, Gilmar Mendes, Celso de Mello e Cármen Lúcia. Os ministros que votaram a
favor da desaposentação foram Luís Roberto Barroso, Rosa Weber, Ricardo Lewandowski
e Marco Aurélio.

61
BRASIL. Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Apelação Cível 2000.71.00.009978-1, da Justiça Federal
do Rio Grande do Sul, RS, 01 de novembro de 2016, Sexta Turma, Rel. João Batista Pinto Silveira. Disponível
em:
<https://www2.trf4.jus.br/trf4/processos/visualizar_documento_gedpro.php?local=trf4&documento=1213654
&hash=9963cbb60717a0e6db957f799ead4fce>. Acesso em: 22 ago 2018.
62
NOTÍCIAS STF. STF considera inviável recálculo de aposentadoria por desaposentação sem previsão em
lei. Disponível em <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=328199>. Acesso
em 19 ago 2018.
79

Sobre a decisão proferida pelo STF, Castro e Lazzari63 referem que “Trata-se de
verdadeira injustiça social com o aposentado que possui benefício de valor muito aquém de
suas necessidades e mesmo comprovando novas contribuições não consegue o
reconhecimento à devida recomposição da sua renda mensal”. Na mesma linha
posicionaram-se Salvador e Agostinho64.
Mas ainda existem debates acerca da devolução dos valores ao INSS por parte
daqueles que foram beneficiados com a desaposentação antes da decisão do STF65, pois a
Suprema Corte não se manifestou na ocasião.
Vale ressaltar que em julho de 2018 a Previdência Social passou a fazer descontos nos
valores das aposentadorias de alguns beneficiários, enquanto outros passaram a receber o
valor da aposentadoria antiga66.
Neste diapasão, Marisa Helena dos Santos67 reitera que “Somente a lei poderá
dispensar o beneficiado da devolução dos proventos recebidos quando aposentado. E, caso
prevaleça a obrigatoriedade da restituição, somente lei poderá estabelecer a forma de
cálculo”.
Após o julgamento de 2016, viu-se o nascimento de um novo instituto no direito
previdenciário brasileiro, a reaposentação, a qual se analisará no próximo capítulo.

63
CASTRO, Carlos Alberto Pereira de; LAZZARI, João Batista. Manual de Direito Previdenciário. 20. ed. Rio
de Janeiro: Forense, 2017. p. 485. Livro em PDF. Disponível em: <https://forumdeconcursos.com/direito-
previdenciario/livros-14/>.
64
“esqueceu o STF que em maio de 2013, o Colendo STJ, no sistema de Recursos Repetitivos, assentou a total
viabilidade da Desaposentação, inclusive registrando acerca da desnecessidade de devolução do que foi até
então auferido, caso esse de grande repercussão no mundo jurídico, quando a 1.ª Corte do Tribunal da
Cidadania apreciou o REsp 1.334.488, de Relatoria do Min. Herman Benjamin. Portanto, a aparente
complexidade da matéria em discussão, ganha contornos jurídicos claros e esclarecedores quando a aplicação
do instituto da Desaposentação é aferida mediante a inserção imprescindível de valores constitucionais, já que
são alvo e razão de existência da proteção previdenciária, merecendo sempre, análise acurada pelo operador
do direito, face aos postulados inseridos na ‘Lei das Leis’, eleitos pelos beneficiários da tutela estatal como
primordiais à consecução dos princípios basilares para a constituição de uma Sociedade Livre, Justa e Solidária,
o que o STF, infelizmente não fez”. SALVADOR, Sérgio Henrique; AGOSTINHO, Theodoro Vicente. Direito
Previdenciário [livro eletrônico]. 4. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017. Sem paginação.
Biblioteca Thomson Reuters ProView. Disponível em:
<https://proview.thomsonreuters.com/library.html?sponsor=UNISC-3>.
65
“Mas um ponto ainda não foi tratado pelo STF nos dias 26 e 27 de outubro de 2016. Trata-se da eficácia da
revogação das antecipações de tutela, se retroativas (o segurado precisará devolver as parcelas percebidas) ou
prospectivas (sem restituição), o que poderá ser deduzido pelas partes em sede de embargos de declaração”.
AMADO, Frederico. Curso de Direito e Processo Previdenciário. 9. ed. Salvador: JusPodvim, 2017. p. 1027.
66
G1 ECONOMIA. INSS cobra segurados que receberam a desaposentação. Disponível em:
<https://g1.globo.com/economia/noticia/2018/07/20/inss-cobra-segurados-que-receberam-a-
desaposentacao.ghtml>. Acesso em: 21 ago 2018.
67
SANTOS, Marisa Ferreira dos. Direito Previdenciário Esquematizado. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2016. p.
431. Livro em PDF. Disponível em: <https://forumdeconcursos.com/direito-previdenciario/livros-14/>.
Acesso em 07 jul 2018.
80

2 REAPOSENTAÇÃO

Para a análise deste novo instituto na esfera previdenciária brasileira, é importante


ressaltar as quatro espécies de aposentadoria existentes no Brasil, quais sejam: aposentadoria
por invalidez, aposentadoria por idade, aposentadoria por tempo de contribuição e
aposentadoria especial. Estas espécies foram abordadas no capítulo anterior de forma mais
detalhada.
Ainda do ano de 2010 surge a primeira jurisprudência no tocante a este instituto,
oriunda do Egrégio Tribunal Regional Federal da 4ª Região:

QUESTÃO DE ORDEM. PREVIDENCIÁRIO. CONSTITUCIONAL.


ARGUIÇÃO DE INCONSTUCIONALIDADE. ART. 18, § 2º, DA LEI 8.213/91.
APOSENTADORIA POR IDADE. NOVO IMPLEMENTO DA CARÊNCIA.
DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE SEM REDUÇÃO DE
TEXTO. REMESSA À CORTE ESPECIAL DESTE TRIBUNAL.
1. Precedentes desta Casa e do Superior Tribunal de Justiça têm afirmado a
natureza jurídica patrimonial do benefício previdenciário. Nessa linha, nada obsta
em princípio a renúncia. Caracterizada a disponibilidade do direito, a aceitação da
outra pessoa envolvida na relação jurídica (no caso o INSS) é irrelevante.
2. De acordo a sistemática vigente, o segurado aposentado que continuar a exercer
atividade vinculada ao Regime Geral de Previdência Social deve recolher as
contribuições previdenciárias correspondentes, fazendo jus apenas ao salário-
família e à reabilitação profissional, quando empregado, nos termos do art. 18, §
2º, da Lei nº 8.213/91. Inviável em princípio, pois, a concessão de nova
aposentadoria com aproveitamento de tempo posterior à inativação.
3. Para a concessão de aposentadoria por idade urbana devem ser preenchidos dois
requisitos: a) idade mínima (65 anos para o homem e 60 anos para a mulher) e b)
carência - recolhimento mínimo de contribuições (sessenta na vigência da
CLPS/84 ou no regime da LBPS, de acordo com a tabela do art. 142 da Lei
8.213/91).
4. Não se exige o preenchimento simultâneo dos requisitos etário e de carência
para a concessão da aposentadoria, visto que a condição essencial para tanto é o
suporte contributivo correspondente. Precedentes do Egrégio STJ, devendo a
carência observar a data em que completada a idade mínima.
5. O idoso que preenche o requisito carência para a obtenção de aposentadoria
considerando somente o cômputo de contribuições vertidas após a obtenção de
aposentadoria por tempo de serviço/contribuição não pode ser discriminado pelo
fato de ter contribuído; sendo a aposentadoria por idade estabelecida
fundamentalmente em bases atuariais, a ele deve a lei, pena de
inconstitucionalidade, reservar tratamento idêntico àquele que ingressou no RGPS
mais tarde.
6. Sendo inquestionável a natureza atuarial do requisito carência exigido para a
concessão da aposentadoria urbana por idade, fere a isonomia negar o direito ao
segurado que, a despeito de já aposentado, cumpre integralmente a carência após
o retorno à atividade. Não tivesse ele exercido qualquer atividade anteriormente,
faria jus ao benefício. Assim, não pode ser prejudicado pelo fato de, depois de
aposentado, ter novamente cumprido todos os requisitos para uma nova inativação.
7. É de se afirmar a inconstitucionalidade do § 2º do artigo 18 da Lei 8.213/91,
sem redução de texto, para que sua aplicação seja excluída nos casos em que o
segurado, desprezadas as contribuições anteriores, implementa integralmente os
requisitos para a obtenção de nova aposentadoria após a primeira inativação.
81

8. O § 2º do artigo 18 da Lei nº 8.213/91 claramente estabelece que o segurado


que permanecer em atividade não fará jus a prestação alguma da Previdência
Social, exceto ao salário-família e à reabilitação profissional. A interpretação
conforme a constituição não tem cabimento quando conduz a entendimento que
contrarie sentido expresso da lei. A hipótese, pois, é de reconhecimento de
inconstitucionalidade sem redução de texto. 9. Remessa do feito à Corte Especial,
para que o incidente de inconstitucionalidade seja processado e julgado nos termos
do disposto no art. 4º, § 1º, inc. III, do Regimento Interno desta Corte. 68

A reaposentação caracteriza-se pelo aproveitamento do período de contribuição apenas


após o beneficiário da Previdência Social ter sido contemplado com a primeira
aposentadoria. Desta forma, descartam-se todas as contribuições vertentes na primeira
concessão, servindo para cálculo apenas o período contributivo que ocorreu depois da
concessão do benefício69.
A título de exemplo, um homem que havia se aposentado por contribuição com 50
anos seguiu trabalhando e, ao alcançar os 65 anos, passou a ter direito a aposentadoria por
idade, tendo em vista que já contribuiu o período relativo a carência do segundo benefício.
Nesta ocasião, haverá uma renúncia ao direito da primeira aposentadoria e seria solicitado
um novo benefício, calculando-se apenas o período após a concessão da aposentadoria.
Marisa Ferreira dos Santos aduz que esta situação é válida no ordenamento jurídico
brasileiro, tendo em vista ser um direito para o aposentado optar pelo benefício que se tornar
mais vantajoso. A autora salienta que esta situação não se trata de uma desaposentação, tendo
em vista que nada da primeira aposentadoria será aproveitado e não haverá o pedido de
revisão, mas sim de um novo benefício. Por fim, refere que a proibição de renúncia às
aposentadorias por idade, tempo de contribuição e especial deve ser feita por lei e não por
decreto, como ocorre atualmente70.
Castro e Lazzari71 também defendem o sistema de reaposentação, acrescentando que
“Em muitos casos esta solução poderia ser mais adequada e vantajosa do que a

68
BRASIL. Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Arguição de Inconstitucionalidade 2009.72.00.009007-2,
da Justiça Federal de Santa Catarina, SC, 30 de setembro de 2010, Corte Especial, Rel. Ricardo Teixeira do
Valle Pereira. Disponível em:
<https://jurisprudencia.trf4.jus.br/pesquisa/inteiro_teor.php?orgao=1&documento=4077658>. Acesso em:
05 set 2018.
69
AMADO, Frederico. Curso de Direito e Processo Previdenciário. 9. ed. Salvador: JusPodvim, 2017. p.
1027,1028.
70
SANTOS, Marisa Ferreira dos. Direito Previdenciário Esquematizado. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2016. p.
433, 434. Livro em PDF. Disponível em: <https://forumdeconcursos.com/direito-previdenciario/livros-14/>.
Acesso em 07 jul 2018.
71
CASTRO, Carlos Alberto Pereira de; LAZZARI, João Batista. Manual de Direito Previdenciário. 20. ed. Rio
de Janeiro: Forense, 2017. p. 485. Livro em PDF. Disponível em: <https://forumdeconcursos.com/direito-
previdenciario/livros-14/>. Acesso em 07 jul 2018.
82

desaposentação evitando questionamentos sobre a necessidade de devolução das parcelas


recebidas do benefício a ser renunciado”.
O tema é recente e produz os primeiros efeitos jurídicos e debates jurisprudenciais,
devendo, nos próximos anos, ser alvo de inúmeras discussões sobre sua regularidade ou não.
Cabe ressaltar que este instituto, assim como a desaposentação, não possui previsão legal,
tendo nascido da jurisprudência e doutrina. Outro ponto interessante a ser destacado é que
ainda existe pouca doutrina acerca do assunto, pois o tema é recente na seara jurídica
previdenciária brasileira.

2.1 Análise da Situação Atual

Em outubro de 2016 o STF posicionou-se contrário a desaposentação, sob o argumento


de que não havia previsão legal para tal. A partir de 2017 um novo instituto ganhou força
após o julgamento da Suprema Corte brasileira, a reaposentação72. A também chamada
“nova aposentação” tem sido aceita em juízes de primeira instância73 e alguns tribunais
brasileiros74, conforme pode ser visto em recente decisão do Tribunal Regional Federal da
4ª Região:
PREVIDENCIÁRIO. RENÚNCIA À APOSENTADORIA PARA
RECEBIMENTO DE NOVO BENEFÍCIO. APOSENTADORIA POR IDADE
URBANA COM BASE NOS RECOLHIMENTOS POSTERIORES À
INATIVAÇÃO. POSSIBILIDADE. APOSENTADORIA POR IDADE
URBANA. REQUISITOS PREENCHIDOS. ART. 497 DO NCPC.
1. A concessão de aposentadoria por idade urbana depende da implementação de
requisito etário - haver completado 65 (sessenta e cinco) anos de idade, se homem,
e 60 (sessenta) anos de idade, se mulher, e a carência definida em lei. Requisitos
preenchidos.
2. Possível a outorga de aposentadoria por idade, com base apenas em tempo de
contribuição posterior à primeira inativação, que perfaz, como se extrai dos autos,
mais de 180 contribuições, tendo o autor implementado também o requisito etário.
3. Considerando os termos do art. 497 do CPC/2015, que repete dispositivo
constante do art. 461 do Código de Processo Civil/1973, e o fato de que, em
princípio, a presente decisão não está sujeita a recurso com efeito suspensivo
(Questão de Ordem na AC nº 2002.71.00.050349-7/RS - Rel. p/ acórdão Desemb.
Federal Celso Kipper, julgado em 09/08/2007 - 3.ª Seção), o presente julgado

72
JORNAL O GLOBO. Após ‘desaposentação’ ser proibida, Justiça dá aval a ‘reaposentação’. Disponível em
<https://oglobo.globo.com/economia/apos-desaposentacao-ser-proibida-justica-da-aval-reaposentacao-
22121491>. Acesso em: 21 ago 2018.
73
VARGAS E NAVARRO ADVOGADOS ASSOCIADOS. Justiça do Rio reconhece direito à reaposentação.
Disponível em: <https://www.vargasenavarro.com.br/single-post/2018/03/08/Justi%C3%A7a-do-Rio-
reconhece-direito-%C3%A0-Reaposenta%C3%A7%C3%A3o>. Acesso em: 05 set 2018.
74
GAÚCHAZH. Conheça 13 casos que possibilitam pedir revisão ao INSS para melhorar o valor da
aposentadoria. Disponível em: <https://gauchazh.clicrbs.com.br/economia/dicas-de-
economia/noticia/2018/04/conheca-13-casos-que-possibilitam-pedir-revisao-ao-inss-para-melhorar-o-valor-
da-aposentadoria-cjfk1sa9a055c01phm2i3foyy.html>. Acesso em: 21 ago 2018.
83

deverá ser cumprido de imediato quanto à implantação do benefício postulado, no


prazo de 45 dias.75
No entanto, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região posicionou-se contrário ao
instituto recém-nascido:

PROCESSUAL CIVIL. PREVIDENCIÁRIO. AÇÃO RESCISÓRIA.


DESAPOSENTAÇÃO. UTILIZAÇÃO DO TEMPO DE CONTRIBUIÇÃO EM
OUTRO BENEFÍCIO. IMPOSSIBILIDADE. ART. 18, § 2º, DA LEI N. 8.213/91.
NÃO INCIDÊNCIA DA SÚMULA 343 DO STF. MATÉRIA
CONSTITUCIONAL. JURISPRUDÊNCIA ATUALIZADA DO STF. RE N.
661.256/DF. REPERCUSSÃO GERAL. IRREPETIBILIDADE DOS VALORES
PAGOS. VERBA ALIMENTAR. JUÍZO RESCINDENDO PROCEDENTE.
1. Pretende o INSS a rescisão de acórdão prolatado nos autos da Apelação Cível
n. 0021188-18.2009.4.01.3800, pela Primeira Turma desta Corte Regional, que
manteve a sentença que julgou procedente o pedido de renúncia e cancelamento
de benefício concedido pela Previdência Social, com o objetivo de concessão de
novo benefício, computando-se o período laborado após a primeira aposentadoria.
2. Por se tratar de matéria constitucional, deve ser afastado o óbice da Súmula 343
do Supremo Tribunal Federal, além do que a questão trazida em juízo foi apreciada
em sede de repercussão geral pela Corte Suprema. Em tema constitucional, o STF,
na Súmula 343, orienta que, para os fins de ação rescisória por alegada violação
ao ordenamento jurídico, apenas não prevalecerá sua orientação definitiva ulterior
se, porventura, o acórdão rescindendo se fincara em anterior orientação expressa
da própria Corte Maior noutra direção.
3. O Supremo Tribunal Federal, em decisão proferida no RE 661.256/DF julgado
pelo regime de repercussão geral, consolidou o entendimento de que "No âmbito
do Regime Geral de Previdência Social (RGPS), somente lei pode criar benefícios
e vantagens previdenciárias, não havendo, por ora, previsão legal do direito à
'desaposentação', sendo constitucional a regra do art. 18, § 2º, da Lei nº 8.213/91".
4. As decisões judiciais, inclusive aquelas já transitadas em julgado, devem se
curvar à supremacia do texto constitucional, de sorte que, obedecido o prazo bienal
para a interposição em face do princípio da segurança jurídica, apresenta-se a ação
rescisória como veículo hábil à desconstituição de decisões que não prestem
observância à Constituição e, por consequência, ao acórdão da Suprema Corte.
5. A jurisprudência desta Turma, alinhada com a orientação da Corte Suprema,
tem entendimento de que eventuais valores pagos em virtude de decisão liminar
são irrepetíveis, considerando-se a hipossuficiência do segurado, o fato de ter
recebido de boa-fé o seu benefício por decisão judicial fundamentada, bem assim
a natureza alimentar da referida prestação.
6. Ação rescisória procedente para desconstituir o acórdão rescindendo proferido
pela 1ª Turma na Apelação Cível nº 0021188-18.2009.4.01.3800 e, em novo
julgamento, dar provimento à apelação do INSS e à remessa oficial, para,
reformando a sentença, julgar improcedente o pedido. Apelo da parte impetrante
prejudicado.
7. Condenação da parte ré, na ação rescisória, no pagamento de custas e honorários
advocatícios, estes fixados em 10% (dez por cento) sobre o valor atualizado da
causa, ressalvada, nos termos do art. 98, §§2º e 3º do NCPC, a condição suspensiva
de exigibilidade a que faz jus por litigar como beneficiária da justiça gratuita. 76

75
BRASIL. Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Apelação Cível 5007217-74.2016.4.04.9999, da Justiça
Federal do Paraná, PR, juntado aos autos em 12 de junho de 2017, Sexta Turma, Rel. João Batista Pinto
Silveira. Disponível em:
<https://jurisprudencia.trf4.jus.br/pesquisa/inteiro_teor.php?orgao=1&documento=8998752>. Acesso em:
22 ago 2018.
76
BRASIL. Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Ação Rescisória 0052367-74.2016.4.01.0000, da Justiça
Federal do Distrito Federal, DF, 30 de maio de 2018, Primeira Seção, Rel. João Luiz de Sousa. . Disponível
em: <https://www2.cjf.jus.br/jurisprudencia/trf1/index.xhtml;jsessionid=C4AUD7KZHAvdPAZG-
84

O posicionamento do Egrégio Tribunal vai ao encontro da decisão tomada pelo STF


no mesmo julgamento que tratou acerca da desaposentação, no ano de 2016. Segundo a
Suprema Corte, a reaposentação seria uma espécie de desaposentação e também carece de
previsão legal.
Sobre o julgamento da Suprema Corte no que tange ao instituto, Castro e Lazzari77
entendem que:
Essa decisão do STF foi equivocada, pois a tese aqui tratada tem por finalidade
preservar o direito de opção pelo melhor benefício, tendo em vista que o segurado
não utiliza o tempo de contribuição anterior ao primeiro benefício, mas apenas o
que verteu após o jubilamento.

Apesar de a reaposentação, por meio da decisão do STF, demonstrar-se inviável por


falta de previsão legal, é importante destacar que há embargos de declaração a espera de
julgamento na Suprema Corte, solicitando maiores esclarecimentos acerca do tema78. No
entanto, como pode ser visto, a reaposentação está sendo aceita por alguns tribunais e no
momento há divergência jurisprudencial acerca da matéria, devendo o assunto ser alvo de
debates jurídicos e doutrinários nos próximos anos.

CONCLUSÃO

A elaboração desta monografia acerca dos institutos da desaposentação e da


reaposentação foi de grande importância. Primeiro, pois a reaposentação é assunto recente,
que se encontra em ebulição da esfera jurídica previdenciária brasileira e, em segundo lugar,
porque ainda existem poucas referências e discussões acerca do tema, sendo este um assunto
a ser tratado por juristas e doutrinadores, em jurisprudências, julgados e também em
monografias, dissertações, teses, trabalhos de conclusão e afins.
Sobre a previdência social na Carta Magna, é de grande valia ressaltar que o
constituinte optou por separar os servidores públicos dos demais trabalhadores,
estabelecendo o RGPS e o RPPS, respectivamente. Analisando apenas sob o manto da
desaposentação, esta separação acabou sendo equivocada, pois os regimes próprios possuem

38oRDXaCnmMnAC1fYNHTTbM.taturana04-hc02:juris-trf1_node01>, por meio de pesquisa avançada por


número do processo (0052367-74.2016.4.01.0000). Acesso em: 05 set 2018.
77
CASTRO, Carlos Alberto Pereira de; LAZZARI, João Batista. Manual de Direito Previdenciário. 20. ed. Rio
de Janeiro: Forense, 2017. p. 486. Livro em PDF. Disponível em: <https://forumdeconcursos.com/direito-
previdenciario/livros-14/>. Acesso em 07 jul 2018.
78
A TRIBUNA. Novo caso de troca de benefício tem sucesso na Justiça. Disponível em:
<http://www.atribuna.com.br/noticias/noticias-detalhe/cidades/novo-caso-de-troca-de-beneficio-tem-
sucesso-na-justica/?cHash=b14c352cbb3a672ba7c9cb08af385f97> Acesso em: 05 set. 2018.
85

regras diferentes do regime geral, como é o caso da reversão (a desaposentação para os


servidores públicos).
Outro ponto importante a destacar é que a legislação previdenciária foi confusa em
alguns pontos, um exemplo é a vedação ao recebimento de benefícios cumulados, com
apenas duas exceções. No entanto, alguns beneficiários recebiam a sua aposentadoria
cumulada com o pecúlio (ou abono de permanência em serviço), os quais não se
encontravam na lista de exceções do artigo 18 da Lei nº 8.213/1991. Mas a Lei nº 8.870/1994
cancelou ambos os benefícios.
Trata-se de outro erro por parte do legislador, conforme será explicado agora.
O cancelamento prejudicou inúmeros beneficiários do sistema, por óbvio que não
havia a previsão expressa da exceção ao recebimento dos dois benefícios, mas o que deveria
ter ocorrido, neste caso, era ter sido incluída a hipótese do abono e do pecúlio nas
possibilidades de cumulação de benefícios, pois o fato do aposentado seguir trabalhando é
algo completamente comum e que por vezes ocorre, já que o valor do benefício recebido
pelo jubilado não satisfaz todas as suas necessidades, sendo necessária uma complementação
da renda.
Pois bem, esse cancelamento trouxe reflexos, sendo um deles a entrada maciça de
processos judiciais discutindo a desaposentação (e, mais recentemente, da reaposentação),
de forma que isso movimentou toda a máquina do judiciário e provavelmente trouxe mais
gastos a Administração Pública do que o mero pagamento dos benefícios do abono de
permanência em serviço e pecúlio.
Partindo para o instituto da desaposentação, é possível ir à esteira de autores como
Ibrahim, Agostinho e Salvador, Castro e Lazzari, os quais compreendem que o aposentado
possui o direito de desaposentar-se e futuramente requerer nova aposentadoria, sem a
necessidade de devolver valores, indo ao encontro do posicionamento do STJ, firmado em
2013. Deve ser levado em conta que o beneficiário da previdência social continua
contribuindo para o sistema previdenciário, mesmo após estar jubilado, aspecto plausível
para o requerimento de novo benefício. Ao contrário do entendimento de Marisa Ferreira
dos Santos, é possível entender que o referido instituto não traz desequilíbrio financeiro à
previdência social.
Com relação à reaposentação, é possível que a mesma também seja possível de ser
concedida pelos tribunais. Nesse sentido, talvez seja até mais fácil e menos complexa do que
86

o primeiro instituto. Portanto, seguir-se-á o entendimento de Marisa Ferreira dos Santos,


além de Castro e Lazzari.
Portanto, o julgamento do STF, em 2016, foi equivocado no tocante aos dois institutos.
Todavia, a Suprema Corte aduz com razão de que deve existir previsão legislativa para a
instituição da reaposentação e da desaposentação, já que assim haverá um estabelecimento
de regras e requisitos para o aposentado solicitar um novo benefício, além, é claro, da
observância a alguns princípios e regras constitucionais tais como equidade, uniformidade e
equivalência, seletividade e distributividade, além da regra da contrapartida.
Portanto, apesar dos erros que ocorreram anteriormente (em especial a já mencionada
revogação dos benefícios que tratavam acerca do aposentado que seguia trabalhando), ainda
há espaço para elaborar uma legislação sobre os institutos, garantindo, desta forma, um
aumento nos ganhos do aposentado, melhorando a sua qualidade de vida e movimentando a
economia do país, pois, recebendo mais, o aposentado gastará mais e assim aquecerá a “roda
da economia” brasileira.

REFERÊNCIAS

AMADO, Frederico. Curso de Direito e Processo Previdenciário. 9. ed. Salvador:


JusPodvim, 2017.

A TRIBUNA. Novo caso de troca de benefício tem sucesso na Justiça. [S.l.]: 11 abr. 2018.

BRASIL. Constituição (1824). Constituição Política do Império do Brazil. Rio de Janeiro,


RJ: Secretaria de Estado dos Negocios do Imperio do Brazil, 1824.

_______. Constituição (1891). Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil. Rio
de Janeiro, RJ: Congresso Nacional Constituinte, 1891.

_______. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF:


Senado Federal, 1988.

_______. Decreto nº 3.048, de 06 de maio de 1999. Aprova o Regulamento da Previdência


Social, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 06 mai. 1999.

_______. Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991. Dispõe sobre os Planos de Benefícios da


Previdência Social e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 24 jul. 1991.

_______. Mensagem nº 464, de 04 de novembro de 2015. Brasília, DF: 04 nov. 2015.


87

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(2003/0184621-1), do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, RS, 29 de novembro de 2005,
Sexta Turma, Rel. Min. Hamilton Carvalhido. DJ 06.02.2006.

_______. Superior Tribunal de Justiça. Informativo nº 0520, de 12 de junho de 2013.


Primeira Seção, Rel. Min. Herman Benjamin, julgado em 08/05/2013.

_______. Superior Tribunal de Justiça. Recurso em Mandado de Segurança 14.624


(2002/0043309-8), do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, RS, 30 de junho de 2005,
Sexta Turma, Rel. Min. Hélio Quaglia Barbosa. DJ 15.08.2005.

_______. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 310.884 (2001/0031053-2), do


Tribunal de Regional Federal da 4ª Região, RS, 23 de agosto de 2005, Quinta Turma, Rel.
Min. Laurita Vaz. DJ 26.09.2005.

_______. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1.334.488 (2012/0146387-1), do


Tribunal Regional federal da 4ª Região, SC, 08 de maio de 2013, S1 – Primeira Seção, Rel
Min. Herman Benjamin. DJe 14.05.2013.

_______. Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Ação Rescisória 0052367-


74.2016.4.01.0000, da Justiça Federal do Distrito Federal, DF, 30 de maio de 2018, Primeira
Seção, Rel. João Luiz de Sousa. DJe 30.05.2018.

_______. Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Apelação Cível 2000.04.01.079647-2, do


Tribunal de Justiça do Paraná, PR, 06 de outubro de 2015, Sexta Turma, Rel. João Surreaux
Chagas. DJ 25.10.2000.

_______. Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Apelação Cível 2000.71.00.009978-1, da


Justiça Federal do Rio Grande do Sul, RS, 01 de novembro de 2016, Sexta Turma, Rel. João
Batista Pinto Silveira. DJ 01.11.2006.

_______. Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Apelação Cível 5007217-


74.2016.4.04.9999, da Justiça Federal do Paraná, PR, juntado aos autos em 12 de junho de
2017, Sexta Turma, Rel. João Batista Pinto Silveira. DJe 23.05.2017.

_______. Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Arguição de Inconstitucionalidade


2009.72.00.009007-2, da Justiça Federal de Santa Catarina, SC, 30 de setembro de 2010,
Corte Especial, Rel. Ricardo Teixeira do Valle Pereira. DJ 14.05.2012.

CASTRO, Carlos Alberto Pereira de; Lazzari, João Batista. Manual de Direito
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GLASENAPP, Ricardo Bernd. Direito Previdenciário. São Paulo: Pearson Education do


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88

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HORVATH JÚNIOR, Miguel. Direito Previdenciário. Barueri, SP: Manole, 2011.


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NOTÍCIAS STF. STF considera inviável recálculo de aposentadoria por desaposentação


sem previsão em lei. Brasília, DF: 26 out. 2016.

SALVADOR, Sérgio Henrique; AGOSTINHO, Theodoro Vicente. Direito Previdenciário


[livro eletrônico]. 4. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017. Biblioteca Thomson
Reuters ProView.

SANTOS, Marisa Ferreira dos. Direito Previdenciário Esquematizado. 6. ed. São Paulo:
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SANTORO, José Jayme de Souza. Manual de Direito Previdenciário. 4. ed. Rio de Janeiro:
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SARUBO, Vitor André Pereira. Desaposentação no Regime Geral. Conteúdo Jurídico,


Brasília, DF: 10 dez. 2012.

VARGAS E NAVARRO ADVOGADOS ASSOCIADOS. Justiça do Rio reconhece direito


à reaposentação. [S.l.]: 03 ago. 2018.
89

APOSENTADORIA ESPECIAL NO AMBIENTE HOSPITALAR

Dalva Simone Mesquita Selau79


Tais Ramos80

RESUMO

A presente pesquisa, elaborada a partir de revisão bibliográfica e jurisprudencial analisa a


possibilidade de aposentadoria especial a todos os profissionais que exercem suas atividades
no ambiente hospitalar, independente da função, em razão da exposição aos agentes
biológicos, comumente presentes no ambiente hospitalar. O método de pesquisa utilizado na
elaboração do trabalho é o indutivo. O trabalho centraliza-se nas particularidades da
aposentadoria especial aos trabalhadores que exercem suas atividades no ambiente
hospitalar, com ênfase na exposição aos agentes biológicos, considerando, ainda, os
requisitos da habitualidade e permanência e a eficácia dos EPIS. Posteriormente, realiza a
análise jurisprudencial acerca da aposentadoria especial no ambiente hospitalar.

Palavras-chave: Aposentadoria Especial - Agentes Biológicos – Ambiente Hospitalar.

INTRODUÇÃO

O presente trabalho possui o intuito de analisar a possibilidade de concessão do


benefício de aposentadoria especial a todos os que exercem suas atividades laborais no
ambiente hospitalar, independente da função, considerando o risco de exposição aos agentes
biológicos característicos aos ambientes de trabalho da área da saúde.
A aposentadoria especial está disciplinada na Constituição Federal de 1988, mais
especificamente no § 1º do artigo 201, sendo que na legislação infraconstitucional, a previsão
aparece nos artigos 57 e 58 da Lei n. 8.213, de 24 de julho de 1991, que dispõe sobre os
Planos de Benefícios da Previdência Social, bem como nos artigos 64 a 70 do Decreto
Regulamentador nº 3.048/99.
O referido benefício visa a garantir uma compensação ao trabalhador pelo desgaste
sofrido em razão da atividade exercida em condições prejudiciais à saúde ou à integridade

79
Especialista em Direito do Trabalho e Previdenciário pela Universidade de Santa Cruz do Sul
(UNISC)/Escola Nacional da Advocacia/ Conselho Federal da OAB (ENA/CFOAB). Graduada em Direito
pela Universidade de Caxias do Sul (UCS). Advogada. E-mail: d.selau@hotmail.com.
80
Doutoranda em Direito Político e Econômico na Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM), com período
sanduíche na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Mestre em Direitos Sociais e Políticas
Públicas, Graduada em Direito e Especialista em Direito Processual Civil pela Universidade de Santa Cruz do
Sul (UNISC). Advogada, Professora orientadora da Pós-graduação Lato Sensu em Advocacia Trabalhista e
Previdenciária da Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC)/ Escola Nacional da Advocacia/ Conselho
Federal da OAB (ENA/CFOAB). E-mail: taisramos@gmail.com.
90

física, sendo que os requisitos para a concessão desta modalidade de aposentadoria estão
dispostos no artigo 57 da Lei n. 8.213/91 e no artigo 64 do Decreto n. 3.048/99, de onde se
extrai que o segurado deve comprovar, além do tempo de trabalho permanente, não ocasional
nem intermitente, a efetiva exposição a agentes químicos, físicos, biológicos ou associação
de agentes prejudiciais à saúde ou à integridade física pelo período equivalente ao exigido
para a concessão do benefício (15, 20 ou 25 anos).
A Previdência Social possui o entendimento de que somente terá direito a
aposentadoria especial os trabalhadores que comprovem contato habitual e permanente com
pessoas infectadas em hospitais, ou que exerçam suas atividades em ambientes onde haja o
isolamento, ou outras medidas de controle de risco biológico.
Por conta disso, a questão que os tribunais vêm enfrentando diz respeito aos
segurados que exercem suas funções laborais no ambiente hospitalar, independente da
atividade, por tratar-se de local onde comumente estão presentes agentes biológicos nocivos
à saúde.
Portanto, inicialmente, será feita uma análise sobre a aposentadoria especial no
ambiente hospitalar, focando na questão dos agentes biológicos, da habitualidade e
permanência, e da eficácia do uso dos EPIS.
E por fim se analisará a jurisprudência acerca da possibilidade de concessão de
aposentadoria especial aos trabalhadores do ambiente hospitalar, em razão dos agentes
insalubres comumente presentes no ambiente laboral, independente da atividade e do contato
com pacientes portadores de doenças infectocontagiosas.

1 APOSENTADORIA ESPECIAL NO AMBIENTE HOSPITALAR

A aposentadoria Especial é devida ao trabalhador que comprovar exposição a agentes


químicos, físicos e biológicos, ou associação de agentes, de forma habitual e permanente, no
caso específico dos trabalhadores em hospitais, o período mínimo é de 25 anos, sem
exigência de idade mínima.
A presença dos agentes biológicos no ambiente de trabalho gera consequências
jurídicas, permitindo ao trabalhador, quando comprovada a sua exposição, obter o benefício
da aposentadoria especial.
Daniel Machado da Rocha e José Antônio Savaris destacam:
Destinada a compensar os segurados que exercem suas atividades em condições
ofensivas à sua saúde ou integridade física, a aposentadoria especial decorre de
91

uma exigência do princípio da igualdade e objetiva acautelar o trabalhador contra


os efeitos maléficos que podem advir do mero desempenho de sua atividade
profissional, propiciando a antecipação de sua aposentadoria. Tendo por
referencial a proteção do trabalhador, o sistema constitucional estrutura-se de
modo a atribuir peso diferenciado às atividades consideradas ofensivas à saúde ou
à integridade física81.

O artigo “Nanobiotecnologia e Segurança Microbiológica: Quais as suas aplicações


no Setor da Saúde”, expõe:

Primeiro, uma contextualização: imagine dezenas de pessoas, senão centenas,


passando pelas unidades de saúde regionais procurando atendimento todos os dias.
Nos hospitais, pessoas em tratamento e familiares se misturam em diferentes
ambientes, seja nos quartos, corredores, refeitórios, até as salas de espera. E todas
essas pessoas carregam consigo uma bagagem que nem sempre estão cientes: os
microrganismos – agentes que podem levar a graves complicações e têm se
tornado cada vez mais problemáticos82.

Segundo Maria Helena Carreira Alvim Ribeiro83 são considerados insalubres os


trabalhos e operações realizadas em contato com pacientes em hospitais, clínicas e outros
destinados ao cuidado da saúde humana, pois o trabalhador fica exposto a agentes biológicos,
vejamos:
São considerados insalubres os trabalhos e operações em contato com pacientes
em hospitais, ambulatórios, clínicas e outros estabelecimentos destinados ao
cuidado da saúde humana. A doutrina considera riscos biológicos os micro-
organismos como vírus, bactérias, parasitas, protozoários, fungos, bacilos, e
parasitas, presentes em hospitais, estabelecimentos de saúde, laboratórios de
análises clínicas e pesquisas, hemocentros, indústrias farmacêutica e alimentícia e
outros. Ao laborar nesse ramo de atividade, o trabalhador está exposto a agentes
biológicos – vírus, fungos e bactérias, e outros, sendo a atividade exercida ser
enquadrada como especial.

Não importa se é um médico, enfermeira, vigilante, recepcionista, responsável pela


farmácia industrial, nutricionista, auxiliar de almoxarifado, trabalhador da manutenção, setor
de compras, lavanderia, ou trabalhador de qualquer outro setor do nosocômio, o trabalho
nesse tipo de ambiente será sempre insalubre, pois expõe o trabalhador aos agentes
biológicos.84

81
ROCHA, Daniel Machado da; SAVARIS, José Antonio. Curso de direito previdenciário: fundamentos de
interpretação e aplicação do direito previdenciário. Curitiba: Alteridade, 2014. p. 191
82
Nanobiotecnologia e Segurança Microbiológica: Quais as suas aplicações no Setor da Saúde. Disponível em:
<https://d335luupugsy2.cloudfront.net/cms/files/4325/1494942393T NS_eBook16_Nanobiotecnologia.pdf>.
Acesso em 15 maio 2018.
83
RIBEIRO, Maria Helena Carreira Alvim, Aposentadoria Especial de Profissionais da Área da Saúde &
Contribuintes Individuais, Juruá Editora, 2018, p. 116.
84
Aposentadoria especial é direito dos trabalhadores em hospitais. Disponível
em:<https://www.conjur.com.br/2017-ago-14/opiniao-aposentadoria-especial-trabalhadores-hospitais>
Acesso em 17 abril 2018.
92

Inclusive, a Súmula 82 da TNU incluiu no código 1.3.2 do Decreto 53.831/64 os


profissionais que exercem atividades de serviços gerais em limpeza e higienização em
ambientes hospitalares, fazendo desta forma com que estes profissionais tenham direito ao
reconhecimento da especialidade de sua aposentadoria até 1995 sem a comprovação do PPP.
É importante observar que a NR 32 considera como estabelecimento de saúde,
qualquer edificação destinada à prestação de assistência à saúde da população. Ressalta-se
que nenhuma instrução normativa poderá dispor em demérito do segurado contrariando a
Lei, nem poderá provocar lesão a direitos adquiridos. Colacionamos a jurisprudência:

Ementa: Adicional de insalubridade. Atividades exercidas dentro de hospital.


Contato com agente biológico nocivo à saúde. Configuração. Reexame de fatos e
provas. Súmula 126. Não conhecimento. O egrégio Tribunal Regional, com base
na prova pericial, registrou que, embora houvesse o fornecimento de EPI' s, a
reclamante, ao realizar atividades de limpeza e higienização dos diversos setores
internos do HOSPITAL DA POLÍCIA MILITAR, estava exposta a agentes
químicos e biológicos. Acrescentou, ainda, que a reclamante “coletava perfuro-
cortantes, estando em contato permanente com pacientes e materiais
infectocontagiantes.” O Anexo 14 da NR 15 do MTE classifica como atividade
insalubre, em grau médio, as operações em contato permanente com pacientes ou
com material infecto-contagiante em “hospitais, serviços de emergência,
enfermarias, ambulatórios, postos de vacinação e outros estabelecimentos
destinados aos cuidados da saúde humana”. Dessa forma, para se concluir de
forma favorável à reclamada, no sentido de que a autora não mantinha contato com
agentes biológicos nocivos à sua saúde, seria necessário o reexame das provas, o
que é vedado pela Súmula 126. Inviabilizada, assim, a averiguação de ofensa
artigo 190 da CLT e contrariedade à Orientação Jurisprudencial 4 da SBDI-1.
Recurso de revista de que não se conhece. (...) Recursos de revista de que não se
conhece. (TST-RR - 1270-24.2010.5.09.0005 – Rel. Min. Guilherme Augusto
Caputo Bastos – j. em 29.06.2016 – 5ª T. – Data de Publicação: DEJT 01.07.2016)

O Decreto 53.831/1964, no Código 1.3.2 classifica como especial os “trabalhos


permanentes expostos ao contato com doentes ou materiais infectocontagiantes”. O Código
1.3.4 do Anexo I, do Decreto 83.080/1979, relaciona os “trabalhos em que haja contato
permanente com doentes ou materiais infectocontagiantes ou com manuseio de materiais
contaminados”.
O item 3.0.1 do Anexo IV do Decreto 3.048/99 diz que, em se tratando de
estabelecimentos de saúde, terão direito à aposentadoria especial, somente aqueles que
desenvolvem “trabalhos em estabelecimentos de saúde em contato com pacientes portadores
de doenças infectocontagiosas ou com manuseio de materiais contaminados”.
Observa-se que a norma retro mencionada não exige que o trabalho do profissional
de saúde se dê em ambiente isolado, que ocasione o contato exclusivo com pacientes
portadores de doenças infectocontagiosas (doenças de fácil e rápida transmissão, tais como
93

tuberculose, doenças venéreas, meningite, conjuntivite, entre outras). Ao contrário, a


interpretação do dispositivo legal conduz à conclusão de que se revela suficiente o trabalho
em ambiente hospitalar em contato direto com pacientes doentes, entre os quais certamente
estarão aqueles portadores de moléstias infecto-contagiantes. O risco de contágio é iminente
e pode se dar mediante um único contato do profissional com o paciente portador de tais
enfermidades ou com o material contaminado, restando configurada a especialidade objeto
da norma previdenciária85.
Para que se entenda melhor sobre o que significa a designação infectocontagiosa,
reportamo-nos, ao artigo “biossegurança em saúde’’, onde consta: “Um ponto importante e
que merece destaque é a propagação de bactérias resistentes, que normalmente são
encontradas restritas ao ambiente hospitalar, porém podem ser facilmente levadas até a
população em virtude da falta de conhecimento dessas normas de biossegurança”.86
O Art. 244, parágrafo único, da Instrução Normativa n. 45/2010 do INSS, assim
dispunha, sobre a confecção correta do LTCAT:
Tratando-se de estabelecimentos de saúde, a aposentadoria especial ficará restrita
aos segurados que trabalhem de modo permanente com pacientes portadores de
doenças infecto-contagiosas, segregados em áreas ou ambulatórios específicos, e
aos que manuseiam exclusivamente materiais contaminados provenientes dessas
áreas.

Na esteira deste entendimento, o próprio INSS alterou o seu posicionamento no


âmbito administrativo ao revogar a orientação que exigia, para o reconhecimento da
especialidade do profissional de saúde, o trabalho exclusivo com pacientes portadores de
doenças infectocontagiosas em áreas de isolamento (Art. 244, parágrafo único, da IN/PRES
45 de 06/08/2010, revogado pela IN 77 de 21/01/2015)87.
Assim dispõe a IN 77 de 21/01/2015:
Art. 285. A exposição ocupacional a agentes nocivos de natureza biológica
infectocontagiosa dará ensejo à caracterização de atividade exercida em condições
especiais:
I - até 5 de março de 1997, véspera da publicação do Decreto nº 2.172, de 5 de
março de 1997, o enquadramento poderá ser caracterizado, para trabalhadores
expostos ao contato com doentes ou materiais infectocontagiantes, de assistência
médica, odontológica, hospitalar ou outras atividades afins, independentemente da
atividade ter sido exercida em estabelecimentos e saúde e de acordo com o código
1.0.0 do quadro anexo ao Decretos nº 53.831, de 25 de março de 1964 e do Anexo

85
Livro de Direito Previdenciário. Disponível em:
<https://livrodireitoprevidenciario.com/aposentadoria_especial/>. Acesso em 30abril 2018.
86
Biossegurança em saúde. Disponível em: <http://mundoeducacao.bol.uol.com.br/saude-bem-
estar/biosseguranca -saude.htm>. Acesso em 04 maio2018.
87
Livro de Direito Previdenciário. Disponível em:
<https://livrodireitoprevidenciario.com/aposentadoria_especial/>. Acesso em 30abril 2018.
94

I do Decreto nº 83.080, de 1979, considerando as atividades profissionais


exemplificadas; e
II - a partir de 6 de março de 1997, data da publicação do Decreto nº 2.172, de 5
de março de 1997, tratando-se de estabelecimentos de saúde, somente serão
enquadradas as atividades exercidas em contato com pacientes acometidos por
doenças infectocontagiosas ou com manuseio de materiais contaminados,
considerando unicamente as atividades relacionadas no Anexo IV do RPBS e RPS,
aprovados pelos Decreto nº 2.172, de 5 de março de 1997 e n° 3.048, de 1999,
respectivamente.

De acordo com o artigo acima, somente serão enquadradas as atividades constantes


nos anexos, exercidas em contato com pacientes acometidos por doenças infectocontagiosas
ou com manuseio de materiais contaminados.

1.1 Agentes Biológicos

Agente Biológico é definido como aquele que contenha informação genética e seja
capaz de autorreprodução ou de se reproduzir em um sistema biológico. Inclui bactérias,
fungos, vírus, clamídias, riquétsias, micoplasmas, príons, parasitos, linhagens celulares e
outros organismos88.
Os agentes biológicos estão previstos nos códigos 1.3.1 do quadro Anexo do Decreto
nº 53.831/64, 1.3.1 do Anexo I do Decreto nº 83.080/79 e 3.0.0 e 3.0.1 do Anexo IV dos
Decretos nº 2.172/97 e nº 3.048/99.
Observamos, porém, que o Quadro Anexo do Decreto 53.831/1964, os Anexos I e II
do Decreto 83.080/1979, bem como os Anexos I e II dos Decretos 2.172/1997 e 3.048/1999,
relacionaram como agentes biológicos os trabalhos permanentes expostos ao contato direto
com os germes infecciosos, a exposição ao contato com doentes ou materiais
infectocontagiantes, os trabalhos em que haja contato permanente com doentes ou materiais
infectocontagiantes, e trabalhos em contato com pacientes portadores de doenças
infectocontagiosas ou com manuseio de materiais contaminados89.
Tais agentes são capazes de provocar danos à saúde humana, podendo causar
infecções, efeitos tóxicos, efeitos alergênicos, doenças auto-imunes e a formação de
neoplasias e malformações90.

