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x Liberalismo e catdstrofe do século XK 1, Luta pelo reconhecimento ¢ golpes de Estado: o conflito na metrépole A crise catastréfica que, a partir da eclosio da primeira guerra mundial, atinge a Europa ¢ todo o planeta, amadurece j4 no ambito do mundo libe- ral. Para dar-se conta disso, convém analisar a situag3o vigente na véspera de 1914. Vamos nos deter em primeiro lugar na metrépole. Nao ha dtividas: a luta pelo reconhecimento conseguiu importantes resultados. E verdade, es- tamos ainda muito longe da afirmagao generalizada do principio “uma cabe- a, um voto”, € no apenas porque do goz0 dos direitos politicos continuam a ser excluidas as mulheres. Persistem ainda marcas mais ou menos visiveis da discriminagio censitéria. O fato € que o suftagio nao € mais o privilégio exclusivo da riqueza; resulta também amplamente derrotada a tentativa de reintroduzir pela janela a discriminagao censitdria posta fora pela porta, me- diante a pratica do voto plural, a ser atribuido aos mais “inteligentes” (solu- do particularmente cara a John S. Mill!). Aqui ¢ acolé comegam a emergir 0s primeiros elementos de Estado social; ¢ ainda que se trate de resultados muito modestos, deve ser levada em considera¢ao a legalizagao das coalizdes operarias ¢ dos sindicatos, decididos a arrancar concessdes muito mais subs- tanciosas. Também nesse ambito, salta aos olhos o longo caminho percorri- do pelos ex-instrumentos de trabalho!" No entanto, precisa logo acrescentar que tem se tratado de um desenvol- vimento nada pacifico. Cada uma das etapas é caracterizada nao apenas por lutas agudas, mas também por lacerages profundas no ambito das fileiras liberais: se um setor est4 disposto a alguma concessio, 0 outro da prova de " A respeito cf. Losurdo, 1993, cap. 1, § 7 (em relagao 20 voto plural) e passim. 340 CONTRA-HISTORIA_ DO LIBERALISMO intransigéncia ¢ busca a prova da forga. Ao longo do tempo, assistimos assim a uma sucessio de golpes de Estado que, pelo menos antes de desaguar na instauragao de uma ditadura aberta, podem contar com 0 apoio ou a simpatia de expocntes renomados do mundo liberal. Tendo a participacdo ativa de Sieyes, 0 18 de Brumério de Napoledo suscita o “entusiasmo” de Madame de Staél, como resulta da carta que o pai lhe envia alguns dias depois: “Vocé me retrata com cores vivas a parte que est4 assumindo no poder ¢ na gloria do seu heréi”, Para a mudanca olha com confianga também Constant, que trin- ta anos depois vai lembrar que na véspera ficou em contatos cotidianos com Sieyés, “o verdadeiro autor do 18 de Brumério”, isto ¢, “o principal motor” das novidades que se desenhavam no horizonte’. Jé em 1795 Constant escla- recera que precisava ir além do Termidoro: a taxagio que continuava a pesar sobre a propriedade era excessiva, em vantagem dos pobres que jé se confi- guravam como “uma casta privilegiada™, Na realidade, naquele momento, conforme diversos testemunhos (inclusive o de Madame de Staél), 0 efeito conjunto de carestia ¢ inflago reduzia “a ultima classe da sociedade 4 con- digZo mais miseravel”, infligindo-lhe “males inauditos”’, até & “inanigio””. E, no entanto, para o liberalismo da época nao havia dividas: os perigos que a propriedade corria legitimavam o golpe de Estado. Apés a homenagem jé vista as “idéias conservadoras, liberais, tutelares”, nos dias imediatamente seguintes, 0 novo poder se apressa a cancelar qualquer sinal de imposto pro- gressivo. Em 24 de dezembro de 1799, no mesmo dia em que Bonaparte torna-se Primeiro Cénsul, Constant ingressa no Tribunato, mas para ele Ma- dame de Staél almeja uma carreira politica