88
Classificação de riscos dos agentes biológicos. Disponível em:
<www2.fcfar.unesp.br/Home/CIBio/ClassificRiscoBiologico.pdf>. Acesso em 04 maio 2018.
89
RIBEIRO, Maria Helena Carreira Alvim, Aposentadoria Especial de Profissionais da Área da Saúde &
Contribuintes Individuais, Juruá Editora, 2018, p. 61
90
Riscos Biológicos. <https://pt.scribd.com/document/93285605/03-APOSTILA-RISCOS-BIOLOGICOS>.
Acesso em: 28 maio 2018.
95

Podem ser assim subdivididos:


a) Microrganismos, formas de vida de dimensões microscópicas, visíveis
individualmente apenas ao microscópio - entre aqueles que causam dano à saúde
humana, incluem-se bactérias, fungos, alguns parasitas (protozoários) e vírus;
b) Microrganismos geneticamente modificados, que tiveram seu material
genético alterado por meio de técnicas de biologia molecular;
c) Culturas de células de organismos multicelulares, o crescimento in vitro de
células derivadas de tecidos ou órgãos de organismos multicelulares em meio
nutriente e em condições de esterilidade – podem causar danos à saúde humana
quando contiverem agentes biológicos patogênicos;
d) Parasitas, organismos que sobrevivem e se desenvolvem às expensas de um
hospedeiro, unicelulares ou multicelulares - as parasitoses são causadas por
protozoários, helmintos (vermes) e artrópodes (piolhos e pulgas);
e) Toxinas, substâncias secretadas (exotoxinas) ou liberadas (endotoxinas)
por alguns microrganismos e que causam danos à saúde humana, podendo até
provocar a morte - como exemplo de exotoxina, temos a secretada pelo
Clostridium tetani, responsável pelotétano e, de endotoxinas, as liberadas por
Meningococcus ou Salmonella;
f) Príons, estruturas protéicas alteradas relacionadas como agentes etiológicos
das diversas formas de encefalite espongiforme - exemplo: a forma bovina,
vulgarmente conhecida por “mal da vaca louca”, que, atualmente, não é
considerada de risco relevante para os trabalhadores dos serviços de saúde.

Os agentes biológicos, ao contrário das outras formas de fator nocivo gerador da


especialidade do labor, têm o componente da vida, humana ou não humana, como agente em
potencial de lesão à saúde do segurado. Assim, bactérias, fungos e vírus (embora haja
controvérsia quanto à natureza desses dois últimos) em contato diuturno com a labuta
humana, através de pacientes, animais e dejetos urbanos ou rurais, podem gerar a
especialidade do tempo de serviço91.

1.1.1 Aspectos Técnicos dos Agentes Biológicos

Os riscos biológicos, no âmbito das Normas Regulamentadoras de segurança e Saúde


no Trabalho - NR, incluem-se no conjunto dos riscos ambientais, junto aos riscos físicos e
químicos, conforme pode ser observado pela transcrição do item 9.1.5 da Norma
Regulamentadora nº. 9 – Programa de Prevenção de Riscos Ambientais - PPRA92:
9.1.5. Para efeito desta NR, consideram-se riscos ambientais os agentes físicos,
químicos e biológicos existentes nos ambientes de trabalho que, em função de
sua natureza, concentração ou intensidade e tempo de exposição, são capazes de
causar danos à saúde do trabalhador.

91
Agentes biológicos como fato gerador de atividade especial para fins previdenciários. Disponível em:
<https://jus.com.br/artigos/18182/agentes-biologicos-como-fato-gerador-de-atividade-especial-para-fins-
previdenciarios>. Acesso em: 16 abril 2018.
92
Riscos Biológicos Guia Técnico. Disponível em:
<https://www.unifesp.br/reitoria/dga/images/legislacao/biosseg/guia_tecnico_cs3.pdf >. Acesso em: 19 abril
2018.
96

O reconhecimento dos riscos ambientais é uma etapa fundamental do processo que


servirá de base para decisões quanto às ações de prevenção, eliminação ou controle
desses riscos. Reconhecer o risco significa identificar, no ambiente de trabalho,
fatores ou situações com potencial de dano à saúde do trabalhador ou, em outras
palavras, se existe a possibilidade deste dano.

A NR 32 – SEGURANÇA E SAÚDE NO TRABALHO EM SERVIÇOS DE


SAÚDE E OS RISCOS BIOLÓGICOS93
32.1 Do objetivo e campo de aplicação
32.1.1 Esta Norma Regulamentadora – NR tem por finalidade estabelecer as
diretrizes básicas para a implementação de medidas de proteção à segurança e à
saúde dos trabalhadores dos serviços de saúde, bem como daqueles que exercem
atividades de promoção e assistência à saúde em geral.
32.1.2 Para fins de aplicação desta NR entende-se por serviços de saúde qualquer
edificação destinada à prestação de assistência à saúde da população, e todas as
ações de promoção, recuperação, assistência, pesquisa e ensino em saúde em
qualquer nível de complexidade.

A publicação do Ministério da Saúde sobre a classificação de risco dos agentes


biológicos orienta:
A avaliação de risco de agentes biológicos considera critérios que permitem o
reconhecimento, a identificação e a probabilidade do dano decorrente destes,
estabelecendo a sua classificação em classes de risco distintas de acordo com a
severidade dos danos. Assim, a classificação dos agentes biológicos constantes
nesta publicação teve foco básico nos agentes causadores de enfermidades em
humanos e na taxa de fatalidade do agravo. Por outro lado, a análise de riscos deve
ser orientada por parâmetros que dizem respeito não só ao agente biológico
manipulado, mas também ao tipo de procedimento realizado e ao próprio
trabalhador. (...) Além disso, a organização do trabalho e as práticas gerenciais
passaram a ser reconhecidas como importante foco de análise, pelos incidentes, ou
mesmo como integrantes fundamentais de um programa de biossegurança
institucional.94

É notório o fato de que o ambiente hospitalar e outros similares são insalubres,


expondo os trabalhadores a riscos diversos causadores de danos à saúde.
Os profissionais de saúde estão expostos frequentemente a material biológico, por
isso os riscos de contaminação podem ser altos a depender da atividade realizada.
(...) Diante da exposição frequente a agentes patogênicos, recomenda-se que os
profissionais de saúde mantenham atualizadas suas carteiras de vacinação. As
vacinas são umas das melhores formas de prevenção contra doenças infecciosas 95.

Em dissertação de mestrado realizada junto a Universidade da Madeira, em Portugal,


promoveu-se um estudo acerca da Detecção de Bactérias no Ar em Ambiente Hospitalar,

93
Riscos Biológicos Guia Técnico. Disponível em:
<https://www.unifesp.br/reitoria/dga/images/legislacao/biosseg/guia_tecnico_cs3.pdf >. Acesso em: 28 abril
2018.
94
Classificação de riscos dos agentes biológicos. Disponível em:
<http://www2.fcfar.unesp.br/Home/CIBio/ClassificRiscoBiologico.pdf>. Acesso em: 04 maio 2018.
95
Biossegurança em saúde. Disponível em:<http://mundoeducacao.bol.uol.com.br/saude-bem-
estar/biosseguranca-saude.htm >. Acesso em: 04 maio 2018.
97

oportunidade na qual se constatou a possibilidade de contágio de funcionários através do


trato digestivo e respiratório.
Colaciona-se o excerto:
Em países desenvolvidos, os organismos mais frequentemente associados a IN são
os membros da flora habitual dos humanos, especialmente da pele, tracto
respiratório superior e gastrointestinal, e os organismos saprófitos do ambiente
hospitalar. Os mais comuns são os Staphylococcus coagulase negativos, S. aureus,
Enterococcus spp., Clostridium difficile, Escherichia coli, Enterobacter spp.,
Klebsiella pneumoniae, Pseudomonas aeruginosa, Acinetobacter spp., Proteus
spp., Stenotrophomonas maltophilia, Serratia spp., e Candida spp.. Em países em
desenvolvimento, infecções causadas por Mycobacterium tuberculosis e
Salmonella ainda são comuns, tendo origem em comida contaminada,
funcionários e visitantes (Brachman e Abrutyn, 2009).
Um estudo que incidiu sobre a detecção de bactérias e fungos no ar em hospitais
determinou que os géneros predominantes de bactérias aerolizadas são
Staphylococcus (50%), Micrococcus (15-20%), Corynebacterium (5-20%) e
Bacillus (5-15%), enquanto os fungos predominantes são Cladosporium (30%),
Penicillium (20-25%), Aspergillus (15-20%) e Alternaria (10-20%) (Kim et al,
2010). Outro estudo que versou a flora bacteriana do ar interior de edifícios em
geral também detectou os géneros bacterianos Lactococcus, Paracoccus e
Moraxella, para além dos anteriormente referidos (Tringe et al 2008)96

Outrossim, em estudo promovido pela Universidade do Extremo Sul Catarinense, no


Programa de Pós-Graduação em Ciências Ambientais, efetuou-se um levantamento sobre a
qualidade microbiológica do ar em ambiente hospitalar e sua relação como elemento de risco
para o aumento de infecções.
No setor hospitalar merecem atenção especiais as Unidades de Tratamento
Intensivos (UTIs) e os Centros Cirúrgicos que são ambientes classificados como
áreas críticas, uma vez que nestes ambientes existe risco maior de transmissão de
infecções, pois os procedimentos realizados nestes locais são invasivos e com alta
complexidade.97

Considerando que os profissionais da saúde estão expostos frequentemente a agentes


biológicos de diversos tipos, se estudará no próximo tópico acerca da avaliação da exposição
a esses agentes, para fins de insalubridade.

1.1.2 Avaliação da Exposição aos Agentes Biológicos

No tocante aos agentes biológicos a exposição deve ser avaliada de forma qualitativa,
não sendo condicionada ao tempo diário de exposição do segurado. O objetivo do

96
CAMACHO, Roberto Alexandre Pisa. Detecção de Bactérias no Ar em Ambiente Hospitalar com Recurso
a Técnicas Moleculares. Madeira, PT. 2010.
97
ARRUDA, Vera Lucia. ESTUDO DA QUALIDADE MICROBIOLOGICA DO AR EM AMBIENTE
HOSPITALAR CLIMATIZADO E SUA RELAÇÃO COMO ELEMENTO DE RISCO PARA O AUMENTO
DE INFECÇÕES: ESTUDO DE CASO DO HOSPITAL REGIONAL DE ARARANGUÁ, SC. Criciúma, Sc.
2009.
98

reconhecimento da atividade especial é proporcionar ao trabalhador exposto a agentes


agressivos a tutela protetiva, em razão dos maiores riscos que o exercício do labor lhe
ocasiona, sendo inerente a atividade profissional a sujeição a esses agentes insalubres (NR
15, anexo 14).
A NR-15 estabelece que a insalubridade será comprovada pela inspeção realizada
por perito no local de trabalho, sendo que este deverá analisar detalhadamente o posto de
trabalho, a função e a atividade do trabalhador, utilizando os critérios técnicos da Higiene
Ocupacional.98
Profissões que envolvem o contato permanente com agentes biológicos, divididas em
dois grupos e caracterizadas como insalubres de graus máximo e médio. No primeiro está o
contato permanente com pacientes portadores de doenças infectocontagiosas e em
isolamento; condição, portanto, imprescindível para que se gere o adicional de insalubridade.
A análise da insalubridade por agentes biológicos é feita de maneira qualitativa, isto é, não
há limites de tolerância fixados, o que torna a análise mais difícil e complexa99.
Assim a norma estabeleceu três condições para o enquadramento da atividade como
insalubridade em grau máximo: contato permanente, pacientes portadores de doenças
infectocontagiosas e em isolamento:
- Contato permanente está definido no parágrafo único do anexo 14;
- Doenças infectocontagiosas, de forma bastante simplificada, são doenças causadas
por diferentes agentes (bactérias e vírus na sua maioria) que podem ser transmitidas
diretamente de um ser humano doente para outro.
- isolamento é uma técnica utilizada para prevenir a transmissão de micro-
organismos a partir de pacientes infectados para outros pacientes, profissionais da saúde e
visitantes.100
As categorias de isolamentos podem ser agrupadas em três categorias baseadas na
maneira de transmissão: de contato, respiratórias por gotícula, aerossóis101.

98
SALIBA, Tuffi Messias; CORRÊA, Márcia Angelim Chaves. Insalubridade e periculosidade: aspectos
técnicos e práticos. São Paulo: LTr, 2017. p. 14.
99
SALIBA, Tuffi Messias; CORRÊA, Márcia Angelim Chaves. Insalubridade e periculosidade: aspectos
técnicos e práticos. São Paulo: LTr, 2017. p. 140
100
UFMT. Manual de isolamento e Precauções, 2006. Disponível em:
<http://www.ufmt.br/hujm/arquivos/7e18458a8aa832719641156ccd469de8.pdf> Acesso: 21 abril 2018.
101
SALIBA, Tuffi Messias; CORRÊA, Márcia Angelim Chaves. Insalubridade e periculosidade: aspectos
técnicos e práticos. São Paulo: LTr, 2017. p. 140
99

De acordo com Saliba e Corrêa102 vários aspectos devem ser observados pelo perito
durante a diligência em que verificará a insalubridade
Assim, é importante que o perito analise, durante a diligência, os seguintes itens:
se o local de trabalho do reclamante se localiza no hospital de referência no
tratamento de doenças infectocontagiosas ou hospitais gerais, se existem alas e ou
quartos específicos para tratamento de portadores de doenças infectocontagiosas,
qual o protocolo existente no hospital no caso de atendimento a portadores destas
doenças, qual o percentual de doenças infectocontagiosas atendidas no hospital,
que tipo de isolamento deverá ser adotado para estas doenças, se existe equipe
específica para atendimento destas doenças, deverão também ser consultadas as
notificações compulsórias a vigilância sanitária, lembrando que nem todas as
doenças comunicadas são infectocontagiosas e ne exigem isolamento total. A NR
32 que trata da saúde dos profissionais das áreas de saúde também deverá ser
consultada.

No grupo de insalubridade de grau médio a norma inscreve o contato com pacientes,


animais ou material infectocontagiante sem condicionar a insalubridade a pacientes
portadores de doenças infectocontagiosas.
Quanto as atividades e operações relacionadas nesse grupo, devem-se observar as
exceções que a norma estabelece, tais como: nos trabalhos em laboratórios de análises
clínicas e gabinetes de autopsias, o enquadramento é somente para o pessoal técnico. Deve-
se salientar, no entanto, que tais limitações, muitas vezes, não têm razão de ser, pois,
dependendo da natureza da atividade do empregado, mesmo não sendo técnico pode ficar
exposto ao mesmo risco. Desse modo, esses casos devem ser analisados cuidadosamente
durante a diligência pericial103.
No grupo de insalubridade de grau médio, a norma estabelece o contato permanente
com pacientes, animais, ou material infectocontagiante em hospitais, ambulatórios,
enfermarias, entre outros, sem condicionar o requisito de o paciente se encontrar em
isolamento devido à doença infectocontagiosa. Contudo, essa norma restringe o adicional de
insalubridade somente ao pessoal que tem contato com pacientes ou com objetos de uso
deles. Assim, a norma exige o contato direto com o paciente, ou seja, a exposição apenas no
ambiente (contato indireto), por exemplo, em hospitais e ambulatórios, não configura a
insalubridade. Outra situação é o local onde ocorre o contato com os pacientes. O anexo 14
menciona expressamente hospitais, enfermarias, ambulatórios e outros estabelecimentos
destinados aos cuidados da saúde humana. Assim, por exemplo, em relação ao balconista de
farmácia e ao agente comunitário de saúde, a decisões negando enquadramento da atividade

102
SALIBA, Tuffi Messias; CORRÊA, Márcia Angelim Chaves. Insalubridade e periculosidade: aspectos
técnicos e práticos. São Paulo: LTr, 2017. p. 141
103
SALIBA, Tuffi Messias; CORRÊA, Márcia Angelim Chaves. Insalubridade e periculosidade: aspectos
técnicos e práticos. São Paulo: LTr, 2017. p. 144
100

como insalubre devido ao local e a exposição eventual ao agente. Cabe destacar que, de
acordo com a Portaria N.12, de 12.11.1979, o contato permanente com pacientes, animais
ou material infectocontagiante é a prestação de serviço contínuo, decorrente do próprio
contrato de trabalho, com exposição permanente aos agentes insalubres. O contato
intermitente equivale ao permanente para efeitos de caracterização da insalubridade,
conforme entendimento da Súmula n.47 do TST.104
A Instrução Normativa 77, em vigor, editada em 21.01.2015, trata sobre a
aposentadoria especial, dispondo no art. 277:
Art. 277. São consideradas condições especiais que prejudicam a saúde ou a
integridade física, conforme definido no Anexo IV do RPS, a exposição a agentes
nocivos químicos, físicos, biológicos ou à associação de agentes, em concentração
ou intensidade e tempo de exposição que ultrapasse os limites de tolerância
estabelecidos segundo critérios quantitativos, ou que, dependendo do agente, torne
a simples exposição em condição especial prejudicial à saúde, segundo critérios
de avaliação qualitativa. (...)
Art. 278. Para fins da análise de caracterização da atividade exercida em condições
especiais por exposição à agente nocivo, consideram-se: I - nocividade: situação
combinada ou não de substâncias, energias e demais fatores de riscos
reconhecidos, presentes no ambiente de trabalho, capazes de trazer ou ocasionar
danos à saúde ou à integridade física do trabalhador; e (...)
§ 1º Para a apuração do disposto no inc. I do caput, há que se considerar se a
avaliação de riscos e do agente nocivo é:
I - apenas qualitativo, sendo a nocividade presumida e independente de
mensuração, constatada pela simples presença do agente no ambiente de trabalho,
conforme constante nos Anexos 6, 13 e 14 da Norma Regulamentadora 15 – NR-
15 do MTE, e no Anexo IV do RPS, para os agentes iodo e níquel, a qual será
comprovada mediante descrição:
a) das circunstâncias de exposição ocupacional a determinado agente nocivo ou
associação de agentes nocivos presentes no ambiente de trabalho durante toda a
jornada;
b) de todas as fontes e possibilidades de liberação dos agentes mencionados na
alínea “a”; e
c) dos meios de contato ou exposição dos trabalhadores, as vias de absorção, a
intensidade da exposição, a frequência e a duração do contato.

A referida norma considera a exposição aos agentes nocivos biológicos como


qualitativa, presumindo a nocividade independente de mensuração, constatada pela presença
do agente no ambiente de trabalho, constante nos Anexos 6, 13, 13-A e 14 da NR-15 (Norma
Regulamentadora 15).
Nesse sentido a jurisprudência do TRF da 2ª Região:
Ementa. Previdenciário. Tempo Especial. Médico. Agentes Biológicos.
Qualitativo. Previdenciário. Aposentadoria. Tempo de serviço especial. Médico.
Exposição a agentes biológicos. Insalubridade. Aferição. Análise qualitativa.
Reconhecimento. A insalubridade, relativamente a atividades que envolvem
agentes biológicos, é qualitativa. A partir desse entendimento, a 2ª Turma

104
SALIBA, Tuffi Messias; CORRÊA, Márcia Angelim Chaves. Insalubridade e periculosidade: aspectos
técnicos e práticos. São Paulo: LTr, 2017. p. 145
101

Especializada do TRF da 2ª Região decidiu, por unanimidade, que as atividades


desempenhadas pelo médico S.R.L. devem ser consideradas insalubres e
computadas como tal pelo INSS na contagem de tempo de serviço com fins de
concessão de aposentadoria ao autor. A autarquia apelou ao TRF2 alegando que
S.R.L. não teria direito à contagem especial, por não ter comprovado a exposição
a agentes insalubres de modo permanente e habitual. Mas, o relator do processo,
Des. Fed. MESSOD AZULAY NETO considerou que, no caso de agentes
biológicos, a intermitência não afasta a especialidade. “Ainda que a efetiva
exposição a agentes biológicos pudesse não ocorrer durante todas as horas da
jornada de trabalho, o fato é que o risco de contágio inerente às atividades
desempenhadas – para o qual basta um único contato com o agente infeccioso – e,
consequentemente, o risco permanente de prejuízo à saúde do trabalhador, por
certo caracterizam a especialidade do labor”.
(Proc. 0076417-97.2015.4.02.5101)

Assim verificou-se que o desempenho de atividade que envolve agentes biológicos


é considerado insalubre, sendo qualitativa a sua avaliação.

1.1.3 Requisito de Habitualidade e Permanência

O conceito de trabalho permanente encontra-se previsto no art. 65 do Decreto n.


3048/99, com redação dada pelo Decreto n. 4882, de 18 de novembro de 2003, nos termos:
Art.65 - Considera-se trabalho permanente, para efeito desta Subseção, aquele que
é exercido de forma não ocasional nem intermitente, no qual a exposição do
empregado, trabalhador avulso ou do cooperado ao agente nocivo seja
indissociável da produção do bem ou parte da prestação do serviço.

A Portaria n. 12 de 12.11.1979, acrescentou ao anexo 14 – NR 15, o conceito de


contato permanente conforme redação que se segue:
Contato permanente com pacientes, animal ou material infectocontagiante é o
trabalho resultante da prestação de serviço continuo, decorrente de exigência
firmada no próprio contrato de trabalho, com exposição permanente aos agentes
insalubres.

A doutrina reconhece a potencialidade do dano na exposição a atividades


consideradas nocivas à saúde ou integridade física, pois, tratando-se de exposição a agentes
biológicos e à radiação, os equipamentos de proteção individual são insuficientes para
neutralizar a nocividade da atividade desempenhada pelo segurado.
Segundo Maria Helena Carreira Alvim Ribeiro105, os conceitos de habitualidade e
permanência devem ser relativizados quando se se tratar de exposição a determinados
agentes nocivos, pois o que se protege é o risco de exposição.

105
RIBEIRO, Maria Helena Carreira Alvim, Aposentadoria Especial de Profissionais da Área da Saúde &
Contribuintes Individuais, Juruá Editora, 2018, p. 175
102

Wladimir Novaes Martinez define o conceito de habitualidade e permanência, nos


seguintes termos:
A dificuldade na redação é patente no texto. Todas as funções significam a
atividade laboral por inteiro. Efetivamente é sutil, pois não é tecnicamente fácil
saber, em cada caso, quando se dá realmente a exposição aos agentes nocivos.
Além do resultado ser, por vezes, subjetivo – atinge um paciente e não outro – o
nível da ofensa varia conforme a natureza da circunstância agressora e o
ambiente198. A ciência médica admite que, em certas circunstâncias e diante da
concentração do agente nocivo, mesmo com pequenos afastamentos, a
proximidade continua pondo em risco a saúde ou a integridade física do
trabalhador. Para efeitos jurídicos perante o INSS, tal afirmação deve constar do
laudo técnico de forma incisiva e imperativa, comprometendo cientificamente o
profissional e obrigando-o a fundamentar doutrinariamente o alegado106.

Verifica-se que o quesito de habitualidade e permanência podem, segundo a doutrina,


serem relativizados, considerando os agentes nocivos a que os segurados estão expostos.

1.1.4 Equipamento de Proteção Individual

O Equipamento de Proteção Individual – EPI é o instrumento que objetiva evitar ou


atenuar o risco de lesões provocadas por agentes físicos, químicos, mecânicos ou biológicos
presentes no ambiente de trabalho do segurado107.
O EPI é disciplinado pela Norma Regulamentadora 6 – NR-6 do MTE, que considera
Equipamento de Proteção Individual “todo dispositivo de uso individual destinado a proteger
a integridade física do trabalhador”.
A utilização de equipamentos de proteção individual (EPI) é irrelevante para o
reconhecimento das condições especiais, prejudiciais à saúde ou à integridade física do
trabalhador, da atividade exercida no período anterior a 03 de dezembro de 1998, data da
publicação da MP nº 1.729, de 2 de dezembro de 1998, convertida na Lei nº 9.732, de 11 de
dezembro de 1998, que alterou o § 2º do artigo 58 da Lei 8.213/91, determinando que o laudo
técnico contenha informação sobre a existência de tecnologia de proteção individual que
diminua a intensidade do agente agressivo a limites de tolerância e recomendação sobre a
sua adoção pelo estabelecimento respectivo.
Nos períodos posteriores a dezembro de 1998, a especialidade é devida pela
exposição a agentes nocivos biológicos. Quanto ao tema, o próprio INSS, na Resolução
INSS/PRES n.º 600 de 2017 ("Manual de Aposentadoria Especial"), item 3.1.5 do "Capítulo

MARTINEZ, Wladimir Novaes. Revista da Previdência Social – RPS, 1998, n. 217, p. 1.049-1.055.
106
107
RIBEIRO, Maria Helena Carreira Alvim, Aposentadoria Especial de Profissionais da Área da Saúde &
Contribuintes Individuais, Juruá Editora, 2018, p. 178
103

II - Agentes Nocivos", expressamente reconhece a ineficácia de EPIs em relação a agentes


biológicos.
A Instrução Normativa 77/2015 dispõe:
Art. 279. Os procedimentos técnicos de levantamento ambiental, ressalvadas as
disposições em contrário, deverão considerar:
I - a metodologia e os procedimentos de avaliação dos agentes nocivos
estabelecidos pelas Normas de Higiene Ocupacional - NHO da FUNDACENTRO;
e
II - os limites de tolerância estabelecidos pela NR-15 do MTE.
(...)
§ 6º Somente será considerada a adoção de Equipamento de Proteção Individual -
EPI em demonstrações ambientais emitidas a partir de 3 de dezembro de 1998,
data da publicação da MP nº 1.729, de 2 de dezembro de 1998, convertida na Lei
nº 9.732, de 11 de dezembro de 1998, e desde que comprovadamente elimine ou
neutralize a nocividade e seja respeitado o disposto na NR-06 do MTE, havendo
ainda necessidade de que seja assegurada e devidamente registrada pela empresa,
no PPP, a observância:
I - da hierarquia estabelecida no item 9.3.5.4 da NR-09 do MTE, ou seja, medidas
de proteção coletiva, medidas de caráter administrativo ou de organização do
trabalho e utilização de EPI, nesta ordem, admitindo-se a utilização de EPI
somente em situações de inviabilidade técnica, insuficiência ou interinidade à
implementação do EPC ou, ainda, em caráter complementar ou emergencial;
II - das condições de funcionamento e do uso ininterrupto do EPI ao longo do
tempo, conforme especificação técnica do fabricante, ajustada às condições de
campo;
III - do prazo de validade, conforme Certificado de Aprovação do MTE;
IV - da periodicidade de troca definida pelos programas ambientais, comprovada
mediante recibo assinado pelo usuário em época própria; e
V - da higienização.

Segundo a autora Maria Helena Carreira Alvim Ribeiro108, “desde a decisão do STF
no julgamento do processo ARE 664.335, flexibilizando o entendimento em relação ao
agente físico ruído, tem sido questionada a neutralização da nocividade da atividade
desempenhada pelo profissional da área da saúde”.
Conforme Wladimir Novaes Martinez109 “o direito ao benefício dispensa, por parte
do interessado, a prova de ter havido tal prejuízo físico, bastando, consoante filosofia da lei,
a mera possibilidade de sua ocorrência”, isto é, a probabilidade do risco”.
De acordo com os autores Tuffi Messias Saliba e Márcia Angelim Chaves Côrrea110
a insalubridade por agentes biológicos é inerente a atividade, isto é, não há eliminação com
medidas aplicadas ao ambiente nem neutralização com o uso de EPI’s. A adoção de sistema

108
RIBEIRO, Maria Helena Carreira Alvim, Aposentadoria Especial de Profissionais da Área da Saúde &
Contribuintes Individuais, Juruá Editora, 2018, p. 179.
109
MARTINEZ, Wladimir Novaes. Questões Atuais Envolvendo a Aposentadoria Especial. Revista de
Previdência Social, n. 217, dez. 1998, p. 1.049-1.055.
110
SALIBA, Tuffi Messias; CORRÊA, Márcia Angelim Chaves. Insalubridade e periculosidade: aspectos
cnicos e práticos. São Paulo: LTr, 2017. p. 146
104

de ventilação e o uso de luvas, máscara e outros equipamentos que evitem o contato com
agentes biológicos podem apenas minimizar o risco.
O Enunciado 21 do CRPS – Conselho de Recursos da Previdência Social, editado
pela Resolução MPS/CRPS 1 das Câmaras do Conselho Pleno das Câmaras Superiores, de
11.11.1999 é nesse sentido: O simples fornecimento de equipamento de proteção individual
de trabalho pelo empregador não exclui a hipótese de exposição do trabalhador aos agentes
nocivos à saúde, devendo ser considerado todo o ambiente de trabalho.
Segundo Maria Helena Carreira Alvim Ribeiro111, a conclusão coerente com a correta
interpretação da doutrina e jurisprudência, tratando-se de exposição a agentes biológicos e à
radiação, a utilização de EPI não é capaz de elidir, de forma absoluta, o risco proveniente do
exercício da atividade.

2 ANÁLISE JURISPRUDENCIAL ACERCA DA APOSENTADORIA ESPECIAL


NO AMBIENTE HOSPITALAR

Em que pese o hospital seja o local adequado para o atendimento de pessoas doentes,
há de se considerar que se trata de um local insalubre, pois os agentes biológicos podem estar
presentes em todos os espaços. Por conta disso, a questão que vem sendo enfrentada pelos
tribunais é se todos os trabalhadores dos hospitais, independente da sua atividade, fazem jus
a aposentadoria especial.
Os agentes biológicos estão previstos nos códigos 1.3.1 do quadro Anexo do Decreto
nº 53.831/64, 1.3.1 do Anexo I do Decreto nº 83.080/79 e 3.0.0 e 3.0.1 do Anexo IV dos
Decretos nº 2.172/97 e nº 3.048/99. No entanto, a jurisprudência vem entendendo tratar-se
de rol exemplificativo os fatores e situações de risco previstas nos referidos anexos. Assim,
ainda que tais Decretos prevejam a especialidade apenas de atividades em ambiente
hospitalar onde sejam tratados "pacientes portadores de doenças infectocontagiosas",
havendo demonstração, mediante perícia técnica, da efetiva exposição do segurado a agentes
biológicos nocivos à saúde mesmo em ambiente diverso daquele previsto pela norma
regulamentadora, vem sendo reconhecida a natureza especial da atividade.

111
RIBEIRO, Maria Helena Carreira Alvim, Aposentadoria Especial de Profissionais da Área da Saúde &
Contribuintes Individuais, Juruá Editora, 2018, p. 179
105

É o que ensina a jurisprudência do TRF4:


PREVIDENCIÁRIO. ATIVIDADE RURAL. FILHA SOLTEIRA. ATIVIDADE
ESPECIAL. AGENTES BIOLÓGICOS. CONVERSAO DA ATIVIDADE
COMUM EM ESPECIAL ANTERIOR A LEI N. 9.032/95. CONCESSÃO DE
APOSENTADORIA ESPECIAL. CORREÇÃO MONETÁRIA E JUROS
MORATÓRIOS A PARTIR DA LEI 11.960/2009. ADI 4.357 E 4.425. EFEITOS.
TUTELA ESPECÍFICA. [...] 2. Constatado o contato habitual e permanente, não
ocasional, nem intermitente com agentes nocivos biológicos devem ser
reconhecidas as atividades como especiais, dada a sua natureza qualitativa. Num
ambiente destinado exatamente a cura de doenças, como é o caso de um hospital
ou um ambulatório, é de se esperar que existam as mais diversas formas de
FUNGOS, BACTERIAS e VIRUS prontos para contaminar a quem circule nesse
meio - os trabalhadores do setor de saúde. Essas formas de vida penetram no
organismo humano por via digestiva, por via respiratória ou pela pele,
produzindo danos que variam em função direta do grau de virulência e do grau
de infestação e em função inversa á resistência do indivíduo infectado. O
problema é agravado por ser um hospital o local para onde convergem muitos
tipos de microorganismos que, sendo continuamente combatidos com os mais
diversos antibióticos e quimioterápicos, sofrem uma seleção quanto a sua
resistência a essas armas. [...] (TRF4, APELREEX 5001130-23.2013.404.7117,
SEXTA TURMA, Relator p/ Acórdão EZIO TEIXEIRA, juntado aos autos em
11/11/2013)

ADICIONAL DE INSALUBRIDADE EM GRAU MÉDIO. HOSPITAL. As


atividades dos substituídos na portaria e recepção do hospital réu são insalubres
em grau médio pela exposição a agentes biológicos presentes em áreas
hospitalares - portaria e recepção de hospital, de acordo com o Anexo nº 14 da
NR-15 da Portaria Ministerial nº 3.214/78. O ambiente hospitalar é insalubre pela
maior concentração de agentes biológicos nocivos, o que pode ocasionar
contaminação também pelas vias indiretas. Recurso do Sindicato parcialmente
provido. (TRT4 0000436-71.2014.5.04.0861 RO, QUARTA TURMA, Relator
Desembargador André Reverbel Fernandes, julgado em 09/03/2016)

A jurisprudência do TRF3ª da conta de que comprovada a exposição do segurado aos


agentes nocivos, independente da atividade, fazem jus a aposentadoria especial, vejamos:

PREVIDENCIÁRIO. APOSENTADORIA ESPECIAL. REQUISITOS


PREENCHIDOS. APELAÇÃO PROVIDA.
1. Da análise do Perfil Profissiográfico Previdenciários (PPP) juntados aos autos
(fls. 20/22) e, de acordo com a legislação previdenciária vigente à época, o autor
comprovou o exercício da atividade especial nos seguintes períodos: - 04/08/1989
a 31/03/1998, uma vez que trabalhou como vigilante em ambiente hospitalar,
estando exposto de forma habitual e permanente a agentes nocivos a saúde (vírus
e bactérias/agentes físicos), enquadrando-se nos códigos 1.3.2 e 2.5.7 do Anexo
III do Decreto nº 53.831/64 e código 1.3.2, Anexo II do Decreto nº 83.080/79; -
01/04/1998 a 13/05/2015, pois exerceu atividade laborativa como recepcionista
em ambiente hospitalar, recepcionando e prestando serviços de apoio a pacientes,
marcando consultas, averiguando suas necessidades e os dirigindo ao lugar
procurado, estando, de igual forma, exposto de forma habitual e permanente a
agentes nocivos a saúde (vírus e bactérias/agentes físicos), enquadrando-se no
código 1.3.2, Anexo III do Decreto nº 53.831/64 e código 1.3.2, Anexo II do
Decreto nº 83.080/79.
106

2. Computados os períodos trabalhados até a data do requerimento administrativo,


verifica-se que a parte autora comprovou o exercício de atividades consideradas
especiais por um período de tempo superior a 25 (vinte e cinco) anos, razão pela
qual preenche os requisitos para a concessão da aposentadoria especial, nos
moldes dos artigos 57 e 58 da Lei nº 8.213/91. Por conseguinte, cabe reconhecer
o direito do autor ao benefício de aposentadoria especial, a partir de 19/05/2015,
data do requerimento administrativo. (...) 5. Apelação provida. (TRF 3ª Região,
SÉTIMA TURMA, Ap - APELAÇÃO CÍVEL - 2173108 - 0022921-
45.2016.4.03.9999, Rel. DESEMBARGADOR FEDERAL TORU
YAMAMOTO, julgado em 26/06/2017, e-DJF3 Judicial 1 DATA:06/07/2017)

PREVIDENCIÁRIO. PROCESSO CIVIL. DESAPOSENTAÇÃO. EMBARGOS


DE DECLARAÇÃO. ATIVIDADE ESPECIAL. AGENTES BIOLÓGICOS.
RUÍDO. COMPROVADA A EXPOSIÇÃO A AGENTES NOCIVOS À SAÚDE.
EFEITOS INFRINGENTES.
I - Em regra, a atividade de recepcionista não é tida por especial, ainda que em
ambiente hospitalar, tendo em vista a dificuldade de se demonstrar a exposição
habitual e permanente a agentes biológicos, porém, os documentos constantes dos
autos comprovam que a autora matinha contato direto com pacientes enfermos,
não isolados, exposta a agentes biológicos nocivos, nos períodos de 25.08.1979 a
20.09.1984 e de 02.01.1985 a 13.07.1987, laborados no Hospital N.S.Penha S.A.,
devendo ser tidos por especiais.
II- Nos períodos de 01.12.1987 a 31.03.1995 e 20.07.1987 a 30.11.1987, a autora
laborou na empresa Telecomunicações de São Paulo S.A. - Telesp, na função de
telefonista, e esteve exposta a ruído de 80,6 decibéis, conforme formulários DSS-
8030 e laudo técnico acostados autos, de modo que tais interregnos devem ser
considerados especiais.
III- Embargos de declaração opostos pela parte autora acolhidos, com efeitos
infringentes.
(TRF 3ª Região, DÉCIMA TURMA, ApReeNec - APELAÇÃO/REMESSA
NECESSÁRIA - 2039840 - 0003500-13.2012.4.03.6183, Rel.
DESEMBARGADOR FEDERAL SERGIO NASCIMENTO, julgado em
13/10/2015, e-DJF3 Judicial 1 DATA:21/10/2015)

Insta frisar que é pacífico o entendimento no Superior Tribunal de Justiça segundo o


qual as normas que regulamentam os agentes e as atividades consideradas nocivas aos
obreiros são meramente exemplificativas, admitindo-se o reconhecimento da especialidade
de atividade não incluída no rol previsto nos anexos dos atos normativos regulamentares da
legislação previdenciária quando comprovada a efetiva exposição do trabalhador aos agentes
nocivos à saúde. Neste sentido colaciona-se a ementa referente ao julgamento do AgInt no
REsp 1713769 / RJ, Relatora Ministra REGINA HELENA COSTA, PRIMEIRA TURMA,
julgado em 03/05/2018:
PROCESSUAL CIVIL. PREVIDENCIÁRIO. AGRAVO INTERNO NO
RECURSO ESPECIAL. CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015.
APLICABILIDADE. ROL DE ATIVIDADE ESPECIAIS EXEMPLIFICATIVO.
ENGENHEIRO MECÂNICO. ATIVIDADE NÃO ENQUADRADA.
INSALUBRIDADE NÃO COMPROVADA. INCIDÊNCIA DA SÚMULA N.
83/STJ. ARGUMENTOS INSUFICIENTES PARA DESCONSTITUIR A
DECISÃO ATACADA. HONORÁRIOS RECURSAIS. NÃO CABIMENTO.
AGRAVO INTERNO CONTRA DECISÃO FUNDAMENTADA NAS
107

SÚMULAS 83 E 568/STJ (PRECEDENTE JULGADO SOB O REGIME DA


REPERCUSSÃO GERAL, SOB O RITO DOS RECURSOS REPETITIVOS OU
QUANDO HÁ JURISPRUDÊNCIA PACIFICADA SOBRE O TEMA).
MANIFESTA IMPROCEDÊNCIA. APLICAÇÃO DE MULTA. ART. 1.021, §
4º, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015. CABIMENTO.
I - Consoante o decidido pelo Plenário desta Corte na sessão realizada em
09.03.2016, o regime recursal será determinado pela data da publicação do
provimento jurisdicional impugnado. In casu, aplica-se o Código de Processo Civil
de 2015 para o presente Agravo Interno, embora o Recurso Especial estivesse
sujeito ao Código de Processo Civil de 1973.
II - É pacífico o entendimento no Superior Tribunal de Justiça segundo o qual as
normas que regulamentam os agentes e as atividades consideradas nocivas aos
obreiros são meramente exemplificativas, admitindo-se o reconhecimento da
especialidade de atividade não incluída no rol previsto nos anexos dos atos
normativos regulamentares da legislação previdenciária quando comprovada a
efetiva exposição do trabalhador aos agentes nocivos à saúde, conforme
precedente submetido ao rito do art. 543-C do Código de Processo Civil (TEMA
534).
III - O recurso especial, interposto pelas alíneas a e/ou c do inciso III do art. 105
da Constituição da República, não merece prosperar quando o acórdão recorrido
encontra-se em sintonia com a jurisprudência desta Corte, a teor da Súmula n.
83/STJ.
IV - Não apresentação de argumentos suficientes para desconstituir a decisão
recorrida.
V - Honorários recursais. Não cabimento.
VI - Em regra, descabe a imposição da multa, prevista no art. 1.021, § 4º, do
Código de Processo Civil de 2015, em razão do mero improvimento do Agravo
Interno em votação unânime, sendo necessária a configuração da manifesta
inadmissibilidade ou improcedência do recurso a autorizar sua aplicação.
VII - Considera-se manifestamente improcedente e enseja a aplicação da multa
prevista no art. 1.021, § 4º, do Código de Processo Civil de 2015 nos casos em que
o Agravo Interno foi interposto contra decisão fundamentada em precedente
julgado sob o regime da Repercussão Geral, sob o rito dos Recursos Repetitivos
ou quando há jurisprudência pacífica da 1ª Seção acerca do tema (Súmulas ns. 83
e 568/STJ).
VIII - Agravo Interno improvido, com aplicação de multa de 1% (um por cento)
sobre o valor atualizado da causa.

No que tange ao nível de concentração dos agentes biológicos, os riscos ocupacionais


gerados por esses agentes não requerem a análise quantitativa de sua concentração ou
intensidade máxima e mínima no ambiente de trabalho, dado que são caracterizados pela
avaliação qualitativa, como já visto no capítulo anterior.
Neste sentido a jurisprudência do TRF5º:
PREVIDENCIÁRIO. ATIVIDADES ADMINISTRATIVAS EM AMBIENTE
HOSPITALAR. LABOR COM EXPOSIÇÃO A AGENTES BIOLÓGICOS.
ARE 664335-SC. EPI INEFICAZ. CARÁTER HABITUAL E PERMENENTE.
JUROS DE MORA E CORREÇÃO MONETÁRIA. HONORÁRIOS
ADVOCATÍCIOS. SÚMULA Nº 111 DO STJ.
I. Apelação de sentença que julgou improcedente o pedido de concessão de
aposentadoria especial.
II. A Lei nº 8.213/91 (art. 57) assegura o direito à concessão de aposentadoria
especial ao segurado que tiver trabalhado sujeito a condições que prejudiquem a
saúde ou a integridade física, durante 15 (quinze), 20 (vinte) ou 25 (vinte e cinco)
anos.
108

III. Até a edição da Lei 9.032/95 (29.4.95) era suficiente o exercício de atividade
considerada como insalubre ou perigosa, nos termos dos Decretos n° 53.831/64 e
83.080/79. Ainda que se considere meramente exemplificativo o rol de agentes
nocivos e atividades agressivas dos decretos, entende-se que devem, ao menos, ser
apresentados documentos hábeis a comprovar que o trabalho era desempenhado
sob condições perigosas, penosas ou insalubres.
IV. A partir da Lei 9.032/95, com a edição do Decreto 2.172/97 (05.03.97) até a
Lei 9.711/98 (28.05.98), passou-se a exigir que a atividade fosse exercida com
efetiva exposição a agentes nocivos.
V. O Colendo STF, quando do julgamento do ARE 664335-SC, sob regime de
repercussão geral, entendeu que: "o direito à aposentadoria especial pressupõe a
efetiva exposição do trabalhador a agente nocivo à sua saúde, de modo que, se o
EPI for realmente capaz de neutralizar a nocividade não haverá respaldo
constitucional à aposentadoria".
VI. Constatado, através dos documentos colacionados aos autos, PPPs e laudos
técnicos, que o autor exerceu atividade laboral na Casa de Saúde Pedro
Valadares, nas funções de auxiliar de contabilidade, contabilista, diretor
financeiro, auxiliar administrativo, exposto a agentes biológicos (vírus e
bactérias) de forma habitual e permanente, durante mais 25 (vinte e cinco) anos
(03/11/1988 a 12/11/2013), e que o EPI resultou ineficaz, deve ser-lhe concedida
a aposentadoria pleiteada, desde a data do requerimento administrativo.
VII. Conforme entendimento desta Segunda Turma Julgadora, nas causas
previdenciárias, deve ser aplicado, sobre as parcelas devidas, o critério de
atualização, previsto no Manual de Cálculos da Justiça Federal, a contar do débito,
sobre todo o período devido, e juros de mora de 0,5% ao mês, a partir da citação
(Lei nº 9494/97, art. 1-F, dada pela Medida Provisória nº 2180-35, 2001).
VIII. Honorários advocatícios fixados no percentual de 10% (dez por cento) sobre
valor das parcelas vencidas, observando-se o disposto na Súmula nº. 111 do STJ.
IX. Apelação provida. (PROCESSO: 08000996920144058503, AC/SE,
DESEMBARGADOR FEDERAL IVAN LIRA DE CARVALHO
(CONVOCADO), 2ª Turma, JULGAMENTO: 30/07/2015, PUBLICAÇÃO:)

A jurisprudência do TRF 4ª adota o entendimento de que o fato de o labor ser


realizado em ambiente hospitalar já é suficiente para caracterização como tempo de serviço
especial, em razão da notória presença de germes infecciosos ou parasitários humanos-
animais, onde o risco de contágio é inerente às atividades prestadas, sendo desnecessário que
o contato se dê de forma permanente, já que o risco de acidente independe do tempo de
exposição, vejamos:
PREVIDENCIÁRIO. TEMPO ESPECIAL. AGENTES BIOLÓGICOS.
TRANSFORMAÇÃO DE APOSENTADORIA POR IDADE EM
APOSENTADORIA POR TEMPO DE SERVIÇO/CONTRIBUIÇÃO. JUROS E
CORREÇÃO MONETÁRIA. LEI 11.960/09. CRITÉRIOS DE ATUALIZAÇÃO.
DIFERIMENTO PARA A FASE PRÓPRIA (EXECUÇÃO). 1. Comprovada a
exposição do segurado a agente nocivo, na forma exigida pela legislação
previdenciária aplicável à espécie, possível reconhecer-se a especialidade da
atividade laboral por ele exercida. 2. Em se tratando de agentes biológicos, o
enquadramento decorre do fato do labor ter sido prestado em ambiente
hospitalar, onde é notória a presença de germes infecciosos ou parasitários
humanos-animais e onde o risco de contágio é inerente às atividades prestadas,
sendo desnecessário que o contato se dê de forma permanente, já que o risco de
acidente independe do tempo de exposição 3. No caso dos autos, o autor tem
direito à transformação da aposentadoria por idade em aposentadoria por tempo
109

de contribuição, pois mediante a soma do tempo judicialmente reconhecido com


o tempo computado na via administrativa, possui tempo suficiente e implementa
os demais requisitos para a obtenção do benefício. (...)
(TRF4, AC 2009.72.99.000176-1, SEXTA TURMA, Relatora SALISE
MONTEIRO SANCHOTENE, D.E. 05/10/2016)

Diferentemente, o entendimento adotado por uma das Turmas do TRF5º é no sentido


de que o simples fato de trabalhar em ambiente hospitalar não assegura, por si só, à parte
autora, o direito ao reconhecimento da especialidade da atividade exercida, se inexistente a
exposição do segurado à condição excepcional de trabalho:
PREVIDENCIÁRIO. APOSENTADORIA ESPECIAL. AUXILIAR DE
ENFERMAGEM. EXPOSIÇÃO DANOSA A AGENTES BIOLÓGICOS E
INFECTO-CONTAGIANTES. PRESUNÇÃO NÃO ABSOLUTA.
COMPROVAÇÃO DE DESEMPENHO DE ATIVIDADES BUROCRÁTICAS
NO MAIOR PERÍODO LABORAL. NÃO CONFIGURAÇÃO DOS
REQUISITOS PARA A CONCESSÃO DE APOSENTADORIA ESPECIAL.
(1 a 4 in omissis)
5. O simples fato de trabalhar em ambiente hospitalar não assegura, por si só, à
parte autora, o direito ao reconhecimento da especialidade da atividade exercida,
se inexistente a exposição do segurado à condição excepcional de trabalho.
Precedente: AC576670/PB, Desembargador Federal Vladimir Carvalho, Segunda
Turma, Julgamento: 26/05/2015, Publicação: DJE 01/06/2015 - Página 50.
6. É sólida a orientação desta Corte acerca da desnecessidade de que o laudo
técnico apresentado seja contemporâneo à época em que houve a prestação do
serviço pelo trabalhador. Precedente: AC 559557/CE, Rel. Des. Federal Ivan Lira
de Carvalho, 2ª Turma, DJe 21/05/2015.
7. O tempo de serviço especial (01/06/88 a 31/12/94 e 01/03/1996 a 31/07/1996)
apontado pela Apelada revela-se insuficiente para lastrear o deferimento da
Aposentadoria Especial, que pressupõe, no mínimo, 25 (vinte e cinco) anos de
labor excepcional (art. 57, da Lei nº 8.213/91).
8. Apelação provida, para julgar improcedente o pedido formulado na Ação
Ordinária, declarar a inexistência das obrigações de fazer e de pagar a que foi
condenada a Autarquia Recorrente. Invertidos os ônus da sucumbência, restando
suspensa a sua exigibilidade, nos termos do art. 98, parágrafo 3º,
do CPC/2015.Remessa Necessária não conhecida. (PROCESSO:
08045818020154058000, APELREEX/AL, DESEMBARGADOR FEDERAL
CID MARCONI, 3ª Turma, JULGAMENTO: 17/12/2016, PUBLICAÇÃO: )

Verifica-se que mesmo não sendo pacífico o entendimento jurisprudencial, no


ambiente hospitalar o risco de contágio por agentes biológicos pode ser entendido como
inerente às atividades de todos os profissionais, mesmo que não se possa dizer que todos os
pacientes sejam portadores de doença infecto-contagiosa, ou que o contato com esse tipo de
paciente seja permanente, considerando a existência de agentes biológicos comumente
encontrados nos estabelecimentos de saúde.
110

CONCLUSÃO

O objetivo traçado para a presente pesquisa foi verificar a luz da legislação, doutrina
e jurisprudência a possibilidade de concessão do benefício de aposentadoria especial a todos
os que exercem suas atividades laborais no ambiente hospitalar, independente da função,
considerando o risco de exposição aos agentes biológicos característicos aos ambientes de
trabalho da área da saúde.
A legislação previdenciária permite a concessão do benefício de aposentadoria
especial aos segurados da Previdência Social que comprovem o contato habitual e
permanente com agentes biológicos de natureza infectocontagiosa.
Cinge-se, a controvérsia, em saber se essa benesse se estende aos trabalhadores em
geral da área hospitalar, ou ainda, se procede a compreensão no sentido de que os
trabalhadores que atuam no nosocômio ou ambientes análogos, mesmo que exerçam
atividades de cunho administrativo, estejam igualmente sujeitos aos riscos biológicos do
local.
Os riscos de natureza biológica reclamam análise qualitativa, isso é, o tempo de
exposição ao agente agressivo não guarda relação com o potencial nocivo. Demais disso,
entende-se que no hospital, por ser um local destinado ao tratamento de doentes, convergem
inúmeras doenças, fungos, bactérias, microorganismos, os quais se transmitem pelas vias
cutânea, digestiva e aérea, estando prontos para atacar aqueles que circulam nesse meio.
Os trabalhadores, por sua vez, muitas vezes atuam como vetores de transmissão
desses agentes. Acerca dos requisitos de habitualidade e permanência, vige a compreensão
de que a permanência não é relevante para concessão de aposentadoria especial com
fundamento em exposição a agente biológico, sendo reconhecido que o ambiente hospitalar
e outros similares são insalubres e potencialmente causadores de danos à saúde.
Por conta disso, entende-se que os trabalhadores situados dentro da área hospitalar
estão, indistintamente, expostos a agentes biológicos nocivos à saúde, aplicando-se a
compreensão de que o risco é inerente à atividade-fim do local.
Diante dessa compreensão, fazem jus, igualmente, ao benefício de aposentadoria
especial.
111

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114

III ABORDAGENS
CONTEMPORÂNEAS NO DIREITO
PROCESSUAL CIVIL
115

A FLEXIBILIZAÇÃO PROCEDIMENTAL COMO EXPRESSÃO DA


COLABORAÇÃO NO CPC/2015

Claudia Perrone112
Aline Burin Cella113

RESUMO

O artigo apresenta a flexibilização procedimental garantida pelo CPC/2015 como um


indicativo de que o código de processo civil adotou predominantemente um modelo
colaborativo de processo. Aponta, igualmente, que a flexibilização deverá estar pautada nos
elementos que caracterizam a colaboração como um princípio. O artigo é dividido em dois
itens: no primeiro são apresentados os elementos que caracterizam a colaboração como um
modelo processual, bem como os elementos inerentes a sua consideração como um princípio;
no segundo são apresentadas as três espécies de flexibilizações procedimentais (legal,
judicial e voluntária). Seguem considerações finais.

Palavras-chave: Flexibilização Procedimental. Modelo Colaborativo. Princípio da


Colaboração.

INTRODUÇÃO

A realidade social contemporânea, segundo nos ensina Baumann (2001) pode ser
caracterizada como uma modernidade líquida, onde tudo é muito instantâneo e insípido, o
direito, que é essencialmente rígido e formal, precisa encontrar meios de aderir à realidade
social e política. Dentro dessa perspectiva, as garantias e os direitos fundamentais estão em
constante construção e precisam acompanhar a sociedade no espaço e no tempo. Talvez por
isso a Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015, que instituiu o novo Código de Processo Civil
(CPC/2015), trouxe em seu texto uma série de inovações procedimentais, simplificação dos
ritos e, principalmente, com uma tentativa [...] de se mitigar a adoção, pelo sistema, do
modelo da legalidade das formas procedimentais, permitindo-se ao juiz e às partes, diante
do déficit procedimental, a adaptação dos procedimentos às particularidades objetivas e
subjetivas da causa (flexibilização procedimental) (GAJARDONI, 2011, p.165-6).
Diante desta constatação, pretende-se demonstrar, neste artigo, que a flexibilização

112
Mestra em Direitos Humanos (UniRitter, 2015). Advogada especialista em Direito Empresarial (Unisinos,
2010) e em Direito Processual Civil (UNISC, 2017). Membro do Grupo de Pesquisas “O Processo Civil na
Perspectiva dos Direitos Fundamentais”, PUC/RS. Presidente da Comissão de Direitos e Garantias
Individuais, da Subseção da OAB/NH. E-mail: cperrone06@gmail.com
113
Mestre em Direito. Professora do Departamento de Direito da UNISC na graduação e pós-graduação Lato
Sensu. Especialista em Direito Imobiliário. Coordenadora do Projeto de Extensão Fiscal Aprendiz.
Orientadora de Estágios. Advogada. E-mail: alinecella@unisc.br
116

procedimental garantida pelo CPC/2015 funciona como um indicativo de que o código de


processo civil adotou predominantemente um modelo colaborativo de processo, processo
este que também deverá estar pautado nos elementos que caracterizam a colaboração como
um princípio. Para percorrer o tema delimitado e alcançar esses os objetivos, o estudo foi
divido em duas partes; na primeira parte será analisada a colaboração tanto como um modelo
processual, quanto como um princípio, apresentando então os deveres processuais inerentes
à colaboração; na segunda parte, sem que sejam esgotas as flexibilizações procedimentais
implementadas pelo CPC/2015, serão analisadas as espécies de flexibilização, bem como
sua relação com a noção de colaboração apresentada na primeira parte do artigo. Ao final,
são apresentadas considerações finais.

1 A COLABORAÇÃO COMO MODELO E COMO PRINCÍPIO PROCESSUAL

A premissa deste estudo é de que o Processo Civil brasileiro, a partir da vigência do


CPC/2015, adotou predominantemente um modelo de processo colaborativo, em detrimento
dos tradicionais modelos adversarial e inquisitorial. Predominantemente porque “[...] os
modelos jurídicos, com a pureza com que são apresentados, resultam de ficções, abstrações
construídas a partir de realidades jurídicas. Não há, no mundo real, modelos puros”. Com
efeito, um sistema jurídico-processual poderá apresentar características dos três modelos e
ainda assim será identificado como predominantemente pertencente a um modelo específico,
sem que seja necessária uma identidade completa, ou a inexistência de mecanismos típicos
dos outros modelos processuais em sua estrutura normativa (BARREIROS, 2013, p.66).114
Trata-se do reconhecimento de que a conformação destes modelos está diretamente
associada à consideração do Direito Processual Civil como uma manifestação cultural, com
atributos que estão intimamente relacionadas às características distintivas de cada sociedade
e na forma como o direito se conformou para atender os anseios sociais (MITIDIERO, 2011).

114
Apenas para exemplificar o que é dito, deve ser considerado que algumas manifestações típicas dos modelos
adversarial e inquisitorial estão expressas no CPC/2015. Manifestações típicas do modelo adversarial, que
dizem com a instauração do processo e as regras de fixação do objeto litigioso, são os artigos 2º do CPC (com
correspondência no artigo 262 CPC/1973), do 141 do CPC (com correspondência no artigo 128 CPC/1973),
e do 492 CPC/2015 (com correspondência no artigo 460 do CPC/1973), que representam expressões do
princípio dispositivo. Por outro lado, proposições típicas do modelo inquisitorial, que dizem com a
investigação probatória, são os artigos 370 do CPC (com correspondência no artigo 130 CPC/1973), do artigo
373, §§1º e 2º do CPC (com correspondência no artigo 333 CPC/1973) manifesta expressão do princípio
inquisitivo.
117

Tal afirmação está diretamente relacionada à premissa formulada por Castanheira Neves
(1993, p.13), de que os pensamentos jurídicos, em suas mais variadas formulações, são
“entidades culturalmente históricas”; ou seja, os valores de cada sociedade, em cada época,
permeiam direito e pensamento jurídico, conformando suas particularidades.
Desde logo deve ser dito que seria um erro tratar cada um dos modelos processuais
aqui analisados como pertencentes a famílias ou tradições jurídicas distintas (civil law e
common law) (BARREIROS, 2013); de fato, o que identifica cada modelo são os
pressupostos sociais, lógicos e éticos, que resultam em diferentes modos de enfrentamento
do problema da divisão de trabalho entre os atores de um processo judicial (MITIDIERO,
2011). O que se destaca é que o objeto dos modelos processuais nada mais é do que a
referência ao papel exercido por cada um dos atores, que terá mais ou menos protagonismo
na instauração, no desenvolvimento ou na conclusão do processo, de acordo com a
predominância do modelo.
Se o que diferencia cada modelo são a organização e a divisão das tarefas e dos
poderes entre os atores, neste estudo não se pretende analisar a polaridade das características
dos modelos adversarial e inquisitorial. Na verdade há, contemporaneamente, uma “[...]
tendência de superação tanto do modelo liberal, de esvaziamento do poder do juiz, quanto
do modelo social autoritativo, de exercício solitário de aplicação compensadora do direito
pelo juiz [...]” (NUNES, 2008, p.212). Nesta perspectiva, busca com um terceiro modelo
(processo colaborativo), se busca suprir este esvaziamento por meio de uma adequada
divisão de tarefas e de poderes entre esses atores (partes e juiz)115 (MARINONI;
MITIDIERO, 2015).
Ao modificar o papel do juiz, o modelo colaborativo de processo impõe uma
modificação na própria estrutura da relação jurídica de direito processual civil, substituindo
a antiga representação triangular, que colocava o estado-juiz acima das demais partes do
processo e a redesenhando em forma de linhas paralelas. Nesta perspectiva o juiz está no
mesmo nível das partes e atua no mesmo sentido que elas; o traço mais característico do
processo colaborativo é que o juiz é inserido como sujeito do contraditório, não possuindo
mais apenas poderes de condução do feito, mas especialmente deveres de cooperação com

115
Aqui, deve ser esclarecido que a colaboração não espera que as partes colaborem entre si; espera que elas
colaborem com o juiz, e o juiz com as partes na divisão equilibrada dos atos e encargos processuais, para a
melhor construção do feito e o aprimoramento da decisão final. Sobretudo porque “[a]s partes não querem
colaborar. [...] As partes não colaboram e não devem colaborar entre si simplesmente porque obedecem a
diferentes interesses no que tange à sorte do litígio” (MARINONI, MITIDIERO, 2015, p.740).
118

as partes (GRASSO, 1966). Trata-se de criar um ambiente onde a construção do processo se


estabelece por meio de um diálogo dialético e onde o juiz é parte da solução do problema
submetido à tutela do estado. Não pode, consequentemente, se comportar de modo “[...]
alheio e indiferente. Tampouco lhe é lícito postar-se como sujeito supra partes, cujas ideias
podem ser impostas de modo autoritário, sem que sejam elas também submetidas ao debate
democrático” (BARREIROS, 2013, p.180). Deve ficar claro, que o juiz subsiste na condução
do processo, mas ao invés de fazê-lo impositivamente, age dialogicamente, de modo a
concretizar o princípio do contraditório, permitindo que toda a condução do processo esteja
disponível para influência das partes. O contraditório, aqui, se manifesta não apenas como
direito da parte de falar, mas como direito de ser ouvido e influenciar na atividade
jurisdicional a que a partes está se sujeitando (cidadania) (MITIDIERO, 2011).
Há, portanto, um redimensionamento do papel do juiz, a partir desta dupla posição
assumida no processo colaborativo, influenciando também o papel desempenhado pelos
demais participantes do processo, que ficam vinculadas a um dever de boa-fé (tanto em sua
faceta subjetiva, quanto objetiva). A “[...] dupla posição do juiz (paritária no diálogo,
assimétrica na decisão) e o reforço das posições jurídicas das partes conferem marca ao
processo civil cooperativo, manifestando-se ao longo de todo o formalismo processual.” Para
tanto, é necessário enxergar o processo civil como um processo qualificado por outros
direitos fundamentais, onde mais que a simples entrega do direito, a tutela jurisdicional deve
ser adequada, efetiva, e tempestiva, ou seja, um processo que respeite e concretize os direitos
fundamentais processuais das partes (MITIDIERO, 2011, p.114-5).
Em síntese: o modelo colaborativo “[...] se estrutura a partir de pressupostos culturais
que podem ser enfocados sob ângulo social, lógico e ético”. Do ponto de vista social, o
estado-juiz e a própria sociedade, como parte integrante de um Estado Constitucional, devem
ser compreendidos como membro em cooperação visando a obtenção de proveito mútuo. O
Estado, portanto, “[...] deixa de ter um papel de pura abstenção e passa a ter de prestar
positivamente para cumprir com seus deveres constitucionais”. Sob o ponto de vista lógico,
“[...] o processo cooperativo pressupõe o reconhecimento do caráter problemático do
direito, reabilitando-se a sua feição argumentativa. Passa-se da lógica apodítica à lógica
dialética”. Do ponto de vista ético, o processo é “[...] orientado pela busca, tanto quanto
possível, da verdade, e que, para além de emprestar relevo à boa-fé subjetiva, também exige
de todos os seus participantes a observância da boa-fé objetiva, sendo igualmente
destinatário o juiz” (MARINONI; MITIDIERO, 2015, p.738-9; MITIDIERO, 2011, p.69-
119

115).
Contudo, a colaboração não surge no CPC/2015 apenas como um modelo processual,
por vezes assumindo o papel de modelo processual, com as características já abordadas, e
por vezes assumindo o papel de princípio processual.116 Como princípio, “[...] apesar de não
estar expresso na Constituição Federal, o princípio da cooperação pode ser deduzido de
outros princípios, notadamente, do contraditório, da boa-fé e o do devido processo legal
(direito fundamental ao processo justo)”. (KOPLIN, 2015, p.44). Nesse prisma, a
colaboração impõe um estado de coisas que tem que ser promovido, servindo “[...] de
elemento para a organização de um processo justo idôneo a alcançar decisão justa. Para que
o processo seja organizado de forma justa, os seus participantes devem ter posições jurídicas
equilibradas ao longo do procedimento (MARINONI; MITIDIERO, 2015, p.740).
Posições jurídicas equilibradas são estruturadas a partir do estabelecimento de
preceitos normativos com caráter de regras, “[...] que devem ser seguidas pelo juiz na
condução do processo. O juiz tem os deveres de esclarecimento, de diálogo, de prevenção e
de auxílio para os litigantes. [...] Esses deveres consubstanciam as regras que estão sendo
enunciadas quando se fala em colaboração no processo” (MARINONI; MITIDIERO, 2015,
p.740). Assim, é possível depreender do CPC/2015 a existência de quatro deveres associados
ao princípio da colaboração, correspondentes aos deveres de esclarecimento, de prevenção,
de consulta, e de auxílio. Estes são deveres que possibilitam ao juiz efetivamente
compreender as alegações das partes, consultando-as sobre questões que influenciam nos
rumos do e na solução do processo, prevenindo-as quanto ao risco de que o êxito de seus
pedidos seja frustrado por sua condução inadequada, enfim, auxiliando as partes na
superação de eventuais dificuldades e desequilíbrios que impeçam o exercício de direitos e
o cumprimento de ônus processuais (processo justo) (MARINONI; MITIDIERO, 2015).
O dever de esclarecimento “[...] determina [...] que o juiz esclareça junto às partes os
pontos duvidosos (não claros) de suas postulações, a fim de que se possa prestar
adequadamente jurisdição”. Este dever vem exemplificado por Koplin (2015, p.46-7) com a

116
Adota-se aqui a distinção entre princípios e regras construída por Humberto Ávila, onde “[a]s regras são
normas imediatamente descritivas, primariamente retrospectivas e com pretensão de decidibilidade e
abrangência, para cuja aplicação se exige a avaliação da correspondência, sempre centrada na finalidade
que lhes dá suporte ou nos princípios que lhes são axiologicamente sobrejacentes, entre a construção
conceitual da descrição normativa e a construção conceitual dos fatos. Os princípios são normas
imediatamente finalísticas, primariamente prospectivas e com pretensão de complementariedade e de
parcialidade, para cuja aplicação se demanda uma avaliação de correlação entre o estado de coisas e ser
promovido e os efeitos decorrentes da conduta havida como necessária para à sua promoção” (ÁVILA,
2016, p.102).
120

previsão do artigo 357, §3º do CPC/2015, que ao tratar do saneamento e da organização do


processo, permite ao juiz, nas causas complexas, realizar o saneamento em cooperação com
as partes, onde estas podem, inclusive, esclarecer suas alegações. Mas o dever de
esclarecimento não se aplica somente às partes; ele “[...] também exige do juiz que esclareça
suas decisões às partes, quando necessário”, situação normatizada no artigo 1.022 do
CPC/2015.
O dever de prevenção “[...] impõe ao juiz a tarefa de atuar a fim de impedir, sempre
que possível, a extinção do processo por motivos meramente formais”. Aproxima-se de uma
tentativa de concretizar o formalismo-valorativo, evitando, assim, “[...] seja frustrado o
objetivo maior do processo judicial, que é a prestação da tutela jurisdicional do direito”. O
exemplo aqui é o artigo 321 do CPC/2015, que determina ao juiz que antes de indeferir a
petição inicial deve determinar que o autor a emende, “indicando com precisão o que deve
ser corrigido ou completado”. O destaque aqui é “[...] para necessidade de indicação
específica, pelo órgão judicial, do ponto a ser suprido pela parte, que não precisará mais
‘adivinhar’ o que fazer” (KOPLIN, 2015, p.46-7).
O dever de consulta se qualifica como uma consulta prévia, estabelecendo que o “[...]
magistrado debata com as partes, antes de decidir, todas as questões relevantes de fato e
direito, mesmo as que lhe seria dado examinar de ofício, a fim de que tenham oportunidade
de realmente influenciar o rumo a ser dado à causa”. Aqui, Koplin (2015, p.47-8) faz uma
ressalva: “[...] esse aspecto do princípio da cooperação não é absoluto, tendo de conviver
harmoniosamente com outros princípios, especialmente com o da duração razoável do
processo. Assim, [...] o dever de consulta prévia deverá ser relativizado em caso de manifesta
desnecessidade. De fato, o dever de ouvir previamente as partes pode implicar a busca de
contraditório inútil, vazio, sem relevância ou resultado algum para o processo”. A previsão
do dever de consulta (inerente ao princípio do contraditório) vem abarcada pelo artigo 10 do
CPC/2015, mas vem replicada também nos artigos 487, inciso II, parágrafo único, e 921,
§5º, que tratam de regras relativas a prescrição e decadência. Também se associam a vedação
de decisão surpresa as previsões dos artigos 493, parágrafo único, e 933 do CPC/2015, as
quais estabelecem que, independentemente do grau de jurisdição, a constatação de fato novo
exige a oitiva das partes ante da prolação de decisão (KOPLIN, 2015, 47-8).
Por fim, o dever de auxílio corresponde ao dever do juiz de contribuir para que as
partes não tenham seus direitos fundamentais processuais limitados ou impedidos por
dificuldades de qualquer natureza, que as impossibilitem de cumprir ônus ou deveres
121

processuais, como as previsões relativas à dinamização do ônus da prova (artigo 373, §§1º e
2º do CPC/2015) (KOPLIN, 2015).
Diante do que foi dito sobre a colaboração como modelo e como princípio processual,
nesta segunda parte do artigo se pretende demonstrar que a ampliação da flexibilização
procedimental garantida pelo CPC/2015 evidencia a já mencionada predominância da
colaboração, em detrimento dos tradicionais modelos adversarial e inquisitorial. Se o
CPC/1973 caracterizava-se, sobretudo “[...] por um ideal de rigidez procedimental aliado à
plenariedade da cognição, tendo-se por pressuposto para tanto a ideia de que a função
jurisdicional consistiria em declarar o direito com base num juízo de certeza próprio das
matemáticas” (RAATZ, 2017, p.195-7), o CPC/2015 já não se contenta com o contraditório
formal e a rigidez procedimental e a cognição plena e exauriente. É nesse sentido que será
abordada a flexibilização procedimental.

2 A FLEXIBILIZAÇÃO PROCEDIMENTAL COMO EXPRESSÃO DA


COLABORAÇÃO NO CPC/2015

O CPC/2015 traz, desde seu o anteprojeto, uma tentativa de simplificação do sistema,


pela eliminação de “[...] empecilhos puramente formais, sem sentido prático ou lógico, e
reprojetando, com manifestas melhorias [...], os ritos processuais, os quais doravante
pretendem efetivamente servir ao que se prestam: garantir segurança, cadência e estrutura
ao processo civil” (GAJARDONI, 2011, p.166). Tais alterações visam a garantir que o
procedimento se desenvolva de modo a que o provimento (ato final do procedimento) resulte
na construção de uma sentença legítima, o que nas palavras de Reichelt (2008, p.334)
significa dizer: uma sentença que seja “[...] fruto de todo um trabalho desenvolvido ao longo
de uma marcha orientada de acordo com os limites estabelecidos pelo ordenamento
jurídico.” Nessa perspectiva, o que legitima o provimento é o “[...] fato de ela ser o ponto de
chegada de toda uma caminhada que foi devidamente estabelecida em conformidade com os
ditames e valores estabelecidos no ordenamento jurídico”.
O procedimento, portanto, exige a existência de forma (em sentido estrito), como
elemento de previsibilidade e segurança jurídica, evitando a contaminação do provimento
final por vícios que tenham passado de um ato a outro da sequência (GAJARDONI, 2008).
O processo, como procedimento em contraditório,117 passa a ser o meio para a prestação

117
Segundo Fazzalari (2006. p.119-21), o que efetivamente caracteriza o processo é “[...] a estrutura dialética
do procedimento, isto é, justamente, o contraditório.” É desta premissa que se cunhou a expressão “processo
122

tutela jurisdicional e para tanto deve ser adequado à situação de direito material que lhe
origina, como única forma de se alcançar a tutela jurisdicional adequada (provimento). Com
isso, supera-se a ideia de que a sentença é ferramenta de concretização do direito, passando
a ser um objeto elaborado de modo adequado à situação concreta (BENAVENTE, 2015). A
flexibilização consequentemente impõe a premissa de que, no desenvolvimento dos atos
processuais (procedimento), “todas as regras são técnicas, que dizer, vêm concebidas em
função de sua utilidade para o processo” (GAJARDONI, 2008, p.84). A técnica, nesse
contexto, corresponde ao emprego “[...] de meios mais ou menos eficiente, organizados para
que o processo possa atingir suas finalidades. [...] A técnica jurídica, portanto, tende a
realizar a síntese entre o sistema e a forma” (ALVARO DE OLIVEIRA, 2010, p.170-1).118
Se o CPC/1973, como já reiterado, era um sistema pautado essencialmente pela
legalidade das formas procedimentais, o CPC/2015 abriu-se em direção a um sistema onde
há liberdade de formas procedimentais diante da tentativa, do legislador, de “[...] permitir
ao juiz e às partes, diante do déficit procedimental, a adaptação dos procedimentos às
particularidades objetivas e subjetivas da causa (flexibilização procedimental)”.119 A
substituição dos procedimentos sumário e ordinário por “[...] uma figura única e híbrida
denominada procedimento comum”, o fim dos procedimentos especiais cautelares e a
extinção de alguns procedimentos especiais são tentativas de buscar uma “simplificação
formal e ritual” do sistema processual assim como de flexibilizar o procedimento diante da
existência de déficit procedimental (GAJARDONI 2011, p.164 e ss.). Segundo Gajardoni
(2008, p.87-8), o sacrifício do valor segurança e a consequente “imprevisibilidade” ou

como procedimento em contraditório”, uma vez que fazendo “ [...] referência à estrutura dialética como a
ratio distinguendi”, e à superação de outros conceitos de processo (que enfatizavam o conflito de interesses
entre partes distintas), tornou possível afirmar que “[...] onde é ausente o contraditório – isto é, onde inexistia
a possibilidade, prevista pela norma, de que ele se realize – não existe processo.”
118
Sobre a instrumentalidade do processo afirma Bedaque (2007, p.26): “A técnica constitui fator essencial à
ideia de processo. Concebido como instrumento de que a função jurisdicional do Estado se serve para colocar
fim às crises existentes no plano de direito material, necessário regular a maneira como ele opera. É
fundamental que o instrumento atue segundo técnica adequada e apta a possibilitar que os fins sejam
atingidos. Esta é a função das formas e formalidades processuais, cuja razão de ser encontra explicação
fundamentalmente em fatores externos ao próprio processo.”
119
Estes dois sistemas se diferenciam pois no sistema da legalidade das formas procedimentais “o lugar em
que cada ato processual tem cabimento, bem como o prazo para a sua prática, encontra-se rigidamente pré-
estabelecido em lei em lei, podendo o desrespeito à prescrição legal implicar invalidade do próprio ato
processual, do seu conjunto (do procedimento todo), ou do resultado do processo (da sentença).” Um sistema
que “[...] é burocrático, e em muitas ocasiões implica a prática de atos processuais desnecessários ou
inadequados à efetiva tutela dos direitos.” Por outro lado, no sistema de liberdade das formas procedimentais,
“[...] não há uma ordem legal pré-estabelecida para a prática dos atos processuais, tampouco há disciplina
legal dos prazos, competindo aos sujeitos do processo (ora às partes, ora ao juiz) determinar a cada momento
qual o ato processual a ser praticado, bem como o tempo para tanto” (GAJARDONI, 2011, p.164 e ss).
123

“insegurança” do sistema exigem a ocorrência de critérios que justifiquem a flexibilização


procedimental, para que esta não ocorra indiscriminadamente. Tais requisitos são a
finalidade (necessidade da modificação do rito ordinário), o contraditório (participação das
partes na decisão de modificar o rito) e a motivação (exposição da razões para modificação
procedimental).
A finalidade pode ser imprescindível em três situações: (i) quando o ferramenta
processual não for apta à tutela eficaz do direito material (como na dilação de prazos do
artigo 139, inciso VI, do CPC/2015); (ii) quando a exigência formal não é idôneo ou
relevante “[...] para a composição do iter processual, que de todo modo atingirá seu escopo
sem prejuízo das partes” (caso do indeferimento de provas parágrafo único, do artigo 370,
do CPC/2015); e (iii) quando o juiz precisa recompor uma situação de igualdade material e
processual (como na inversão do ônus da prova do artigo 373, do CPC/2015) (GAJARDONI,
2008, p.88-9).
O contraditório exige que tenha sido oportunizado às partes a participação no iter
procedimental, assim como que essa participação tenha capacidade de influenciar na decisão
final. Aqui exige-se o respeito a todos os direitos relativos ao contraditório (informação,
manifestação e influência), assim como o respeito a todos os deveres relativos à colaboração
(prevenção, esclarecimento, consulta e auxílio). O contraditório, no caso da flexibilização,
exige que antes da alteração da regra procedimental seja oportunizado às partes que
conheçam da questão, bem como que possam influenciar em tal alteração, de modo que “[...]
toda vez que for adequada a inversão da ordem, inserção ou exclusão dos atos processuais
abstratamente previstos, a ampliação dos prazos rigidamente fixados, ou outra medida que
escape do padrão legal, indispensável a realização de contraditório preventivo, desde que
útil aos fins colimados pela variação ritual (GAJARDONI, 2008, p.89-94).
A motivação, por se tratar de elemento essencial de qualquer decisão judicial, exige
que todas as razões que levaram à alteração procedimental estejam amplamente justificadas,
para que sua adequação possa ser controlada por via recursal. Esta prescrição constitucional,
do artigo 5º, inciso LV, e do artigo 93, inciso IX (ambos CF/1988) é uma “[...] imposição de
ordem política e afeta muito mais ao controle dos desvios e excessos cometidos pelos órgãos
jurisdicionais inferiores na condução do processo do que propriamente à previsibilidade ou
à segurança do sistema. É na análise da fundamentação que se afere em concreto a
imparcialidade do juiz, a correção e justiça dos próprios procedimentos e decisões nele
proferidas” (GAJARDONI, 2008, p.89-94).
124

No que diz com a aplicação do princípio da adequação procedimental propriamente


dita, existem três espécies de flexibilizações procedimentais: as derivadas da lei
(flexibilização legal); as derivadas da atuação do juiz (flexibilização judicial); e as derivadas
da vontade das partes (flexibilização voluntária). A flexibilização legal “[...], dá-se, em
princípio no plano legislativo, mediante a elaboração de procedimentos e previsão de formas
adequadas às necessidades locais e temporais.” O sistema de flexibilização que decorre do
plano legislativo é imposto “por força da lei”. Neste sistema, o legislador previamente
autoriza a adaptação do procedimento à causa, podendo a referida autorização ser
incondicionada, quando estiver a critério do julgador, ou alternativa, quando forem
disponibilizadas alternativas de tramitações para cada causa, “[...] casos em que o juiz,
conforme as opções previamente postas na legislação elege a que pareça ser mais adequada
para a tutela do caso em concreto, não podendo, todavia, escolher outra fora do rol legal”
(GAJARDONI, 2008, p.133-4 e p.138).
O segundo sistema de adequação é a flexibilização procedimental judicial, onde o
juiz não depende da prévia autorização legislativa para adequação do procedimento,
competindo-lhe, “[...] com base nas variantes do caso em concreto (objetivas e subjetivas),
modelar o procedimento para a obtenção de adequada tutela, elegendo quais os atos
processuais que se praticarão na série, bem como sua forma e o modo”. Já o terceiro sistema
é o de flexibilização procedimental voluntária, onde compete “[...] às partes eleger alguns
procedimentos ou alguns atos processuais da série [...]”, adequando-o à realidade de direito
material. Aqui, haveria uma predominância da liberdade, que permitiria a eleição do
procedimento pelos participantes da lide, desde que tais alterações se adequassem “[...] à
realidade das partes, ou simplesmente à inexistência de prejuízo [...]” (GAJARDONI, 2008,
p.138-9 e p.180-222).120
Relativamente ao CPC/2015, como se demonstrará a seguir, é possível identificar
uma ampliação das possibilidades de flexibilização procedimental e uma abertura do Código

120
Nesse ponto, importante dizer que a doutrina em geral se mostrava muito resistente ao reconhecimento da
desta liberdade das partes para influenciar no procedimento. Contudo, Barbosa Moreira (1984, p.182),
contrariamente, indicava ser possível observa, na vigência do CPC/1973 uma ampla liberdade contratual a
disposição das partes, tais como: a convenção de eleição de foro (artigo 111); a convenção para reduzir ou
prorrogar prazo dilatório (artigo 181); a convenção de distribuição do ônus da prova (artigo 333, parágrafo
único); o adiamento da audiência por convenção das partes (artigo 453, inciso I); a convenção entre os
litisconsortes para falar em audiência (artigo 454, § 1.º); a convenção sobre a administração de
estabelecimento comercial, industrial ou agrícola, semoventes, plantações ou edifício em construção
penhorados (677, § 2.º); a convenção sobre indicação de depositário de bens sequestrados (artigo 824, inciso
I); a adoção convencional da forma de arrolamento para realizar partilha amigável (artigo 1.031); e a
convenção sobre alienação de bens em depósito judicial (1.113, § 3.º).
125

para além da predominância da flexibilização legal alternativa. Evidente que muitas das
disposições relativas à flexibilização procedimental legal alternativa subsistem no
CPC/2015, contudo, o que interessa abordar a partir deste ponto são as inovações pertinentes
à adequação procedimental. Nesse contexto, deve ser dito que inicialmente o Anteprojeto do
Código de Processo Civil, elaborado pela Comissão de Juristas instituída pelo Ato do
Presidente do Senado Federal nº 379, de 2009, estabelecia, já em sua exposição de motivos,
o princípio da adaptabilidade judicial do procedimento (KOPLIN, 2015), ou princípio da
flexibilização (judicial) do procedimento (GAJARDONI, 2011), como uma das importantes
modificações a serem implementadas.
A exemplo disso, o artigo 139, inciso VI do CPC/2015 estabelece uma flexibilização
legal genérica (limitada às hipóteses de aumento de prazos e inversão da produção dos meios
de prova), exigindo do juiz que resolva “[...] com justiça o caso levado à apreciação
jurisdicional”, exigindo ainda que tal condução seja o juiz concretize o princípio da
colaboração, ou seja “[...] paritário no diálogo e assimétrico na decisão da causa”. A direção,
nesse contexto, além de qualificada pelo princípio da colaboração, vem também qualificada
pelos princípios do contraditório e da tutela jurisdicional adequada (MARINONI;
ARENHARDT; MITIDIERO, 2017, p.283-4). Já o artigo 188, muito embora tenha
privilegiado o princípio da instrumentalidade das formas, e os preceitos de um formalismo
valorativo, perdeu oportunidade de literalizar uma construção normativa de flexibilização
procedimental legal genérica.121
Mesmo diante das limitações impostas pela redação final dos artigos mencionados,
as previsões normativas do CPC/2015 apontam para uma releitura do papel do juiz. O modo
como o juiz dirigirá o processo e utilizará os elementos de flexibilização disponíveis será
essencial ao desenvolvimento de um processo colaborativo, já que a fórmula escolhida pelo
legislador (ainda que um pouco limitada) cria uma medida de atuação coerente com os
demais direitos fundamentais das partes. A postura mais ativa do juiz na conformação do
procedimento pode auxiliar a trazer a necessária aderência entre o procedimento e a
realidade. Essa postura vem acompanhada da necessidade de se buscar, no desenvolver
processual, a compatibilidade entre a flexibilização do procedimento e o princípio do
contraditório (na acepção forte), mormente porque ao se suprimir determinados atos, deve

121
Na redação original do anteprojeto do código, o artigo correspondente vinha acrescido de um parágrafo
primeiro, com a seguinte redação “§ 1º Quando o procedimento ou os atos a serem realizados se revelarem
inadequados às peculiaridades da causa, deverá o juiz, ouvidas as partes e observados o contraditório e a
ampla defesa, promover o necessário ajuste.”
126

ser considerado que sua eliminação pode representar a supressão do próprio contraditório,
ponto central para um processo colaborativo.
Nesse sentido, como exemplo de flexibilização procedimental implementada pelo
CPC/2015, merece atenção a leitura em conjunto da improcedência liminar do pedido (artigo
332, CPC/2015), com a decisão de saneamento do processo (artigo 357, CPC/2015), vez que
uma leitura desatenta destes preceitos normativos pode violar os direitos fundamentais
processuais das partes (CABRAL, 2016). Isso porque, a decisão de organização e
saneamento do processo, que em uma perspectiva mais tradicional era vista como expressão
do modelo inquisitorial (um ato de autoridade pública) (LACERDA, 1985), na conformação
dada pelo CPC/2015 adquire uma feição colaborativa que permite sua compreensão como
manifestação da colaboração. Consequentemente, pode-se ler a partir do artigo 357 do
CPC/2015, que a série de providências que devem ser tomadas pelo juiz no sentido de melhor
delinear a lide traz previsibilidade para o processo e orienta a construção do procedimento
adequado à tutela pretendida pelas partes. Essa organização se manifesta tanto
retrospectivamente, sanando eventuais vícios que impeçam o conhecimento do mérito da
causa (inciso I do referido artigo); e prospectivamente no que diz com as questões que
delimitam a lide e preparam a causa para instrução e para o julgamento, como as questões
de delimitação das provas e do ônus probatório, além da fixação das questões de direito
relevantes para solução da lide (CABRAL, 2016; MARINONI; ARENHARDT;
MITIDIERO, 2017).
As feições delineadas no modelo e no princípio colaborativo ficam evidentes no
artigo em questão (357, CPC/2015), por exemplo, pela afirmação do dever de esclarecimento
constante nos §§ 1º e § 3º. Consequentemente, esse é um dispositivo que evidentemente
precisa ser lido como instrumento de concretização do próprio contraditório, garantindo não
apenas a segurança jurídica, pela delimitação da lide pelo saneamento de questões que
possam impossibilitar o julgamento de mérito, mas também trazendo efetividade, por meio
dos instrumentos de flexibilização processual, que promovam a adequação do procedimento
e o alcance da tutela adequada dos direitos sub judice (CABRAL, 2016).122

122
Sobre a organização e o saneamento do processo, Nunes (2016, p.235-6) afirma que o CPC/2015 adota “[...]
uma modalidade de saneamento compartilhado ou comparticipado, que permitirá a organização do
processo calcada nos preceitos constitucionais do contraditório, isonomia, ampla defesa e devido processo,
além da teoria normativa da comparticipação (art. 6º, CPC/2015) de modo a permitir às partes a obtenção de
efetiva paridade de participação processual que, deseja-se, culminará em uma decisão final resguardada pelo
necessário impedimento de surpresas processuais, que induzem o fomento da atividade recursal, retrabalhos
pelos juízes (a serem compelidos a proferirem várias decisões sobre o mesmo ‘objeto’) e aumento do tempo
de tramitação processual”.
127

A fim de evitar impactos negativos ao direito fundamental ao contraditório,


igualmente o julgamento liminar de improcedência precisa resultar de um diálogo, e não de
um monólogo. Com efeito, não basta que a decisão de saneamento e organização ocorra no
mesmo ato da decisão que julga a improcedência liminar do pedido, já que tal decisão
representaria não apenas a violação dos deveres de colaboração do juiz, como atingiria
diretamente o contraditório. Isso significa dizer que o juiz somente poderá se utilizar da
flexibilização procedimental que autoriza a antecipação da fase decisória para antes da fase
instrutória, se antes realizar o saneamento e a organização do processo em contraditório com
o autor, mesmo antes da citação do réu para processo, já que sem esse saneamento prévio,
seria impossível ao juiz determinar se a fase instrutória é necessária ou não.
Esta leitura também é indispensável se considerarmos uma interpretação do artigo
referidos artigos (332 e 357) em harmonia e coerência com os artigos 9º e 10, do CPC/2015,
no que diz com a vedação de decisão surpresa. A questão neste ponto é que a flexibilização
do procedimento não permite deixar de lado o contraditório; ela precisa concretizar o
contraditório, como repetidamente afirmado, em seu sentido forte. Este é o contraditório que
não significa apenas a possibilidade de que autor e réu se manifestem no processo (direito
de falar), mas representa o direito de ser ouvido e influenciar na decisão, expressão da
colaboração como princípio processual. Nessa esteira, limitar o contraditório ao seu
exercício apenas em segundo grau (apesar da ressalva da possibilidade de retração), além de
impor um custo desnecessário à prestação jurisdicional (pelo tempo e pelo preparo recursal),
corresponderia a uma supressão de instância em desarmonia com os direitos fundamentais
processuais das partes e com a concretização de um processo colaborativo.
Igualmente, o advento dos preceitos normativos dos artigos 190 e 191 do CPC/2015,
tem sido muito celebrados pela doutrina nacional, por se tratar da expressão da flexibilização
procedimental voluntária, operada por meio da celebração dos negócios jurídicos pré-
processuais ou processuais, tanto na modalidade de negócios típicos, quanto atípicos. Essa
possibilidade, por se tratar de instituto que permitirá às partes tornarem o processo mais
conveniente aos seus interesses, acertadamente não é imune ao controle jurisdicional. Além
disso, a mesma noção remete ao conteúdo do já apresentado princípio colaboração,
especialmente a partir da leitura do referido artigo 191, que combinado com o § 2º do artigo
357, que permite a customização da lide e a “[...] delimitação consensual das questões de
fato e de direito a que se referem os incisos II e IV, a qual, se homologada, vincula as partes
e o juiz” (MARINONI; ARENHARDT; MITIDIERO, 2017, p.469).
128

Por fim, o que pode ser dito sobre os preceitos normativos aqui analisados, é que, de
fato houve uma ampliação nas possibilidades de flexibilização dos procedimentos, não
correspondendo mais à realidade, a afirmação de que o Código de Processo Civil brasileiro
é um código pautado pela flexibilização procedimental legal alternativa. O que se viu da
análise aqui apresentada é a opção do legislador por ampliar as hipóteses de flexibilização
tanto com a tentativa de incluir (mesmo que ainda de modo tímido) a flexibilização legal
genérica, quanto para incluir possibilidades de flexibilização judicial e voluntária. Nesse
sentido, percebe-se também que tais flexibilizações foram normatizadas a partir de
perspectivas que parecem respeitar, além de tentar concretizar, os direitos fundamentais das
partes, mas sobretudo, que abrem espaço para efetivação do modelo colaborativo de
processo, bem como para concretização da colaboração como um princípio.

CONCLUSÃO

Diante de tudo o que foi considerado nesta pesquisa, pouco ainda precisa ser dito. O
primeiro ponto a ser reforçado é que este estudo não teve intenção de ser conclusivo,
tampouco de explorar todos os pontos relativos aos temais aqui abordados. A pretensão,
muito mais singela, era demonstrar que a flexibilização procedimental garantida pelo
CPC/2015 funcionou como um indicativo de que o Código de Processo Civil adotou
predominantemente um modelo colaborativo de processo, pautado nos elementos que
caracterizam a colaboração como um princípio.
Também se pode afirmar que o CPC/2015, muito embora não abandone os modelos
processuais tradicionais (adversarial e inquisitivo), contém em seu corpo normativo uma
série de dispositivos que enfatizam a importância da colaboração entre as partes e o juiz. A
partir desta premissa se pode notar um redimensionamento do papel do juiz no processo civil
contemporâneo. Neste sentido, e em coerência com os direitos fundamentais processuais, se
estabelecem e fortalecem os deveres associados à colaboração como elementos aptos a
promover o direito a um processo justo.
Também se pode afirmar que a flexibilização incluída no CPC/2015, ao menos sob
o prisma analisado neste estudo, tende a trazer impactos positivos (no sentido da
concretização) aos direitos fundamentais das partes. Especificamente com a ampliação da
flexibilização permitida aos juízes, pode-se dizer que houve uma reformulação do papel por
ele desempenhado, lhe dando em certa medida protagonismo, para que não seja nem o juiz
129

Pilatos, como já foi mencionado por Dinamarco, mas ao mesmo tempo limitado o suficiente
para que não se torne o juiz Hércules da fórmula Dowkiniana. Igualmente no ponto em que
diz com a ampliação da flexibilização voluntária, percebe-se também uma modificação do
papel desempenhado pelas partes. Aqui, talvez a questão maior seja o controle a ser exercido
sobre estes poderes, para verificar se as disposições por elas estabelecidas não violarão
direitos fundamentais processuais. Nesse ponto, a redação dos preceitos normativos parece
suficiente; se na prática, efetivamente estas mudanças produzirão efeitos concretos e
positivos na prestação da tutela jurisdicional, somente a prática e a interpretação dos
Tribunais nos dirão.

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REICHELT, Luis Alberto. O conteúdo da garantia do contraditório no direito processual


civil. Revista de Processo, vol. 162, pp. 330-51, ago./2008.
131

A AUTOCOMPOSIÇÃO DE CONFLITOS COMO FERRAMENTA DE REDUÇÃO


DA JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE

Patrícia De Carli123
Josiane Caleffi Estivalet124

RESUMO

Tendo por tema a autocomposição de conflitos como ferramenta de redução da


judicialização da saúde, a presente pesquisa repousa seu objeto de análise sobre a
possibilidade de utilização de ferramentas autocompositivas em matérias que envolvam a
administração pública e a sua prestação de serviços na área dos direitos indisponíveis, como
é o caso da saúde. Para tanto parte-se do seguinte problema: As ferramentas autocompositvas
podem contribuir para a qualificação e redução das ações judiciais em saúde? Tal abordagem
direciona a pesquisa a discorrer sobre temas como: a saúde enquanto objeto de litígio; o olhar
do novo Código de Processo Civil para a resolução adequada de disputas; a autocomposição
de conflitos em matérias envolvendo o direito à saúde e a atuação do sistema administrativo
de conciliação e mediação no âmbito da administração pública do Estado do Rio Grande do
Sul. O artigo adota o método de abordagem hipotético-dedutivo, os métodos de
procedimento analítico e bibliográfico e utiliza-se de documentação indireta. Evidencia-se,
ao final, que o tema tem recebido crescente atenção da Administração Pública, muito embora
os desafios existentes nesta seara ainda sejam imensos, pois exigem uma nova cultura no
âmbito de atuação dos Sistemas da Saúde e da Justiça.

Palavras-Chave: Autocomposição. Judicialização da saúde. Novo Código de Processo


Civil.

INTRODUÇÃO

Tendo por tema a autocomposição de conflitos como ferramenta de redução da


judicialização da saúde, a presente pesquisa repousa seu objeto de análise na possibilidade
de utilização da resolução adequada de disputas em matérias envolvendo o direito à saúde.

123
Assessora Jurídica da Secretaria de Saúde do Estado do Rio Grande do Sul. Graduada em Direito pela
Universidade de Passo Fundo- UPF. Especialista em Direito do Trabalho, Previdenciário e Processo do
Trabalho pela Universidade de Santa Cruz do Sul- UNISC. Especialista em Direito Processual Civil pela
Universidade de Santa Cruz do Sul- UNISC. Especialista em Gestão Pública pela Universidade Federal de
Santa Maria- UFSM. Mestre em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul- UNISC. Doutoranda em
Desenvolvimento Regional pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul-
UNIJUÍ. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/6589091187700313. Endereço eletrônico:
patriciadecarli@ymail.com.
124
Juíza de Direito no Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Professora do Curso de Pós-
graduação lato sensu da UNISC, na modalidade à distância. Possui graduação em Direito pela Universidade
de Santa Cruz do Sul. Especialização em Direito, Sociedade e Psicanálise e Direito Processual Civil pelo
Instituto de Ensino Superior de Santo Ângelo. É mestre em Políticas Públicas pela Universidade de Santa
Cruz do Sul. Membro do NEM, Núcleo de Estudos em Mediação da Escola Superior da Magistratura da
AJURIS (Associação dos Juízes do Estado do Rio Grande do Sul). Currículo
Lattes: http://lattes.cnpq.br/2727056550845985. Endereço eletrônico: josiane.ce.santcruz@gmail.com.
132

Para alcançar os fins a que se propõe, partirá de um viés que privilegia as disposições trazidas
pela nova legislação civilista.
Nessa perspectiva, em um primeiro momento, será abordado o fenômeno da
judicialização da saúde. Diante das grandes dificuldades de se alcançar ao jurisdicionado os
objetos envolvendo a matéria de saúde postulados em Juízo sem vulnerar a organização
administrativa da política de saúde, em um segundo momento, abordar-se-á a necessidade
de novas direções na governança da justiça, que contemplem a resolução adequada destas
disputas, apresentando a perspectiva do novo Código de Processo Civil no que se refere a
esta temática.
Em um terceiro momento, analisar-se-á, com fulcro na legislação atual, a
possibilidade de autocomposição de conflitos na hipótese em que uma das partes for pessoa
jurídica de direito público, sobretudo, nas demandas que envolvem o direito indisponível à
saúde. Por derradeiro, apresentar-se-á breve análise acerca do sistema administrativo de
conciliação e mediação no âmbito da administração pública do Estado do Rio Grande do Sul
e analisar-se-á a viabilidade da implementação de práticas de mediação sanitária no âmbito
da administração pública.
Ressalta-se que a presente pesquisa, tem por objetivo avaliar novas possibilidades de
efetivação do direito à saúde no âmbito da gestão pública estadual. Uma vez que se torna
imperiosa a busca pela otimização da aplicação dos recursos públicos e a correspondente
satisfação do usuário do serviço público que busca a efetivação do seu direito social,
construindo-se, outrossim, uma nova compreensão de acesso ao direito à saúde e
concretização da justiça.