ainda mais ambiciosa, 4 sombra daquele - escreve Necker para a filha no final de 1800 - que promete ser “o protetor de toda a gente de bem””. O significado das esperancas iniciais ¢ das. sucessivas decepgdes dos ambientes liberais fica bem esclarecido por Guizot em 1869: ao cumprir a tarefa de “por fim a anarquia”, a “ditadura” de Na- poledo foi “natural, urgente”, até “salutar ¢ gloriosa”; contudo, ao contrario. das expectativas, “este regime acidental ¢ tempordrio” se transformou em “um sistema de governo dogmatico e permanente” . ? Necker, cit. in Guillemin, 1959, p. 7. + Constant, cit. in Guillemin, 1958, p. 249. * Constant, cit. in Guillemin, 1958, p. 76-77. § Statl-Holstein, 1983, p. 347. * Segundo o testemunho de J. Mallet Du Pan relatado em Guillemin, 198, p. 37. ” Guillemin, 1959, p. 8-19; 1958, p. 29, 63 nora. * Guizor, 1869, p. IIL IV. X. Liberalismo e catéstrofe do siculo XX a 341 Uma dialética nao diferente se manifesta apés 0 golpe de Estado de Luis Napoledo, saudado com “pressa indecorosa” — a expressio é de Marx - pela Inglaterra liberal’, Nao se trata de oportunismo: uma vez dissolvida a bené- fica “influéncia da tradicao” ~ escreve Disraeli em 1851 - 0 que impede a anarquia ¢ a dissolugao € o “governo da espada”. Sim, “o Estado abandona 0 Senado e busca abrigo no acampamento militar”; s6 assim € possivel evitar a catastrofe do dominio das “sociedades secretas” ¢ da “Convengio” de tipo jacobino"”. No tocante a Franca, deixando de lado uma personalidade como Gra- nier de Cassagnac, que se declara “liberal” e que se alinha abertamente com Luis Napoledo'', convém nos deter sobre a participagao de Tocqueville nas diferentes ctapas da reagao ideolégica ¢ politica que desemboca na des-legi- timacdo ¢ depois na derrubada da Segunda Repiiblica. Aos olhos do liberal francés, esta é 0 produto da revolucio, a de feverciro de 1848, que se desen- volveu em nome do socialismo ¢ portanto do despotismo e que transbordou em toda a Europa continental. Em relacio 4 Alemanha e & Itdlia, Tocqueville auspicia ¢ promove “a vitéria dos principios” (supra, cap. VIII, § 15). Mas, afinal, € muito diferente a atitude que cle assume em relagio & Franca? Jé em marco, bem antes da revolta operaria de junho, Tocqueville troveja contra “esta revolugao ultra-democritica, que estendeu o direito de sufrégio para além de todos os limites conhecidos até na América”. Enquanto se acu- mulam as nuvens que preanunciam a tempestade de junho, o liberal francés expressa a opinido pela qual “a Guarda nacional ¢ o exército desta vez vio agir sem piedade”, Para poder conseguir 0 objetivo da manutengio ou resta- belecimento da ordem ¢ da destruigo do “partido anérquico”, nio se deve hesitar a recrutar na Guarda Mével gente e gentalha sem escriipulos, isto é “proscritos”, “ladrdes”, “lazarones” ¢ toda a “escéria da sociedade”"’. Aqui € evocada com precisio a formula politico-social que depois preside o golpe de Estado de Luis Bonaparte, o qual alcanga 0 sucesso gracas ao apoio, além das classes proprietarias e dos tradicionais aparelhos de Estado, também de um subproletariado satisfeito em desempenhar a fungao esquadrista de inti- midagao que lhe € conferida. * Marx, Engels, 1955-89, vol. XVII, p. 278. ‘* Disraeli, 1852, p. 554-56 (cap. 27). "CF. Losurdo, 1993, cap. 2, § 1; cap. 3, § 1. ” Tocqueville, 1951, vol. VI, t. 2, p. 108 (carta a N. W. Senior, 8 de marco de 1849) Eo que resulta de uma conversacio de 25 de maio de 1848, transcrita por N. W. Senior: cf. Tocqueville, 1951, vol. VI, t. 2, p. 242-43, 342 CONTRA-HISTORIA DO LIBERALISMO Apés a eclosio da revolta operaria, Tocqueville no apenas é favordvel & transmissio dos poderes de estado de sitio a Cavaignac, mas recomenda fuzi- lar no lugar quem fosse surpreendido “em atitude de defesa”"*. A repressio sangrenta das jornadas de junho nio basta a acalmar a angustia; cis entio o apclo a uma “reacdo enérgica e definitiva a favor da ‘ordem”'®, chamada a acabar com 0 caos revolucionério ¢ anarquico nao apenas na Franga mas tam- bém no conjunto da Europa. Em todo caso, “a Franga pertence aquele que estabelecerdé a ordem”"* ¢ que pord fim 4s “loucuras de 1848”"”. Apés mais de um ano de distincia da desesperada revolta operaria, quando jé a impie- dosa repressio parece ter afastado para sempre o perigo jacobino e socialista, © liberal francés considera ainda necesséria a mio de ferro: precisa avangar “até a reagdo”; no podemos nos contentar com “paliativos”; para varrer ndo apenas a Montanha, mas também “todas as colinas em volta”, é preciso colo- car-se “corajosamente a frente de todos os que querem restabelecer a ordem, seja qual for sua matiz”; nao se deve sequer hesitar diante de “um remédio [...] herdico”". Indiretamente, aqui é sugerida a necessidade de medidas de exces’o com a suspensio das liberdades constitucionais. Se como historiador no cansa de condenar o Terror jacobino, como politico Tocqueville nao hesita em invocar o “terror” para destrogar “o partido demagégico” (supra, cap. VIII, § 15). Nesses anos, saltuariamente, algum arrepio percorre a auto- consciéncia liberal: talvez corram o risco de se difundir na Europa os méto- dos impiedosos aos quais ela recorre para subjugar os barbaros nas colénias. Embora manifestando o seu aplauso claro pela impiedosa energia com a qual € conduzida a conquista da Argélia, Tocqueville se deixa escapar uma excla- macio: “Deus nos preserve de ver a Franca conduzida por um dos oficiais do exército da Africa”. De fato, Cavaignac, o iniciador da “nova ciéncia” chamada a liquidar a qualquer custo a resisténcia dos 4rabes torna-se depois © protagonista da sangrenta ¢ impiedosa repressio que se abate sobre os barbaros da metrépole, os operérios parisienses que se levantam para reivin- dicar 0 direito ao trabalho ¢ a vida. Mas a ele, nao obstante o alerta anterior, Tocqueville fornece um apoio constante € sem vacilagées. Mais tarde, a partir da Comuna de Paris dissemina-se em todo o Oci- dente liberal a tendéncia a recolocar em discussio no apenas as concessdes “Tocqueville, 1951, vol. XII, p. 176. Tocqueville, 1951, vol. VIII, t. 2, p. 52 (carta a G. de Beaumont, 24 de setembro de 1848). Tocqueville, 1951, vol. VIII, t. 2, p. 31 (carta a G. de Beaumont, 27 de agosto de 1848). Tocqueville, 1951,vol. VIL, p. 143 (carta a F. Lieber, 4 de agosto de 1852). Tocqueville, 1951, vol. VIII, t. 2, p. 53 (carta a G. de Beaumont, 24 de setembro de 1848). "* Tocqueville, 1951, vol. III, t. 1, p. 236. X. Liberalismo ¢ catdstrofe do séeulo XX 343 democriticas arrancadas pelas massas populares mas o proprio governo da Ici. Nos Estados Unidos Theodore Roosevelt enuncia um método muito sumério para acabar com greves e conflitos sociais: “€ possivel suprimir os sentimentos que agora animam uma grande parte do nosso povo, prendendo dez dos scus chefes, colocando-os [...] contra uma parede ¢ fuzilando-os””, Essas tendéncias chegam a uma ulterior radicalizagao apés a revolucio de outubro. Entao, pode-se compreender muito bem o golpe de Estado fascista na Itdlia de 1922. Os que o apdiam, por um periodo de tempo mais ou menos pro- longado, sio inumerdveis personalidades que se declaram liberais e até pensam cm recuperar o liberalismo auténtico. £ 0 caso de Luigi Einaudi, o qual saida a volta do “liberalismo cléssico”. Por