1 A SAÚDE COMO OBJETO DE LITÍGIO

Da constitucionalização dos direitos sociais até o período atual, no cenário pátrio,


observa-se que a saúde tem estado presente nos tribunais como um destacado objeto de
litígio.
Para fins conceituais, pode-se afirmar que a judicialização consiste no resultado de
um processo histórico, típico do constitucionalismo democrático, que tem por base diversos
aspectos, tais como a centralidade da Constituição e sua força normativa, associada a
aspectos como o caráter principiológico, a supremacia e a dimensão objetiva dos direitos
fundamentais. Sua principal característica resulta de uma confluência de fatores que
133

conduzem a uma transferência de decisões estratégicas sobre temas fundamentais ao Poder


Judiciário, fazendo com que o direito seja, cada vez mais, um direito judicial, construído no
caso concreto pelos magistrados. (LEAL, 2013, p. 221)
Dentre os direitos sociais, o direito à saúde destaca-se como uma matéria comumente
apreciada pelo Poder Judiciário125. Tamanha proteção justifica-se pelo fato de que a saúde
possui correspondência com a efetivação do direito fundamental à vida, o que por si só
explica a prioridade e atenção no julgamento destas questões por parte dos tribunais
constitucionais. (CARLI, 2014, p. 296)
Entretanto, importa mencionar que a judicialização da saúde revela uma dicotomia
entre o direito coletivo e o direito individual e o propósito de criação do Sistema Único de
Saúde enquanto sistema universal, uma vez que é cristalina a impossibilidade do Poder
Público disponibilizar de forma integral o acesso indiscriminado a todo e qualquer
tratamento, instrumento terapêutico ou insumo de saúde. De modo que com o deferimento
desordenado das demandas, condenando o Poder Público ao fornecimento de medicamentos
e/ou tratamentos de qualquer natureza, sem prévia atribuição legal, há um esvaziamento dos
cofres públicos, e consequentemente há o redimensionamento das Políticas Públicas.
(STIVAL, 2016, p. 147)
Diante da percepção desses elementos e do crescimento da importância e do
protagonismo judicial na matéria da saúde, nasce a necessidade de se estabelecer uma ação
conjunta, coordenada e estratégica por parte do Sistema de Justiça e do Sistema da Saúde.
Nessa linha de pensamento, sob a percepção de que a saúde pública compreende múltiplos
fatores, problemas de difícil solução e necessidade de integração de entes com interesses
aparentemente antagônicos, surgiu o entendimento de que os problemas na área somente
poderiam ser enfrentados mediante a congregação dos órgãos envolvidos em torno de pontos
convergentes, de forma a fomentar o diálogo, por meio de um contato mais próximo entre
seus integrantes, e a otimizar a rede. (CNJ, 2015a, p.69)
A partir destas novas reflexões, compreende-se, atualmente, que a judicialização da
saúde somente trará efeitos positivos se auxiliar na ordenação do sistema e na imposição de
obrigações de cumprimento daquilo que está prometido no âmbito constitucional e nas
políticas públicas previstas na legislação infraconstitucional. Ou seja, atuando na tutela

125
Segundo dados da Secretaria Estadual de Saúde do Estado do Rio Grande do Sul a judicialização, em 2016,
correspondeu a 15% do orçamento da saúde, o que representa em valores monetários uma cifra de R$
320.822.977,77.
134

coletiva das políticas públicas já existentes e na busca de avanços. A distribuição


desordenada de benefícios, além de atingir a um número muito pequeno de beneficiários,
vulnera as políticas existentes em favor da coletividade. (GEBRAN NETO, 2015, p. 28)
De modo que a matéria da saúde vem exigindo um novo olhar, a partir da resolução
adequada da disputa, para fins de que se possa efetivar o direito à saúde sem vulnerar a
política pública. A complexidade da matéria demanda novas direções na governança da
justiça e uma postura que priorize a autocomposição e valorize as angústias das partes.

2 A RESOLUÇÃO ADEQUADA DE DISPUTAS E O NOVO CÓDIGO DE


PROCESSO CIVIL

Para que se possa compreender o cerne do debate acerca de novos rumos na direção
da governança da justiça, que acabou por conduzir o Estado brasileiro a adotar políticas
públicas de resolução adequada de disputas urge refletir acerca da finalidade do Direito. O
ordenamento jurídico e a atuação do Estado, por meio do poder legitimado para promover a
jurisdição, deve ter por norte a finalidade maior do Direito que é a promoção da pacificação
social.
A ideia da confecção de um novo Código de Processo Civil, mais moderno e atento
a educar o usuário da Justiça para melhor resolver conflitos por meio de ações
comunicativas, nasce a partir de sugestões formuladas no ano de 2009 por uma comissão de
juristas. A mesma é aprovada no âmbito do Senado Federal no final de 2010. Após três anos
de tramitação na Câmara dos Deputados e de inúmeras audiências públicas e debates nos
estados, uma versão do Código de Processo Civil é aprovada pela Câmara em março de
2014. Entretanto, apenas no final do ano de 2014 o Senado Federal aprova o texto final.
(BARBOSA; SILVA, 2015, p. 11)
Dentre as inovações trazidas pelo novo texto legal, merece destaque a ideia central
de converter a figura do processo judicial em uma ferramenta que faça parte do contexto
social em que produzirá o seu resultado, a partir da compreensão de que a satisfação efetiva
das partes pode dar-se de modo mais intenso se a solução é por elas criada e não imposta
pelo juiz, razão pela qual passa a assumir protagonismo a resolução adequada de disputas, a
partir da operacionalização dos Métodos Consensuais de Solução de Conflitos. (BRASIL,
2010)
135

Ao valorizar a adoção de meios consensuais de solução de conflitos, o diploma legal


acaba por colaborar decisivamente para o desenvolvimento de sua prática, sobretudo nas
Cortes de Justiça. Para que a via consensual possa prosperar em amplos termos, porém, os
operadores do Direito precisarão se abrir a novas concepções e estar cientes de que a
abordagem da autocomposição evita a lógica contenciosa de vencedores e vencidos e visa
propiciar um ambiente favorável à geração de soluções criativas e resultados satisfatórios.
Como se percebe, é de suma importância o conhecimento dos protagonistas das
controvérsias e de seus operadores jurídicos sobre as possibilidades consensuais para que a
harmonia e a pacificação social possam alcançar melhores patamares no Estado brasileiro.
(TARTUCE, 2016)
Neste sentido, urge, pois, mencionar que o amplo e irrestrito acesso à justiça (que
inclui o acesso ao Judiciário, mas a isso não se limita) revela-se uma das posições jurídicas
mais importantes para um Estado que se afirma democrático de direito. Assim, sem prejuízo
de reconhecer o direito ao amplo e irrestrito acesso aos tribunais a todo e qualquer
jurisdicionado, é diretriz do Código vigente a solução consensual dos conflitos postos à
apreciação judiciária. Para além da diretriz acima anunciada (o incentivo à conciliação
judicial em detrimento da construção de uma solução estatal impositiva ao conflito), o
estímulo à utilização de técnicas alternativas de composição de conflitos (não judiciais),
revela-se tônica do novel sistema, que, expressamente, convoca os personagens do foro a,
sempre que possível, estimulá-las. (TORRES, 2015, p. 24)
Ainda, na autocomposição, a preocupação em soluções que funcionem na prática e
na vida real dos interessados mostra-se preponderante, visando o alcance de soluções
satisfatórias e que atendam a realidade das partes. Ademais, como decorrência do uso
pragmático do direito em processos consensuais, a linguagem e as regras na autocomposição
são simplificadas para atender especificamente às necessidades e ao conforto dos usuários.
Nestes processos, espera-se a participação ativa das partes, de modo que as mesmas
assumem um protagonismo em relação ao que e como são debatidas as questões que levaram
ao conflito, passando por um crivo do mediador que organiza a linguagem de modo que se
possa produzir uma comunicação efetiva e não-violenta entre as partes. Usualmente se diz
que em processos consensuais o processo é das partes e o facilitador apenas o conduz. Nestas
hipóteses, os advogados atuam orientando seus clientes em relação a seus direitos e
auxiliando na busca de soluções. Por fim, os processos desta natureza têm por fundamento
contemplar os interesses das partes. De modo que, identificar corretamente os interesses e
136

construir soluções para suas realizações são da essência desses processos. (CNJ, 2016, p. 31-
32)
Percebe-se, do exposto, que a nova legislação civilista traz insculpida em seus artigos
a compreensão de que os métodos consensuais são ferramentas relevantes no sentido de
garantir um caráter mais harmonizador para a solução dos conflitos, de modo que,
considerando o grande número de ações judiciais envolvendo demandas de saúde, urge
analisar a autocomposição de conflitos em matérias que envolvam este importante direito
social.

3 AUTOCOMPOSIÇÃO DE CONFLITOS EM MATÉRIAS ENVOLVENDO O


DIREITO À SAÚDE

A Administração Pública, em virtude dos princípios e normativas específicas que a


regem, não tem uma tradição em evitar ou solucionar o conflito com o administrado pela via
dos métodos consensuais. Algumas legislações municipais, estaduais e federais já previam,
de maneira tímida, a possibilidade de realização de acordos na seara judicial, quando a
Administração Pública direta ou indireta fosse uma das partes litigantes. Algo paradoxal, se
for levado em conta o alto índice de ações judiciais em que a Administração Pública é parte.
(FAGÚNDES; GOULART, 2016, p.150)
Neste sentido, conforme já observado, diante do quantitativo elevado de ações
judiciais e objetivando garantir respostas mais efetivas ao jurisdicionado, o Código de
Processo Civil assegura espaço privilegiado para as soluções alternativas de conflitos.
Ademais, com o advento da Lei nº 13.140/2015 a mediação passa a ser reconhecida como
uma política pública. De modo que o tema da mediação na Administração Pública é
retomado. (DIAS, 2016)
Este novo marco legal tem um enfoque que preconiza o envolvimento do Estado no
acesso à justiça, a partir de uma metodologia que prioriza a adoção de políticas públicas
aptas a incentivar o consensualismo. De forma diversa da estrutura de poder observada nos
processos judiciais, eminentemente autocrática, a mediação permite que, através da
comunicação, todos possam dialogar, em igualdade de condições, ampliando-se o acesso à
justiça e fortalecendo os processos de cidadania. Assim, da conjugação dos dispositivos
constantes no Código de Processo Civil de 2015 e na Lei da Mediação, não resta dúvida de
137

que a Administração Pública está incluída como destinatária dos métodos consensuais de
resolução de conflitos. (FAGÚNDES; GOULART, 2016, p.151)
Ao se falar de autocomposição de conflitos não se pode ignorar a questão do Poder
Público em juízo, uma vez que irrealizável a discussão acerca de um melhor funcionamento
do Poder Judiciário se não forem incluídas medidas que contemplem as demandas em que o
Estado é parte, cujo número representa expressivo percentual dos processos que tramitam
atualmente. Assim, da mesma forma que o acesso à justiça passa por um aperfeiçoamento
do seu significado, denotando muito mais uma solução qualificada do litígio do que a simples
interposição de uma ação, os princípios que regem a Administração Pública também devem
ser reinterpretados à luz da Constituição e dos demais direitos fundamentais nela insculpidos.
(EIDT, 2015, p. 56)
Outrossim, importa mencionar que os casos concretos devem ser avaliados para que
se possa precisar se a resolução consensual de conflitos deve ser utilizada no âmbito da
Administração Pública. Para tanto, deve ser realizado um exame abrangente dos argumentos
fáticos e jurídicos apresentados por cada cidadão, empresa ou entidade, ao questionarem um
determinado ato ou direito. Se a algum deles assistir razão, a medida mais econômica, em
razão da legalidade, é atender o pleito, com o reconhecimento total ou parcial da procedência
do pedido. Contudo, não tendo a causa fundamento fático e/ou jurídico, a alternativa será
contestar a ação, protegendo-se o interesse público. Ainda, quando se verificar que existe
algum grau de probabilidade de que o autor tenha razão, mas não exista certeza fática e/ou
jurídica, aí reside espaço para a utilização da resolução consensual de conflitos (SOUZA,
2016, p. 216).
Para viabilizar esse caminho, porém, é desejável que existam parâmetros prévios
contidos em normas legais ou administrativas, que estipulem os critérios necessários para a
celebração de acordos ou transações, que definam as autoridades encarregadas de realizar a
análise de risco, conforme critérios apresentados no parágrafo anterior, bem como verificar
as hipóteses em que se autorize o acordo em cada caso. Evitando a arbitrariedade e falta de
critérios por parte do servidor encarregado de promover a resolução consensual, de modo,
que o modelo ideal seria a composição de um colegiado composto por servidores ligados à
área jurídica e a área técnica, que se apresenta como objeto da contenda. (SOUZA, 2016, p.
216-217).
No contexto brasileiro os litígios em matéria de saúde de maior expressividade
referem-se ao acesso a um objeto material da demanda. Estes litígios se polarizam de um
138

lado pelo cidadão enfermo, demandando ações ou insumos de saúde, e de outro, pelo Estado,
provedor de serviços públicos de saúde. As demandas ocorrem em virtude da ausência do
serviço que deveria estar sendo prestado ou pela não previsibilidade do mesmo em políticas
públicas. Trata-se de um “enfrentamento social” que ganhou proporções epidêmicas e que
os mecanismos clássicos de resolução dos conflitos acabaram por produzir externalidades
negativas para o Sistema Único de Saúde, já debilitado por razões diversas, como o seu
histórico subfinanciamento. (DELDUQUE, 2015, p. 06)
Ainda, o conflito entre as necessidades individuais e coletivas que permeiam a
garantia de um direito caracterizado pela complexidade, como o direito à saúde, demonstra
que os sistemas político, jurídico e médico-sanitário chegaram ao esgotamento e que o Poder
Judiciário, sobrecarregado por essas demandas, não responde mais, com a eficácia esperada,
à pacificação dessas controvérsias. De modo que diante desse fenômeno surge a necessidade
de se apresentar uma alternativa viável ao acesso à justiça, para pacificar os conflitos na
saúde. (DELDUQUE; CASTRO, 2015, p. 507-508)
A fim de dirimir qualquer dúvida acerca da possibilidade de se utilizar da
autocomposição em matéria afeta ao direito público, a Lei 13.140/2015 traz expressamente,
no seu artigo 3º, que podem ser objeto de mediação “direitos indisponíveis que admitam
transação”. (EIDT, 2015, p. 70)
No que concerne especificamente a área da saúde, a judicialização tem agravado os
problemas dos entes públicos. É necessário pensar em uma cultura de superação do litígio,
em prol do fomento à resolução não adversarial dos conflitos em saúde. Com esta nova
perspectiva, todos ganham, desde os potenciais litigantes, bem como toda a sociedade. Urge
destacar que não é mais possível depositar todas as expectativas da sociedade no Poder
Judiciário, pois este não possui condições de resolver a totalidade dos problemas existentes.
Se faz necessário que a lógica do fomento aos conflitos seja superada em definitivo pelo
estabelecimento de estruturas e de uma cultura que possa evitar e solucionar os conflitos.
Sem esta perspectiva, não haverá melhorias no sistema de saúde, uma vez que o custo do
processo judicial e o grande número de ajuizamento de demandas tornará inviável o
Judiciário e a concretização desejada do direito à saúde. (SCHULZE, 2016)
Neste cenário preocupante, a Mediação Sanitária surge como um modelo alternativo
de resolução de conflitos na área da saúde. É preciso considerar que as relações em saúde
transcendem a ótica bilateral do médico com o paciente. Elas envolvem um grande número
de atores presentes em um sistema de saúde, daí advindo conflitos de toda a ordem, internos
139

e externos ao sistema, criando condições para a judicialização. Os conflitos internos


costumam ser de ordem assistencial, organizativos e entre profissionais e gestores que
compõe o sistema. Já os conflitos externos se manifestam como conflitos sociais e conflitos
legais. (DELDUQUE, 2015, p. 06)
A Administração Pública, estando ciente da existência dos referidos conflitos e
realizando o seu contínuo monitoramento, poderá, para além da resolução dos conflitos pela
mediação sanitária, dar novos rumos para a gestão, antevendo os conflitos, precavendo-se
de seus efeitos, por intermédio da construção e permanente atenção ao mapa dos conflitos
no âmbito do SUS, garantindo, assim, a normal execução das políticas públicas e seus
orçamentos respectivos. (DELDUQUE, 2015, p. 06)

4 O SISTEMA ADMINISTRATIVO DE CONCILIAÇÃO E MEDIAÇÃO NO


ÂMBITO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO
SUL E A VIABILIDADE DA IMPLEMENTAÇÃO DE PRÁTICAS DE
MEDIAÇÃO SANITÁRIA

O Estado do Rio Grande do Sul instituiu o sistema administrativo de conciliação e


mediação no âmbito da administração pública estadual, integrado ao Sistema de Advocacia
do Estado, com a Lei Estadual nº 14.794/2015. Essa ferramenta traz novas possibilidades
para a solução de controvérsias administrativas ou judiciais que envolvam a Administração
Pública Estadual. (PGERS, 2016)
A partir da implementação de mecanismos simplificados e menos custosos, o Centro
de Conciliação tem por finalidade a ampliação dos canais de relacionamento com os
cidadãos, proporcionando que determinados conflitos possam ser solucionados de forma
mais adequada e eficaz pela própria Administração Pública Estadual, evitando,
consequentemente, o ajuizamento de demandas que podem ser resolvidas de forma mais
célere e menos custosa para o cidadão e a Administração. (PGERS, 2016)
A referida Lei, regulamentada pela Resolução da Procuradoria Geral do Estado nº
112/2016, de 13 de dezembro de 2016, dispõe em seu artigo 1º: “Esta Lei visa a instituir a
conciliação e a mediação como meios para a solução de controvérsias administrativas ou
judiciais que envolvam a Administração Pública Estadual Direta e Indireta”.
Ademais, cria, conforme refere o seu artigo 2º, em observância ao preconizados pela
Lei Federal nº 13.140/2015, o Sistema Administrativo de Conciliação e Mediação, integrado
ao Sistema de Advocacia do Estado. As diretrizes que norteiam tal sistema encontram-se
140

dispostas nos incisos do artigo 3º da mesma Lei, estando contempladas: a) a instituição de


valores e meios jurídicos que aprofundem o relacionamento dos cidadãos com a
Administração Pública; b) a prevenção e solução de controvérsias administrativas e judiciais
entre os cidadãos e o Estado do Rio Grande do Sul ou entre os órgãos da Administração
Pública Estadual Direta e Indireta; c) a garantia da juridicidade, da eficácia, da estabilidade,
da segurança e da boa-fé nas relações jurídicas e administrativas; d) a agilidade e a
efetividade dos procedimentos de prevenção e solução de controvérsias; e) a racionalização
da judicialização de litígios envolvendo a Administração Pública Estadual Direta e Indireta
e, f) a redução de passivos financeiros decorrentes de controvérsias de repercussão coletiva.
A partir dessas diretrizes, o Centro de Mediação e Conciliação foi inaugurado em 13
de dezembro de 2016, com o intento de alcançar, a médio prazo, uma redução da
judicialização de conflitos e controvérsias, estabelecendo-se para o futuro uma cultura de
prevenção em relação aos atos administrativos. Com isso, a longo prazo, tem-se a
expectativa de progressiva redução de passivos financeiros e encargos públicos decorrentes
das demandas administrativas e judiciais hoje existentes. (PGERS, 2016)
O Centro de Conciliação e Mediação do Estado do Rio Grande do Sul, demonstra a
aplicabilidade da autocomposição nos conflitos em que for parte pessoa jurídica de direito
público. Entretanto, não está sob a sua competência os processos que envolvem prestação de
serviços de saúde. Atualmente, no âmbito da gestão estadual, estes fazem parte de projeto
Resolve + Saúde, coordenado pela Procuradoria Geral do Estado, que busca incentivar a
eficiência administrativa e a ampliação dos investimentos públicos para atendimento das
demandas pela via administrativa e, em âmbito interinstitucional, o destacado trabalho do
Comitê Executivo Estadual da Saúde do Rio Grande do Sul. (PGERS, 2017)
No âmbito do projeto Resolve + Saúde, a Procuradoria Geral do Estado realizada o
mapeamento da saúde pública do Estado do Rio Grande do Sul para propor soluções
dirigidas. O trabalho tem por finalidade identificar quais são os medicamentos mais
solicitados para, assim, evitar a quebra de estoque e otimizar o fluxo de abastecimento,
viabilizando, ainda a substituição de um medicamento prescrito por outro, de mesmo
princípio ativo, que esteja disponível na rede de atendimento público. A partir da eliminação
de falhas nos fluxos de fornecimento, a Procuradoria Geral do Estado acredita que poderá
ser reduzido o comprometimento financeiro do Estado e melhorar o atendimento à
população. (PGERS, 2017)
141

O Comitê Executivo Estadual da Saúde do Rio Grande do Sul, por sua vez, foi criado
em 2010, a partir da criação do Fórum Nacional do Judiciário para a Saúde do Conselho
Nacional de Justiça (CNJ). O objetivo é reduzir e qualificar as demandas de saúde dos
cidadãos. Em cada estado da Federação foi criado um comitê executivo. Segundo relatório
emitido pelo referido Comitê, em 2016 no Estado do Rio Grande do Sul, a judicialização
correspondeu a cerca de 15% do orçamento da saúde — mais de R$ 320 milhões. (CNJ,
2017)
Ao todo, os recursos destinados no ano de 2016 para a saúde foram de R$ 2,1 bilhões.
Se comparado aos números de 2013, houve redução no número de novas determinações na
área de medicamentos de 18,50% e de 37,76% na área de residuais (demandas de saúde que
não contemplam medicamentos, tais como procedimentos, consultas e exames). O gasto com
a judicialização de pacientes individuais passou de R$ 324.8 milhões em 2015, para R$ 275.8
milhões em 2016. O resultado se deve ao esforço das diversas instituições que participam do
grupo, tanto do Judiciário, como da Saúde, por meio da Ação de Planejamento Sistêmico. A
medida identifica um foco de judicialização e atua nele, para devolver ao gestor público e
atender da necessidade da sociedade. (CNJ, 2017)
Diante da relevância destas interlocuções e de um pensamento conjunto entre os
Sistemas de Saúde e de Justiça, cada vez mais percebe-se a adoção de iniciativas que buscam
interferir nos sistemas de forma célere, moderna e de modo a contribuir para torná-los
efetivos. Trata-se de uma estratégia que fomenta atitudes sistêmicas, diante de um cenário
de crescimento geométrico de demandas versus aumento aritmético de recursos para atendê-
las. Nesse compasso e na busca de atuar de forma intersetorial, diversas instituições
passaram a fomentar parcerias, formar comitês e redes de cooperação, prevendo, inclusive,
em seus mapas estratégicos, a necessidade de harmonia. (CNJ, 2015, p. 172)
A despeito da incontestável importância de uma atuação pautada por esta
metodologia, urge mencionar que são fatores decisivos para o sucesso de iniciativas como
essa a compreensão das instituições jurídicas de que o processo judicial não confere um
tratamento adequado aos problemas de saúde e, de outro, a vontade política dos gestores em
promover e intensificar o diálogo institucional e as soluções administrativas em saúde. Como
se pode observar em outras experiências pelo Brasil, as iniciativas desse tipo só conseguem
florescer e permanecer operantes nos locais onde os Poderes conseguem estabelecer um
nível razoável de colaboração e diálogo. (CNJ, 2015, p. 55)
142

Ainda, o relatório do Comitê Executivo Estadual da Saúde do Rio Grande do Sul,


verificou que ações inovadoras também resultaram nos dados positivos, entre eles: Formação
de redes de cooperação entre os órgãos da Justiça, estado e municípios com o objetivo de
reduzir ou qualificar a judicialização; cursos e workshops com todos os atores envolvidos
no processo de judicialização; realização de mediação prévia pela Defensoria Pública, com
o ajuizamento somente de pedidos realmente necessários; participação mais ativa dos
gestores municipais e demais órgãos para o fortalecimento do SUS sem necessidade de
intervenção judicial. (CNJ, 2017)
Frente ao exposto, diante da necessidade de efetivação do direito social à saúde, bem
como da redução das ações judiciais, com a correspondente otimização das demandas, se faz
necessário que essas ações inovadoras continuem sendo efetivadas, mas também que sejam
envidados esforços no sentido de que se possa avançar para a adoção de práticas de mediação
sanitária no âmbito da administração pública, prevenindo o ajuizamento de ações, orientando
os usuários e fortalecendo o Sistema Único de Saúde, uma vez que a dificuldade de acesso
e compreensão dos fluxos de funcionamento do Sistema Único de Saúde acabam por afastar
a população da busca de soluções na via administrativa, gerando uma excessiva
judicialização das demandas.
Assim, para que se possa avançar nesta temática, é preciso incutir uma nova prática,
uma nova cultura no âmbito do Sistema Único de Saúde. Urge que se promova uma
vigilância permanente dos conflitos sanitários, que pode ocorrer de variadas formas. A
construção de núcleos de Mediação Sanitária, no âmbito das Secretarias de Saúde, em todos
os níveis, para operar a Mediação interna ao sistema e externa com seus usuários, há de ser
um novo paradigma a substituir a litigância e a judicialização. É necessária uma nova postura
da sociedade brasileira para uma nova necessidade social. É preciso adotar a Mediação nos
litígios da saúde. (DELDUQUE; CASTRO, 2015, p. 512)

CONCLUSÃO

O presente estudo fora conduzido a uma análise acerca da possibilidade de utilização


da autocomposição de conflitos como ferramenta da redução da judicialização da saúde.
Nesta perspectiva, repousou seu objeto sobre a possibilidade de utilização de ferramentas
autocompositivas em matérias que envolvam a administração pública e a sua prestação de
serviços na área dos direitos indisponíveis, como é o caso da saúde. Sob esse enfoque, a
143

pesquisa se propôs a averiguar se as ferramentas autocompositvas poderiam contribuir para


a qualificação e redução das ações judiciais em saúde.
Como ponto de partida constatou-se que no período democrático recente a saúde tem
se destacado como um objeto de litígio bastante presente nos tribunais. O alto índice de
judicialização em demandas de saúde conduziu à percepção por parte dos Sistemas da Saúde
e da Justiça, de que era preciso fortalecer as políticas públicas priorizando o atendimento
administrativo, estabelecendo-se, assim, um espaço para a interlocução entre ambos os
sistemas.
A fim de garantir o preconizado pela Constituição Federal, novas direções na
governança da justiça são importantes para que se alcance um formato mais adequado de
resolução destas contendas, entretanto, inúmeras são as dificuldades de efetivação de uma
justiça mais pacificadora, pelos mais diversos fatores que vão desde a percepção de que o
conflito poderá ser resolvido de forma construtiva até a redefinição do papel do Poder
Judiciário na sociedade, sendo que o novo Código de Processo Civil surge como uma
ferramenta de primordial importância na busca de uma atuação mais harmoniosa e dialógica
por parte da Justiça brasileira.
Outrossim, não cabe apenas ao Poder Judiciário a utilização das ferramentas
autocompositivas, as mesmas devem ser adotadas também no âmbito das estruturas da
administração pública, de modo que se possa promover a prevenção das demandas judiciais.
Assim, conclui-se que diante da necessidade de efetivação do direito social à saúde,
bem como da redução das ações judiciais, com a correspondente otimização das demandas,
se faz necessário que essas ações inovadoras de interlocução entre os sistemas continuem
sendo efetivadas, mas também que sejam envidados esforços no sentido de que se possa
avançar para a adoção de práticas de mediação sanitária no âmbito da administração pública,
prevenindo o ajuizamento de ações, orientando os usuários e fortalecendo o Sistema Único
de Saúde, uma vez que a dificuldade de acesso e compreensão dos fluxos de atendimento
acaba por afastar a população da busca de soluções na via administrativa, gerando a
excessiva judicialização das demandas.
144

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147

JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE E A APLICAÇÃO DA TUTELA PROVISÓRIA


DE URGÊNCIA

Rosana Helena Maas126


Ana Luiza Hernandez127

RESUMO

O presente trabalho traz a temática das tutelas provisórias em se tratando de ações as quais
envolvam o direito à saúde. Faz-se uma leitura do tema da judicialização e as novas
confrontações das tutelas provisórias frente ao Código de Processo Civil de 2015. A questão
principal a ser respondida consiste: como ocorre a aplicação da tutela provisória de urgência,
pelo Poder Judiciário, em ações que versam sobre o direito à saúde, diante da importância
do instituto na efetivação desse direito fundamental? A metodologia utilizada será a dedutiva
e a técnica de pesquisa bibliográfica. As medidas provisórias em matéria de saúde são
provimentos imediatos e fundamentais a serem aplicados para que se alcance a proteção
desse bem jurídico, diante do perigo de dano irreversível, o que justifica a mitigação da
restrição legal às tutelas de urgência.

Palavras-chave: Direito à saúde. Judicialização da saúde. Tutela provisória de urgência.

INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem como objetivo analisar o fenômeno da judicialização da


saúde no Brasil, bem como, o instituto da tutela provisória de urgência, prevista no novo
Código de Processo Civil, para verificar a sua aplicabilidade nas ações que versam sobre o
direito à saúde, considerando o perigo de dano, caso a tutela provisória não seja deferida. O
novo Código de Processo Civil vem com o objetivo de tentar buscar uma maior celeridade e
efetividade processual.

126
Pós-doutorado pela Paris Lodron Universität Salzburg (2018) e doutorado em Direito pela Universidade de
Santa Cruz do Sul – UNISC (2016), com doutorado sanduíche na Ernst-Moritz-Arndt-Universität Greifswald,
Rechts – und Staatswissenschaftliche Fakultät (2016). Professora concursada da Universidade de Santa Cruz
do Sul – UNISC, no Curso de Direito e na Pós-Graduação em Direito, onde ministra matérias relacionadas
ao Direito Civil, ao Direito Constitucional e a Teoria do Direito. É integrante do grupo de estudos “Jurisdição
Constitucional aberta” coordenado pela Profa. Pós-Doutora Mônia Clarissa Hennig Leal, vinculado e
financiado pelo CNPq. É autora de livros e artigos publicados no Brasil e no exterior. E-mail:
rosanamaas@unisc.br.
127
Graduada em Direito pela Universidade Federal de Pelotas - UFPEL (1996); Especialista em Processo Civil
pela Universidade de Santa Cruz do Sul - UNISC (2017), advogada com atuação na área cível. E-mail:
analuiza.hernandez@gmail.com
148

Por sua vez, a tutela provisória objetiva a garantia do bem da vida, evitando que o
mesmo se perca na morosidade da tramitação processual. Em algumas situações urgentes e
graves, como se verifica nas ações as quais versam sobre o direito à saúde, na maioria das
vezes, é impossível aguardar a tramitação normal do processo. Ademais, considerando a
morosidade do Poder Judiciário brasileiro, a busca pela tutela provisória é medida que se
impõe, sob pena de perecimento do bem da vida.
Por conseguinte, a facilidade de acesso à justiça, a ineficiência do poder público em
gerir políticas que assegurem a prestação efetiva de atendimento à saúde, aliada à falta de
recursos, desvio de verbas públicas, entre outros problemas, levam a um único caminho: a
judicialização da saúde. Nesse contexto, questiona-se: como ocorre a aplicação da tutela
provisória de urgência, pelo Poder Judiciário, em ações que versam sobre o direito à saúde,
diante da importância do instituto na efetivação desse direito fundamental?
Através do método dedutivo e da técnica de pesquisa bibliográfica, trata-se, em
princípio, do direito à saúde como direito fundamental, assim como, da temática da
judicialização da saúde no Brasil, para, por fim, responder a problemática aqui enfrentada.

1 O DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE

Durante muito tempo permaneceu o entendimento de que saúde era sinônimo de


ausência de doenças físicas e mentais. Porém, tal entendimento foi se modificando, sendo
que a Organização Mundial de Saúde (OMS) traz a seguinte definição: “Saúde é um estado
de completo bem-estar físico, mental e social, e não apenas a ausência de doenças” (OMS,
2011, <http/www.almg.gov.br>). Foi a partir desse conceito de saúde que os Estados
começaram a promover meios os quais assegurassem os serviços de saúde à população.
O direito à saúde, garantido constitucionalmente, como direito fundamental, é dever
do Estado e direito dos cidadãos, por isso, deve ser tutelado a todos. Ademais, constitui-se
em um direito inalienável e subjetivo, como já se pronunciou o Supremo Tribunal Federal,
quando da Suspensão de Tutela Antecipada n. 175. Ainda, o direito à saúde foi reconhecido
internacionalmente pela Organização das Nações Unidas, através da Declaração Universal
dos Direitos Humanos, de 1948, que em seu art. XXV, preceitua:
Todo ser humano tem direito a um padrão devida capaz de assegurar-lhe, e a sua
família, saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados
médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de
desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos deperda dos meios
de subsistência em circunstâncias fora de seu controle (ONU, 1989).
149

No Brasil, a saúde pública foi evoluindo no decorrer do tempo, de forma lenta, porém
positiva. A primeira Constituição Federal, promulgada em 1824, foi completamente omissa
em relação ao direito à saúde, assim como a Constituição de 1891. No entanto, a Carta de
1934 foi a primeira Constituição brasileira que fez referência ao direito à saúde, elevando a
saúde a condição de direito subjetivo do trabalhador, com a criação de vários institutos, como
das aposentadorias e pensões.
Na sequência, a Constituição de 1937, outorgada por Getúlio Vargas, tinha como foco
principal o trabalhador e a saúde das crianças. A seguir, a Constituição de 1946 foi a principal
propulsora na criação dos direitos fundamentais, trazendo os direitos econômicos, sociais e
culturais previstos na Constituição de 1934. Entretanto, o direito à saúde recebeu pela
primeira vez tratamento de direito fundamental na Constituição Federal de 1988, que incluiu,
entre os direitos sociais, o direito à saúde de forma igualitária a todos os cidadãos, conforme
dispõe o artigo 196.
Com a Lei 8.080/90, teve início a implantação do Sistema Único de Saúde (SUS),
para a finalidade de promover a saúde à população, oferecendo tratamento igualitário a todos
os cidadãos. O SUS brasileiro é reconhecido internacionalmente como um dos maiores
sistemas de saúde do mundo, devido seu caráter universal. Pode-se dizer que é uma conquista
alcançada após anos de luta por uma saúde na qual se entende igualitária a todo cidadão.
No entanto, na prática, o referido sistema apresenta ainda muitas falhas devido a
inúmeros problemas, tais como: a escassez de recursos, falta de infraestrutura, desigualdade
na distribuição, entre outros. Além disso, o direito à saúde, como bem jurídico, é
indissociável do direito à vida, razão pela qual deve ser assegurado pelo Estado a todos
indistintamente. Segundo dispõe Ordacgy (2007), a saúde se encontra entre os bens
intangíveis mais preciosos do ser humano, digna de receber a tutela protetiva estatal, pois,
consubstancia-se em característica indissociável do direito à vida.
Desta forma, cabe ao Estado o dever e a responsabilidade constitucional de tutelar o
direito à saúde, por meio de políticas públicas e programas governamentais que permitam o
acesso universal e igualitário a todos os cidadãos. No entanto, a realidade brasileira se mostra
bastante distante da teoria. No Brasil, o acesso à saúde pública é precário e caótico. É cada
vez mais frequente pessoas que necessitam de atendimento pelo SUS ficarem longos
períodos aguardando por uma consulta com um médico especialista, ou aguardando a
disponibilização de medicamentos essenciais.
150

Assiste-se, através das grandes mídias, um número elevado de pessoas as quais ficam
sem obter a assistência desejada por causa da precariedade dos hospitais, vindo, portanto, a
aguardar por leitos em corredores, macas improvisadas, em condições desumanas e cruéis.
Muitos morrem sem o devido atendimento. A realidade da saúde pública no Brasil e a falta
de condições dignas de atendimento à população necessitada ferem o princípio da dignidade
da pessoa humana.
Portanto, o Sistema Único de Saúde, instituído e implementado pelo Estado, apesar
do caráter universal que possui, de atendimento à toda população, não supre à imensa
demanda, obrigando os cidadãos a buscarem a tutela jurisdicional, como (única) alternativa
de concretização do direito à saúde devidamente assegurado, o que leva, por conseguinte, à
crescente judicialização.

2 JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE

Diante da difícil e grave situação da saúde pública no Brasil, bem como, frente a
demais fatores, como ineficácia e omissão dos Poderes Públicos, escassez de verbas, não é
possível atender a população de forma satisfatória e eficaz, com isso, houve um aumento na
demanda de ações judiciais que versam sobre o direito à saúde. A “judicialização da saúde”
é um fenômeno recente no Brasil, o qual teve início no final da década de 1990. Cabe
ressaltar que o termo judicialização128 pode ser aplicado tanto da política como do direito.
A judicialização da política se refere à relação do Poder Judiciário com os demais
Poderes, Executivo e Legislativo, havendo uma espécie de “intervenção” nas competências
desses; já a judicialização do direito consiste na tendência de, cada vez mais, haver um
direito jurisprudencial. As duas espécies de judicialização possuem o mesmo pano de fundo,
ou seja, decorrem da transferência de decisões tidas como estratégicas, envolvendo larga
discussão sobre os direitos fundamentais, decisões sobre temas tidos como polêmicos, de
impacto social, que são tendencialmente mais voltados para a deliberação política, ao Poder
Judiciário (LEAL, 2013, p. 224).

128
Em complemento, abarca-se ainda a obra de Barroso (2013, p. 5) que traz também uma conceituação ao
fenômeno da judicialização, no sentido que tal fenômeno significaria “que questões relevantes do ponto de
vista político, social ou moral estão sendo decididas, em caráter final, pelo Poder Judiciário. Trata-se, como
intuitivo de uma transferência de poder para as instituições judiciais, em detrimento das instâncias políticas
tradicionais, que são o Legislativo e o Executivo. Essa expansão da jurisdição e do discurso jurídico constitui
uma mudança drástica no modo de se pensar e de praticar o direito no mundo romano-germânico”.
151

Segundo Torres (2008), as primeiras ações judiciais referentes a pedidos de


medicamentos foram feitas por pessoas portadoras de HIV/AIDS:
No Brasil, os primeiros e principais demandantes em busca de medicamentos
foram os doentes de HIV/AIDS (Síndrome Deficiência Imunológica Adquirida),
que, frente a medicamentos anti HIV/AIDS que chegaram ao mercado, pela sua
necessidade e custos, ingressaram com ações judiciais. Depois de resultados
positivos, em que o Poder Judiciário mostrou- se efetivo na questão de busca por
melhorias no âmbito da saúde, as demandas aumentaram (TORRES, 2008, p. 70).

Quando iniciaram as referidas demandas no judiciário brasileiro, principalmente


como consequência do surgimento do vírus HIV/AIDS, as pessoas buscavam na justiça
medicamentos antirretrovirais para tratar a doença, em razão do tratamento ter um custo
bastante elevado (SANT`ANA, 2009). O julgado do STJ, a seguir transcrito, publicado no
ano 1999, versa sobre tal questão:
Doente portadora do vírus HIV, carente de recursos indispensáveis à aquisição dos
medicamentos de que necessita para seu tratamento. Obrigação imposta pelo
acórdão ao Estado. Alegada ofensa aos arts. 5º, I, e 196 da Constituição Federal.
Decisão que teve por fundamento central dispositivo de lei (art. 1º da Lei 9.908/93)
por meio da qual o próprio Estado do Rio Grande do Sul, regulamentando a norma
do art. 196 da Constituição Federal, vinculou-se a um programa de distribuição de
medicamentos a pessoas carentes, não havendo, por isso, que se falar em ofensa
aos dispositivos constitucionais apontados (BRASIL, 1999).

Desde então, vêm crescendo cada vez mais os pedidos por medicamentos e outros
serviços de saúde, sendo que, nos últimos anos, houve uma crescente demanda de ações
judiciais contra os entes federativos, considerando que o direito à saúde é um direito
inquestionável previsto constitucionalmente e de responsabilidade solidária entre os entes
estatais.
Na verdade, o Poder Judiciário passou a ser o refúgio daquelas pessoas que não
dispõem de recursos para custear o seu próprio tratamento médico os quais não se encontram
previstos pelo SUS; e, ainda, por medicamentos, não aprovados pela Anvisa; essas e outras
inúmeras causas, levaram, inclusive, a realização de uma Audiência Pública em 2009 pelo
Supremo Tribunal Federal.
Hoje, a judicialização da saúde no Brasil é uma realidade, o que se comprova através
das diversas pesquisas realizadas pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), intensificando o
debate sobre o tema frente aos elevados números apresentados pelas pesquisas. A 13ª edição
do Relatório Justiça em Números publicada em 2017 indica no tema “direito administrativo
e outras matérias de direito público” e no assunto “serviços/saúde”, que as demandas
judiciais, envolvendo diversos assuntos voltados à saúde correspondem a um total de
1.346.931 ações em todas as instâncias. Desse total, são 312.147 ações específicas visando
152

ao fornecimento de medicamentos e 98.579 ações visando somente a tratamentos médico-


hospitalares (CNJ, 2017)
No ano de 2016, dos Estados que apresentaram os maiores índices de demandas
voltadas à saúde, considerando os índices populacionais de cada Estado, em um recorde de
ações a cada 100 mil habitantes, o Estado do Rio Grande do Sul, com uma população de
11.247.972 habitantes, liderou o ranking com 24,72 processos a cada 100 mil habitantes,
seguido do Estado de São Paulo, que com uma população de 44.396.484 habitantes,
apresentou uma média de 6,79 processos a cada 100 mil habitantes (INTERFARMA, 2016),
Como se vê, é extremamente elevado o número de demandas promovidas contra o
Estado, buscando a concretização do direito à saúde, sendo que os números aumentam
assustadoramente a cada ano. Diante dos dados estatísticos apresentados, constata-se que o
Poder Judiciário vem exercendo um papel de suma importância, buscando garantir a
efetividade do direito à saúde. Por outro lado, o Estado não vem cumprindo satisfatoriamente
com tal dever, considerando que não disponibiliza os recursos necessários e fundamentais à
sua efetivação.
Diante dessa omissão governamental, é crescente o número de demandas judiciais
que versam sobre o direito à saúde. Cada vez mais os cidadãos são compelidos a buscar a
tutela jurisdicional, como forma de garantir o direito essencial à saúde, cabendo ao Poder
Judiciário assegurar a implementação deste direito. A possibilidade de recorrer ao Poder
Judiciário na busca de tais direitos encontra respaldo na Constituição Federal de 1988
(BRASIL, 1988), que em seu art. 5º, XXXV, assegura que “a lei não excluirá da apreciação
do poder judiciário lesão ou ameaça a direito”.
Desse modo, ante a relevância do direito à saúde, o Poder Judiciário, enquanto órgão
estatal, não pode se eximir de cumprir os mandamentos constitucionais, fazendo com que o
Estado cumpra com o seu dever e obrigação. Muito tem se discutido a respeito do papel
desempenhado pelo Poder Judiciário na efetivação do direito à saúde, surgindo assim, duas
correntes, sendo que a primeira delas é contrária “à intervenção do Judiciário, considera que
a concretização do direito à saúde se dá por meio de políticas públicas, segundo a
conveniência e oportunidade dos agentes políticos competentes, que devem fazer escolhas
alocativas dos escassos recursos existentes” (MENDES; COELHO; BRANCO, 2010, p.
829-830).
Nesse sentido, haveria uma indevida ingerência do Judiciário em questões políticas,
levando-se em conta o caráter programático das normas constitucionais definidoras dos
153

direitos sociais, ferindo o princípio constitucional da separação dos poderes. A segunda


corrente, por sua vez, defende a intervenção judicial na busca da concretização do direito à
saúde, considerando a força normativa da Constituição Federal e a importância de tal direito
para o cumprimento do princípio da dignidade da pessoa humana. (MENDES; COELHO;
BRANCO, 2010). Feita essas considerações, passa-se a análise da aplicação da tutela
provisória de urgência em demandas judiciais envolvendo o direito fundamental à saúde.

3 APLICAÇÃO DA TUTELA PROVISÓRIA DE URGÊNCIA E A


JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE

Para que o Poder Judiciário possa exercer a sua jurisdição é necessário que se faça
um determinado lapso temporal natural para que ocorra a tramitação processual necessária.
No entanto, em algumas situações urgentes, como se verifica nas ações que buscam a
concretização do direito à saúde, esse lapso poderá comprometer a prestação jurisdicional
de forma irreversível. Por tal razão, o sistema processual busca alternativas para sanar este
problema, através da tutela provisória de urgência, que objetiva neutralizar o perigo de dano
causado pela demora na tramitação processual, garantindo assim, a efetividade do
provimento final.
A Emenda Constitucional nº 45/2004 incluiu o princípio da razoável duração do
processo dentro das garantias fundamentais previstas no art. 5º, LXXVIII da Constituição
Federal de 1988 (BRASIL, 1988): “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são
assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua
tramitação”. Tal inclusão tinha como objetivo precípuo combater a morosidade da prestação
jurisdicional, buscando uma maior celeridade processual.
No entanto, o termo “razoável” é abstrato, na medida em que não estabelece um prazo
para a duração do processo. O que é tempo razoável em um processo, pode não ser em outro,
cabendo a análise de cada processo em sua individualidade. O novo Código de Processo
Civil, prevê nos artigos 1º a 12, princípios fundamentais que regem o processo civil, sendo
que o art. 4º consagra o princípio da razoável duração do processo. Assim, o referido
princípio, previsto constitucionalmente, foi reforçado no novo diploma civilista, já que ele
objetiva a celeridade processual e busca uma maior efetivação da prestação jurisdicional.
Dinamarco (2002) ao discorrer sobre a relevância da busca da celeridade na solução
dos litígios, afirma que a frustração que o decurso do tempo pode trazer à vida, constitui
verdadeira ameaça à garantia de tutela jurisdicional, contida no sistema jurídico, pois essa
154

só pode ser considerada efetiva, quando for tempestiva. De fato, não se pode negar a
relevância do tempo de duração do processo na solução do litígio, pois, ainda que o direito
seja aplicado ao caso concreto sem equívocos técnicos e com estrita observância do direito
positivo, a demora pode acarretar ausência da utilidade da prestação jurisdicional.
As ações judiciais que versam sobre a saúde exigem uma prestação jurisdicional
urgente e célere, sendo que a tutela provisória é o instrumento, o meio a ser utilizado, sob
pena de perecimento desse direito fundamental. Assim, a tutela provisória de urgência tem
uma fundamental importância nestas ações judiciais, na medida em que antecipam uma
decisão promovendo uma simplificação procedimental, como forma de assegurar o bem da
vida. Nesse paradigma, dispõe Didier Jr. (2016, p. 562): “As atividades processuais
necessárias para a obtenção de uma tutela satisfativa (a tutela-padrão) podem ser demoradas,
o que coloca em risco a própria realização do direito afirmado. Surge o chamado perigo da
demora (periculum in mora) da prestação jurisdicional”.
Também, segundo Mouzalas (2016), a tramitação do devido processo legal pode
acarretar delongas suscetíveis de causar danos irreparáveis ao autor, violando assim a
efetividade e a razoável duração do processo. Dessa forma, diante de ações judiciais que
buscam o direito à saúde, a tutela de urgência, normalmente é deferida, quando está
devidamente evidenciado nos autos os requisitos legais referentes a probabilidade do direito
e o perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo, de acordo com o disposto no
artigo 300 do Código de Processo Civil.
Os julgados a seguir transcritos versam sobre ações que postulam a concessão de
medicamentos, tratamento quimioterápico e colocação de prótese. Em todas estas ações
judiciais, observa-se que, devidamente atendidos os pressupostos legais, a tutela de urgência
foi deferida. E não poderia ser de outra forma, pois, caso houvesse o indeferimento da tutela
provisória de urgência, haveria risco de dano aos postulantes, considerando que as tutelas
pretendidas versam sobre saúde. Neste primeiro julgado, a parte postula o fornecimento de
medicamento de alto custo, tendo sido deferido o pedido diante da probabilidade do direito
e o perigo de dano ou risco ao resultado útil do processo.