algum tempo, também Croce olha com sim- patia para a tentativa de voltar para o “liberalismo puro”, que no deve ser con- fundido com 0 insano “liberalismo democritico”. Ainda em 1929, ao subscrever implicitamente a condenacio feita por Mussolini de todo “regime demoliberal”, Antonio Salandra se define “antigo liberal de dircita (sem demo)". Como € possivel observar, a atitude benévola diante do golpe de Estado fascista nao se explica s6 com a aguda crise social ¢ politica do momento; trata-se ao contrario de cancelar ou de redimensionar de forma mais ou me- nos drastica as concessdes democraticas arrancadas pelo movimento popular a sociedade liberal. Quando ainda vigorava a belle époque, em 1909, Einaudi retratara o imposto progressivo como uma espécie de “banditismo organiza- do para roubar o dinhciro dos outros mediante o Estado”. Ora, Mussolini se apressa a acabar com esse “banditismo”, atraindo assim o aplauso de nio poucos liberais. Nas décadas anteriores Pareto desenvolvera, enquanto libe- ral, uma dura polémica contra o “mito” do Estado social, concordara com as posigdes de Spencer ¢ Maine e dera a sua adesio, sempre como liberal, & Liberty and Property Defense League’; em 1922-23 ele pode respirar aliviado pelo golpe de Estado que finalmente afugenta as ameagas, se nao a liberdade, em todo caso a propriedade. Ao contrario, exclusivamente ao estado de excegao parece fazer referén- cia Mises quando, em 1927, aponta no esquadrismo fascista um “remédio momentaneo ditado pela situacao de emergéncia” e adequado 4 tarefa da salvagao da “civilizagao curopéia”™. Na realidade, cinco anos antes, apés » Hofstadter, 1960, p. 216. 4 CE, Losurdo, 1994, cap. 2, § 1 » Einaudi, cit. in Favilli, 1984, p. 106-107. 2 Veja-se em particular Pareto, 1966, p. 224-25; Mackay, 1981, p. VII e XII (no que diz respeito 4 adesio de Pareto 4 League). 4 Mises, 1927, p. 45. 344 CONTRA-HISTORIA DO LIBERALISMO ter-se distanciado das contaminagdes democraticas ¢ até socialistas que o li- beralismo havia sofrido na Inglaterra, ele havia trovejado contra o “destrui- cionismo”, a “politica destruicionista” ¢ o “terrorismo” dos sindicatos e das suas greves™: gracas a Mussolini na Itdlia tudo isso havia terminado. Resta 0 fato de que em um livro jé no titulo dedicado a celebragao do liberalismo se pode ler um elogio enfitico do golpe de Estado que, embora com métodos violentos, havia salvado a civilizagdo: “o mérito adquirido desta forma pelo fascismo vivera eternamente na histéria””. 2. Luta pelo reconhecimento dos povos coloniais ¢ ameagas de secessio Sc a luta pelo reconhecimento da qual s4o protagonistas os servos da metropole é constantemente contrastada pela ameaga ou pela realizagao do golpe de Estado, a luta pelo reconhecimento conduzida pelos povos colo- niais ou de origem colonial os setores mais intransigentes do mundo liberal burgués reagem com a ameaga ou com a realizagio da secessio. & uma dialética que j4 analisamos em relagio a Santo Domingo do final do século XVIII ¢ aos Caribes ingleses das primeiras décadas do século XIX. Ainda du- rante a monarquia de julho, Tocqueville observa que os colonos, ao rechagar qualquer projeto abolicionista, nao reconhecem ao Parlamento ¢ ao, governo francés 0 “direito de assumir esta grande obra ¢ de leva-la adiante””. Obviamente, nesse ambito 0 caso mais clamoroso € constituido pela se- cessio do Sul dos Estados Unidos, posta em marcha agitando palavras de or- dem liberais em defesa do direito natural ao autogoverno ¢ ao gozo tranqiiilo da propriedade. A vitéria militar do Norte no encerra 0 conflito. Contra a fugaz implementacao da democracia multirracial os