AGRAVO DE INSTRUMENTO. DIREITO PÚBLICO NÃO ESPECIFICADO.


DIREITO À SAÚDE. FORNECIMENTO DOS MEDICAMENTOS -
BERTEZOMIBE (VELCADE®). PACIENTE PORTADOR DE MIELOMA
MÚLTIPLO (CID-10 C90.0). TUTELA DE URGÊNCIA. REQUISITOS
CONFIGURADOS. COMPROVAÇÃO DE EFICÁCIA. RECOMENDAÇÃO
MÉDICA. SUFICIÊNCIA. ALTO CUSTO DO MEDICAMENTO. LIMITAÇÃO
ORÇAMENTÁRIA. INAPLICABILIDADE. 1. A assistência à saúde é direito de
155

todos garantido constitucionalmente, devendo o Ente Federativo custear os


medicamentos e tratamentos aos necessitados. Inteligência do artigo 196 da CF. 2.
Hipótese em que restou evidenciado nos autos a probabilidade do direito e o perigo
de dano ou o risco ao resultado útil do processo, caso não concedida a tutela de
urgência pleiteada na origem, estando demonstrado, inclusive o risco de
agravamento da doença e até mesmo o risco de morte da paciente. 3. Por outro
lado, pareceres e pesquisas elaboradas abstratamente, sem exame do caso
concreto, indicando a ausência de eficácia do medicamento, não afastam a
necessidade do fármaco atestada na prescrição do médico assistente, descabendo
falar em prevalência do parecer técnico da SES sobre laudo do médico que
acompanha a parte autora. 4. A existência de solidariedade entre os entes públicos
afasta a tese recursal no sentido que a responsabilidade pela aquisição dos
fármacos, de alto custo, seria exclusiva da União. Na mesma linha, tampouco
socorre ao apelante a propalada insurgência quanto ao alto custo do tratamento
pleiteado e a ausência de previsão orçamentária e reserva do possível, pois a teoria
da reserva do possível, que é atrelada ao fator custo, não retira do Judiciário a
possibilidade de determinar a implementação de um direito fundamental, no caso,
o direito à saúde. Precedentes deste Tribunal de Justiça. NEGARAM
PROVIMENTO AO AGRAVO DE INSTRUMENTO. (RIO GRANDE DO SUL,
2017).

No julgado a seguir colacionado, a parte autora busca a concessão de tratamento


quimioterápico necessário, diante do diagnóstico comprovado e da gravidade do quadro de
saúde, tendo restado demonstrado o perigo de dano à saúde, caso o tratamento não seja
realizado.
AGRAVO DE INSTRUMENTO. SEGUROS. PLANO DE SAÚDE. AÇÃO DE
OBRIGAÇÃO DE FAZER. QUIMIOTERAPIA. CO-PARTICIPAÇÃO.
PERCENTUAL SOBRE O TRATAMENTO. TUTELA DE URGÊNCIA.
PRESENÇA DOS REQUISITOS. 1. Trata-se de decisão recorrida publicada após
a data de 18/03/2016, quando entrou em vigor o Código de Processo Civil de 2015,
de modo que há a imediata incidência no caso dos autos da legislação vigente, na
forma do artigo 1.046 do diploma processual precitado. 2. Os planos ou seguros
de saúde estão submetidos às disposições do Código de Defesa do Consumidor,
enquanto relação de consumo atinente ao mercado de prestação de serviços
médicos. Isto é o que se extrai da interpretação literal do art. 35 3 Lei 9.656/98.
Súmula n. 469 do STJ. 3. A tutela de urgência será concedida quando houver
elementos nos autos que evidenciem a probabilidade do direito reclamado e
houver perigo de dano ou risco ao resultado útil do processo, nos termos do art.
300 do novo Código de Processo Civil. 4. Restou demonstrado o perigo de dano à
saúde do demandante, diante do diagnóstico de adenocarcinoma de vesícula biliar,
necessitando realizar tratamento quimioterápico, tendo em vista a gravidade do
quadro de saúde apresentado. 5. Em tese, é vedada cobrança de co-participação
em percentual sobre o tratamento ou exame realizado, de modo que, em sede de
cognição sumária, entendo que estão presentes os requisitos previstos para o
deferimento da tutela de urgência no caso. Dado provimento ao agravo de
instrumento (RIO GRANDE DO SUL, 2017)

Ainda, outro julgado transcrito que se refere ao pedido de procedimento cirúrgico em


caráter de urgência, o qual foi deferido sob o fundamento de que estão presentes os requisitos
autorizadores da medida.
AGRAVO DE INSTRUMENTO. ANALOGIA RECURSAL. MUNICÍPIO DE
TRIUNFO. DIREITO À SAÚDE. PROCEDIMENTO CIRÚRGICO.
ARTROPLASTIA DE QUADRIL. DEFERIMENTO DO PEDIDO DE
ANTECIPAÇÃO DE TUTELA. ART. 300 DO CPC/15. MANUTENÇÃO DA
156

DECISÃO AGRAVADA. Trata-se de agravo de instrumento interposto em face da


decisão que deferiu o pedido de antecipação de tutela para determinar ao requerido
o fornecimento do procedimento cirúrgico com a colocação de prótese total, para
fins de tratamento de sua patologia - OSTEONECROSE - CID 10 M79.6, que
acomete a parte agravada, em caráter de urgência. (...) In casu, ao menos em sede
de convicção sumária, pela análise da farta documentação carreada aos autos,
verifico a urgência da concessão da tutela, medida, na medida em que a parte
autora comprovou a gravidade da doença, atestada no laudo de fl. 23, presentes,
portanto, os requisitos autorizados da medida, a probabilidade do direito, através
da comprovação da doença, assim como o perigo de dano, pois a ausência da
medicação poderá acarretar má qualidade de vida ao paciente, podendo evoluir o
quadro para insuficiência respiratória e óbito. A Carta Política Federal (CF/88) e a
Estadual (CE/89) foram explícitas e expressas em garantir o direito à vida e à saúde
ao afirmar que a saúde é DIREITO de todos e DEVER do Estado, sem qualquer
limitação ou restrição, garantida por políticas públicas sociais e econômicas, de tal
modo que é garantido também o ACESSO UNIVERSAL, isto é, alcançável a todo
cidadão. O conjunto de ações e as políticas públicas adequadas ao cumprimento
do mandamento Constitucional é tarefa do Administrador e do Executor das Cartas
Constitucionais e da legislação infraconstitucional. O não fazer ou o fazer mal e
incompleto é ônus e encargo Administrativo que não implica, é bom que fique
desde logo registrado, em obnubilar ou diminuir o direito do cidadão, do indivíduo
ou da população, muito menos mitiga a tarefa do Poder Judiciário, enquanto
Guardião do Sistema Legislativo e Constitucional em vigor. Essa é uma
responsabilidade do Gestor Público da qual não pode se demitir, até porque a
legislação assim o determina. Desta feita, a decisão agravada deve ser confirmada
pelos próprios fundamentos. AGRAVO DE INSTRUMENTO DESPROVIDO
(RIO GRANDE DO SUL, 2016)

O deferimento da tutela provisória nessas situações se justifica diante da existência


dos elementos nos autos que evidenciem a probabilidade do direito reclamado, assim como,
o perigo de dano ou risco ao resultado útil do processo, nos termos do artigo 300 do novo
Código de Processo Civil. O uso de um medicamento essencial, a continuidade de um
tratamento quimioterápico, a internação em UTI, a substituição de uma prótese em um
membro, a realização de exames e cirurgias, entre outros serviços médicos, são pedidos
urgentes que exigem o deferimento imediato, sob pena de risco de vida do postulante.
Nessas ações, obviamente, seria impossível aguardar a tramitação normal de um
processo, pois o que está em jogo é a própria vida e a demora processual seria fatal. Diante
de ações dessa natureza, as tutelas provisórias são provimentos imediatos e fundamentais a
serem utilizados para que se alcance a proteção do bem jurídico mais importante que é o
direito à vida e à saúde, ou melhor, com saúde. Objetivando garantir o cumprimento das
decisões judiciais, muitas vezes os magistrados impõem multa diária aos entes federados,
em caso de descumprimento da obrigação judicial. A determinação de multa diária,
denominada astreintes, por descumprimento de obrigação de fazer, poderá ser imposta ao
ente federado, de oficio, independente de pedido do autor, conforme entendimento do
colendo Superior Tribunal de Justiça:
157

PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. AGRAVO REGIMENTAL NO


AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. FORNECIMENTO DE
MEDICAMENTO. CABIMENTO DE IMPOSIÇÃO DE MULTA DIÁRIA,
CONTRA A FAZENDA PÚBLICA, POR DESCUMPRIMENTO DE
OBRIGAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE DE REVISÃO DO VALOR ARBITRADO.
AGRAVO REGIMENTAL DO ESTADO DE PERNAMBUCO A QUE SE NEGA
PROVIMENTO. 1. O entendimento adotado pela Corte de origem não destoa da
jurisprudência do STJ, segundo a qual é cabível a cominação de multa contra a
Fazenda Pública por descumprimento de obrigação de fazer. No caso em tela, a
apreciação dos critérios previstos no art. 461 do CPC para a fixação de seu valor
demandaria o reexame de matéria fático-probatória, o que encontra óbice na
Súmula 7 desta Corte. Excepcionam-se apenas as hipóteses de valor irrisório ou
exorbitante. 2. Na hipótese, o valor de R$ 1.000,00 não se mostra excessivo, a
ensejar a sua revisão por esta Corte Superior, especialmente por se tratar de
hipótese de fornecimento de medicamentos e tratamento de saúde. 3. Agravo
Regimental do ESTADO DE PERNAMBUCO a que se nega provimento.
(BRASIL, 2016, grifo nosso).

Havendo descumprimento da obrigação de fazer, imposta ao poder público, poderá


ser determinado o bloqueio de valores das contas bancárias, conforme entendimento
consolidado no STJ, através do recurso repetitivo REsp 1069810/RS, a seguir transcrito
(BRASIL, 2013):
PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL.
ADOÇÃO DE MEDIDANECESSÁRIA À EFETIVAÇÃO DA TUTELA
ESPECÍFICA OU À OBTENÇÃO DORESULTADO PRÁTICO
EQUIVALENTE. ART. 461, § 5o. DO CPC. BLOQUEIO DEVERBAS
PÚBLICAS. POSSIBILIDADE CONFERIDA AO JULGADOR, DE OFÍCIO OU
AREQUERIMENTO DA PARTE. RECURSO ESPECIAL PROVIDO.
ACÓRDÃO SUBMETIDOAO RITO DO ART. 543-C DO CPC E DA
RESOLUÇÃO 08/2008 DO STJ.1. Tratando-se de fornecimento de
medicamentos, cabe ao Juiz adotar medidas eficazes à efetivação de suas decisões,
podendo, se necessário, determinar até mesmo, o sequestro de valores do
devedor(bloqueio), segundo o seu prudente arbítrio, e sempre com adequada
fundamentação.2. Recurso Especial provido. Acórdão submetido ao regime do
art.543-C do CPC e da Resolução 08/2008 do STJ.

Como se verifica, o Poder Judiciário adentra de forma efetiva no campo da saúde,


assegurando garantir esse direito fundamental através da tutela provisória de urgência.
Entretanto, para concessão dessa tutela, além dos requisitos objetivos, é necessária que
inexista perigo de irreversibilidade dos efeitos da decisão, conforme prevê o parágrafo 3º do
artigo 300 do novo Código do Processo Civil: “§ 3º. A tutela de urgência de natureza
antecipada não será concedida, quando houver perigo de irreversibilidade dos efeitos da
decisão”.
Deste modo, o referido dispositivo legal dispõe sobre a irreversibilidade fática dos
efeitos da decisão e não irreversibilidade de direito, já que essa poderá ser revogada, cassada
ou modificada. Cumpre ressaltar que o referido requisito negativo para concessão da tutela
de urgência de natureza antecipada, além de impulsionado pelos princípios inerentes à
158

efetividade da tutela jurisdicional, foi criado para garantir ao réu o direito fundamental de
defesa, atendendo os princípios do contraditório e ampla defesa, buscando uma maior
segurança jurídica e ampliando a efetividade da tutela jurisdicional.
Portanto, em situações em que existe a possibilidade de irreversibilidade dos efeitos
fáticos da decisão para ambas as partes, o magistrado deverá ter uma sensibilidade maior ao
caso concreto, analisando as provas e agindo com total cuidado e prudência, considerando
que eventuais prejuízos patrimoniais podem ser resolvidos por perdas e danos. Constata-se
na prática que tal proibição contida no parágrafo 3º do artigo 300 do novo CPC não tem
impedido que as partes requeiram e obtenham medidas irreversíveis em sede de antecipação
da tutela. Aliás, é entendimento majoritário entre os doutrinadores e os principais Tribunais
do país que tal proibição não pode servir de impedimento à concessão da medida
antecipatória.
Conforme observa-se em Neves (2011, p. 1172), “um direito indisponível não pode
ser sacrificado pela vedação legal". Desse modo, o Poder Judiciário apresenta um papel de
importância ímpar ao julgar tais questões que envolvem o direito à vida, principalmente em
situações de irreversibilidade da antecipação da tutela requerida, de forma que o perigo de
dano irreversível à saúde justifica a aplicação das tutelas de urgência.
Por fim, cabe ao magistrado usar o bom senso e a ponderação ao julgar tais questões
que envolvem o direito à vida, principalmente em situações de irreversibilidade da
antecipação da tutela requerida, de forma que o perigo de dano irreversível à saúde justifica
a mitigação da restrição legal às tutelas de urgência.

CONCLUSÃO

O presente estudo justifica-se pela importância e relevância social que o fenômeno


denominado “judicialização da saúde” tem assumido perante o Poder Judiciário, assim como
a aplicação da tutela provisória de urgência nas ações que versam sobre o direito a saúde.
Diante da situação caótica e preocupante que vive a saúde pública do Brasil, a tutela
provisória de urgência é utilizada largamente na busca do direito fundamental à saúde, como
opção de obter a mandado jurisdicional de forma célere e efetiva, sem os riscos da demora
processual.
Nesse contexto, o Poder Judiciário concede a tutela provisória de urgência em ações
que versam sobre tal direito, diante do perigo de dano irreparável à vida, sendo que as
159

modificações trazidas pelo novo diploma processual são de fundamental importância na


concretização desse direito fundamental. O Poder Judiciário, através das tutelas provisórias,
vem desempenhando um importante papel, buscando tutelar o direito à saúde, amparando as
pessoas necessitadas, frente a omissão e ineficácia dos demais Poderes.
Apesar de que, muitas vezes, essa atividade do Poder Judiciário não é observada
dessa forma, pois, ao agir assim, também há a suposta intervenção nos outros dois Poderes
Estatais. Desse modo, a judicialização da saúde apresenta-se como um grande desafio a ser
enfrentado, considerando que a saúde se tipifica como um bem jurídico indissociável do
direito à vida. Soluções ao caso? Apenas com a ajuda conjunta de todos os Poderes Estatais,
através de políticas públicas eficientes e eficazes e de um Poder Judiciário preparado para
enfrentar essas demandas.

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<http://www.tjrs.jus.br/busca/?tb=proc>. Acesso em: 19 nov. 2017.
161

IV MÚLTIPLAS PERSPECTIVAS DO DIREITO


IMOBILIÁRIO, URBANÍSTICO, NOTORIAL E
REGISTRAL
162

ESTUDO COMPARATIVO ENTRE OS INSTITUTOS DA USUCAPIÃO


ESPECIAL DE IMÓVEL URBANO E O PROJETO MORE LEGAL IV

Amanda Demiquei Pohl129


Ricardo Hermany130

RESUMO

Em razão do intenso problema de regularização fundiária havido no Brasil, analisou-se dois


institutos promotores da regularização, quais sejam a Usucapião Especial de Imóvel Urbano,
que é um instrumento eminentemente jurídico em que o cidadão ou os condôminos de fato
buscam a regularização do seu imóvel em situação consolidada; e o Projeto More Legal IV
que é um instrumento jurídico-administrativo, onde os Poderes Executivo e Judiciário do
Rio Grande do Sul se unem para auxiliar o cidadão na busca àquele mesmo fim. Desta forma,
considerando as peculiaridades de cada instituto e, principalmente, a atuação da
Corregedoria Geral de Justiça gaúcha na criação do Projeto More Legal, entende-se que o
engajamento de entes públicos na persecução da regularização fundiária é capaz de otimizar
este processo do solo brasileiro. Portanto, tomado como exemplo o Projeto More Legal e
demonstrado seus efeitos práticos, aliando a isso o fato notório das inúmeras situações de
moradias irregulares ou clandestinas existentes no país, considera-se necessária a elaboração
de um plano nacional de regularização fundiária que seja capaz de atender, de forma muito
mais ampla, a demanda existente.

Palavras-chave: Política Pública; Projeto More Legal; Usucapião.

INTRODUÇÃO

No Brasil o processo de urbanização se deu de forma totalmente desorganizada,


explicada por fatores históricos e políticos – como a abolição da escravatura, o êxodo rural,
a industrialização, dentre outros. Esses acontecimentos contribuíram para que a população
de baixa renda, sem nenhum recurso próprio ou auxílio de entes públicos, se estabelecesse
em locais inapropriados para moradia, ou, mesmo que próprios, de forma irregular.
Em decorrência desta problemática, no ano de 2001 foi promulgada a Lei Federal Nº
10.257, também conhecida como Estatuto da Cidade, que regulamentou o art. 182 da
Constituição Federal de 1988, adicionando ao atraso das políticas públicas de moradia mais

129
Especialista em Direito Imobiliário, Urbanístico, Notarial e Registral – convênio CFOAB/ENA, UNISC e
Escola Superior de Advocacia da Ordem dos Advogados do Brasil – Seccional do Rio Grande do Sul.
Graduada em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (2012). Advogada. E-
mail: amandapohl@gmail.com
130
Doutor em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (2003) com doutorado sanduíche pela
Universidade de Lisboa (2003); Pós-Doutor na Universidade de Lisboa (2011); Mestre em Direito pela
Universidade de Santa Cruz do Sul (1999); Professor da graduação e do Programa de Pós-Graduação em
Direito- Mestrado/Doutorado da Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC; Advogado e consultor jurídico
da Confederação Nacional dos Municípios – CNM; E-mail: hermany@unisc.br
163

um lapso temporal de 13 anos. Em seu texto estão previstos diversos mecanismos a serem
utilizados como os instrumentos de regularização urbana, criados com a finalidade de garantir
a função social da propriedade, intervir na inclusão dos cidadãos que restaram excluídos da
cidade organizada.
Após uma breve análise dos instrumentos previstos no Estatuto da Cidade, irá ser
analisado instituto da Usucapião Especial de Imóvel Urbano, nas modalidades individual e
coletiva. Na sequência, o estudo enfocará o instituto do More Legal, atualmente na etapa IV,
tratando-se de um programa criado pela Corregedoria Geral de Justiça do Estado do Rio
Grande do Sul.
Ao traçar o comparativo entre os institutos, pretende-se elucidar o tema ora abordado
para esclarecer os principais pontos de divergência entre os dois instrumentos, tendo em
vista que ambos possuem um mesmo objetivo, que é a regularização de imóveis que se
encontram em situações consolidadas, normalmente de moradia da população de baixa
renda.
A partir disso, será possível analisar a dimensão da importância da atuação efetiva
dos entes públicos para o processo de regularização fundiária, tendo em vista que o Projeto
More Legal IV, que visa facilitar o processo de regularização, abrange somente o estado do
Rio Grande do Sul.
Considerando que a Usucapião Especial de Imóvel Urbano é um instrumento
eminentemente jurídico em que o cidadão busca a regularização do seu imóvel em situação
consolidada e que o Projeto More Legal IV, é um instrumento jurídico-administrativo, onde
os Poderes Executivo e Judiciário do Rio Grande do Sul se unem para auxiliar o cidadão na
busca pelo mesmo fim, acredita-se que o engajamento havido pelo estado gaúcho vem a
facilitar e estimular o processo de regularização desses imóveis, consagrando os diretos
fundamentais à propriedade e à moradia.
O presente estudo é considerado relevante em razão do extenso caminho a ser trilhado
na persecução da regularização fundiária no Brasil. Isso porque o processo de regularização
deve, via de regra, ser encaminhado pelo particular, pelo cidadão habitante ou usuário do
imóvel irregular ou clandestino. Assim, não consegue compreender a circunstância irregular
em que se encontra e, na maioria das vezes, não tem nem conhecimento de como realizar
essa regularização.
Tendo em mente o panorama histórico da problemática, aliado à imensidão territorial
do nosso país, compreende-se a complexidade que é a busca pela realização da regularização
164

fundiária. Por isso, acredita-se que este estudo também poderá servir de base para que outros
estados brasileiros sejam estimulados a adotar o posicionamento do Rio Grande do Sul no
intento de promover a regularização fundiária no país.
Quanto à definição do método de abordagem, será utilizado o método dedutivo, em
que partiremos do estudo da parte geral da regularização fundiária, até a análise minuciosa
dos instrumentos de regularização da Usucapião Especial Urbana e More Legal IV,
empregando-se o método de procedimento comparativo entre ambos.
A técnica de pesquisa do presente projeto será desenvolvida a partir de pesquisa
bibliográfica que, por sua vez, consiste na análise documental realizada sobre várias fontes,
tais como normas constitucionais, leis ordinárias, decretos legislativos, resoluções
normativas, jurisprudência, revistas especializadas, periódicos, livros e doutrina.

1 USUCAPIÃO ESPECIAL URBANA versus PROJETO MORE LEGAL IV

A Usucapião Especial de Imóvel Urbano é uma forma originária de aquisição da


propriedade e está prevista em diversos diplomas legais, quais sejam, a Constituição Federal,
o Estatuto da Cidade e o Código Civil. Sua função primordial é possibilitar ao possuidor de
uma área de terras o registro em seu nome, mesmo que desprovido dos requisitos legais
exigidos para tanto.
Possui diversos elementos básicos e indispensáveis para sua efetivação, porém
existem dois que estão presentes em qualquer espécie: o tempo e a posse. A esses requisitos
podem ser agregados outros, como o justo título, boa-fé, etc., dependendo da modalidade da
usucapião de que se trate (SOARES, 2004, p. 36).
O requisito tempo pode variar de acordo com a espécie de usucapião a que se
pretende. Atualmente, o período mais curto da posse ora exigido em lei é de dois anos – para
a Usucapião Especial Urbana por abandono do lar – e o mais longo é de 15 anos – para a
Usucapião Extraordinária, podendo esta ser reduzida para 10 anos no caso de o possuidor
ter estabelecido no imóvel a sua moradia habitual, ou nele realizado obras ou serviços de
caráter produtivo.
Já em relação ao requisito posse não há a mesma flexibilidade. Para gerar o direito à
propriedade, exige-se que a posse seja mansa, pacífica e prolongada pelo período exigido
em lei. Portanto, não é qualquer posse capaz de alcançar a usucapião, e sim a que traz os
165

elementos de continuidade, inconteste, pacífica, com intenção de dono e que atenda o prazo
estipulado (SILVA, 2012).
A posse com intenção de dono, referida por Silva (2012), significa a presença do
animus domini, ou seja, que o possuidor aja como se dono fosse. A título exemplificativo, o
possuir deve utilizar o imóvel para a sua moradia e também o cuidar, fazendo os reparos
necessários, com o intuito de não deixar que se deteriore, como o dono faria.
O animus domini deve estar livre de impedições à aquisição da propriedade. Não
permite a aquisição a posse exercida por conta de relação jurídica ou em decorrência da lei,
mesmo que exercida de forma direta e com intenção de dono, como é o caso de uma locação,
por exemplo. O locatário possui a posse mansa, pacífica, contínua e ininterrupta do imóvel,
mas está impossibilitado de adquirir a propriedade do bem pela usucapião, em qualquer
modalidade, em decorrência da relação jurídica havida com o dono do imóvel.
Foi no Código Civil de 1916 que ocorreu a regulamentação expressa da usucapião
no ordenamento jurídico pátrio, disciplinando-a nos artigos 550 a 553. O referido código
previa em duas modalidades: a ordinária e a extraordinária. A primeira tinha como requisito
a posse ininterrupta e inconteste pelo período de 10 anos entre presentes ou 15 entre ausentes,
com justo título e boa fé. Já a segunda dispensava o justo título e a boa-fé, porém exigia,
inicialmente, a posse ininterrupta e sem oposição pelo período de 30 anos e, após alteração
na redação do artigo 550, pelo período de 20 anos (BRASIL, 1916).
A forma ordinária, ao exigir o justo título e boa-fé, estabelecia que a posse fosse
exercida com opinio domini, ou seja, que o possuidor tivesse a plena convicção de ser o
legítimo proprietário daquele imóvel. No entanto, em ambos os casos se determinava que a
posse fosse exercida com animus domini, ou seja, que o possuidor agisse como se dono fosse
e exercesse o poder de fato sobre a coisa com o intuito e torná-la sua. Também não havia
qualquer distinção a respeito da localização do imóvel, podendo ser urbano ou rural.
A nova redação instituiu a posse continuada entre o antecessor e o herdeiro legítimo,
bem como a proibição de o direito ser requerido mais de uma vez por quem já foi por ele
beneficiado. O mais relevante, porém, diz respeito ao termo “edificação urbana”
acrescentado ao texto, possibilitando o pleito inclusive sobre apartamentos.
Já a segunda, modalidade coletiva, o Estatuto da Cidade inovou ao criar mais um
novo tipo de aquisição de imóvel através da usucapião. A razão de ser deste dispositivo se
justifica pela impossibilidade, no caso principalmente das grandes favelas, em se delimitar
o imóvel de cada particular.
166

A usucapião especial de imóvel urbano na sua forma individual está positivada em


três diplomas legais, quais sejam, a Constituição Federal de 1988, o Estatuto da Cidade e o
Código Civil. Considerando o ideal dos diplomas legais nos quais está inserida, verifica-se
a importância que o legislador deu a este instituto.
Como não poderia deixar de ser, essa relevância atribuída à usucapião especial
urbana não foi por acaso. Este instituto possui um cunho social de grande relevância: o da
busca pela efetivação da função social da propriedade aliada ao princípio da dignidade da
pessoa humana e com isso é que se chegou à atual configuração.
Isso se deve à intensa migração, nas últimas décadas, de pessoas das áreas rurais para
os grandes centros, fazendo necessária a criação de uma maneira legal e prática de mitigar
os diversos problemas sociais oriundos dessa migração. Dentre estes problemas se pode
citar, principalmente, a ausência de saneamento básico e de moradias, o surgimento de
favelas e ocupações clandestinas, que acarretam no aumento da violência urbana.
Como dito anteriormente, a usucapião individual está disciplinada em três diplomas
legais. Na Constituição Federal, o artigo que trata do tema é o 183; no Estatuto da Cidade
está prevista no art. 9º; e no Código Civil, o dispositivo que a regulamenta é o art. 1.240.
Desconsiderando as pequenas diferenças no texto de cada artigo, os dispositivos
possuem praticamente a mesma redação. Em que pese o Código Civil seja o diploma mais
recente entre os três analisados, fato curioso é que apenas o Estatuto da Cidade prevê a
posse continuada por sucessão, ou seja, quando o herdeiro legítimo pode acrescentar a
posse de seu antecessor à sua para computar o período de cinco anos, desde que já resida
no imóvel quando da abertura da sucessão.
Importante salientar que nesta modalidade de usucapião não é permitida a acessio
possessionis, que é a soma de posses de terceiros, por ser considerada a posse individual
como algo personalíssimo.
Em que pese o art. 1.243 preveja a possibilidade da acessio possessionis, entende-se
que esta permissão não se aplica à usucapião individual, vez que o objetivo do instituto é,
justamente, possibilitar a regularização da posse da família residente no imóvel. Consoante
é o entendimento jurisprudencial dos mais diversos tribunais estaduais.
Ainda, não é permitido que seja conferida a propriedade por usucapião especial
individual mais de uma vez ao mesmo requerente, deixando claro o intuito em atender o direito
mínimo de moradia e a função social da propriedade.
167

Conclui-se, portanto, que os requisitos para configuração da usucapião especial de


imóvel urbano individual são: (a) a posse mansa, pacífica e ininterrupta com animus
domini pelo período de cinco anos; (b) que o imóvel esteja localizado em área urbana e
tenha área igual ou inferior a 250,00 m²; (c) que seja utilizado pelo possuidor como
moradia sua ou de sua família; (d) que o possuidor não seja proprietário de nenhum outro
imóvel, nem rural, nem urbano. Presentes estes requisitos, o possuidor poderá requerer em
juízo o reconhecimento do seu domínio e reivindicar o bem para si.
Os requisitos para configuração da usucapião especial de imóvel urbano coletivo:
(a) a posse mansa, pacífica e ininterrupta com animus domini pelo período de cinco anos;
(b) que o imóvel esteja localizado em área urbana e tenha área superior a 250,00 m²; (c)
ocupação por população de baixa renda par sua moradia; (d) impossibilidade de
identificação da área ocupada por cada possuidor; (e) que os possuidores não sejam
proprietários de nenhum outro imóvel, nem rural, nem urbano.
Analisada a usucapião em suas diversas modalidades, passamos para o estudo do
Projeto More Legal IV, que constitui uma estratégia da Corregedoria Geral de Justiça do
Rio Grande do Sul na tentativa de promover a regularização do solo urbano. O projeto
consiste, basicamente, na facilitação dos procedimentos registrais da propriedade através da
sua desburocratização.
O More Legal foi criado no ano de 1995, pelo ilustre Desembargador do Egrégio
Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Dr. Décio Antônio Erpen, então Corregedor Geral,
através do Provimento nº 39/1995. No decorrer dos seus 21 anos de existência, o projeto
passou por três edições – Provimentos nº 17/1999, nº 28/2004 e nº 21/2011 – visando adequa-
lo à prática e à entrada em vigor de novas leis, como, por exemplo, o Estatuto da Cidade em
2001. Atualmente, o projeto encontra-se na sua 4ª edição, por isso a denominação More
Legal IV.
Com o escopo de promover a regularização fundiária, o projeto alia a atuação de
diversos entes públicos do Poder Judiciário, vinculado ao procedimento administrativo ao
processo judiciário. Ao instituir o Provimento nº 28/2004-CGJ – More Legal III – o eminente
Des. Corregedor Dr. Aristides Pedroso de Albuquerque Neto reconheceu:
O provimento do More Legal serviu, inclusive, como diretriz para a promulgação da
Lei nº 9.785, de 29 de janeiro de 1999 (PAIVA, 2009), que alterou, entre outros dispositivos,
o art. 18 da Lei 6.766/79, a Lei de Parcelamento do Solo Urbano. No referido artigo consta
o rol de documentos necessários para o registro de loteamento ou desmembramento. Após a
168

alteração, o inciso I e os parágrafos 4º e 5º do art. 18 passaram a vigorar com o mesmo texto


do inciso I e parágrafos 3º e 4º do art. 512, da Consolidação Normativa Notarial e Registral
– CNNR, respectivamente, que é o dispositivo que elenca a documentação necessária para
obtenção do registro via More Legal.
O procedimento do More Legal é dividido em dois momentos: um administrativo e
outro judicial, no âmbito da jurisdição voluntária. O início do procedimento acontece com a
entrega dos documentos exigidos no Cartório de Registro de Imóveis da localização do
imóvel.
Estudou-se, até aqui, os institutos promotores da regularização fundiária usucapião –
em suas diversas modalidades – e More Legal, primeiro com o surgimento de cada um dos
institutos, passando pela sua evolução histórica, até chegar em seu atual formato, analisando
seus requisitos formais.

2 POLÍTICAS PÚBLICAS URBANAS E O ENGAJAMENTO DO PODER PÚBLICO

Nos capítulos anteriores foi possível analisar as causas geradoras do problema de


regularização fundiária no Brasil, bem como os diversos mecanismos existentes no
ordenamento jurídico capazes de sanar este problema. Num segundo momento, foram
observados dois institutos promotores da regularização fundiária: a usucapião especial
urbana nas modalidades individual e coletiva, e o Projeto More Legal IV.
Dito isso, inevitável traçar um comparativo entre os dois institutos de maneira a
ressaltar as similitudes e divergências entre ambos. Assim, poder-se-á chegar ao escopo
deste trabalho que é demonstrar os benefícios trazidos para a sociedade como um todo
quando o poder público se engaja para resolver um determinado problema social.
A usucapião, que é uma forma de aquisição de propriedade, requer que o usucapiente
produza diversos tipos de prova em relação à posse do imóvel, bem como se desdobra em
várias modalidades para incluir sob o seu espectro os diversos tipos de posse que podem
gerar o direito à propriedade. Cada modalidade, porém, possui requisitos diferentes e nem
sempre o particular consegue atender a todos de maneira satisfatória.
Qualquer cidadão brasileiro que se enquadre nos requisitos da usucapião poderá
requerê-la em juízo, pois o instituto é aplicado nacionalmente, em todas as suas modalidades,
uma vez que estão previstas em diplomas legais de âmbito federal e são válidas, portanto,
em todo o território nacional.
169

Já o More Legal, por sua vez, nasce como uma alternativa, uma outra possibilidade
de adquirir a propriedade de um imóvel através da legitimação da posse. Ele surge da
necessidade de se aperfeiçoar os mecanismos de aquisição de propriedade já existentes para
uma ferramenta que passe a atender uma gama maior de pessoas e situações fáticas. Ele
surge da dificuldade das pessoas em se enquadrar nos requisitos da legislação existente,
desburocratizando o processo, simplificando a documentação exigida, inclusive dispensando
o requisito temporal, imprescindível em qualquer modalidade de usucapião.
No entanto, o More Legal é um instrumento de regularização fundiária criado pela
Corregedoria Geral de Justiça gaúcha. Por isso, sua aplicação restringe-se ao estado do Rio
Grande do Sul. Ou seja, somente nos cartórios de Registro de Imóveis gaúchos é possível
requerer a regularização da propriedade via More Legal.
Criou-se este provimento para que a lei pudesse se adequar à atual necessidade das
pessoas, pois o contrário já não era suficiente para mitigar essa problemática. Ou seja,
verificou-se que as normativas existentes em relação à matéria já não bastavam para cumprir
satisfatoriamente com o seu objetivo, que é a regularização das moradias para a população
de baixa renda.
O More Legal extrapola o âmbito jurídico. É iniciado extrajudicialmente no Cartório
de Registro de Imóveis, que é, pode-se dizer assim, a repartição pública especializada no
assunto. Lá, o Registrador fará a análise de toda a documentação pertinente, que, como visto
anteriormente, é bastante simplificada em relação a outros institutos que detém a mesma
finalidade, inclusive, e principalmente, em relação à Lei de Parcelamento do Solo Urbano, a
Lei nº 6766/79, que exige, para fins de registro, a apresentação de diversas certidões
diferentes, além do projeto completo do loteamento aprovado pelos órgãos encarregados.
Portanto, a parte mais exaustiva de todo o procedimento é realizado no Registro de
Imóveis, sendo remetido a juízo apenas, via de regra, quando a documentação já está apta a
atingir a sua finalidade, que é a prolação da sentença que vai autorizar o registro de propriedade,
ou em caso de suscitação de dúvida registral.
Destaca-se que o More Legal não resolve todos os problemas de regularização
fundiária no estado. No entanto, tem sido um instrumento muito útil e que acolheu sob o seu
prisma uma gama de situações de irregularidades que antes não tinham solução ou de solução
bastante dificultada.
Em que pese aqui no Rio Grande do Sul o programa More Legal esteja em vigor
desde o ano de 1995, portanto há 21 anos, e nesse período já tenha sido utilizado para a
170

resolução de milhares de casos de moradias irregulares, ainda é pouco difundido na nossa


sociedade.
Verdade seja dita, só tem conhecimento deste procedimento, em suma, os juristas e
operadores do direito que lidam diretamente com ele, ou aquelas pessoas que tiveram sua
propriedade regularizada por ele. Ou seja, pessoas diretamente envolvidas no processo.
Considerando a dimensão atual da problemática da regularização fundiária, isso é
praticamente dizer que quase ninguém o conhece.
Portanto, considerando que pouquíssimas pessoas têm ciência do procedimento, é
logicamente presumível que aquela gama de pessoas que também poderiam ser beneficiadas
nunca tomou conhecimento sobre ele. Isso porque a população de baixa renda já tem difícil
acesso à informação, seja por não ter acesso aos meios de comunicação, seja por não
conseguir absorver a informação que os meios de comunicação lhes fornecem. No caso do
More Legal em específico, sequer houve grande divulgação.
Sobre o assunto, o renomado registrador e tabelião, Dr. João Pedro Lamana Paiva,
elaborou no ano de 2013, o documento intitulado de “Proposta do IRIB ao CNJ para Edição
de Provimento de Regularização Imobiliária” em que tomou por base o More Legal. A
minuta de provimento proposta ao CNJ, apresentada no 33º encontro regional do IRIB –
Instituto de Registro Imobiliário do Brasil, está estruturada em três capítulos, que dispõem
sobre: (I) a regularização de imóveis urbanos, (II) a regularização de imóveis rurais e (II) a
regularização fundiária de acordo com a Lei nº 11.977/2009 (PAIVA, 2013, p. 14).
O escopo da proposta é a criação de ferramentas alternativas visando a regularização
de imóveis urbanos e rurais para casos que não encontram respaldo na legislação fundiária
vigente, bem como a estruturação da regulamentação dos institutos existentes na Lei nº
11.977/2009, procurando oferecer ao registrador uma norma que proporcione uma visão
estruturada das regras relacionadas a esse tema (PAIVA, 2013, p. 14).
O plano nacional traria o mesmo conceito de situação consolidada adotado pelo More
Legal, pois, no entender do autor, este é mais eclético que aquele que consta na Lei
11.977/09, por aumentar o espectro de possibilidades das situações concretas que possam
surgir. Ainda, como requisito das hipóteses de regularização previstas no plano, consta a
existência de prévio título, registro, matrícula ou transcrição do imóvel objeto de
regularização.
Portanto, não se tem dúvidas de que o próximo passo a ser dado em direção à
persecução da regularização fundiária é a elaboração de um plano nacional. Nesse passo
171

constata-se a importância do engajamento público para a mitigação dos problemas sociais.


No caso do More Legal, há diversos entes públicos envolvidos no processo, entre eles o
Poder Judiciário, os Cartórios de Registro de Imóveis, o Ministério Público Estadual e o
município. Do diálogo entre esses entes é que foi possível a elaboração de um plano estadual
capaz de promover a regularização de milhares de propriedades de fato, transformando-as
em propriedade formal, tirando milhares de famílias da clandestinidade e inserindo-as no
mundo jurídico formal, onde encontram respaldo e segurança jurídica para a proteção do seu
patrimônio e, por conseguinte, da sua família.

CONCLUSÃO

O processo de urbanização brasileiro se desdobrou de forma totalmente


desorganizada, alheia a qualquer planejamento de desenvolvimento urbano. Essa falta de
planejamento é explicada por diversos fatores históricos e políticos – como a abolição da
escravatura, o êxodo rural, a industrialização etc. – que contribuíram para que a população
de baixa renda, desprovida de recursos ou auxílio de entes públicos, se estabelecesse em
locais inapropriados para moradia, ou, mesmo que próprios, de forma irregular.
Essa problemática não afeta apenas as milhares de famílias vivendo em situação
irregular ou clandestina, pois acarreta e diversos problemas sociais. É, ao mesmo tempo,
uma questão individual e social muito séria e que envolve a todos, pois reflete seus efeitos
nocivos nos mais variados segmentos da vida em comunidade.
Neste sentido, o presente trabalho focou no estudo de dois instrumentos constantes
no ordenamento jurídico pátrio, capazes de auxiliar na promoção da regularização fundiária,
principalmente no tocante à população de baixa renda. São eles a Usucapião Especial de
Imóvel Urbano e o Projeto More Legal IV.
A Usucapião Especial de Imóvel Urbano, que é um instrumento eminentemente
jurídico, está prevista em três diplomas jurídicos federais, são eles: a Constituição Federal
de 1988, a Lei Federal nº 10.257/2001, denominada de Estatuto da Cidade e o Código Civil
Brasileiro. Tem abrangência, portanto, em todo o território nacional, bastando que o cidadão
ou os condôminos de fato busquem a sua tutela jurisdicional, desde que preenchidos os
requisitos legais.
Por outro lado, o Projeto More Legal IV consiste em um instrumento jurídico-
administrativo, tendo sido criado pela Corregedoria Geral de Justiça do Estado do Rio
172

Grande do Sul e, portanto, aplicável somente neste estado. Para a sua elaboração foi
necessário o engajamento de entes públicos, como o Poder Judiciário, os Cartórios de
Registro de Imóveis, o Ministério Público Estadual, sendo que para o seu efetivo
cumprimento é necessário, também, a atuação das Prefeituras Municipais.
Seu escopo é a promoção da regularização imobiliária de forma simplificada, não
obstante segura juridicamente, de propriedades em que seja verificada a situação consolidada
da posse sem levar em conta o requisito temporal da posse. No entanto, exige que o
requerente detenha o justo título que originou a posse.
Ao traçar o comparativo entre os institutos, verificou-se que a atuação efetiva do
Poder Público para a resolução de problemas sociais, neste caso da regularização fundiária,
é de suma importância, pois visa a facilitar o procedimento e, consequentemente, torna-lo
mais efetivo, atingindo uma gama maior de imóveis e pessoas, como é o caso do Rio Grande
do Sul.
Por fim, tendo em mente o panorama histórico da problemática, aliado à imensidão
territorial do nosso país, compreende-se a complexidade que é a busca pela realização da
regularização fundiária. Por isso, acredita-se que o próximo passo a ser dado em direção à
mitigação do problema em questão é a elaboração de um plano nacional, nos moldes do
provimento gaúcho More Legal IV.

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175

O CONTRATO DE ARRENDAMENTO RURAL E AS IMPLICAÇÕES


JURÍDICAS DA FIXAÇÃO DO PREÇO EM PRODUTO

Giselle Borghetti Velho131


Elia Denise Hammes 132

RESUMO

O presente estudo analisa o contrato de arrendamento rural e as implicações jurídicas quanto


a fixação do preço do arrendamento se dar em produto, oriundo do contrato particular,
mesmo contrária à previsão legal, que não admite esta possibilidade de pagamento do
contrato. Para tanto, se busca a averiguação do questionamento proposto por meio de
pesquisa bibliográfica, doutrinária e jurisprudencial, através de interpretação sistêmica, por
meio de método hermenêutico, com o objetivo de se analisar de forma aprofundada as
possibilidades abarcadas pelo tema. Por conseguinte, embora demonstrada a dissonância
existente entre a previsão legal, representada pelo Estatuto da Terra e seu Decreto
regulamentador, que abominam a prática contratual e a realidade fática representada pelos
usos e costumes, que disseminam a fixação do preço desta forma, se constata a necessidade
de atualização da legislação agrária, uma vez se verifica grande discrepância legislativa,
confirmada pelo Tribunais brasileiros, quando proíbem a fixação do preço dos contratos de
arredamento em produtos, em face a uma realidade agrária totalmente distinta e diferenciada,
conectada com a realidade tecnológica da atualidade, repercutindo diretamente na dinâmica
das relações contratuais modernas.

Palavras-chave: Direito contratual. Arrendamento rural. Fixação preço.

INTRODUÇÃO

O estudo tem como finalidade uma abordagem teórica, embasada em fundamentos


legais, acerca do contrato de arrendamento rural, amplamente inserido no contexto
jurisdicional do país. Quando se trata de arrendamento, no âmbito rural, onde o arrendante
busca a equivalência do preço pelo uso da terra, pelas mãos do arrendador que, por tempo
determinado ou não, usa, goza e dispõe do patrimônio em troca do pagamento pactuado
anteriormente pelos contratantes, surge a indagação: É possível a estipulação do pagamento
do preço do arrendamento rural calculado em produto oriundo do contrato?
Tal possibilidade encontra respaldo favorável em alguns aspectos, por meio dos usos
e costumes regionais, aos quais fundamentam esparsas jurisprudências, na tentativa de

131
Pós-graduanda em Direito Imobiliário, Urbanístico, Registral e Notarial pela Universidade de Santa Cruz
do Sul-UNISC. Email: jglvelho@hotmail.com
132
Doutora em Desenvolvimento Regional, Mestre em Direito, Professora do Curso de Direito da UNISC.
Advogada.
176

olvidar uma prática que se perpetua, mesmo em discordância com a previsão legal. O
entendimento legal dominante se embasa na não aceitação da fixação do preço do
arrendamento calculado em produto, gravando o contrato elaborado sob este prisma com
elementos de anulabilidade.
Para a elaboração do presente trabalho, parte-se do pressuposto de que a fixação do
preço do arrendamento em produto, de forma particular, é difundida em todo o território
brasileiro, às expensas da lei, que não insere esta prática em seu contexto, muito pelo
contrário, abomina. Desta forma, elabora-se o presente trabalho por meio do método
hermenêutico, buscando responder se a prática posta à prova produz efeitos no meio jurídico,
tornando-se verdade mesmo em oposição à previsão legal.
Para tanto, busca-se a averiguação de todo o questionamento proposto por meio de
pesquisa bibliográfica, doutrinária e jurisprudencial através de interpretação sistêmica, que
conduza veementemente a finalidade avençada, não de modo estático e singular à luz da
legislação, mas consoante com as recentes decisões prolatadas pelos Tribunais do país.
Em um primeiro momento, considera-se fundamento legal relacionado ao contrato
de arrendamento e sua (des)atualização frente a realidade atual. Posteriormente, são
verificadas as controvérsias sobre a remuneração no contrato de arrendamento rural,
enfatizando-se, por meio de estudo doutrinário e jurisprudencial, posição favorável a fixação
do preço do arrendamento em produto. Em segunda análise, se disserta a respeito do
posicionamento contrário à fixação do preço do arrendamento em produto, igualmente
respaldado em doutrina e jurisprudência consoantes ao estabelecido.
Posteriormente, se demonstram as implicações jurídicas da cláusula contratual que
fixa o pagamento do arrendamento rural em produto, mencionando a nulidade da cláusula
pré-estabelecida e as consequências que esta previsão traz ao processo judicial, quando
decorrente de inadimplemento contratual. Neste interin, examina-se o entendimento do
Código de Processo Civil em relação a descaracterização do contrato de arrendamento rural
como título executivo de primeira ordem, quando acrescido da cláusula que determina o
pagamento do preço do arrendamento em produto, apurando-se a dissonância existente entre
a previsão legal e a realidade fática, uma vez que, muito embora processualmente se faça
valer a norma teórica, inclusive com a imposição de sanções processuais que acarretam na
perda de direitos, na prática os usos e costumes se concretizam com esta previsão contratual,
sendo dissipada inclusive em Cartórios de Registro de Imóveis, quando registram os
contratos que dispõem desta forma e respeitam a vontade das partes.
177

Sendo assim, faz-se necessário o aprofundamento deste estudo para que se


verifiquem as possibilidades existentes acerca da fixação do preço do arrendamento rural e
as consequências práticas que tais previsões acarretam, procurando, na contextualização do
direito, a forma mais apropriada para se defender os interesses dos particulares que nos
confiam suas causas.

1 FUNDAMENTO LEGAL RELACIONADO AO CONTRATO DE


ARRENDAMENTO E SUA (DES)ATUALIZAÇÃO

O contrato de arrendamento apresenta sua tipificação legal no artigo 1º do Decreto-


lei 59.566/66, que dispõe que o arrendamento e a parceria são contratos agrários que a lei
reconhece, para o fim de posse ou uso temporário da terra, entre o proprietário e quem
detenha a posse ou tenha a livre administração de um imóvel rural, aquele que nela exerça
qualquer atividade agrícola, pecuária, agroindustrial, extrativa ou mista.
Consoante, o artigo 3º do mesmo Decreto assim define:
[...] que o arrendamento rural é o contrato agrário pelo qual uma pessoa se obriga
a ceder à outra, por tempo determinado ou não, o uso e gozo de imóvel rural, parte
ou partes do mesmo, incluindo ou não, outros bens, benfeitorias e ou facilidades,
com o objetivo de nele ser exercida atividade de exploração agrícola, pecuária,
agroindustrial, extrativa ou mista, mediante certa retribuição ou aluguel,
observados os limites percentuais da Lei.

O Estatuto da Terra, Lei nº 4.504/64 regula o contrato de arrendamento rural em seus


artigos 92 a 95 e, como já citado, o regulamenta no Decreto nº 59.566/66. Em seu artigo 92,
está estabelecido o arrendamento rural, caracterizando-se como “a posse ou uso temporário
da terra serão exercidos em virtude de contrato expresso ou tácito, estabelecido entre o
proprietário e os que nela exerçam atividade agrícola ou pecuária, sob forma de
arrendamento rural, de parceria agrícola, agroindustrial e extrativa, nos termos da lei”.
Quanto a viabilização do contrato, algumas características devem ser observadas, de
acordo com Borges (2013), ao qual se parafraseia: - se trata de contrato de natureza especial,
portanto regido pela legislação agrária; -visa o uso e gozo temporário de área rural; -pode
objetivar o imóvel rural total ou parcialmente; -pode abranger benfeitorias e outros bens já
existentes no imóvel rural;- deve conter o preço da renda a ser paga expressa em dinheiro
nos limite da Lei; -embora previsto em dinheiro, pode ser pago em frutos traduzindo o valor
correspondente;-pode ser feito por prazo determinado ou indeterminado; -deve dispor dos
princípios de ordem pública e deve constar a obrigatoriedade de pagar a renda conforme o
combinado.
178

A previsão do artigo 18 do Decreto nº 59.566/66, confirma que “o preço do


arrendamento só pode ser ajustado em quantia fixa em dinheiro, mas o seu pagamento pode
ser ajustado que se faça em dinheiro ou em quantidade de produtos cujo preço corrente no
mercado legal, nunca inferior ao preço mínimo oficial, equivalha ao do aluguel, à época da
liquidação”. O parágrafo único complementa que “é vedado ajustar como preço de
arrendamento quantidade fixa de frutos ou produtos, ou o seu equivalente em dinheiro”.
Entretanto, conforme se verifica, a prática vem se instaurando de forma contrária à
determinação legal, constatando uma inversão de posições na contratação do arrendamento
rural, onde se fixa o preço do arrendamento em produtos, prática ainda não reconhecida pelo
legislador. As necessidades econômicas e sociais já se impuseram, os imperativos já se
instauraram, faltando apenas a ação legislativa tão necessária neste seguimento.
Enquanto isso, os Tribunais proferem decisões completamente distintas, sem
padronização alguma, onde, de um lado alguns defendem que a letra fria da Lei deve ser
obedecida, uma vez que vigente. Em contrapartida, antagonistas defendem que a realidade
deve ser cogente, vez que a evolução está tão evidente que não pode ser desconsiderada no
momento da prolação da decisão. E a insegurança jurídica prevalece.

2 CONTROVERSIAS SOBRE A REMUNERAÇÃO DO CONTRATO DE


ARRENDAMENTO RURAL

A remuneração no contrato de arrendamento rural, como os contratos em modo geral,


caracteriza-se por conta do pagamento do preço em contrapartida ao uso e gozo da área,
objeto do contrato. No caso do arrendamento, como assegura Ramos (2017, não paginado),
“por conta do forte dirigismo presente nas normas agrárias que regem os contratos,
observamos que o Estado por vezes mingua o interesse das partes contratantes”, impondo
limites à autonomia das partes no momento de fixar o preço do contrato.
Quanto a determinação do preço do arrendamento, Querubini (2017, não paginado)
afirma que deve ser fixado “a título de remuneração pela cessão da posse do imóvel agrário,
em decorrência da vantagem obtida com a exploração da terra”, não se confundindo com o
pagamento que “que é forma de extinção das obrigações, correspondendo ao cumprimento
da obrigação avençada no contrato”.
Quanto a forma de fixação do preço do arrendamento, conta-se com dois
posicionamentos distintos, quando os litígios chegam aos Tribunais, aos quais se analisa. O
primeiro traduz aposição doutrinária e jurisprudencial favorável à fixação de preço do
179

arrendamento rural calculado em produto, constatando certa flexibilização em razão dos usos
e costumes regionais, o que embasa as decisões de alguns tribunais, no sentido de que os
costumes servem como fonte de direito.
Consoante a isso, a Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro, Decreto-Lei
nº 4.657/42, em seu artigo 4º determina que “quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso
de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”. No artigo 5º prevê
que “na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências
do bem comum”.
No caso em comento, não se trata de omissão da Lei, mas de adequação das decisões
em conformidade com os costumes adotados em regiões de cunho agrícola, uma vez que não
há negativa em afirmar que os costumes são fontes do direito, devendo receber valor
normativo. Neste sentido, parafraseando Lustosa (2001, não paginado), “o nosso
ordenamento jurídico consagra o acolhimento de tais regras não-escritas quando, diante do
caso concreto, a lei não for satisfatória, de modo a proporcionar um julgamento justo,
priorizando o bem-estar social, a paz e a harmonia”. Neste sentido, previne o art. 4º, da Lei
de Introdução as Normas de Direito Brasileiro. Mas, se o Direito amplia-se, evolui, alcança
progressos, é porque, necessariamente, ocorrem inovações em suas fontes. A vontade do
povo, corporificada em leis escritas ou em regras de convivência pacífica não-escritas,
segundo o fluir dos tempos, pode mudar.
A aplicação dos costumes como fonte do direito é verificada em decisão proferida
pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, na Apelação Cível Nº 70068294172133, onde
o relator reconhece sua aplicação e mantém a decisão de primeiro grau, reconhecendo o
pagamento feito em sacas de soja, levando em consideração os costumes da região onde a
sentença foi prolatada.
O próprio Código Civil corrobora positivamente para este questionamento quando
determina em seu artigo 113 que os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a
boa-fé e os usos do lugar de sua celebração. Consoante, o artigo 422 do Código Civil também
determina que os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato como
em sua execução, os princípios da probidade e boa-fé, enfatizando que tais princípios fazem
parte da essência do contrato celebrado.

133
Apelação Cível nº 70068294172-RS, Décima Nona Câmara Cível, Relator: Desembargador Voltaire de
Lima Moraes, Julgado em 16/06/2016.
180

E assim, concretizando este contexto principiológico, se verifica nos contratos de


arrendamento rural que os proprietários e arrendatários estipulam em seus pactos a
equivalência do preço do arrendamento em produto explorado na área arrendada, uma vez
que o valor dos contratos, costumeiramente é estabelecido em quantidade de frutos ou
produtos colhidos ou auferidos na própria terra, objeto do arrendamento. Neste sentido,
confirma Ramos (2013, não paginado) que “no arrendamento, o preço é muito
frequentemente ajustado em gêneros, ou produtos de cultura do arrendatário, quando não
parte em dinheiro e parte em espécie. Prevalece o pactuado, mas o arrendador não está
obrigado a receber diverso do pactuado, ainda que mais valioso”.
Convém ainda ressaltar que o preço do arrendamento rural ajustado em produto
facilita o modo de pagamento nas relações agrícolas, uma vez que a comercialização do
gênero produzido faz parte da rotina do produtor rural, que automaticamente realiza suas
negociações baseado na comercialização do produto retirado da terra. Desta forma, o
reconhecimento jurisprudencial somente constata a prática realizada nas regiões de
produção, uma vez que o cunho jurisdicional é procurado quando a relação de arrendamento,
por algum motivo, não se concretizou. Quando a relação contratual se perfectibiliza, a
cláusula pactuada prevalece e os pagamentos são realizados da forma convencionada.
No tocante a legislação vigente, verifica-se que as disposições contidas no Estatuto
da Terra, em seus artigos 95 e 96 foram alterados pela Lei nº 11.443/07, com intenção de
atualizar suas disposições, observando os limites da remuneração nos contratos de
arrendamento e as formas de pagamento em dinheiro ou no seu equivalente em produtos.
Segundo Querubini (2017, não paginado), “o legislador teve a intenção de flexibilizar a
legislação agrária para permitir a fixação dos contratos de arrendamento rural em produtos,
de forma contrária ao disposto no art. 18 do Decreto nº 59.566/66, em nenhum momento o
fez de forma explicita, pecando pela falta de clareza na atual redação do Estatuto da Terra”.
Desta forma, o art. 95, inciso XI, “a” do Estatuto da Terra vem sendo objeto de interpretação,
tanto por parte da doutrina quanto pela jurisprudência dos Tribunais Estaduais, segundo
Querubini (2017, não paginado), “no sentido de que o art. 18, parágrafo único, do Decreto
nº 59.566/66 encontra-se superado pela nova redação conferida pela Lei nº 11.443/07,
possibilitando a aceitação de contratos de arrendamento fixados em produtos como válidos”.
181

Consoante a estipulação do preço do arrendamento em produtos, complementam as


decisões prolatadas no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul134, admitindo esta
possibilidade, convalidando os contratos lavrados entre as partes. Para a Desembargadora
Marilene Bonzanini (AI Nº 70049450323- Tribunal de Justiça do RS), a qual se parafraseia,
é comum ocorrer em tal tipo de contrato, firmado por pessoas que estão acostumadas a ter o
valor de um produto como parâmetro de valia de uma propriedade ou serviço,
automaticamente acoplado a um índice de correção monetária, porquanto os valores de tais
produtos estão sempre sendo cotados e atualizados conforme a realidade do mercado.
Destarte, se verifica que a realidade contratos de arrendamento ultrapassa os limites
impostos pelo Estatuto de outrora, levando em consideração a dinâmica das relações
modernas, que se utilizam de meios para que as disposições de vontade manifestadas nos
contratos sejam adequadas às realidades do mercado econômico, onde se conta com muitas
facilidades tecnológicas que dispõem o acesso imediato à informação, quando se trata de
preço de produtos agrícolas, acarretando uma diminuição significativa de eventuais riscos e
perdas em decorrência da relação contratual, no momento da venda de tais produtos, que
resultam da relação de arrendamento, minorando a impressão de hipossuficiência
manifestada indiretamente pelo legislador na elaboração do Estatuto da Terra.
Esta prática não encontra obstáculos na legislação pertinente ao registro de contratos,
uma vez que os Cartórios de Registro de Imóveis não se contrapõem a esta disposição,
tornando pública a manifestação particular da vontade das partes.
Em contraposição, se encontra a posição doutrinária e jurisprudencial contrária à
fixação de preço do arrendamento rural calculado em produto, concernente ao que está
definido no Estatuto da Terra, Lei nº 4.504/64, restando vedada esta previsão em qualquer
instrumento particular. A doutrina e jurisprudência, de cunho conservador, defendem a
aplicação irrestrita e imediata da disposição legal, tal qual se acha fundamentada, tutelando
a inaplicabilidade da fixação do preço do arrendamento rural em produto, uma vez que vai
de encontro ao que a Lei pertinente define como correto.
O pagamento, entretanto, pode ser efetuado com a correspondência em produtos,
contanto que o preço seja previamente fixado em dinheiro. Desta forma, parafraseando
Querubini (2017), a norma agrária brasileira define que o preço do arrendamento deve ser

134
Apelação Cível nº70049460504-Nona Câmara Cível-Tribunal de Justiça do RS-Relator: Tasso Caubi Soares
Delabary-j. em 25-07-2012; Agravo de Instrumento nº 70049450323, Nona Câmara Cível, Tribunal de
Justiça do RS, Relator: Marilene Bonzanini, Julgado em 15/08/2012.
182

fixado em quantia fixa em dinheiro, sendo possível que o pagamento se dê em produtos.


Entretanto, a opção do pagamento do preço no arrendamento é obrigação facultativa do
arrendatário, sendo que, uma vez convencionada, não pode o arrendador se opor ao
recebimento na forma de pagamento escolhida pelo arrendatário, ou mesmo exigir uma
forma ou outra.
Quanto ao dispositivo legal, o Decreto nº 59.666/66 prevê em seu artigo 18 a forma
de pagamento nos contratos de arrendamento rural, qual seja:
O preço do arrendamento só pode ser ajustado em quantia fixa de dinheiro, mas o
seu pagamento pode ser ajustado que se faça em dinheiro ou em quantidade de
frutos cujo preço corrente no mercado local, nunca inferior ao preço mínimo
oficial, equivalha ao do aluguel, à época da liquidação.

Entretanto o parágrafo único traz a proibição do ajustamento do preço do contrato


em produtos, ainda que o pagamento seja efetuado em dinheiro, sob pena de nulidade, assim
dispondo: “É vedado ajustar como preço de arrendamento quantidade fixa de frutos ou
produtos, ou seu equivalente em dinheiro”.
Outro ponto a ser considerado diz respeito a proteção legislativa a qual o Estatuto da
Terra e o Decreto regulamentador conferiram à figura do arrendatário, sendo considerado
como hipossuficiente na relação de arrendamento, uma vez que, aos olhos do legislador, se
mostraria fragilizado. Assim, parafraseando Querubini (2017), a razão da opção do
legislador agrário brasileiro, desde a elaboração do Estatuto da Terra e da legislação agrária
complementar aplicável aos contratos agrários sempre teve como base proteger o
arrendatário (considerado como hipossuficiente na relação contratual agrária) de prejuízos
decorrentes da falta de certeza do preço a ser pago pelo uso da terra, decorrente pela grande
variação do preço dos produtos agrícolas. Desta forma, a definição do preço do
arrendamento em quantia fixa em dinheiro resguardaria a certeza do valor a ser pago ao
arrendador, evitando que o arrendatário fosse obrigado a entregar quantias maiores de
produtos se a cotação do período fosse baixa.
Esta preocupação se perpetua nas decisões de alguns julgados que consolidam a
jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça no sentido de ser declarada nula toda e
qualquer disposição contratual que determine a fixação do preço do arrendamento rural em
produto.135

135
Nesse sentido,STJ, REsp.nº 1.266.975-MG, 3ª Turma Recursal, Sessão do dia 10/03/2016. No mesmo
sentido, REsp. nº566.520-RS, julgado em 11/05/2004, Min. Rel. Aldir Passarinho Junior; 4ª Turma; REsp.
nº128.542-SP, Min. Rel. Ruy Rosado de Aguiar, unânime, DJU de 09.12.1997; 3ª Turma, REsp.nº
183

No que tange à prática processual, a fixação do preço do arrendamento em produto


descaracteriza o documento particular como título líquido, certo e exigível. Sabe-se,
entretanto que o artigo Art. 783 do Código de Processo Civil determina que: “ A execução
para cobrança de crédito fundar-se-á sempre em título de obrigação certa, líquida e exigível”.
Assim, quando se discorre sobre a execução de título extrajudicial, onde se enquadra
o contrato de arrendamento quando plenamente constituído, se parafraseia Cardoso (2017)
sobre os requisitos da execução, onde o primeiro requisito da execução não é um título
líquido, certo e exigível, mas uma obrigação certa, líquida e exigível. Obrigação certa
consiste naquela determinada a respeito da sua qualidade, quantidade e extensão, não
pendendo controvérsia sobre sua existência e sobre seu conteúdo, extensão e qualidade (an
debeatur).
Já a obrigação líquida é aquela na qual na qual se identifica a quantia devida de
forma que leve à exatidão, portanto não existindo dúvidas quanto ao valor a ser restituído
(quantum debeatur). Já a obrigação exigível consiste naquela em que não pende nenhum
tipo de incerteza ou dúvida sobre a impontualidade, sobre o fato de a obrigação estar
vencida, com o prazo final expirado e não ter sido cumprida. Assim, a liquidez, a certeza
e a exigibilidade não são requisitos de título, mas requisitos da obrigação pactuada,
representada formalmente e materializada em um título.
Assim sendo, o contrato não tem sua liquidez determinada de forma a se interpor a
ação competente, uma vez que não se encontra em conformidade com o dispositivo
pertinente, e, por consequencia, não apresenta exigibilidade, impossibilitando o manejo da
ação de despejo contra o arrendatário inadimplente, instrumento adequado para resguardar
os direitos do proprietário contra o arrendatário inadimplente em suas obrigações
contratuais.
Neste contexto, na interpretação de Querubini (2017), a inobservância da fixação do
preço em dinheiro traz como principal problema a impossibilidade de o arrendador (em
regra, o proprietário da terra) manejar ação de despejo contra o arrendatário inadimplente,
gerando um problema cujo maior reflexo se dá no campo processual, pois para a interposição
da ação de despejo se faz necessário título líquido, certo e exigível. Esta ocorrência se gera
a partir de que a legislação dos contratos agrários não estabelece critérios para a liquidação
do preço fixado em produtos. Salienta-se que tal problema ainda poderá ser objeto de muitas

334.394-RS, Min. Rel. Carlos Alberto Menezes Direito, unânime, DJU de 05.08.2002; 4ª Turma, REsp. nº
127.561-SP, Min. Rel. Barros Monteiro, unânime, DJU de 01.09.2003.
184

demandas judiciais, pois muitos produtores ainda ignoram o texto legal e continuam a seguir
o costume de fixar o preço da remuneração dos arrendamentos rurais em produtos.
Para a solução do empasse, afirma Querubini (2017, não paginado), que, para os
casos de inadimplemento nos quais o contrato de arrendamento foi firmado em produtos,
a solução prática sugerida aos arrendadores é o ajuizamento de ação de cobrança cumulada
com reintegração de posse ou, conforme o caso, ação monitória, não deixando de
considerar que o arrendatário inadimplente continua obrigado a pagar pelas vantagens
obtidas pelo uso do imóvel cedido em arrendamento, sob pena de atentar contra a função
social dos contratos e a boa-fé contratual.
A obrigação de ressarcimento ao proprietário lesado não se desfaz em função da
cláusula que fixa o preço do arrendamento em produtos, uma vez que o arrendatário continua
obrigado ao pagamento pelas vantagens auferidas com o uso do imóvel arrendado, durante
o tempo pré-estabelecido naquele instrumento.

3 AS IMPLICAÇÕES JURÍDICAS DA CLÁUSULA CONTRATUAL QUE FIXA O


PAGAMENTO DO ARRENDAMENTO RURAL EM PRODUTO

De acordo com a legislação pertinente, nula é a cláusula estipulada em arrendamento


rural, onde se fixa o pagamento do contrato em produto. Entretanto, não pode o regramento
impor às partes, por conta de uma normatização exarcebada, a penalização de não ver
satisfeito o seu direito em função de uma legislação que preconiza a formalidade do contrato
para que depois se satisfaça a necessidade da parte suplicante.
O Código Civil condiciona a validade do negócio jurídico à forma prescrita e não
defesa em Lei (artigo 104, III), bem como determina que a validade da declaração de vontade
não dependerá de forma especial, senão quando a lei expressamente a exigir (Artigo 107).
No presente caso, a forma especial a ser seguida está determinada pela Lei peculiar
que dispõe sobre os contratos agrários, qual seja o Estatuto da Terra e seu Decreto
regulamentador, que tratam exclusivamente, em seu contexto sobre o contrato de
arrendamento rural.
Neste sentido, informa Ramos (2017), que, muito embora a nulidade da cláusula
resultar na ineficácia da mesma, tal condição não irá libertar o arrendatário da incumbência
de pagar o arrendamento/aluguel da área explorada, se tiver havido o real uso da mesma, sob
pena de caracterizar enriquecimento indevido. A consequencia prática de tal vício contratual,
185

ou seja, da nulidade da cláusula de remuneração/pagamento é a sua impossibilidade de


execução através dos mecanismos processuais cabíveis, ação de execução de título executivo
extrajudicial, porquanto o preço do título executivo, leia-se, o contrato de arrendamento em
si, é ilíquido. Caso o arrendatário entenda por extinta sua obrigação de pagamento, caberá
ao arrendador ingressar com a devida ação de fixação de remuneração de arrendamento rural,
tendo por objeto principal da ação a nulidade de cláusula.
A preocupação quanto a interpretação especial concedida aos contratos agrários não
pode servir de guarida à prática de condutas repudiadas pelo ordenamento jurídico, conforme
destaca Recurso Especial de nº 1.266.975/MG136, que define a nulidade da cláusula
contratual que fixa o preço do arrendamento rural em produtos, mas não obsta ao credor o
direito de propor a ação de cobrança, determinando que o valor devido deve ser apurado por
arbitramento, em liquidação.
No tocante a restituição dos valores auferidos indevidamente, dispõe o Código Civil,
Lei nº 10.406/2002, em seu Artigo 884 que: “Aquele que, sem justa causa, se enriquecer à
custa de outrem, será obrigado a restituir o indevidamente auferido, feita a atualização dos
valores monetários”.
A fixação do preço do arrendamento em produto suscita a nulidade da cláusula, como
já mencionado, consistindo em vício contratual, impossibilitando sobremaneira, a execução
de título extrajudicial, uma vez que o contrato não se reveste da formalidade legal por falta
de liquidez e, consequentemente, não podendo ser exigível.
Desta forma, afirma Ramos (2017), dentro de um contexto, ser adequada a
interposição de ação judicial para fixação de remuneração de arrendamento rural, com o
posterior arbitramento do valor devido dentro da própria ação. Saliente-se que, neste
procedimento judicial, o crédito decorrente do contrato de arrendamento passará pelo
processo de conhecimento para ser validado por uma sentença judicial para então, possuir
caráter de título executivo judicial.
Já Querubini (2017) defende ser adequada a interposição de ação de cobrança
cumulada com reintegração de posse ou diretamente a ação monitória, onde o contrato
particular de arrendamento rural serve como instrumento para prova do direito pleiteado.
Neste caso, o processo necessita do crivo judicial, nos termos descritos anteriormente para
atingir o caráter de título judicial, passível de execução.

136
STJ, 3ª Turma, REsp. nº 1266975/MG, Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em 10/03/2016,
DJe 28/03/2016.
186

Desta forma, se verifica que vários são os pontos a serem observados quando
constatada a nulidade da cláusula que fixa o preço do arrendamento em produto e, como não
há pacificação de entendimento, alguns caminhos se abrem para que operador do direito
busque a solução aos conflitos instaurados sob este assunto, uma vez que são geradas
decisões totalmente contrapostas.
O Código de Processo Civil, quando trata dos títulos executivos extrajudiciais,
categoria a qual se enquadra o contrato de arrendamento rural quando estão preenchidos
todos os requisitos formais, determina em seu artigo 783 que a execução para cobrança de
crédito fundar-se-á sempre em título de obrigação líquida, certa e exigível.
Estes requisitos, segundo discrimina Junior (2017, p. 210), a” certeza refere-se órgão
Judicial, e não às partes. Decorre, normalmente, da perfeição formal do título e da ausência
de reservas à sua plena eficácia”. Já no que diz respeito liquidez, o autor afirma que
consiste em um plus que se acrescenta à certeza da obrigação. Por ela demonstra-
se que não somente se sabe que "se deve", mas também "quanto se deve" ou "o
que se deve". Não são, porém, ilíquidos os títulos que, sem mencionar diretamente
a quantia exata da dívida, indicam todos os elementos para apurá-la mediante
simples operação aritmética em torno de dados do próprio documento.

Já a exigibilidade se refere ao vencimento da dívida. Afirma Junior (2017, p. 210)


que "obrigação exigível é, portanto, a que está vencida" seja porque se alcançou o termo,
seja porque se verificou a condição a cuja ocorrência a eficácia do negócio jurídico estava
subordinada”.
Desta forma, a falta de liquidez desqualifica o contrato com as condições de
exigibilidade para sua classificação como título executivo extrajudicial. Entretanto, esta
desqualificação não exaure as possibilidades conferidas ao credor para ver satisfeito seu
crédito, por meio da interposição de outras medidas judiciais.
Salienta-se que, quando possível, se busca evitar toda e qualquer disposição contrária
à legislação pertinente. Entretanto, quando se precisa uma solução para o conflito instaurado,
decorrente da disposição contratual que fixa o preço do contrato de arrendamento em
produto, se busca aquela que melhor defenda os interesses do litigante que nos confiou seu
problema e, conforme demonstra o estudo, se maneja do melhor remédio processual para
solucionar o problema.
187

CONCLUSÃO

O presente trabalho estudou o contrato de arrendamento rural e as implicações


jurídicas decorrentes da cláusula que fixa o preço do contrato em produto, quando confronta
a disposição legal com a prática que, não necessariamente seguem o mesmo caminho.
Como resposta à indagação inicial, qual seja, se é possível a estipulação do
pagamento do preço do arrendamento rural calculado em produto oriundo do contrato,
conclui-se que é possível determinar que o pagamento do preço do arrendamento rural seja
calculado em produto. Entretanto, esta disposição acarreta em diferentes reflexos no campo
processual, uma vez que a disposição legal converge em sentido contrário, se fazendo
necessária a interposição de ação judicial para que se resolva qualquer questão oriunda de
descumprimento contratual, para que haja a convalidação do instrumento particular.
Como resultado ao questionamento avençado, verifica-se que o contrato de
arrendamento rural, de características estritamente agrárias, por se perfectibilizar única e
exclusivamente em decorrência de imóveis rurais, consiste na transferência da posse
mediante ajustamento de valor a ser pago ao arrendador pelo uso e gozo do imóvel, objeto
do contrato. A contrapartida pelo arrendamento da área rural consiste no preço fixado no
contrato, que muitas vezes é firmado em produto, oriundo do contrato originário.
O preço do contrato, segundo definição legal, não pode ser fixado em frutos ou
produtos, apenas em quantia em dinheiro, mas o seu pagamento pode ser pactuado que se
faça em dinheiro ou quantidade de produtos, contrariando a prática de mercado, onde
frequentemente é determinado que o pagamento se dê em quantia de produtos.
Ao se fazer uma análise crítica acerca da disposição legal pertinente, se verifica uma
desatualização do Estatuto da Terra frente as relações contratuais referentes aos contratos de
arrendamento rural, gerando conflitos e insegurança jurídica aos produtores e proprietários
de terras, que usualmente pactuam a fixação do preço do arrendamento em produtos.
A remuneração no contrato de arrendamento encontra, por força jurisprudencial,
fundamentação nos dois sentidos, quais sejam, favoráveis e contrários a fixação do preço do
arrendamento em produtos. Para a corrente favorável, existe a preocupação de se levar em
conta os costumes regionais, a boa-fé e os usos do lugar da celebração do contrato,
defendendo que o rigorismo da Lei deve ser abrandado diante das circunstâncias em que o
contrato é celebrado.
188

Em posição contrária, cogente ao Estatuto da Terra, que veda qualquer disposição


contratual que manifeste o pagamento do arrendamento em produtos, defende-se a nulidade
da cláusula que fixe o preço do contrato em frutos ou produtos, manifestando evidente
incerteza em relação a quantia a ser paga pelo arrendatário, levando à circunstâncias que
exijam a entrega de quantias maiores de produtos do que as firmadas em um primeiro
momento, em função de uma possível desvalorização dos gêneros no mercado econômico.
No que tange a prática processual, quando a definição do pagamento do contrato de
arrendamento se fixar em produto descaracteriza o instrumento como título executivo
extrajudicial, uma vez que o mesmo não apresenta os requisitos necessários à proposição da
ação de execução, quais sejam, liquidez, certeza e exigibilidade.
Entretanto, esta descaracterização decorre da nulidade da cláusula que traz a previsão
do pagamento do preço em produto, não abarcando o instrumento particular por inteiro, uma
vez que a obrigação assumida permanece vigente e deve ser cumprida, decretando-se a
nulidade apenas para a cláusula específica e inviabilizando a cobrança por meio de execução
direta.
Contudo, a fim de evitar um cenário de insegurança jurídica instaurado em relação
a cobrança na via judicial, da obrigação, é recomendado que a remuneração nos contratos de
arrendamento rural seja consignada em quantia fixa de dinheiro, com a possibilidade de que
o pagamento seja efetuado em produtos, de forma a garantir ao contratante lesado a
possibilidade de satisfação do seu direito de forma mais célere e eficaz, sem tropeços
desnecessários na legislação vigente, enquanto a normatização não sofre a evolução
necessária para o enquadramento à realidade agrária da atualidade. Entretanto, quando o
problema chega, se busca a forma mais célere e eficaz para que, se tenha a solução ideal,
qual seja, a satisfação do recebimento do que lhe é devido. Este é o maior desafio do operador
do direito, que vivencia habitualmente a prática jurídica, especialmente relacionada ao
direito contratual, que muitas vezes decorre de uma redação frágil e materializada por quem
não detém o conhecimento necessário para tal, e quando o problema se apresenta, cabe então
o manuseio de todas formas possíveis para defender o direito daquele que entrega o bem de
sua vida, de forma que leve ao encontro do respaldo legal na garantia de seus direitos e estes
sejam confirmados pela jurisdição pertinente.
189

REFERÊNCIAS

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Contemplar,2013.

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190

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Acesso em 26 de agosto de 2018.
191

V NOVOS DESAFIOS DIREITO


ELEITORAL
192

JUSTIÇA ELEITORAL MODERNA: UMA ANÁLISE DA NECESSIDADE DA


JURISDIÇÃO ESPECIALIZADA NOS CASOS INTERNA CORPORIS DOS
PARTIDOS POLÍTICOS

André Emílio Pereira Linck137


Cássio Alberto Arend138

RESUMO

O presente estudo tem o escopo de discutir a autonomia dos partidos políticos em face à
Justiça Eleitoral, especialmente no que concerne à jurisdição dos conflitos interno dos
mesmos. Nesse sentido, busca evidenciar que a Justiça Eleitoral assume um protagonismo
no cenário eleitoral brasileiro que ultrapassa o período eleitoral. Para tanto, traz como
problemática a verificação da competência jurisdicional acerca dos conflitos interna
corporis dos partidos políticos e sua regulação. Utiliza como metodologia de pesquisa o
método dedutivo e a técnica de fichamento bibliográfico com os principais autores nacionais
sobre o tema. Por fim, evidencia que a Justiça Eleitoral moderna caminha para uma
jurisdição que compreenda que sua atuação supera o período eleitoral e que cumpra seu
mister constitucional e democrático.

Palavras chave: Justiça eleitoral. Jurisdição especializada. Partidos políticos.

INTRODUÇÃO

É uma realidade evidente que a efervescência do debate político, muito em virtude


da velocidade com que as informações vão se apresentando aos cidadãos diante dos avanços
tecnológicos da internet, bem como em razão dos desdobramentos da Operação Lava-Jato,
vem exigindo um olhar extremamente especial e atento ao Direito Eleitoral como um todo.
Significa dizer que tanto a Justiça Eleitoral quanto os partidos políticos e os
candidatos tendem a ser cada vez mais alvos da atenção dos eleitores. Aliás, a proximidade
do eleitor com as informações e com a política, também é combustível para que o mesmo
inclusive deseje participar do processo democrático, nascendo daí a necessidade de se filiar
a um partido político, condição constitucional de elegibilidade.
Diante disso, inicia o dilema. Como participar do processo democrático, sedento de
boas ideias e intenções, mas estando consciente que, para que tenha possibilidades reais de

137
Advogado eleitoralista. Pós-graduando em Direito Eleitoral pela Universidade de Santa Cruz do Sul –
UNISC. Presidente da Comissão de Direito Eleitoral da OAB de Santa Cruz do Sul. e-mail:
aelinck@hotmail.com.
138
Professor da Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC e Advogado. Mestre em Direito. Doutorando em
Direito Ambiental pela Universidade de Caxias do Sul – UCS, com aderência à linha de pesquisa Direito
Ambiental e Novos Direitos. e-mail: cassioarend@unisc.br
193

ser eleito deverá aderir a partidos políticos tradicionais, que vivem, inequivocamente, a
maior crise de credibilidade da história do pluripartidarismo?
Ainda, como se inserir numa estrutura partidária pronta, dotada de autonomia
praticamente absoluta, sem ter que se submeter às vontades das suas lideranças, verdadeiros
proprietários dos partidos políticos? Quem regulamentaria isso?
Partidos e mais partidos vão sendo criados e homologados, muito também diante da
ausência de democracia interna partidária, virando, estas legendas, verdadeiros pequenos
feudos, compostos por líderes (que são carinhosamente chamados de caciques ou coronéis)
que sentam à mesa em busca de se garantirem na governabilidade.
Diante do quadro periclitante colocado em tela, este artigo visa articular a dificuldade de
sintonia entre o cidadão (eleitor) e os partidos políticos e a crise decorrente desta realidade,
à luz dos fatos recentes como as manifestações de rua de 2013, impulsionadas mais ainda
pelos desdobramentos da Operação Lava-Jato, estudando os motivos históricos que levaram
o sistema partidário (com mais autonomia que nunca) à praticamente falir.

1 ATRIBUIÇÕES E COMPETÊNCIAS JURISDICIONAIS DOS CONFLITOS


INTERNOS DOS PARTIDOS POLÍTICOS

A realidade contemporânea denota que cada vez mais os partidos políticos são
criados, fundidos ou mesmo extintos, com a finalidade não de carregar uma bandeira
programática consistente e que compreenda a visão de mundo de parte da sociedade. Muitos
são criados, com facilidade, decorrentes da autonomia constitucional e legal, para apenas
ampliar espaços de poder, para negociar coligações, tempo de TV e demais meios de
comunicação, verbas do fundo partidário, enfim, para entrar no balcão.
Existe um consenso que não existem tantas ideologias para justificar tantos partidos.
Todavia, para algumas correntes doutrinárias existiriam razões para uma quantidade
razoável de partidos e para outra que deve haver uma redução mais drástica no número dos
partidos. Bernardino (2018, p. 62) aborda exatamente nesses termos:
Em que pese a sua importância como canal necessário de participação política, o
declínio do pluripartidarismo está relacionado não à pluralidade de partidos em si,
mas especialmente pela multiplicidade desordenada destes nos últimos anos. Essa
demonização da esfera partidária também é consequência de recorrentes e
consecutivas denúncias, escândalos e processos que trazem à tona diversos casos
de corrupção praticados por partidos políticos e seus filiados, fatos estes que só
desestimulam o eleitor, causando um sentimento de repulsa pela política. Parte do
descrédito no sistema pluripartidarista deve-se ao fato de vários partidos existirem
somente com o fito de angariarem recursos, sejam eles fruto do fundo partidário,
sejam doações privadas ou, ainda, de existirem somente com a finalidade de
194

realizarem negócios, não raras vezes espúrios, acerca do tempo de propaganda


disponível, o que em uma campanha pode determinar o êxito ou não de um
candidato.

É daí que nasce duas consequências muito ruins do pluripartidarismo tal qual
implantado no sistema eleitoral brasileiro: a descrença do eleitor nos partidos políticos e a
perda de credibilidade do sistema partidário.
Este fenômeno é facilmente percebido por fatos internos já constatados e evidentes,
como a profissionalização e burocratização dos partidos políticos, eleições indiretas nas
convenções para escolhas dos seus órgãos executivos e éticos e, até mesmo, na escolha dos
candidatos. Campos Neto (2018, p. 332-333) vai ao ponto, no que chama de “Oligarquização
da Política”, citando Michels (1982, p. 27-28):
O partido amadurecido burocratiza-se e a direção torna-se oligárquica. O partido
deixa de ser meio e passa se tornar fim. Todos os órgãos e instrumentos que em
princípio eram destinados a assegurar “[...] o funcionamento da máquina do
partido – subordinação, cooperação harmoniosa dos membros individuais,
relações hierárquicas, discrição, correção – acaba-se atribuindo mais importância
que ao grau de rendimento da máquina”. [...] Diante deste cenário, a única
preocupação da oligarquia seria “afastar tudo que seja suscetível de introduzir-se
nas rodas da sua engrenagem, ameaçando assim, senão o próprio organismo, então
sua forma externa representada pela organização”. A oligarquização do partido
político, também, funda-se na ideia da necessidade de outorgar a uma elite os
poderes para definir e executar ações com a agilidade necessária a fim de alcançar
os objetivos perseguidos pela organização. [...] Um fator que alimentaria o livre
processo de oligarquização seria a passionalidade dos cidadãos em assuntos
relacionados à política e, nos partidos políticos, a abstenção voluntária dos filiados
na participação das decisões do partido. A participação popular, no âmbito
externo, e a participação partidária, no âmbito interno da organização, são restritas
a grupos reduzidas de pessoas que tomam as decisões pelo todo. (Grifos originais).

O processo de oligarquização partidária é exaurido por Campos Neto (2018, p. 335),


que também aborda o conflito entre grupos internos dentro do próprio partido que se
mobilizam para tomar o poder para formar uma nova oligarquia, ou seja, para manter
exatamente igual o sistema oligárquico.
Toda oligarquia é suspeita em relação aos seus próprios aspirantes, nos quais ela
busca não apenas seus herdeiros eventuais, mas também sucessores prontos a
suplantá-la sem esperar sua morte natural. É, para servir-nos de uma expressão
yankee, uma luta entre os ins e os outs, entre os quais não estão dentro e os que
esperam do lado de fora, entre os capitães e os aspirantes do capitanato
(MICHELS, 1982, p. 97).

Neste processo oligárquico, conforme estudado por Michels (1982, p. 97), o Partido,
assim como a própria ação estatal, usaria dos mesmos artifícios, como o uso manipulativo
da imprensa e todo o tipo de ardil possível para manipular as massas, antes indivíduos sem
envolvimento partidários, doravante filiados.
195

O próprio autor contrapõe essa posição um tanto realista de Michels (1982, p. 97),
de que os partidos políticos inevitavelmente estão mercê da oligarquização e burocratização,
aduzindo que este processo se deve à “[...] falta de controle dos representantes pelos
representados, da rarefeita responsividade consciente na disposição dos líderes em adotar as
medidas preferidas pelos liderados [...]” (CAMPOS NETO, 2018, p. 337).
As questões internas dos partidos políticos, num contexto de enfraquecimento do
sistema partidário, passaram a ser ainda mais irrelevantes sobre o ângulo do acesso à Justiça,
fazendo com que a grande maioria das possíveis divergências internas fosse resolvida dentro
do próprio meio, em face da falta de um controle externo jurisdicional efetivo. Isto poderia
levar a inúmeras situações não almejadas, como a submissão às lideranças partidárias, que
se portariam como legítimos donos da agremiação partidária e, sendo essa, apenas, uma
bandeira que os agasalha.
Por essa razão, inclusive, a Justiça Eleitoral, nos últimos anos, definitivamente
deixou de conhecer as questões internas partidárias, passando a tratá-las como meras
associações civis comuns, devendo suas questões internas serem conhecidas pela Justiça
Comum, de competência residual.
Daí que os partidos políticos, embora concebidos como associações regidas pela Lei
Civil, possuem, na realidade, outra significação e até mesmo protagonismo e, assim, não
podem ser analisados com o mesmo olhar sobre os demais entes associativos. Para tanto,
salienta-se que:
Embora se afirme o caráter privado do partido sob a Constituição de 1988, é certo
que o papel, enquanto instituição que exerce relevante função de mediação entre
o povo e o Estado, confere-lhe características especiais e diferenciadas, que não
se deixam confundir com uma simples instituição privada. Daí ressaltar-se que o
partido é dotado de natureza complexa, que transita entre a esfera puramente
privada e a própria esfera pública. [...] Diferentemente, por exemplo, de alguns
textos constitucionais [...], a Constituição de 1988 e a Lei dos Partidos Políticos
(Lei nº 9.096/95) não consagraram expressamente o princípio da democracia
interna nos partidos. Não significa, porém, que tal princípio não esteja
contemplado pela nossa ordem constitucional (MENDES, 2017, p. 793).

Mesmo assim, as questões internas, embora revestidas de intenso caráter


político/estatutário e, ao cabo de tudo, eleitoral, acabam, hodiernamente, sendo processados
e julgados na Justiça Comum, como se essas agremiações fossem comparáveis a meras
entidades associativas, o que é uma premissa completamente equivocada, conforme
doravante será demonstrado.
Segundo estampado em nossa Constituição Federal de 1988 em seu artigo 125,
compete à Justiça Comum Estadual processar e julgar as causas que não podem ser julgadas,
196

por incompetência absoluta em razão da matéria, pelas justiças especializadas (federal, do


trabalho, eleitoral e militar). Com base nesta premissa, a jurisprudência se consolidou para
definir que a competência é da Justiça Estadual para processamento e julgamento das ações
que se referem às questões interna corporis dos partidos políticos, em período não eleitoral,
os equiparando a meras associações civis. Também se estabeleceu que a Justiça Eleitoral só
seria competente para o exercício desta atribuição na hipótese em que os conflitos internos
pudessem interferir no processo eleitoral, numa espécie de sazonalidade jurisdicional.
Conforme lição de Macedo (2018, p. 266), essa sazonalidade de protagonismo da
Justiça Eleitoral é uma realidade que vem diminuindo cada vez mais em razão do
crescimento avassalador de fatos políticos relevantes e seus acontecimentos permanentes,
isto é, não apenas durante o período eleitoral:
Tradicionalmente, a sazonalidade das atividades da Justiça Eleitoral considerando
a periodicidade das eleições, que há cerca de trinta anos vêm acontecendo
bianualmente com regularidade, dirigia o foco nas atenções para o direito eleitoral
exclusivamente no período eleitoral stricto sensu. Não é mais assim, Seja pelo
turbilhão de eventos políticos, eleitorais ou com reflexos sobre as eleições, pelas
mudanças na legislação ampliando a atividade eleitoral dos partidos e seus pré-
candidatos antes mesmo das convenções, regulamentando a chamada pré-
campanha (Lei nº 13.165/2015, que introduziu o art. 36-A na Lei nº 9.504/97),
pela cada vez mais frequente criação de novos partidos políticos e eventual
migração de mandatários de cargos eletivos, pela constante judicialização da
política, a exemplo do recente episódio da provocação de candidaturas avulsas,
que levou o STF reconhecer, em sede de recurso extraordinário, a repercussão
geral na questão constitucional, embora ainda não tenha ocorrido o julgamento do
mérito, o fato é que a intervenção do Tribunal Superior Eleitoral - e não só ele –
no âmbito regulamentador ou normativo das eleições tende e de fato aumenta
frente a este cenário tumultuado a exemplo do que ocorreu no apagar das luzes do
ano de 2017, quando o TSE aprovou nada mais que 10 (dez) resoluções tratando
das eleições de 2018, quando, ao fim e ao cabo, apenas duas leis no curso de 2017
fora aprovadas com reflexos para as eleições gerais de 2018 (leis nºs 13.487 e
13.488) além de uma emenda constitucional (EC nº 97), da qual alguns de seus
dispositivos sequer serão por ora aplicados, porquanto prevista sua incidência para
eleições futuras (MACEDO, 2018, p. 266). (Grifos originais).

Por isso que a partir da reflexão anterior, o cenário político-eleitoral do país está
exigindo da Justiça Eleitoral atenção, dedicação e esforço muito maiores que apenas durante
os processos eleitorais (que, por si só, já é de um extraordinário movimento).
É fato notório que as ações eleitorais últimas levaram o povo ao maior envolvimento
na política, despertando interesse em participar dela, a acompanhá-la e transformando o
pleito eleitoral, doravante, apenas o ápice de algo construído permanentemente e de
constante e incessante aumento de intensidade. É necessário que vejamos agora que o
país, diante do ativo movimento de seu povo, informado rapidamente pelas redes sociais,
está e provavelmente estará sempre envolvido com a política. Daí que a própria Justiça
197

Eleitoral, como foi ensinado por Macedo (2018, p. 266), deverá estar cada vez mais ativa e
estruturada.
Por isto que os conflitos partidários internos em período “não eleitoral”, num
contexto de tantas repercussões perante a sociedade, não podem ser tratados como matéria
residual. Até porque, como já foi refletido acima, o que viria a ser o período “não eleitoral”,
se o assunto que domina todo o debate público a pelo menos cinco anos é política e eleições?
É importante medir o quão nefasta é a competência residual para processamento e
julgamento das questões interna corporis dos partidos políticos, em período não eleitoral,
tanto para as partes, quanto para o Poder Judiciário e também para a sociedade em geral,
num contexto de necessidade de fortalecimento interno destas agremiações.
O Conselho Nacional de Justiça (2017) divulgou os números do Judiciário do ano de
2016, e as conclusões que se retiram dos seus dados, permitem reflexões importantes
também no que tange o congestionamento dos Tribunais de Justiça Comum, em comparativo
com os Especializados (caso dos Tribunais Eleitorais).
Conforme os dados que se encontram no CNJ, o tempo médio de tramitação dos
processos pendentes e baixados na fase de conhecimento (CNJ, 2017) foram os seguintes no
ano de 2016: a) Os baixados: Justiça Estadual: 2 (dois) anos e 9 (nove) meses e; Justiça
Eleitoral 4 (quatro) meses. b) Os ativos (pendentes): Justiça Estadual: 4 (quatro) anos e 10
(dez) meses e; Justiça Eleitoral: 7 (sete) meses.
Ainda, também se encontra no referido documento que o Tempo Médio da Sentença
nas fases de execução e conhecimento no primeiro grau na Justiça Comum foram os
seguintes: a) Fase de Conhecimento: 1 (um) ano e 7 (sete) meses e; b) na fase de execução:
4 (quatro) anos e 8 (oito) meses.
Também foi extraído que o Orçamento do Poder Judiciário correspondeu a 1,4 (um
ponto e quatro décimos) do Produto Interno Bruto (PIB) e, deste valor, 56,7% (cinquenta e
seis por cento e sete décimos) foram destinados para a Justiça Estadual, enquanto 6,2% (seis
por cento e dois décimos) foram destinados para a Justiça Eleitoral.
Por sua vez, o custo por Magistrado de Primeiro Grau correspondeu, em 2016, aos
seguintes números: a) Justiça Estadual, custo médio mensal por Magistrado: R$ 49.093,00
(quarenta e nove mil e noventa e três reais) e; b) Justiça Eleitoral, custo médio mensal por
Magistrado: R$ 8.782,00 (oito mil, setecentos e oitenta e dois reais). Cabe fazer uma
observação que os Juízes Eleitorais, nesses casos, são os próprios Juízes Estaduais das
Comarcas que acumulam a função.
198

Ao fim, outro dado relevante extraído do documento do referido Conselho, consiste


na carga de trabalho da Justiça Estadual, em 2016. O CNJ (2017), informou que a média de
processos por Magistrado Estadual de Primeira Instância foi de 7.192 (sete mil, cento e
noventa e dois) e que este, durante o ano, resolveu (baixou) cerca de 1.788 (um mil,
setecentos e oitenta e oito) processos durante o último ano.
Por outro lado, é importante referir que o CNJ (2017), apontou que a litigiosidade,
decorrente do último pleito de 2016, elevou em 842,9% (oitocentos e quarenta e dois por
cento e nove décimos) o índice de aumento de casos novos na Justiça Eleitoral, em relação
ao ano anterior de 2015.
Todos esses dados convergem no sentido de que tanto a Justiça Comum está
congestionada e abarrotada de todo o tipo de litigiosidade apresentada pelos cidadãos
brasileiros diariamente, como também a Justiça Eleitoral, em razão do crescimento
significativo de litigiosidade oriundo do último pleito eleitoral, foi demandada como nunca
e, por essa razão, é um caminho sem volta que os processos eleitorais cada vez mais,
doravante, exigirão da Justiça Eleitoral, em todas as suas instâncias, estruturação.

Se tem verificado um incremento da atuação jurisdicional da Justiça Eleitoral, com


a cassação de vários mandatos, em movimento que transcende o resultado das
urnas. Uma das razões é a proliferação de legislação que dispõe sobre a cassação
de registros de candidaturas, diploma ou mandato eletivo, principiando pela norma
constitucional, que somente em 1988 trouxe alguma disciplina sobre o tema. Em
segundo, o §10º do mesmo artigo trouxe para o seio constitucional a ação de
impugnação de mandato eletivo. Além destes, a Lei nº 9.504/97 e Lei
Complementar nº 64/90 trataram, entre outros pontos, de representações e ação de
investigação judicial eleitoral, acrescentando novas ações ao tímido rol do Código
Eleitoral. A este respeito, Roberta Maia Gresta oferece o importante contraponto
acerca da intensidade das sempre fragmentadas alterações legislativas, as quais,
ainda que buscando tutela normativa mais efetiva à higidez de direitos políticos,
eleições e mandatos, têm causado uma relação cada vez mais imbrincada entre as
ações eleitorais, expondo a sua quase identidade e impondo dificuldades à defesa
adequada. Nas poucas ocasiões de mobilização popular em seara legislativa, duas
tiveram importante papel na transformação do processo judicial eleitoral, dado que
modificaram causas de pedir: a Lei nº 9,840/99, que introduziu art. 41-A na Lei
das Eleições e tratou da captação ilícita de sufrágio e a Lei Complementar nº
135/2010, que mudou o tratamento legislativo sobre as inelegibilidades. A
jurisdição eleitoral trata de conflitos surgidos antes, durante e depois do processo
eleitoral, destacando-se as ações cujo objeto seja a cassação de registro de
candidatura, diploma ou mandato eletivo, além da reclamação eleitoral e ação
rescisória, dos recursos ordinário e especial eleitoral e de todo o contencioso que
se refere à propaganda e prestação de contas eleitorais. O Estado Democrático de
Direito tem sido o novo paradigma para o entendimento do processo civil e da
jurisdição, esta vista agora como função do Estado, influenciada pelo princípio
democrático, concretizadora da soberania popular e destinada à efetividade dos
direitos fundamentais. Nesta perspectiva, o conteúdo do princípio do devido
processo legal completa as reflexões sobre o processo jurisdicional eleitoral
conformado constitucionalmente como um direito fundamental e um espaço
199

democrático de efetividade dos direitos políticos e da higidez das eleições e dos


mandatos (DUARTE, 2018, p 109).

Nesta senda, consoante analisado em números do Conselho Nacional de Justiça,


confrontado com a recente jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande
do Sul e uma análise simples do Regimento Interno deste Tribunal, é nítido que as questões
internas dos partidos políticos, mesmo as desvinculadas do pleito eleitoral, não podem ser
tratadas como questões associativas comuns e, muito menos, deve ser distribuída para a
Justiça Comum que, conforme analisada em dados recentes é naturalmente congestionada
por processos das mais diversas naturezas, o que impede o olhar atento sobre os casos
referidos.
Diante das demandas, tanto oriundas dos processos eleitorais, cada vez mais
judicializados, como também de toda a condução do pleito eleitoral, o que impõe à Justiça
Eleitoral também a sua árdua e singular tarefa administrativa, as questões partidárias internas
também impõem ser processadas e julgadas por ela, diante da sua especialidade.

2 REFLEXÕES SOBRE A FUNÇÃO DA JUSTIÇA ELEITORAL MODERNA

Neste primeiro ponto, cabe fazer referência às teorias de liberdade de expressão


trabalhadas por Fux (2018, p. 96), ligadas ao que chama de “Releitura do direito eleitoral à
luz da axiologia constitucional”: a teoria libertária, a teoria democrática e a teoria
instrumental:
A primeira categoria de autores, atrelados à cognominada teoria libertária,
sustenta que a liberdade de expressão seria um valor em si, autônomo, e que
constitui componente nuclear para o livre desenvolvimento da personalidade. E
sentido diverso, a segunda corrente, reputada como teoria democrática, advoga
que a liberdade de expressão ostenta um caráter meramente instrumental, i.e., é
tutelada apenas e tão somente para promover outros valores que a sociedade
considera essenciais (e.g., difundir o ideário democrático). Por fim, a terceira
matriz de pensamento, vertente da teoria instrumental, preconiza ser a liberdade
de expressão essencial para a busca da verdade (FUX, 2018, p. 96). (Grifos
originais).

A partir desta introdução, o referido Autor, faz menção que o princípio da liberdade
de expressão, tão importante em um processo eleitoral, deve ser observado com muita
atenção em todos os instantes enquanto período democrático, momento em que se refere a
Osório (2016, p. 79 apud FUX, 2018, p. 99):
As eleições são hoje a peça central do sistema de autogoverno democrático. Em
uma democracia representativa, o direito de sufrágio permite que o povo exerça o
poder político de modo indireto, a partir da formação de um corpo de
representantes. No entanto, o processo eleitoral é mais do que um procedimento
200

de tradução de votos e preferências em cargos eletivos, em representação política.


Ele constitui um processo participativo, em que cidadãos, candidatos, partidos e
meios de comunicação se engajam em um debate público, indispensável para o
processo de tomada de decisão de voto e de formação da vontade coletiva.

Na prática, com base nesses apontamentos feitos anteriormente, a Justiça Eleitoral


cada vez mais tende a se modernizar para se adaptar às demandas, em quantidade
praticamente invencível. É impossível não reconhecer que o Poder Judiciário, não apenas
em âmbito eleitoral, mas como um todo, em especial os Tribunais Superiores, estão
assumindo um protagonismo importante, todavia perigoso, na resolução de grandes conflitos
da República.
No começo, ante a imoralidade deflagrada e evidenciada a partir da Ação Penal nº
470, tramitada na Excelsa Corte, perdurando até os processos ligados aos grandes escândalos
de corrupção envolvendo grandes quadros políticos do País, esse protagonismo foi deveras
saudado. No entanto, é inegável registrar que o poder, quando em excesso, pode resultar em
exageros e estes podem gerar um desequilíbrio entre os Poderes. Vale o mesmo para o
Judiciário, por óbvio:
O Judiciário Eleitoral é, entretanto, uma experiência bem-sucedida no caso
brasileiro, mas deve ter muito cuidado para não ser vítima de suas virtudes e
sucesso. Exceder naquilo que deu certo é um mal muito comum aos seres
humanos. A Justiça Eleitoral hoje, não se limitando à certificação dos poderes dos
candidatos vitoriosos, como sabemos todos, pode intervir e acaba intervindo no
conteúdo e no próprio resultado do processo eleitoral. O magistrado eleitoral
brasileiro, graças a uma jurisprudência e legislação cada vez mais ambiciosas, tem
o poder não apenas de certificar os registros de candidaturas e proclamar e
diplomar os eleitos, mas também de cassar mandatos alcançados com o voto
popular, tornar inelegíveis os cidadãos e, inclusive, sindicar e censurar o que os
candidatos podem dizer e o eleitores podem ouvir numa campanha eleitoral. [...]
O juiz eleitoral acaba, inclusive, tendo influência mesmo do ponto de vista político
sobre as eleições. Com efeito, sabemos todos, basta a rejeição judicial, mesmo que
provisória, de um registro de candidatura ou apenas a censura a algumas
veiculações de propaganda eleitoral, para que o candidato, ainda que alcance
reformar definitivamente a decisão em instâncias superiores, acabe politicamente
perdendo as eleições, já que o eleitor invariavelmente empresta acentuada
importância às manifestações do Poder Judiciário (GUEDES, 2018, p. 112).

Diante do quadro, uma nova equação se coloca em mesa para profunda análise diante
da complexidade: de um lado, a necessidade de não haver uma omissão absoluta do Poder
Judiciário, colocando os partidos políticos mercê das oligarquias políticas formadas pela
classe política e; de outro, o próprio Poder Judiciário turbinado por anseios populares, ante
aos fatos escandalosos que chocaram o povo, com muito poder autoconcedido ou por leis,
por vezes, criadas num contexto histórico em que se acreditava na impunidade e, neste
sentido, extremamente interventor, quase legislador, agindo também em excessos e abusos
de poder.
201

Como foi referido por Guedes (2018, p. 112), é necessário cautela para os
Magistrados Eleitorais diante do excesso de responsabilidade e até mesmo diante do fato de
que, hodiernamente, ele deixou de ser um mero condutor do processo eleitoral, mas passou
a ser uma figura cujas decisões podem influenciar decisivamente na vontade popular.
A resposta se dá na observância ostensiva aos princípios da razoabilidade e da
proporcionalidade.
O dever de proporcionalidade possui dupla dimensão: de vedação ao excesso
(Übermassverbot) e de vedação à proteção deficiente ou insuficiente
(Untermassverbot). De fato, a proporcionalidade constitui autêntica pauta de
moderação e prudência a orientar toda a atuação do Poder Público. Sua função é
permitir a harmonia axiológica do sistema normativo. Seu fundamento é a própria
noção de princípios jurídicos como mandamentos de otimização em face de
restrições fáticas e jurídicas, na esteira do magistério de Robert Alexy. Sua
operacionalização é metodologicamente desdobrada em três etapas: adequação,
necessidade e proporcionalidade em sentido estrito. [...] ao lado de vedação ao
excesso, a proporcionalidade possui a dimensão de proibição de proteção
deficiente. Aludida acepção desenvolveu-se no direito tedesco, a partir da
convicção de que os direitos fundamentais não seriam apenas direitos de defesa,
oponíveis em face do Estado, mas, para além disso, possuiriam uma dimensão
objetiva, de vez que tutelam certos bens jurídicos e valores que devem ser
promovidos e protegidos diante de riscos e ameaças originários de terceiros, como
instrumento de controle da inação ou da atuação deficiente estatal (FUX, 2018, p.
104-105). (Grifos originais).

Daí que a missão da Justiça Eleitoral moderna é desafiadora: ela inequivocamente


nunca foi tão poderosa; e se percebe até mesmo alguma dificuldade de estruturação (sobre
como lidar com a função consultiva, a regulamentar – as resoluções do TSE, aonde a Corte
praticamente legisla sobre Direito Eleitoral) e também como lidar com as causas de
magnitude muito significativas com uma composição tão diminuta.
Por outro lado, como se refere Félix Júnior (2018, p. 252), a Justiça Eleitoral por
meio do “tratamento constitucional que lhe é conferido deixa evidente a questão de que a
sua função excede aquela judiciária, e passa a ser realmente um instrumento de organização
do regime democrático”.
Outra questão que a Justiça Eleitoral deverá estar atenta é na questão da digitalização
do processo eleitoral, bandeira erguida por Rais (2018, p. 17), que nos ensina que a
informação, que antes era tarefa exclusiva da imprensa, agora é “desempenhada de forma
ativa e corriqueira no âmbito da Web, em que os usuários atuam livremente, produzindo os
mais variados tipos de conhecimento em blogs, aplicativos de mensagens instantâneas e
redes sociais”.
Ocorre que, paralelamente a esse fenômeno de crescente utilização da Internet,
o que se observa até o advento da Lei nº 13.488/2017 é que a legislação eleitoral
não estava minimamente preparada para lidar com as necessidades, os desafios
202

e as possibilidades dessa nova realidade. Ela carecia de uma reformulação mais


ampla e profunda, capaz de enfrentar questões como aquelas relativas a técnicas
e 42 mecanismos de financiamento coletivo e propaganda eleitoral, bem como
sobre o exercício da liberdade de expressão e do direito de resposta em período
eleitoral. Embora ainda existam muitas controvérsias em debate, a legislação
comum evoluiu consideravelmente nos últimos anos com o início da vigência do
Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014), lei específica que criou princípios,
garantias, direitos e deveres para o uso da internet no Brasil, e seu respectivo
Decreto 8.771/2016, que trouxe importantes definições como “dados pessoais”
e “dados cadastrais”. No âmbito eleitoral, no entanto, embora com o intuito de
adaptar a legislação eleitoral ao crescente uso de novas tecnologias pela
população, foram muito tímidas as alterações legislativas promovidas nas
minirreformas anteriores à Lei nº 13.488/2017 (RAIS, 2018, p. 20). (Grifos
originais).

Diante destas reflexões, não existe dúvidas que a Justiça Eleitoral, doravante,
tende a caminhar em terreno cada vez mais dificultoso, de modo que exigirá várias
tomadas de decisões importantes, todavia, algumas já tomadas, inclusive com o auxílio
do Novo Código de Processo Civil, de 2015, como se demonstrará na sequência do
desenvolvimento deste trabalho.

3 ALGUMAS ALTERAÇÕES NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL E NA


RESOLUÇÃO DO TSE 23.478/2016, QUE VIERAM AUXILIAR A JUSTIÇA
ELEITORAL PARA PROCESSAR E JULGAR QUESTÕES INTERNAS DOS
PARTIDOS POLÍTICOS

Importante referir que um dos instrumentos que vem auxiliando a Justiça Eleitoral
na resolução de alguns problemas vinculados às técnicas processuais garantidoras de
segurança jurídica, o Novo Código de Processo Civil vem sendo um importante diploma
colaborador para esta nova fase. Como ensina Macedo (2018, p. 272), os artigos 926 e 927
do Diploma Processual Civil, “construiu um sistema no qual prepondera a função normativa
da atividade dos tribunais”.
Independentemente de sistemas de outros países, no Brasil, a teoria dos chamados
precedentes ganha características próprias, voltada essencialmente para o que o
art. 926 do CPC/2015 institui como um valor a ser perseguido pelos tribunais: a
uniformização e estabilidade de sua jurisprudência. Não necessariamente atuando
no vazio da norma, parte desta para lhe dar contornos e extensão específicos. [...]
De qualquer sorte, o art. 927 do CPC/2015, complementando a norma instituída
pelo dispositivo antecedente, estabelece processualmente um rol de decisões
colegiadas aptas a instituir o procedente vinculante, seja para os processos em
curso, seja para os processos futuros, a exemplo do que dispõem os art. 332 do
mesmo estatuto autorizando o julgamento de improcedência liminar do pedido, a
ser proferido pelo juiz de primeiro grau, em casos tais. Enunciado com vinculação
erga omnes e com projeção temporal para o futuro, reveste-se de função
normativa: o exigir do destinatário este ou aquele comportamento frente à
determinada premissa fática (MACEDO, 2018, p. 273). (Grifos originais).
203

Diante disto, do uso destes mecanismos referentes ao Código de Processo Civil de


2015, Macedo (2018, p. 274), também refere que a Resolução do TSE nº 23.478, de 2016,
também trouxe grandes avanços em relação às inovações processuais, embora, reconheça a
autora, “tenha deixado flancos em aberto, por vezes pecando por excessos, em outro por
omissão ou até vagueza” (MACEDO, 2018, p. 274).
Nesta linha de raciocínio, Zílio (2018, p. 245), igualmente tece comentário a respeito
dos avanços trazidos com o Novo Código de Processo Civil no tocante ao Processo Eleitoral,
observando também que as matérias menos polêmicas não foram objeto da normativa em
questão, esperando que a jurisprudência consolide as questões mais complexas.

Contudo, o art. 2º da aludida resolução é a regra fundamental a ser observada para


a aplicação do Novo CPC no processo eleitoral. No caput, é consagrada uma regra
de especialidade, conferindo-se prevalência para as “normas específicas previstas
na legislação eleitoral e nas instruções do Tribunal Superior Eleitoral”. No
parágrafo único, é previsto o critério de aplicação do Novo CPC aos feitos que
tramitam na Justiça Eleitoral, oportunidade em que – da mesma sorte que o art. 15
do Novo CPC – é referida que a aplicação terá “caráter supletivo e subsidiário”,
mas com uma condicionante fundamental: “desde que haja compatibilidade
sistêmica”. A prevalência das normas específicas de direito eleitoral em relação à
eventual aplicação subsidiária ou supletiva do Novo CPC não é novidade na
jurisprudência do TSE e é uma decorrência lógica do princípio da especialidade.
Sempre que houver uma norma específica de direito eleitoral, seja fundada em lei
ou em resolução do TSE (desde que em conformidade com o art. 105 da LE), essa
regra terá aplicação no caso concreto e não haverá necessidade de busca de
soluções oriundas do processo civil. É certo que as normas criadas a partir da
realidade própria do processo eleitoral se apresentam como soluções mais
razoáveis para essa matéria específica. O elemento especializador – que é inerente
ao processo eleitoral – sempre importará em uma solução jurídica mais adequada
para uma prestação jurisdicional específica (ZÍLIO, 2018, p. 246). (Grifos
originais).

Em linhas gerais, o Novo Código de Processo Civil também, destarte, se traduz em


um importante mecanismo modernizador, estruturante da Justiça Eleitoral nesta nova fase
histórica e contribui para a racionalização do Processo Judicial Eleitoral, e que também se
alia ao objeto do estudo: a apreciação das questões internas dos partidos políticos pela Justiça
Eleitoral, em razão da sua especialidade e a sempre conexão com o processo eleitoral.
Algumas questões, entretanto, devem também merecer atenção no trabalho que
dizem respeito às legislações eleitorais de caráter processual: o próprio Código Eleitoral, a
Lei nº 9.504, de 1997 e a Lei Complementar nº 64/90, possuem ritos próprios para
determinadas Ações Impugnativas Autônomas: Ação de Investigação Judicial Eleitoral
(AIJE), Ação de Impugnação de Mandato Eletivo (AIME), Recurso contra Expedição de
Diploma (RCED), Representações, dentre outros.
204

Um caso interessante é o do artigo 96 – B da Lei nº 9.504, de 1997, que: “trata da


reunião de processos propostos por partes diversas sobre o mesmo fato, para julgamento
comum, prevenindo o relator que tiver recebido a primeira” (BRASIL, 1997), introduzido
pela Lei nº 13.105, de 2015, Novo Código de Processo Civil e que apresentou, na norma
eleitoral, situação extremamente compatibilizada com o diploma processual civil.
Num contexto em que os Partidos Políticos estão vivendo a maior crise de
credibilidade da história e estão tendo suas questões internas apreciadas pela Justiça Estadual
diante do caráter residual desta, não se poderá esperar fortalecimento da Democracia,
mantendo-se tudo como está sem mudanças. Pelo contrário, se pode esperar o seu
esfarelamento.
Blaszak (2018, p. 325), desenvolve uma análise muito proveitosa sobre a atual
realidade do deslocamento de competência das questões partidárias entre as Justiças Eleitoral
e Comum, inclusive referindo que seria importante uma Emenda Constitucional definindo
essa competência específica.

O deslocamento para a Justiça Eleitoral se dá, unicamente, após deflagrado o


processo eleitoral que, unanimemente, se entendeu como sendo a partir das
escolhas dos candidatos nas convenções partidárias. Com o passar do tempo ficou
claro que a divisão de competência não fez bem, especialmente, para as causas
intrapartidárias. O momento dos partidos políticos é de revisão dessa divisão, com
a preferência uníssona no sentido de que todas as causas relacionadas ao direito
eleitoral devem ter a justiça especializada eleitoral como a competente. O motivo
é simples e único, ou seja, a matéria atrai a competência. O óbvio é que a solução
de um processo cuja matéria indica reflexos nas eleições, ainda que seja de
administração intrapartidária, deve tramitar no Juízo que tem mais afinidade com
o objeto, ou seja, eleitoral. Além desse patamar, os partidos políticos anseiam que
além das matérias com reflexos diretos nas eleições, os processos cujo objeto seja
qualquer matéria de cunho interna corporis possam ser dirimidos, de igual forma,
na justiça especializada. Assim, entende-se que o momento político brasileiro
indica que a Constituição Federal deve receber uma emenda elegendo a Justiça
Eleitoral como competente para dirimir as questões interna corporis dos partidos
políticos em todo e qualquer tempo (BLASZAK, 2018, p. 325). (Grifos originais).

Em realidade, não faltam motivos para que a Justiça Eleitoral reassuma a


competência para processar e julgar os conflitos internos dos Partidos Políticos.
O entendimento de que a competência das questões internas dos Partidos Políticos,
desvinculadas especificamente do pleito eleitoral, seja da Justiça Comum, termina por ser
algo questionável e criticável.
A conclusão alcançada por Blaszak (2018), de que o deslocamento da competência
da Justiça Eleitoral para a Justiça Comum não foi benéfica, deve ser respaldada, pois os
objetivos referentes à qualificação dos Partidos Políticos, suas respectivas democracias
205

internas, admitir que os conflitos partidários signifiquem divergências de teor político e que,
em última análise, terão influência no pleito eleitoral, estando ele distante ou não, restam
claros.

CONCLUSÃO

Cabe, ao final deste estudo, trazer à reflexão o seguinte pensamento: os partidos


políticos não são meras associações civis, mas verdadeiros interlocutores entre classe
política e sociedade.
Também, deve ser trazido à reflexão que são estes partidos políticos que vão definir
os candidatos para ocuparem os cargos mais importantes do país, e serem escolhidos pela
população, diretamente. Diante disto, é justamente o resultado das convenções partidárias
que serão os nomes que o povo irá decidir.
Por isso, que não é exagero admitir que a Democracia é resultado do produto das
Democracias internas partidárias, pois são estas agremiações que irão pautar as eleições, no
caso, a forma mais precisa de exercício democrático existente no atual Estado Democrático
de Direito.
Daí que não se pode menosprezar a relevância dos partidos políticos, enquanto
representação democrática das diversas matizes políticas, bem como tampouco dos líderes
que produzem e principalmente o quê e quem representam.
Pelo contrário, é imperativo que os partidos políticos cada vez mais sejam definidos
ideológica e programaticamente, representem segmentos da sociedade, possuam estatutos
claros e que compreendam a democracia interna. Da mesma forma, a Justiça Eleitoral, do
outro lado da balança, faça sua parte e reconheça que os partidos políticos só recuperarão
crédito perante a população quando seus atos forem firmemente submetidos à apreciação da
Justiça Especializada.

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ZÍLIO, Rodrigo López. Direito Eleitoral. 4. ed. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2014.
207

O EMPODERAMENTO FEMININO NA POLÍTICA BRASILEIRA: LUGAR DE


MULHER TAMBÉM É NA POLÍTICA

Carhla de Oliveira Alves139


Denise Friedrich140

RESUMO

O objetivo do presente trabalho procura verificar a trajetória histórica da mulher, saindo do


espaço privado, e participando do espaço público. Demonstrar a importância da maior
participação feminina na política, a valorização da igualdade de gênero para se ter uma
política equilibrada e, consequentemente, democrática, bem como analisar até que ponto a
política de cotas eleitorais de gênero tem se mostrado eficaz. Propõe-se pensar acerca dos
obstáculos e da importância do empoderamento feminino na política, tendo em vista que a
participação da mulher brasileira nos espaços públicos, além de mudanças legais, depende
também de mudanças culturais. A metodologia de abordagem é o hipotético-dedutivo, e o
de procedimento consistirá em uma abordagem bibliográfica em fontes variadas, a partir de
livros, revistas, artigos, e análises comparativas, a pesquisa compreenderá também
compilação de dados e informações e análise dos mesmos.

Palavras-chave: Empoderamento; Política; Mulher; Cotas; Gênero;

INTRODUÇÃO

Observa-se a ausência da representação do sexo feminino no campo da política, bem


como seu papel passivo na sociedade, nos dias de hoje ainda é possível analisar o impacto
da divisão de papeis de gênero. Passados mais de 80 (oitenta) anos em que as mulheres
conquistaram a capacidade eleitoral ativa e passiva, ainda têm uma representação
inexpressiva no cenário político, apesar de representarem mais da metade do eleitorado.
Por isso, propõe-se pensar um novo referencial, no qual as mulheres exerçam seu
direito político positivo de elegibilidade na política brasileira. Diante disso, questiona-se,
para prover a devida inclusão da mulher no cenário político, e assim assegurar a sua devida

139
Mestre do Programa de Pós-Graduação em Direito pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai
e das Missões (URI) Campus Santo Ângelo - RS. Bolsista CAPES no programa acima referido. Especialista
em Direito Eleitoral pela Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC). Bacharela em Direito pelo Curso de
Graduação de Direito da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões (URI) Campus Santo
Ângelo RS. Advogada. E-mail: carhlaalves@hotmail.com
140
Graduada em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul (2002); Especialista em Direito Constitucional
- ênfase em Direito Municipal pela Universidade Luterana do Brasil (2005); Mestre em Direito - Políticas
Públicas de Inclusão Social - pela Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC -(2007). Doutora em Direito
pela Universidade de Santa Cruz do Sul - UNISC - (2014). Docente da Universidade de Santa Cruz do Sul –
UNISC - e professora permanente do PPGD desta universidade. Email: d-friedrich@hotmail.com
208

representação, até que ponto a política de cotas tem se mostrado eficaz? A participação da
mulher na política precisa se tornar realidade.
A mulher brasileira conquistou a capacidade eleitoral ativa (alistabilidade)
facultativa em 1932, que passou a ser obrigatória mais tarde, em 1946. Apesar de serem a
maioria das eleitoras, ainda representam a minoria em cargos políticos. Na verdade, se hoje
ocupam 30% (trinta por cento) das candidaturas é porque os partidos são obrigados a
colocarem mulheres na disputa.
Destaca-se que o empoderamento feminino representa uma das principais faces nesse
milênio, e o amadurecimento da mulher na política terá influencias e reflexos nessa
conquista. Diante disso, se analisará quais foram e quais ainda são os obstáculos que
impedem uma maior participação feminina de elegibilidade na política brasileira,
desenvolvendo uma breve trajetória histórica das mulheres nos espaços de poder.
Para o objetivo deste estudo se requer ainda, como método de abordagem o
hipotético-dedutivo. O método de procedimento utilizado nesse artigo consistirá em uma
abordagem bibliográfica em fontes variadas, a partir de livros, revistas, artigos, e análises
comparativas, a pesquisa compreenderá também compilação de dados e informações e
análise dos mesmos.

1 A LUTA DA MULHER PELA CONQUISTA DE ESPAÇOS ATÉ ENTÃO


RESERVADO AO HOMEM: DA CASA PARA O MERCADO DE
TRABALHO

De donas de casa ou professoras, passo a passo as mulheres começaram a ocupar


espaços reservados até então ao sexo masculino. O status de inferioridade feminina foi
considerado por muito tempo como algo decorrente da própria natureza. Entretanto, foi
através da conscientização feminina que as mulheres perceberam “sua igualdade em relação
aos homens, derrubando o velho mito da inferioridade, no sentido de também estarem aptas
a construir um mundo melhor e mais digno para as futuras gerações” (MASCHIO, 2003, p.
49).
A subordinação feminina ao longo da história revela que, conforme afirma Simone
de Beauvoir (2009), a humanidade é masculina. Os homens sempre foram os grandes
protagonistas das grandes descobertas, enquanto a mulher ficava confinada a esfera
doméstica.
209

“Ser mulher” associava-se ao ambiente doméstico, a procriação e educação dos


filhos. Seu destino era ser mãe, esposa e dona de casa, enquanto a função do homem era o
sustento do lar, que por ser mais forte deveria trabalhar e prover o sustento de seus
dependentes.
Conforme afirma Muraro (1992, p. 100) “na Idade Média as mulheres estavam sob a
guarda dos pais, tendo que passar virgens para a guarda dos maridos”. A mulher era submissa
ao homem em todos os sentidos. O trabalho fora do âmbito doméstico era exclusividade dos
homens. Ou seja, primeiro ela era submissa ao seu pai, e depois passava a ser submissa a seu
marido. Era criada e educada para o casamento e procriação, sendo vedado o exercício de
qualquer profissão. Nesse sentido:

Nas classes pobres, contribuíam para o sustento da família trabalhando como


costureira, lavadeira, doméstica. Nesta última atividade, embora geralmente não
fossem remuneradas, recebiam alimentação e vestuário, com o que aliviavam os
encargos familiares. Outras, levadas pela miséria, se prostituíam. Esse poder
absoluto da autoridade paterna sobre a família compunha a sociedade patriarcal.
A submissão feminina equivalia a um regime de servidão, ditado basicamente pela
total dependência econômica. A mulher tinha deveres, mas não possuía direitos.
Considerada incapaz, até mesmo o acesso à cultura lhe era negado. A honra da
mulher, no período pré-nupcial, repousava em sua virgindade (BOMFIM, 2011,
p. 1).

De outro giro, foi durante a revolução industrial que a inserção da figura feminina no
mercado de trabalho iniciou-se. As indústrias se fortaleciam cada vez mais, o trabalho
feminino tornou-se mais acessível aos olhos dos empregadores, deixando a mão de obra
masculina em segundo plano, em razão dos baixos salários que eram destinados às mulheres,
já que sua mão de obra era mais barata.
Mas a questão de gênero sempre foi um obstáculo, pois apesar da grande participação
feminina no mercado de trabalho, os cargos bem remunerados, assim como os cargos de
chefia, continuaram pertencendo aos homens.
Com a chegada do século XIX, as mulheres iniciaram sua busca por melhores
condições de trabalho: luta pela redução da jornada de trabalho, aumento dos salários, assim
como melhorias na condição de trabalho. Mesmo assim as mulheres operárias continuavam
carregando o estereótipo da figura materna e educadora, destinadas ao cuidar do lar, ser
esposa e mãe, pois
[...] todos (as) sabemos que não é a mesma coisa ser mulher ou homem dentro de
uma fábrica, num sindicato, ou simplesmente dentro de nossas casas. Vive-se no
masculino ou no feminino (...) mecanismos quase invisíveis tecem as relações
entre mulheres e homens na vida quotidiana (...) Estes fios sutis e às vezes
210

imperceptíveis fazem com que tarefas, salários, qualificações e práticas sindicais


sejam ao mesmo tempo articuladas e diferentes (...) Trabalho masculino é diferente
de trabalho feminino, salário masculino é diferente de salário feminino.
Trabalhador não é igual a trabalhadora. O trabalhador também tem sexo (LOBO,
1986, p. 50).

Ainda persistem profundas desigualdades nas relações de gênero. O Feminismo foi


o grande movimento na busca de igualdade de gênero, iniciado com a Revolução Francesa.
Reivindicava-se igualdade de direitos no matrimônio e às profissões liberais, em sua pauta
não se incluíam, ainda, as lutas pela melhoria de vida proletária, nem mesmo o que se
referisse aos direitos políticos das mulheres. Foi mais tarde, somente em 1892, diante do
primeiro Congresso Feminista, que começou a se falar na luta dos direitos políticos das
mulheres, especialmente o de voto.
Portanto, o movimento tinha como objetivo a igualdade social, econômica e
política. Uma luta que buscava romper com os paradigmas de um mundo dominado até
então por normas masculinas, rompendo a distinção entre os sexos e dando autonomia as
mulheres a terem o controle de suas vidas. “Se definia como um movimento que devia
realizar a igualdade formal e jurídica da mulher (acesso à educação e às profissões, direito
de voto etc.), partindo de um “direito natural” indiscutível e limitando-se a questão
feminina” (MONTENEGRO, 1981, p. 31-32).
Essa concepção se modificou mais tarde, porém, mesmo com a conquista de certos
direitos, ou seja, direitos adquiridos formalmente, ainda era insuficiente para assegurar
“direitos da vida real”. Montenegro (1981, p. 33) relata que foi durante a segunda metade
da década de 1960 que o movimento alcançou seu auge, nos Estados Unidos e na Europa,
quando finalmente as mulheres começaram a falar sobre as relações de poder, autonomia e
liberdade, tanto de seus corpos como da vida.

2 A LUTA POR MAIS ESPAÇO NA POLÍTICA

A ausência da mulher nos espaços de poder é um elemento presente na história


política do Brasil. Os avanços do movimento Feminista foram muitos, contribuíram para
afirmar a figura feminina nos espaços públicos e também na denuncia das desigualdades
vividas por elas. A participação das mulheres é fundamental para que haja a construção tanto
de sua democracia como cidadania. No final do século XIX o movimento brasileiro buscou
211

inspiração no movimento sufragista (Reino Unido) baseado nos ideais de liberdade,


iluminismo e igualdade.
Vivia-se em uma sociedade escravocrata e hierarquizada, quando o primeiro
movimento aconteceu no Brasil, no estado do Rio Grande do Norte, em Lages, onde, em
1929, Luísa Alzira Teixeira Soriano foi eleita a primeira Prefeita do Brasil (e da América
Latina), com 60% (sessenta por cento) dos votos (TSE, 2013a, s.p.). Luísa utilizou-se da Lei
do Império, interpretando a legislação da época que estabelecia que qualquer pessoa que
tivesse renda superior a 2 (dois) mil réis teria direito a voto (TRE-ES, 2014, s.p.). Ou seja, o
voto dependia exclusivamente de posses.
Foi em 1927, portanto, o primeiro movimento, através de uma lei estadual, que as
mulheres puderam votar e ser votadas. Era um movimento limitado, pois o que prevalecia
era a classe social. No resto do país os direitos políticos positivos femininos foram
conquistados em 1932, por meio do primeiro Código Eleitoral, que foi colocado em prática
no ano seguinte, que, além dessa e de outras grandes conquistas, instituiu a Justiça Eleitoral,
que passou a regulamentar as eleições no país:

O artigo 2º deste Código continha a seguinte redação: “É eleitor o cidadão maior


de 21 anos, sem distinção de sexo, alistado na forma deste Código”. A aprovação
do Código de 1932, no entanto, deu-se por meio do Decreto nº 21.076, durante o
Governo Provisório de Getúlio Vargas. Somente dois anos depois, em 1934,
quando da inauguração de um novo Estado Democrático de Direito, por meio da
segunda Constituição da República, esses direitos políticos conferidos às mulheres
foram assentados em bases constitucionais. No entanto, a nova Constituição
restringiu a votação feminina às mulheres que exerciam função pública
remunerada (TSE, 2013b, s.p.).

Nas eleições convocadas por Getúlio Vargas para uma Assembleia Constituinte, nos
anos de 1934 e 1935, foi eleita a primeira mulher deputada federal, Carlota Pereira de
Queiroz, médica paulista. Berta Lutz, cientista e feminista, primeira suplente do Distrito
Federal, assumiu o mandato em 1936. Porém, nessa época, o voto era permitido somente
para as mulheres que tinham profissão remunerada, o que só veio a mudar mais tarde, com
o Código de 1965, vigente até hoje.
Cabe destacar que o primeiro Código Eleitoral brasileiro trazia o voto feminino como
voto facultativo (assim como o voto para homens a partir de 60 anos), ou seja, percebe-se
que o voto feminino não tinha a mesma natureza do voto masculino.
Ademais, a história demonstrou que as mulheres foram restritas a esfera privada, pois
o mundo público pertencia aos homens. A mulher era considerada geneticamente inferior,
212

era algo “natural”. Historicamente, em razão da hierarquia sexual, a mulher foi privada de
seus direitos civis e políticos. Qual era a necessidade do voto feminino? E ainda, por quais
motivos uma mulher se candidataria? Se ela já estava sendo representada pela figura
masculina?

A conquista do direito de voto foi, por muitas décadas, o ponto focal do


movimento das mulheres. Da metade do século XIX até as primeiras décadas do
século XX, o sufragismo foi a face pública das reivindicações feministas. O acesso
à franquia eleitoral representava o reconhecimento, pela sociedade e pelo Estado,
de que as mulheres tinham condições iguais às dos homens para gerir a vida
coletiva e também que elas possuíam visões de mundo e interesses próprios,
irredutíveis aos de seus familiares. Afinal, um dos argumentos centrais para a
exclusão política delas era que seus interesses já seriam protegidos pelo voto
dos maridos ou dos pais.
(...) as décadas seguintes à obtenção do sufrágio feminino mostraram que era
perfeitamente possível a convivência entre o direito de voto das mulheres e uma
elite política formada quase exclusivamente por homens. (GILLIGAN, 2010, p.
93) (grifo nosso).

E foi assim, por meio de lutas, que se conquistou o direito de alistabilidade e


elegibilidade feminina. Mas ainda é inexpressiva a participação feminina passiva na política
brasileira, por isso a importância de refletirmos sobre o papel da mulher na sociedade,
questionando as políticas afirmativas em vigor.

3 LEGISLAÇÃO ELEITORAL DE COTAS NO BRASIL

As cotas eleitorais por gênero são instrumentos de ação afirmativa, com objetivo de
maior participação feminina passiva no cenário eleitoral brasileiro. É um instrumento que já
vem sendo usado em vários outros países com a finalidade de se buscar o equilíbrio entre
homens e mulheres, tendo em vista as inúmeras limitações históricas que as mulheres
sofreram e sofrem até hoje.
Inúmeras são os entraves da participação igualitária nos campos da vida social, por
isso se faz necessário ações afirmativas como instrumentos de promoção de uma verdadeira
igualdade, não só formal como também substancial, entre homem e mulher.
O Projeto de cota de gênero organizado pelo Professor Dahlerup, e amplamente
difundido pela ONU e União Parlamentar, prevê três espécies de cotas, cuja finalidade é a
maior participação feminina na política, são elas: 1 reserva de assentos para mulheres no
Parlamento; 2 cotas de gênero legalmente exigidas na lista de candidatura; 3 cotas
voluntárias constituídas por partidos políticos. O Brasil adotou o tipo 2.
213

A Lei 9504/97, que estabelece as normas para as eleições, em seu artigo 10º, §3º,
prevê a cota eleitoral por sexo:

Artigo 10. Cada partido poderá registrar candidatos para a Câmara dos Deputados
câmara legislativa, assembleias legislativas e câmaras municipais, até 150% do
número de lugares a preencher.
§ 3º Do número de vagas resultante das regras previstas neste artigo, cada partido
ou coligação preencherá o mínimo de 30% e o máximo de 70% para candidaturas
de cada sexo.(grifo nosso).

No histórico das cotas eleitorais por gênero no brasil a primeira lei a prescrever
exigência foi a Lei 9.100/95, que determinava que, pelo menos 20% das vagas de
candidaturas de um dos gêneros por cada partido ou coligação. Com a entrada em vigor da
Lei 9.504/97 o percentual mínimo foi elevado para 25%, e depois novamente elevado para
30%, porcentagem que é mantida atualmente. Senão vejamos:

§ 3o Do número de vagas resultante das regras previstas neste artigo, cada


partido ou coligação preencherá o mínimo de 30% e o máximo de 70% para
candidaturas de cada sexo.(grifo nosso).

Com a entrada em vigor da Lei das Eleições, passou-se a garantir a participação da


mulher nos partidos brasileiros. A legislação buscou assegurar a participação das mulheres
de maneira impositiva. Já em 2009, através da minirreforma eleitoral, essa faculdade de
participação passou a ser obrigatória, pois a expressão “deverá reservar" foi substituída por
"preencherá", atribuindo caráter cogente à norma, eliminando de vez dúvidas acerca de sua
obrigatoriedade.
Pelo menos 30% (trinta por cento) dos candidatos deveriam, obrigatoriamente, ser
mulheres, ficando o partido impedido de lançar candidatos de um mesmo sexo em número
superior a 70% (setenta por cento) do total de candidatos. Destaca-se que os percentuais
estipulados não se vinculam a nenhum sexo específico, aplicando-se a ambos.
Podemos observar que em 2015, a Lei 13.165 alterou a legislação infraconstitucional
e complementou a reforma das instituições político-eleitorais do País. Nesse sentido:

Art. 41-A. V - na criação e manutenção de programas de promoção e difusão da


participação política das mulheres, criados e mantidos pela secretaria da mulher
do respectivo partido político ou, inexistindo a secretaria, pelo instituto ou
fundação de pesquisa e de doutrinação e educação política de que trata o inciso
IV, conforme percentual que será fixado pelo órgão nacional de direção partidária,
observado o mínimo de 5% (cinco por cento) do total;
214

Art. 45. IV - promover e difundir a participação política feminina, dedicando às


mulheres o tempo que será fixado pelo órgão nacional de direção partidária,
observado o mínimo de 10% (dez por cento) do programa e das inserções a que se
refere o art. 49.

A reforma eleitoral passou a instituir novas disposições, privilegiando a difusão e


promoção de uma maior participação feminina no cenário político brasileiro, determinando
que recursos do fundo partidário fossem utilizados para manutenção de programas de
inclusão do feminino.
A legislação determina, expressamente, o mínimo de 10% do tempo de propaganda
eleitoral partidária, com o objetivo de incentivar a participação feminina na política, bem
como a destinação de 5% do Fundo Partidário para criação e manutenção de programas de
promoção e difusão da participação política das mulheres.
Entretanto, estamos diante de uma equidade de gênero formal, o que já é um grande
avanço nas ações afirmativas eleitorais para maior participação feminina na política
brasileira, mas as medidas não causaram o impacto esperado, pois a inexpressividade da
mulher na política brasileira ainda se faz presente. As cotas adotadas apresentam muitas
falhas para garantir a real participação feminina, já que essa se encontra estagnada se
analisarmos o banco de dados da Justiça Eleitoral: em 1990 as mulheres ocupavam 5% das
cadeiras no Parlamento, passando para 9,9% no ano de 2016.
Mas muitas barreiras devem ser superadas. Necessário destacar que muitas das
candidaturas femininas prestam-se somente para o preenchimento formal de vaga. O cenário
brasileiro precisa ser reinventado. De acordo com o TSE, nas eleições municipais de 2016,
14.417 mulheres foram registradas como candidatas, mas não receberam um único voto,
esvaziando o sentido da política de cotas.
Diante disso, o TSE, a partir do julgamento do Recurso Especial Eleitoral nº 14-9/PI,
consolidou seu entendimento no sentido de que candidatas que lançarem sua candidatura
com a finalidade exclusiva de preencher as cotas eleitorais estarão incidindo em fraude
eleitoral.

4 CAMINHOS PARA A MUDANÇA

A Constituição Federal de 1988 é marco histórico na luta pelo empoderamento


feminino e, consequentemente, na busca pela igualdade formal de gênero, através de seus
dispositivos antidiscriminatórios aptos a promover a igualdade.
215

Mesmo diante dos avanços de igualdade de gênero as mulheres ainda são a minoria
nos cargos políticos, assim como na participação de partidos políticos, apesar de
representarem mais da metade da população brasileira. É necessário que se reflita e se
observe a participação feminina nos diversos espaços de poder. Questiona-se como
transformar e superar essa realidade?
Hoje, passados mais de 80 (oitenta) anos em que as mulheres conquistaram seus
direitos políticos ainda tem participação inexpressiva na política, apesar de representarem
mais da metade do eleitorado. É incompreensível que se tenha maior população de gênero
feminino e não se tenha essa representação na política. As mulheres são a maioria na base,
porém a minoria no topo.
A democracia exige um grau de correspondência entre a constituição social e a
composição do corpo legislativo, e atualmente existe uma diferença muito grande entre nossa
representação e o corpo social, o que consequentemente resulta em uma democracia débil e
um sistema (não) representativo.
As cotas de candidaturas são uma importante ferramenta de incentivo à participação
política das mulheres, historicamente afastadas dos pleitos eleitorais, mas ainda são
insuficientes.
Ademais, nenhum dos sexos pode dispor mais de 70% (setenta por cento) das
candidaturas partidárias, entende-se, portanto, que, em regra, no mínimo 30% (trinta por
cento) das vagas deveriam ser preenchidas por mulheres, mas a realidade é bem distante
desse percentual. A representação feminina não vem refletindo minimamente o papel da
mulher na sociedade. As políticas de incentivo atuais são insuficientes para o rompimento
desse bloqueio de participação.
As legendas cumprem a determinação estabelecida em lei, mas apenas de maneira
formal. Na convenção escolhem-se verdadeiras laranjas com o intuito de atender a lei, e não
candidatas que não vão realmente figurar. Não basta a indicação de candidatas mulheres,
mas sim assegurar condições básicas pra que elas realmente possam disputar o espaço na
representação política. De acordo com informações do Tribunal Superior Eleitoral:

Os incisos IV e V não têm servido ao propósito de incentivar uma maior


participação das mulheres na política do país, ao passo que não são cumpridos pela
maioria dos partidos.
O não cumprimento da lei ocorre em grande parte pela falta de sanções legais mais
rígidas. Tal realidade representa um enorme prejuízo, pois atrasa ainda mais a
busca de equidade de gênero na representatividade política do Brasil (BRASIL,
2015, p. 44).
216

O empoderamento feminino representa uma das principais faces nesse milênio, e o


amadurecimento da mulher na política terá influências e reflexos nessa conquista. Ademais,
o que impede e cria obstáculos na participação feminina na política? Por que tão poucas
mulheres se elegem? O que falta para que o Poder Legislativo seja um retrato da população
brasileira? O que impede que a mulher chegue aos postos de comando?
Inicialmente, é preciso uma mudança de mentalidade política:

Está no senso comum que a pequena presença da mulher na política e nos


parlamentos deve-se ao “desinteresse delas” ou que não são “vocacionadas” para
a política, além do fato de que “mulher não vota em mulher”. São comuns também
entre as direções partidárias, majoritariamente masculinas, os relatos das
dificuldades em recrutar mulheres para compor as chapas de candidaturas nas
eleições proporcionais. (BRASIL, 2015, p.47)

E isso se confirma por meio dos dados trazidos pela Procuradoria Especial da Mulher,
quando questionadas sobre a mulher não votar em mulher, 83% (oitenta e três por cento)
responderam que a questão de gênero não faz diferença, 79% (setenta e nove por cento)
responderam já ter votado alguma vez em mulheres. Quando questionadas sobre por que não
se candidatam, 41% (quarenta e um por cento) responderam que o motivo é a falta de apoio
dentro dos partidos, 23% (vinte e três por cento) responderam que não têm interesse pela
política, 19% (dezenove por cento) expressaram a dificuldade de concorrer com homens. A
falta de apoio da família e tarefas domésticas são pouco citadas, ficando apenas com 6%
(seis por cento) e 5% (cinco por cento), respectivamente.
As razões que explicam a ausência da figura feminina na política são baseadas em
estereótipos sexistas e machistas, consequência de séculos de discriminação em relação ao
gênero feminino, percebe-se que as mulheres são discriminadas pelos próprios partidos.
O direito ao voto foi conquistado, mas ainda existe uma distância muito grande na
participação feminina na política brasileira, e esse problema está longe de ser superado.
Importante destacar algumas questões que impedem e limitam a participação feminina na
política brasileira trazidas pela pesquisa Procuradoria Especial da Mulher:
Quanto à situação da mulher na sociedade:
- A elevada carga de trabalho, com a tripla jornada;
- O caráter machista da sociedade;
- O domínio masculino dos partidos políticos.
Quanto às leis afirmativas:
- A ineficiência dentro do atual sistema brasileiro de cota nas listas de
candidaturas;
- A baixa alocação de recursos nas campanhas das mulheres.
- A falta de punição aos partidos que não cumprem a legislação.
- A falta de formação e de campanhas de conscientização. (BRASIL, 2015, p.48)
(grifo nosso).
217

Nas últimas décadas, as mulheres adquiriram o direito de votar e de serem votadas,


sendo capazes de exercer a sua cidadania, passando a ocupar lugares públicos, não ficando
restritas à atuação no ambiente doméstico.
A reforma política é indiscutível, um importante instrumento para um verdadeiro
Estado democrático, de inclusão, e que amplie possibilidades da participação feminina nos
espaços públicos. Mas além de mudanças legais, precisamos de mudanças culturais, pois é
somente através de uma nova cultura que pode se alterar outra (cultura).

CONCLUSÃO

O presente trabalho buscou analisar a trajetória histórica da mulher, saindo do espaço


privado, e participando do espaço público, bem como a importância que o movimento
feminista teve na busca pela igualdade, não só formal como também substancial, entre os
gêneros.
Objetivou analisar as cotas de candidatura em razão do gênero. A participação
política feminina nos pleitos eleitorais é reduzida, e a atual legislação, embora seja um
grande avanço impulsionador da participação feminina nas instâncias de poder, ainda não
consegue resolver esse problema, mas serve como pontapé inicial.
Respondendo o problema que motivou a presente pesquisa, apesar das cotas estarem
em vigor desde 1995 a legislação tem se mostrado pouco eficiente, somado também a fatores
relacionados a falta de financiamento de campanha e, inegavelmente, ao estereótipo que
ainda é carregado pela mulher. Questões como a elevada carga de trabalho, como a tripla
jornada, o caráter – ainda, machista da sociedade e o domínio masculino dos partidos
políticos, são as razões que explicam a verdadeira ausência da figura feminina na política, e
não a falta de interesse - justificativa mais fácil de sua ausência, como o senso comum
acredita.
Além disso é necessário que se adote uma legislação mais eficiente, que proporcione
garantias reais no acesso de mais mulheres na política, até mesmo a substituição do modelo
adotado pelo brasil (tipo 2 do esquema de Dahlehup), substituindo cotas de registro por cotas
de assento (tipo 1). Garantindo assim maior representatividade no cenário político brasileiro.
A participação feminina precisa se tornar realidade.
218

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2016.
221

VI AS INCONSTITUCIONALIDADES
PRESENTES NO DIREITO PENAL
222

O ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL (ECI) E A FALÊNCIA DO


SISTEMA PENITENCIÁRIO BRASILEIRO

Juliana Beatriz de Paula141


Patricia Thomas Reusch142

RESUMO

O presente trabalho monográfico tem como objetivo analisar a aplicação do instituto do


Estado de Coisas Inconstitucional (ECI) na realidade do sistema penitenciário brasileiro pelo
Supremo Tribunal Federal, em sede da Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental (ADPF), nº 347. Objetiva-se, em linhas gerais, identificar, o que é e quais são
os pressupostos desse instituto e relacioná-lo ao sistema penitenciário brasileiro como sendo
uma nova ferramenta na tutela dos direitos fundamentais dos presos que cumprem penas de
prisão no país. Para tal fim, utilizaremos como metodologia, o método de abordagem
hipotético dedutivo, intermediado por instrumentos técnicos de pesquisa bibliográfica e
jurisprudencial. Além, da legislação constitucional e infraconstitucional pertinentes. Desta
forma, tem-se que a figura do estado de coisas inconstitucional pode ser empregada no
Brasil, a partir de uma leitura da realidade jurídica e institucional, para reconhecer e,
principalmente, trazer à luz o debate do atual e profundo menosprezo aos direitos
fundamentais da população carcerária brasileira. Eis que, pode ser uma importante
ferramenta para a superação de violações de direitos fundamentais.

Palavras – chaves: Estado de coisas inconstitucional. Direitos humanos. Jurisdição


constitucional. Sistema penitenciário brasileiro.

INTRODUÇÃO

O presente estudo terá como tema central, a análise do Estado de Coisas


Inconstitucional. A escolha desse tema justifica-se pela relevância do mesmo, bem como da
importância de trazer o debate para os bancos acadêmicos da Constituição Federal, como
sendo um dos pilares para a intervenção penal e para a efetiva garantia dos direitos
fundamentais nos presídios brasileiros.

141
Advogada. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional da Universidade de
Santa Cruz do Sul – UNISC, na linha de Pesquisa “Organizações, Mercado e Desenvolvimento”. Especialista
em Advocacia Criminal, pela Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC. Bacharel em Direito, pela
Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC. E-mail: juliana.dp.adv@gmail.com
142
Mestra em Direito pelo Programa de Pós-graduação Mestrado e Doutorado da Universidade Santa Cruz do
Sul - UNISC. Linha de pesquisa Políticas Públicas de Inclusão Social. Conceito Capes 5. Especialista em
Direito do Trabalho, Previdenciário e Processo do Trabalho - UNISC. Graduada em Direito UNISC. Endereço
de e-mail: patriciareusch@gmail.com
223

Objetiva-se, em linhas gerais, identificar, de forma sucinta, o que é e quais são os


pressupostos desse instituto e relacioná-lo ao sistema penitenciário brasileiro como sendo
uma nova ferramenta na tutela dos direitos fundamentais dos presos que cumprem penas de
prisão no país.
Considerando que em 2015, o Supremo Tribunal Federal (STF) declarou que o
sistema penitenciário brasileiro se encontrava em um estado de inconstitucionalidade, ou
seja, reconheceu que havia um persistente quadro de violações massivas e generalizadas de
direitos fundamentais dos detentos.
Nessa seara, reconhecida a vigência de um Estado de Coisas Inconstitucional (ECI),
causado pela inércia e pela incapacidade reiterada e persistente das autoridades públicas em
modificar a conjuntura do sistema penitenciário brasileiro, de que modo o Supremo Tribunal
Federal tem enfrentado esse instituto frente o quadro de descalabro que atinge os presídios
de todo país.
Desta forma, considerando essa problemática, o presente estudo visa, num primeiro
momento, identificar o modo pelo qual se desenvolve o controle jurisdicional da
constitucionalidade no Brasil. Sendo que em seguida, busca-se analisar em qual contexto
histórico está inserido o desenvolvimento da decisão de estado de coisas inconstitucional no
âmbito da Corte Constitucional da Colômbia relacionando-o com a falência do sistema
penitenciário brasileiro. Por fim, o presente artigo visa examinar o reconhecimento do estado
de coisas inconstitucional do sistema penitenciário brasileiro no bojo da Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n. 347 sob a ótica da proteção dos
direitos fundamentais.

1 CONTROLE JURISDICIONAL DA CONSTITUCIONALIDADE NO BRASIL E O


ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL

Antes de abordar o Estudo do Estado de Coisas Inconstitucional, faz-se necessário e


de suma importância contextualizar a proteção jurisdicional da Constituição Federal
Brasileira, que se realiza por meio de diversas espécies de controle de constitucionalidade,
no qual está inserido o recente debate do Estado de Coisas Inconstitucional.
Necessário compreender a equivalência da Constituição no ordenamento jurídico,
uma vez que, abarcada sob a inspiração dos princípios da supremacia e rigidez
224

constitucionais é lei maior no ordenamento, visando salvaguardar os direitos fundamentais


contra o Poder, o que ocorre pelo controle da constitucionalidade.
A Constituição Brasileira de 1988, não apenas expandiu o rol de legitimados para
ingressarem com as ações constitucionais, mas também trouxe diversos instrumentos para
assegurar esse controle, quais sejam: a ação direta de inconstitucionalidade (art. 102, I, a), a
ação declaratória de constitucionalidade (art. 102, I, a), a ação direta de inconstitucionalidade
por omissão (art. 103, § 2º) e arguição de descumprimento de preceito fundamental (art. 102,
§1º).
Frisa-se que, a Constituição Federal confere ao Poder Judiciário a tarefa de realizar
o controle da constitucionalidade. Ainda, o controle da constitucionalidade pode ser difuso
(ou jurisdição constitucional) ou concentrado (ou jurisdição constitucional concentrada), que
são os critérios reconhecidos pelos sistemas constitucionais.
O Brasil adota o sistema jurisdicional, no controle de constitucionalidade, vejamos,
Silva (2007, p. 99),
[...] o órgão encarregado de realizar o controle da constitucionalidade das leis e
dos atos normativos é o Poder Judiciário, ou seja, nos termos da Constituição
Federal brasileira, todos os juízes e tribunais são competentes para exercer o
controle da constitucionalidade, sendo que essa função, em última análise, é
realizada pelo Supremo Tribunal Federal. Por esse motivo, diz-se que, no Brasil o
controle da constitucionalidade é judicial.

Sendo assim, em linhas gerais, o controle judicial se dá com as ações constitucionais,


quais sejam: ação direta de inconstitucionalidade (ADI), ação declaratória de
constitucionalidade (ADC), ação direta de inconstitucionalidade por omissão (ADO) e
arguição de descumprimento de preceito fundamentais (ADPF). Entretanto, de suma
importância destacar que esses instrumentos também exercem o controle constitucional para
além das leis e atos normativos, como é o caso da ADPF, que será analisada no decorrer
deste estudo.
No Brasil, o controle abstrato surgiu com a Emenda Constitucional nº 16, de 6 de
dezembro de 1965, atribuindo ao Supremo Tribunal Federal a competência para processar e
julgar originariamente a representação de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo,
federal ou estadual, apresentada pelo procurador geral da república.
Nessa hipótese de controle abstrato, o Supremo Tribunal Federal (STF), recebe ações
específicas diretamente propostas por determinados legitimados, desembaraçando em tese,
o problema da inconstitucionalidade.
225

Note-se que a Constituição Federal de 1988, ao ampliar o rol de legitimados a vários


órgãos e autoridades (art. 103, Constituição Federal) para o exercício da ação direta, permite
assim, que praticamente, todas as controvérsias constitucionais relevantes sejam submetidas
diretamente ao STF de forma célere e inclusive com a possibilidade de suspender a norma
com medida cautelar. (BRUST, 2014)
Sendo assim, necessário se faz analisar as várias espécies de ações contempladas pela
Constituição Federal para o exercício do controle de constitucionalidade abstrato, quais
sejam: ação direta de inconstitucionalidade, ação declaratória de constitucionalidade, ação
direta de inconstitucionalidade por omissão e a ação de descumprimento de preceito
fundamental, que serão brevemente apresentadas a seguir.
Com a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), prevista no art. 102, inciso I,
alínea a, da Constituição Federal, podem ser impugnados, leis ou atos normativos (ou parte
deles), federais ou estaduais, por estarem em contrariedade com a Constituição.
Já a Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC), prevista na segunda parte do
já citado artigo, somente poderá versar sobre lei federal e tem por objetivo, confirmar a
constitucionalidade de uma lei federal.
Ainda, prevista no art. 103, parágrafo 2º, da Constituição Federal, a Ação Direta de
Inconstitucionalidade por Omissão (ADO), é a medida cabível para tornar efetiva uma norma
constitucional frente a omissão dos poderes ou de órgãos administrativos. Ou seja, será
ordenada ciência ao poder ou órgão competente para a adoção das providências necessárias.
No que tange ao estudo da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental
(ADPF), embora prevista no texto originário da Constituição de 1988, no art. 102, § 1º,
somente teve seu exercício viabilizado e concretizado com a Lei. 9.882, de 3/12/1999, que
regula tal dispositivo no ordenamento jurídico.
O art. 102, § 1º, da Constituição, prevê que, “a arguição de descumprimento de
preceito fundamental, decorrente desta Constituição, será apreciada pelo Supremo Tribunal
Federal, na forma da lei”.
Já a Lei 9.882/99, em seu art. 1º, caput, disciplina o processo e a competência desta
ação constitucional, vejamos,

[...] a arguição prevista no § 1o do art. 102 da Constituição Federal será proposta


perante o Supremo Tribunal Federal, e terá por objeto evitar ou reparar lesão a
preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público.
226

Sendo assim, o órgão competente para julgar a ADPF é o Supremo Tribunal Federal.
Entretanto, necessário salientar que, a legitimidade ativa para ingressar com ADPF é restrita
aos mesmos que podem propor ação direta de inconstitucionalidade, ou seja, os previstos no
art. 103 da Constituição Federal.
Nessa seara, nota-se que, a ADPF surge como forma de suprir a lacuna que havia
sido deixada na regulamentação do controle de constitucionalidade do direito pátrio, tendo
seu cabimento particularizado, na medida em que será empregada em caso de ameaça de
lesão ou lesão a preceito fundamental por órgão público ou quando for relevante o
fundamento da controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou
municipal.
Sendo assim, defendem a possibilidade de ajuizamento da ADPF, naquelas situações
caracterizadoras de descumprimento de normas materialmente constitucionais, ou seja,
aquelas normas que tratam da estrutura do Estado, das relações de poder, dos direitos e
garantias fundamentais do ser humano. (MENDES; STRECK, 2013)
Destaca-se que esse viés, trazido pelo instrumento da Arguição de Descumprimento
de Preceito Fundamental, leia-se APDF, engloba o desenvolvimento do presente estudo.

2 O ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL (ECI) E A FALÊNCIA DO


SISTEMA PENITENCIÁRIO BRASILEIRO

Analisar-se-á o Estado de Coisas Inconstitucional, técnica decisória desenvolvida pela


Corte Constitucional da Colômbia, em meados de 1997, que visa enfrentar situações de
violações graves e sistemáticas dos direitos fundamentais relacionando-o com o sistema
penitenciário do brasileiro, suas origens e como se apresenta na atualidade.

2.1 O estado de coisas inconstitucional

Incialmente, cabe ressaltar que o instituo chamado Estado de Coisas Inconstitucional


– ECI, é um novo conceito no ordenamento jurídico, teve origem na Corte Constitucional
Colombiana, no caso SU-559, em 6 de novembro de 1997.
227

Nesse sentido, surge de acordo com Júnior, 2015,

diante da constatação de violações generalizadas, contínuas e sistemáticas de


direitos fundamentais. Tem por finalidade a construção de soluções estruturais
voltadas à superação desse lamentável quadro de violação massiva de direitos das
populações vulneráveis em face das omissões do poder público.

Vejamos, Sentença SU-559. Disponível em:


<http://www.corteconstitucional.gov.co/relatoria/1997/SU559-97.htm>,

la Corte Constitucional tiene el deber de colaborar de manera armónica con los


restantes órganos del Estado para la realización de sus fines. Del mismo modo que
debe comunicarse a la autoridad competente la noticia relativa a la comisión de un
delito, no se ve por qué deba omitirse la notificación de que un determinado estado
de cosas resulta violatorio de la Constitución Política. El deber de colaboración se
torna imperativo si el remedio administrativo oportuno puede evitar la excesiva
utilización de la acción de tutela. Los recursos con que cuenta la administración
de justicia son escasos. Si instar al cumplimiento diligente de las obligaciones
constitucionales que pesan sobre una determinada autoridad contribuye a reducir
el número de causas constitucionales, que de otro modo inexorablemente se
presentarían, dicha acción se erige también em medio legítimo a través del cual la
Corte realiza su función de guardiana de la integridad de la Constitución y de la
efectividad de sus mandatos. Si el estado de cosas que como tal no se compadece
con la Constitución Política, tiene relación directa con la violación de derechos
fundamentales, verificada en un proceso de tutela por parte de la Corte
Constitucional, a la notificación de la regularidad existente podrá acompañarse un
requerimiento específico o genérico dirigido a las autoridades en el sentido de
realizar una acción o de abstenerse de hacerlo. En este evento, cabe entender que
la notificación y el requerimiento conforman el repertorio de órdenes que puede
librar la Corte, en sede de revisión, con el objeto de restablecer el orden
fundamental quebrantado. La circunstancia de que el estado de cosas no solamente
sirva de soporte causal de la lesión iusfundamental examinada, sino que, además,
lo sea en relación con situaciones semejantes, no puede restringir el alcance del
requerimiento que se formule.

Nessa oportunidade, a Corte Constitucional Colombiana, baseou o Estado de Coisas


Inconstitucional no dever institucional de colaboração entre os poderes do Estado. A referida
Corte notifica as demais autoridades públicas da existência de uma situação que viola a
Constituição, com o objetivo de evitar a judicialização de outras situações semelhantes.
Frisa-se que, entre os fatores considerados pelo tribunal para definir a existência do
estado de coisas inconstitucional, de acordo com CAMPOS, 2015,
(https://www.conjur.com.br/2015-set-01/carlos-campos-estado-coisas-inconstitucional-
litigio-estrutural)

[...] a constatação de um quadro não simplesmente de proteção deficiente, e sim


de violação massiva, generalizada e sistemática de direitos fundamentais, que afeta
a um número amplo de pessoas;
a falta de coordenação entre medidas legislativas, administrativas, orçamentárias
e até judiciais, verdadeira “falha estatal estrutural”, que gera tanto a violação
sistemática dos direitos, quanto a perpetuação e agravamento da situação;
228

a superação dessas violações de direitos exige a expedição de remédios e ordens


dirigidas não apenas a um órgão, e sim a uma pluralidade destes — são necessárias
mudanças estruturais, novas políticas públicas ou o ajuste das existentes, alocação
de recursos etc.

Observando tais fatores, a referida Corte reconhece o estado de coisas


inconstitucional e impõe aos demais poderes do Estado e entidades estatais a adoção de
providências no sentido de superar a violação massiva de direitos fundamentais.
Como bem destaca Garavito; Franco, (2010, p. 15-16),

[...] essas decisões podem ser classificadas como litígio estrutural ou casos
estruturais, os quais se caracterizam por: a) afetar uma ampla quantidade de
pessoas; b) envolver várias entidades estatais responsáveis por falhas sistemáticas
nas políticas públicas adotadas; c) implicar ordens de execução complexas,
mediante as quais o magistrado impõe a adoção de medidas coordenadas para
tutelar toda a população afetada, não só os demandantes do caso concreto.

Tem-se que o Estado de Coisas Inconstitucional, tende nada menos, que a construção
de soluções estruturais voltadas à superação desse lamentável quadro de violação massiva
de direitos das populações vulneráveis em face das omissões e negligências do poder
público.
Embora suas raízes estejam na Colômbia, o referido Instituto já alcança outros países,
como Peru e Brasil.
No Brasil, o debate sobre o estado de coisas inconstitucional chegou no Supremo
Tribunal Federal com o ajuizamento da Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental - ADPF n. 347, pelo Partido Socialismo e Liberdade - PSOL, concernente ao
sistema penitenciário brasileiro, tema que será abordado no terceiro capítulo do presente
trabalho.

2.2 O sistema penitenciário brasileiro

O direito de punir do estado emanou da vida comunitária. Pois para que a paz e o
interesse da maioria fossem preservados criaram-se as regras comuns de convivência e a
consequente punição ao agente que contrariava essas regras, ou seja, o infrator.
Neste momento, o presente estudo visa abordar o sistema prisional brasileiro, em seu
contexto histórico, para em seguida analisarmos os diversos entraves, que dificultam a
eficácia do mesmo. Salienta-se que o conceito de pena, assim como sua finalidade foi uma
preocupação constante na história e evolução direito penal.
229

De acordo com Dullius; Hartmann (2011, p. 03),

[...] o modelo penitenciário Brasileiro foi construído para servir aos senhores, em
tempos de revolução, império e ditadura, onde o pensamento acerca de pessoa
presa era completamente diferente dos vivido atualmente, pois o país nunca tinha
vivido nenhum momento de democracia tão longo, o que sem dúvida, influi na
administração pública, e esta, por sua vez, age diretamente na administração
carcerária.

Aliás, importante destacar que o Brasil, até 1830, não tinha um Código Penal próprio,
eis que, por ser ainda uma colônia portuguesa, submetia-se às Ordenações Filipinas, que em
seu livro V trazia o rol de crimes e penas que seriam aplicados no Brasil.
A pena de Prisão foi instituída no Brasil, em 1830, com o Código Criminal do
Império, que traz a previsão de duas modalidades de prisão: prisão simples e prisão com
trabalho, esta poderia ser perpétua inclusive.
Segundo Assis, (2007, p.01),

[...] este estatuto já trazia consigo idéias de justiça e de equidade, influenciado


pelas idéias liberais que inspiraram as leis penais européias e dos Estados Unidos,
objeto das novas correntes de pensamento e das novas escolas penais.

Cabe ressaltar que, o referido código não determinou nenhum sistema penitenciário
específico, deixando livre a definição do sistema e do regulamento a ser seguido a cargo dos
governos provinciais.
Destaca-se que, as prisões brasileiras já apresentavam problemas relacionados a
precariedade e falta de estrutura. Após muitas discussões, com a construção das casas de
correção no Rio de Janeiro e em São Paulo, em meados de 1850, ocorrem as primeiras
mudanças no sistema penitenciário brasileiro com a introdução de oficinas de trabalho,
pátios e celas individuais, por conta da implantação de modelos estrangeiros como o Sistema
da Filadélfia e o de Auburn.
De acordo com Assis, (2007, p. 01),

[...] as leis penais sofreram sensíveis mudanças ao final do século XIX em razão
da Abolição da Escravatura e da Proclamação da República. O Código Penal da
República, de 1890, já previa diversas modalidades de prisão, como a prisão
celular, a reclusão, a prisão com trabalho forçado e a prisão disciplinar, sendo que
cada modalidade era cumprida em estabelecimento penal específico. Já no início
do século XX, a prisões brasileiras já apresentavam precariedade de condições,
superlotação e o problema da não-separação entre presos condenados e aqueles
que eram mantidos sob custódia durante a instrução criminal.

Como podemos analisar ao longo da história no Brasil, a tentativa de compor um


código que regule as normas relativas ao direito penitenciário no Brasil vem de longa data.
230

Em 1940, é publicado através de Decreto-lei o atual Código Penal, o qual trazia várias
inovações e tinha por princípio a moderação por parte do poder punitivo do Estado.
No que tange ao conjunto de leis relacionadas à Execução Penal, embora a matéria
estivesse disposta dentro do Código Criminal do Império, somente em 1941, com o
surgimento do Livro IV, do Código de Processo Penal (Dec. Lei 3.689 de 03.10.1941), pela
primeira vez na legislação brasileira passou-se a disciplinar a execução da pena e da medida
de segurança, entrando em vigor junto com o Código Penal, em 01 de janeiro do ano de
1942. (FRANCO; COULTER, 2006)
Entretanto, por adotar um sistema de penas que contrariava a Constituição de 1946,
o Código Penal de 1940, se manteve por doutrina e jurisprudência, até 1961, quando surge
um novo projeto coordenado por Nelson Hungria. Após um controvertido trâmite, chega-se
a um novo Código Penal, sancionado pelo governo militar, em 1969.
Em 1977, retomou-se a iniciativa de reforma dos Códigos (Penal, Processual e
Execução Penal) e somente, em 1983 é aprovado o projeto de lei do Ministro da Justiça,
Ibrahim Abi Hackel, o qual se converteu na Lei nº 7.210, de 11 de Julho de 1984, a atual e
vigente Lei de Execução Penal.
A lei de execução penal brasileira é tida como sendo de vanguarda, e seu espírito
filosófico se baseia na efetivação da execução penal como sendo uma forma de preservação
dos bens jurídicos e de reincorporação do homem que praticou um delito à comunidade.
Nesse sentido, para Franco; Coulter, (2006, p. 02) a referida lei surge como,

[...] resposta aos reclamos de quase a totalidade da comunidade jurídica nacional,


pela revogação da Lei 3.274/1957 e a consolidação de uma execução penal
jurisdicionalizada, mais humana, responsável e alinhada com o Estado de Direito,
com viés abertamente voltado à finalidade de prevenção especial positiva e
a harmônica integração social do condenado e do internado, como preconiza seu
artigo inaugural.

Como podemos observar em nosso ordenamento jurídico, a Lei de Execução Penal é


moderna e de acordo com a filosofia ressocializadora da pena privativa de liberdade, porém
o grande problema enfrentado na atualidade é a falta de efetividade no cumprimento e na
aplicação da Lei de Execução Penal.
O que verificamos é um sistema penitenciário falido e ineficaz, que não assegura as
garantias fundamentais e que está muito distante da filosofia de ressocialização do indivíduo,
assunto que será abordado no próximo tópico dentro deste estudo.
231

Atualmente há um grande questionamento em torno da pena privativa de liberdade,


uma vez que não há a realização do seu objetivo maior, pois o atual sistema penitenciário
tem falhado na ressocialização do apenado
Como se extrai das palavras de Bitencourt (2004, p. 471), citado por Neto, (2012, p.
04)
[...] atualmente predomina uma atitude pessimista, que já não tem muitas
esperanças sobre os resultados que se possa conseguir com a prisão tradicional. A
crítica tem sido tão persistente que se pode afirmar, sem exagero, que a prisão está
em crise. Essa crise abrange também o objetivo ressocializador da pena privativa
de liberdade, visto que grande parte das críticas e questionamentos que se fazem à
prisão refere-se à impossibilidade – absoluta ou relativa – de obter algum efeito
positivo sobre o apenado.

Desta forma, importa analisarmos essa crise na eficácia do sistema de aplicação da


pena de prisão, no Brasil, uma vez que a finalidade de um sistema penitenciário é possibilitar
o cumprimento da pena, objetivando a ressocialização dos indivíduos.
Entretanto, o que ocorre efetivamente com os presos brasileiros é o inverso, a prisão
deixou de ser uma medida de ressocialização para ser um ambiente de torturas, tratamentos
desumanos e desprezando os direitos básicos. Para Teixeira, (2016, p. 04), “a ressocialização
do indivíduo pode ser declarada como algo utópico na conjectura atual dos presídios
nacionais”.
Desta forma, a realidade do sistema penitenciário do Brasil é de extrema
preocupação, uma vez que os presídios e penitenciárias, abarrotados, recebem diariamente
novos indiciados, processados ou condenados, sem que se tenha a mínima estrutura para
recebê-los e há, ainda, milhares de mandados de prisão a serem cumpridos.
Nesse sentido, a precariedade dos recursos, a superlotação dos presídios, e a
insuficiência de investimentos no sistema carcerário não contribuem para ressocialização
dos presos, pois dentro das penitenciárias eles ficam revoltados com a vida que levam e
quando retornam à vida social, acabam que voltam a cometer crimes novamente.
Portanto, ao invés de estabelecimentos voltados à ressocialização do homem, temos,
ao contrário, fábricas de criminosos, de revoltados, desiludidos e desesperados. (TEIXEIRA,
2016)
Nesse viés, destaca Teixeira, (2016, p. 05),

[...] a reintegração do egresso à sociedade liberta é o verdadeiro fim da pretensão


punitiva estatal. O grande contrassenso desta finalidade está nos meios
empregados para atingir tal propósito. Não se pode almejar reeducar um indivíduo
que comete um delito com condições desumanas de sobrevivência.
232

Nesse ambiente superlotado e de respeito aos direitos dos presidiários a aplicação da


atual Lei de Execução Penal se torna quase impossível, pois difere e muito da realidade.
Como exemplo, podemos citar o artigo 88 da referida lei, que traz uma utopia frente o atual
sistema prisional, vejamos,

Art. 88. O condenado será alojado em cela individual que conterá dormitório,
aparelho sanitário e lavatório.
Parágrafo único. São requisitos básicos da unidade celular:
a) salubridade do ambiente pela concorrência dos fatores de aeração, insolação e
condicionamento térmico adequado à existência humana;
b) área mínima de 6,00m2 (seis metros quadrados).

Importante ressaltar que o atual sistema penitenciário, não atende as expectativas da


sociedade e muito menos da legislação em vigor, uma vez que apresenta características
desagradáveis, desumanas e eliminam o convívio social, fatores estes que acabam por
prejudicar o principal objetivo das prisões, que seriam a reinserção dos indivíduos que de
alguma forma infringiram a norma e reinseri-los na sociedade da qual pertenciam.
Nesse sentido, cabe ressaltar os dados trazidos pelo Departamento Penitenciário
Nacional – DEPEN, do Ministério da Justiça e Segurança, no levantamento Nacional de
Informações Penitenciárias, publicado no final do ano de 2017, INFOPEN, (2017, p. 08),

[...] em Junho de 2016, existiam 726.712 pessoas privadas de liberdade no Brasil,


sendo 689.510 pessoas que estão em estabelecimentos administrados pelas
Secretarias Estaduais de Administração Prisional e Justiça, o sistema penitenciário
estadual; 36.765 pessoas custodiadas em carceragens de delegacias ou outros
espaços de custódia administrados pelas Secretarias de Segurança Pública; e 437
pessoas que se encontram nas unidades do Sistema Penitenciário Federal,
administradas pelo Departamento Penitenciário Federal. Em relação ao número de
vagas, observamos um déficit total de 358.663 mil vagas e uma taxa de
ocupação10 média de 197,4% em todo o país, cenário também agravado em
relação ao último levantamento disponível.

Nessa seara, salienta-se que o Brasil está em terceiro lugar no ranking dos países que
mais prendem no mundo. Face os nossos três concorrentes diretos nesse pódio autoritário
(Estados Unidos, China e Rússia) somos o único país cuja população carcerária segue
aumentando. (LACERDA, 2017)
Para Lacerda, (2017, p. 01),

[...] a tendência autoritária no Brasil não se revela apenas nos números absolutos
que nos colocam em terceiro lugar no vergonhoso pódio dos países que mais
prendem no mundo. Sim, é assustador constatar que superamos a Rússia em mais
de cento e vinte mil presos. Também é assustador notar que, fosse o Estado de São
Paulo um país, ocuparia sozinho o sétimo lugar nesse ranking com seus mais de
duzentos e quarenta mil presidiários. Mas, acima de tudo, merece atenção o fato
de que seguimos aumentando nossa população carcerário enquanto nossos rivais
233

diretos nessa disputa sombria apresentaram queda no número total de prisioneiros.


Se Estados Unidos, Rússia e China diminuíram a população carcerária nos últimos
anos, o Brasil aumentou em mais de 40% sua população carcerária entre 2011 e
2016.

Assim, verifica-se que o Brasil convive com um total abandono do sistema prisional,
o que deveria ser um instrumento de ressocialização, muitas vezes, funciona como escola do
crime, devido à forma como é tratado pelo estado e pela sociedade. (DULLIUS;
HARTMANN, 2011)
Destarte, a atual estrutura penitenciária no Brasil, requer a tomada de melhorias de
um modo geral na assistência aos presos, para que seja possível a efetiva aplicação da Lei
de Execução Penal na sua amplitude, garantindo os direitos mais inerentes à condição
humana e possibilitando a verdadeira ressocialização do indivíduo.

3 A ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL


(ADPF) Nº 347 E A TUTELA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

Neste momento, o presente estudo analisa a Arguição de Descumprimento de


Preceito fundamental (ADPF) de forma detalhada com ênfase na decisão do Supremo
Tribunal Federal (STF) sobre a medida cautelar na ADPF 347, ajuizada pelo Partido
Socialismo e Liberdade (PSOL), visando o reconhecimento da violação de direitos
fundamentais da população carcerária brasileira.

3.1 A arguição de descumprimento de preceito fundamental

Incialmente, importante trazer à baila que a arguição de descumprimento de preceito


fundamental (ADPF) é uma garantia de origem constitucional, de natureza processual e está
prevista no art. 102, § 1º, da Constituição Federal de 1988, vejamos, “a arguição de
descumprimento de preceito fundamental, decorrente desta Constituição, será apreciada pelo
Supremo Tribunal Federal, na forma da lei”. Embora prevista na Constituição é
regulamentada pela Lei nº 9.882/1999, que estabelece suas regras procedimentais.
Logo, temos que a criação desse mecanismo específico de proteção a determinados
preceitos fundamentais, significa, sem dúvida, uma supervalorização de determinados
preceitos. Destarte, há um conjunto de preceitos integrantes da Constituição que merecem
uma máxima proteção, ou seja, um conjunto de normas constitucionais consideradas
essenciais, imprescindíveis à condição humana.
234

Nesse sentido, tal mecanismo veio completar o já complexo sistema de controle de


constitucionalidade brasileiro, configurando um importante instrumento de defesa dos
direitos fundamentais.

3.2 O supremo tribunal federal e a arguição de descumprimento de preceito


fundamental nº. 347

Inicialmente, necessário esclarecer que a Arguição de Descumprimento de Preceito


Fundamental, nº. 347, foi ajuizada, em maio de 2015, pelo Partido Socialista e Liberdade
(PSOL), no Supremo Tribunal Federal, objetivando o reconhecimento do estado de coisas
inconstitucional, instituto oriundo da Corte Colombiana, como já estudado anteriormente,
pelo sistema penitenciário brasileiro
A referida arguição pedia ao Supremo que esse declarasse que a situação atual do
sistema penitenciário brasileiro violava preceitos fundamentais da Constituição Federal e,
em especial, direitos fundamentais dos presos. Desta forma, requerendo que a Corte
determinasse à União e aos Estados as providências necessárias para sanar as lesões aos
direitos dos presos, integrantes do sistema penitenciário brasileiro.
Nesse sentido, elucida Moreira, (2015, p. 01),

[...] segundo o Partido Político, a Ação Constitucional é o instrumento mais


adequado para este fim, na medida em que não faltam normas jurídicas garantindo
o respeito aos direitos humanos dos presos, mas sim “vontade política” para
implementá-las: “Não há cenário fático mais incompatível com a Constituição do
que o sistema prisional brasileiro. O problema é sistêmico e decorre de uma
multiplicidade de atos comissivos e omissivos dos Poderes Públicos da União, dos
estados e do Distrito Federal. A gravidade do quadro e a inapetência dos poderes
políticos, da burocracia estatal e das demais instâncias jurisdicionais para enfrentá-
lo evidenciam a necessidade de intervenção do STF”.

De acordo com Deprá; Valler, (2015, p. 07),

[...] muito embora já esteja consolidado o entendimento no seio da Corte de que


seja possível ao Poder Judiciário determinar a implementação de políticas públicas
quando inertes os demais poderes – o que não se confunde com a tese da corte
colombiana, frise-se, dado o próprio caráter dialógico e coordenado da intervenção
ocorrida na última -, somente no ano de 2015 o Supremo Tribunal Federal se viu
convocado a enfrentar a matéria atinente à possibilidade de incorporação da tese
do Estado de Coisas Inconstitucional à jurisdição constitucional brasileira, por
intermédio do ajuizamento da Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental nº. 347.

Assim, o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), embasando-se na tese do Estado


de Coisas Inconstitucional, provocou o Supremo Tribunal Federal a reagir diante da
235

calamitosa, indigna, desumana e cruel situação do atual sistema penitenciário, visando a


declaração de um Estado de Coisas Inconstitucional do sistema carcerário brasileiro.
Nesse sentido, uma vez exposta a violação em massa dos direitos humanos das
pessoas que ocupam os presídios brasileiros, enfatiza Deprá; Valler, (2015, p. 07),

[...] foram indicados os atos lesivos a preceitos fundamentais perpetrados pelo


próprio Poder Público – tanto comissivos, quanto omissivos – que
contribuem(iram) para o agravamento da dramática situação carcerária no País.
Expuseram na inicial que recaía sobre os três Poderes as respectivas parcelas de
responsabilidade.

Considerando os pedidos trazidos na inicial da ADPF, nº 347, cumpre destacar que


além da declaração do Estado de Coisas Inconstitucional do sistema penitenciário brasileiro,
peticionavam para que fosse postulado à União e aos Estados e Distrito Federal a
apresentação de planos estruturais para a superação desse quadro de violação massiva de
direitos fundamentais.
Ainda, a realização desses planos a serem adotados deverá passar pelo crivo do
Supremo Tribunal Federal que deverá homologar ou impor medidas alternativas para o
enfrentamento e resolução do Estado de Coisas Inconstitucional.
Nesse viés, embora a referida arguição, ainda não tenha uma decisão definitiva, pois
encontra-se aguardando julgamento final, sublinhe-se que, o Supremo Tribunal Federal, na
sessão plenária de 09 de setembro de 2015, deferiu parcialmente o pedido de medidas
cautelares formulado na ADPF nº. 347, proposta em face da crise do sistema carcerário
brasileiro, reconheceu a existência da violação massiva dos direitos fundamentais dos
presidiários que se encontram recolhidos nas masmorras do sistema penitenciário brasileiro.
(BRASIL, 2015)
No dizer de Deprá; Valler, (2015, p. 07), o STF reconheceu a existência do estado
inconstitucional, “não ficando adstrito, porém, à apreciação da tese do estado
inconstitucional de coisas: foi além, analisou o próprio papel do Supremo Tribunal Federal
em situações de elevada inconstitucionalidade”.
Nesse sentido, ao deferir parcialmente a liminar, o Supremo Tribunal Federal,
conforme elucida Júnior, (2015, p. 02),

[...] (a) proibiu o Poder Executivo de contingenciar os valores disponíveis no


Fundo Penitenciário Nacional – FUNPEN. A decisão determinou que a
União libere o saldo acumulado do Fundo Penitenciário Nacional para
utilização com a finalidade para a qual foi criado, abstendo-se de realizar novos
contingenciamentos; e
236

(b) determinou aos Juízes e Tribunais que passem a realizar audiências de custódia
para viabilizar o comparecimento do preso perante a autoridade judiciária, num
prazo de até 24 horas do momento da prisão.

Destarte, nesse contexto, Campos, (2015, p. 02), assinala que,

[...] quando declara o Estado de Coisas Inconstitucional, a corte afirma existir


quadro insuportável de violação massiva de direitos fundamentais, decorrente de
atos comissivos e omissivos praticados por diferentes autoridades públicas,
agravado pela inércia continuada dessas mesmas autoridades, de modo que apenas
transformações estruturais da atuação do Poder Público podem modificar a
situação inconstitucional. Ante a gravidade excepcional do quadro, a corte se
afirma legitimada a interferir na formulação e implementação de políticas públicas
e em alocações de recursos orçamentários e a coordenar as medidas concretas
necessárias para superação do estado de inconstitucionalidades.

Destarte, embora a ADPF, nº. 347 esteja pendente de uma decisão definitiva, pois
encontra-se aguardando julgamento no Supremo Tribunal Federal, considerando os
fundamentos analisados até o momento, pode-se delinear os caminhos a serem traçados pela
corte para o efetivo enfrentamento da matéria, abarcando, inclusive a adoção da tese do
Estado de Coisas Inconstitucional da Corte Colombiana.
Ao analisarmos o voto do relator da ADPF nº. 347, ministro Marco Aurélio, nota-se
a clara opção pela via dialógica do instituto, propondo que o STF interfira na formulação e
implementação de políticas públicas e em escolhas orçamentárias, mas mediante ordens
flexíveis seguidas de monitoramento da execução das medidas. Entende-se com a decisão
da corte que procurou-se manter o equilíbrio institucional, ou seja, os fundamentos da
decisão colocam direcionam o tribunal para o caminho da interação institucional em torno
de um objetivo comum, a garantia dos direitos fundamentais. (Brasil, 2015)

3.3 A tutela dos direitos fundamentais no atual sistema penitenciário brasileiro

Destaca-se que, diante das condições degradantes da vida dos presos nas
penitenciárias brasileiras, a efetivação dos direitos humanos torna-se uma verdadeira utopia.
Cabe ressaltar que as condições degradantes, a superlotação, a falta de vagas, as
estruturas, faz com que os apenados vivam sem o mínimo de dignidade humana, o que torna
o ambiente carcerário um verdadeiro cenário de horrores.
Nessa seara, o atual sistema penitenciário brasileiro não passa de uma verdadeira
escola superior do crime, sendo que ao submeter os presidiários a situações que ferem a
237

dignidade humana, faz com que esses indivíduos se revoltem ainda mais com suas
realidades.
Desta feita, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a Lei de Execução Penal
e a Constituição Federal trazem normas em que estabelecem os traços ideais das
penitenciárias, mas de um modo geral contradiz com a realidade encontrada nas cadeias
brasileiras. Conforme assevera Assis, (2007, p. 03),

[...] nosso estatuto executivo-penal é tido como um dos mais avançados e


democráticos existentes. Ela se baseia na ideia de que a execução da pena privativa
de liberdade deve ter por base o princípio da humanidade, sendo que qualquer
modalidade de punição desnecessária, cruel ou degradante será de natureza
desumana e contrária ao princípio da legalidade. No entanto, o que tem ocorrido
na prática é a constante violação dos direitos e a total inobservância das garantias
legais previstas na execução das penas privativas de liberdade.

Nesse sentido, esse ambiente nocivo e degradante das prisões também se caracteriza
pela incidência de agressões físicas, psicológicas e morais sofridas pelos presos no ambiente
prisional, que partem principalmente da própria classe pública, que corrompidos em um
sistema de interesses, tratam os condenados como indivíduos inferiorizados que devem
respeitar a lei dos mais fortes nas penitenciárias e se moldarem para sobreviver.
Desta forma, por todo o exposto, embora tenhamos uma legislação pertinente sobre
a tutela dos direitos fundamentais no sistema penitenciário brasileiro, o que se encontra é
outra realidade, em que a segurança pessoal não é garantida e os direitos fundamentais da
pessoa humana são massivamente violados por aquele que deveria ser o maior garantidor, o
Estado.

CONCLUSÃO

O presente artigo apresentou o instituto do Estado de Coisas Inconstitucional, novo


conceito no ordenamento jurídico, de origem Colombiana, frente o estudo da Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental, nº 347 e a falência do atual sistema penitenciário
brasileiro.
Pôde-se analisar, seu conceito e sua evolução no contexto da Corte Constitucional da
Colômbia, bem como a possibilidade de sua aplicação pelo Supremo Tribunal Federal, na
ADPF n. 374, e as objeções levantadas em face de seu reconhecimento e da atuação da
238

jurisdição constitucional em litígios denominados estruturais, em virtude das massivas


violações de direitos humanos.
Nesse sentido, verificou-se que o reconhecimento da existência de um Estado de
Coisas Inconstitucional, pelo Supremo Tribunal Federal, em 2015, foi de suma importância,
uma vez que esse declarou que o sistema penitenciário brasileiro diante das persistentes e
reiteradas violações, massivas e generalizadas, de direitos fundamentais dos detentos se
encontrava em um estado de inconstitucionalidades.
Desta forma, tal reconhecimento, contribuiu para que o instituto possa ser
considerado mais uma das ferramentas a serem utilizadas pela sociedade na provocação do
Tribunal Superior, para que se manifeste e atue efetivamente em situações violadoras de
direitos humanos.
Portanto, considerando o reconhecimento da vigência do Estado de Coisas
Inconstitucional (ECI) e atual conjuntura do sistema penitenciário brasileiro, o presente
estudo, procurou, num primeiro momento, analisar o modo pelo qual se desenvolve o
controle da constitucionalidade no Brasil, ou seja, como se dá a proteção da Constituição
Federal no ordenamento jurídico do país.
Nessa seara da proteção jurisdicional da Constituição Federal Brasileira, de 1988, o
estudo permitiu compreender a equivalência da Carta Magna no ordenamento e que a mesma
está abarcada sob a inspiração dos princípios da supremacia, da rigidez constitucional, da
imperatividade da norma constitucional, da máxima eficiência, bem como da unidade e força
normativa da Constituição.
O controle constitucional garante a norma constitucional como lei maior no
ordenamento jurídico, tendo como objetivo principal, a defesa e concretização dos direitos
dos direitos fundamentais do Poder.
Ademais, verificou-se que a jurisdição constitucional é ativada por meio de diversas
espécies de controle, que vão do controle abstrato ao concreto e do concentrado ao difuso,
legitimando assim, a atuação de um legítimo Estado Democrático de Direito.
Ainda, o presente estudo relacionou o Estado de Coisas Inconstitucional com a
falência do atual Sistema Penitenciário Brasileiro, uma vez que embora o tema seja
constantemente veiculado nos meios de comunicação, pouco se debate as graves violações
de direitos humanos decorrentes das falhas estruturais do sistema carcerário.
O debate sobre o atual estado de inconstitucionalidades, do sistema penitenciário no
Brasil, chegou no Supremo Tribunal por meio do ajuizamento da Arguição de
239

Descumprimento de Preceitos Fundamentais (ADPF), nº 347, pelo Partido Socialismo e


Liberdade – PSOL, objetivando a superação do complexo quadro de inconstitucionalidades
e massiva violação de direitos fundamentais daqueles que integram o falido sistema
penitenciário brasileiro.
Nesse sentido, infelizmente, ao se analisar o funcionamento e desenvolvimento do
sistema penitenciário, verificou-se que o infrator, as punições, e o conceito de pena, assim
como sua finalidade, foi uma constante preocupação na história e evolução do direito penal.
Embora, os conceitos de pena e o sistema penitenciário sofram um processo de
evolução simultaneamente às modificações das relações humanas, transformações sociais,
também sofrem a força política preponderante a época e espaço.
Analisou-se que, ao longo da história do país, sempre se buscou compor um código
que regule as normas sobre o direito penal e execução penal, entretanto, a situação prisional
sempre foi tratada com descaso pelo Poder Público.
Como pôde se observar, a Lei de Execução Penal é moderna, avançada e tida como
sendo de vanguarda, por sua essência estar embasada na efetivação da execução penal como
sendo uma forma de preservação dos bens jurídicos e de reincorporação do ser humano que
praticou um delito à sociedade.
Entretanto, o que se encontrou com a presente pesquisa, foi um sistema falido e
ineficaz, que não assegura as garantias fundamentais e que está muito distante da filosofia
de ressocialização e humanização da pena. O que temo, atualmente no país, são
estabelecimentos prisionais voltados a fabricar criminosos num ambiente superlotado e de
desrespeito aos direitos humanos e garantias fundamentais.
Portanto, com tudo, verificou-se que o Brasil convive com um total abandono do
sistema prisional, sendo que a atual estrutura penitenciária, requer a tomada urgente de
melhorias estruturais e assistenciais, para que seja possível a efetiva aplicação da Lei de
Execução Penal, garantindo assim, a realização dos direitos mais inerentes à condição
humana e possibilitando a verdade ressocialização do indivíduo.
Desta forma, verificou-se que a decisão do STF, reconhecendo o Estado de Coisas
Inconstitucional, se demonstra essencial para a superação do bloqueio institucional existente
na questão do sistema prisional brasileiro. Apesar de estar pendente de uma decisão final,
pois encontra-se aguardando julgamento, pelo STF, analisou-se que a ADPF, nº 347, por
meio do voto do relator em sede de medida cautelar, procurou manter o equilíbrio,
240

direcionando o tribunal para o caminho da interação institucional em torno do objetivo


maior, qual seja, a garantia dos direitos fundamentais.
Nesse sentido, verifica-se que a necessidade de uma atuação ativa da Corte
Constitucional, na tutela dos direitos fundamentais é essencial para a superação da violação
massiva e generalizada de direitos de presos brasileiros, sendo que o Supremo Tribunal
Federal, como guardião da Constituição, está numa posição mais apta a ouvir os reclamos
da sociedade de forma a garantir-lhes o mínimo existencial. No caso dos presos, a obrigação
estatal em garantir esses direitos fundamentais mínimos se caracteriza por uma especial
relação de sujeição entre Estado e detento, abarcada no inciso XLIX do art. 5º da
Constituição Federal, de 1988, “(...) é assegurado aos presos o respeito à integridade física e
moral”.
Desta forma, verificou-se que apesar de ser inequivocamente conhecido o caos do
sistema penitenciário do Brasil, inclusive pela Corte Interamericana de Direitos Humanos,
não há políticas públicas efetivas para a superação do problema e pelo fio do exposto, embora
tenhamos uma legislação pertinente sobre a tutela dos direitos humanos e das garantias
fundamentais, o que se encontrou foi um sistema penitenciário em colapso estrutural, falido,
onde os direitos humanos são massivamente violados, dilacerados pelo Estado, por aquele
que têm o dever institucional de proteção e que deveria ser o maior garantidor.

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