seguidores da suprema- cia branca reagem imediatamente nio apenas com os linchamentos ¢ com © terrorismo anti-negro promovidos pelo Ku Klux Klan, mas recorrendo & guerrilha e 4 violéncia armada. Em 1874, no Sul circula um apelo para fun- dar Ligas Brancas de modo a neutralizar com todos os meios as tentativas do Congresso para tornar efetiva a participagao dos negros: “a nossa guerra [serd] ininterrupta e impiedosa””*. Em conclusio: “tal como a luta de 1861 3 Mises, 1922, p. 469ss. Mises, 1927, p. 45. * Tocqueville, 1951, vol. HH, t. 1, p. 116. ™ Hofstadter (org.), 1958-82, vol. III, p. 43-44. X. Liberalismo ¢ catdstrofe do século XX _ 345 a 1865 foi uma guerra civil, assim foi o conflito de 1856 a 1877, ¢ foi uma guerra civil conduzida com a mesma aspereza ¢ o mesmo édio, apenas com menor derramamento de sangue”’ . Essa segunda etapa da guerra civil se conclui com a vit6ria substancial do Sul: ainda que a escravidio propriamente dita nao seja reintroduzida, é imposto um regime de terrorista supremacia branca. Nao obstante tenham sido formalmente emancipados, os afro-americanos enfrentam um dos mais tragicos periodos da sua historia: poderia até se dizer que a condicao deles alcanga 0 “nadir”, o ponto mais baixo™; o ponto mais alto e por assim dizer zénite é alcancado pelos “dogmas” racistas eo “fundamentalismo racial” ‘Uma vicissinude tendo consideriveis analogias com a guerra de Secessio acontece na Gra Bretanha. Aqui est4 em jogo a emancipagio nao dos negros, mas dos irlandeses. A decisio do governo de Londres de introduzir na ilha © Home Rule, a classe dominante da Ulster responde como respondera o Sul dos Estados Unidos aos desafios do poder central, embora democrati camente eleito: ameaca e prepara a secessio, armando uma milicia com mi- Ihares de pessoas. Se os plantadores do outro lado do Atlantico no podem tolerar a perda do dominio a eles garantido pela posse do gado humano, os proprietarios protestantes na Irlanda rechagam com horror a perspectiva de serem governados, no Ambito local, pelos maltrapilhos catdlicos. Em ambos 0 casos 0 autogoverno reivindicado é 0 autogoverno do qual sio chamados a fruir os descendentes dos colonos ¢ que sanciona a supremacia branca ou a supremacia anglo-protestante. Em ambos 0s casos os secessionistas procla- mam ser os verdadciros herdeiros respectivamente da revolugdo americana ¢ da Gloriosa Revolugao. Sé a eclosio do primeiro conflito mundial bloqueia na Inglaterra a iminente guerra de secessdo: na Irlanda do Norte estavam j4 prontos para entrar em aco dezenas de milhares de homens, armados até os dentes e enquadrados militarmente™. 3. Desumanizagio dos povos coloniais ¢ “canibalismo social” Na véspera da primeira guerra mundial, ao contrario daquela conduzida pelos servos da metrépole, a luta pelo reconhecimento dos servos coloniais » Franklin, 1983, p. 290. % Logan, 1997, p. XXI. + Elkins, 1959, p. 13, 16. * Cf. Morris, 1992, vol. Il p. 179-85, 346 CONTRA-HISTORIA DO LIBERALISMO ou de origem colonial rem poucos sucessos a alardear; a0 contrério, os passos dados pelos primeiros a caminho da emancipagdo muitas vezes sdo utilizados para escavar ainda mais o abismo que separa a dominante “raca européia” das outras. No final do século XIX, se no ingresso de alguns parques publicos do Sul dos Estados Unidos encontra-se instalada a escrita: “Proibido o ingresso aos cies € aos negros” ( Niggers)"", a Xangai, a concessio francesa defende a sua pureza colocando em evidéncia a placa: “proibida a entrada de cies ¢ de chineses”™. O que torna mais crivel a aproximagSo entre populacées colo- niais ¢ animais domésticos so algumas punigdes coletivas como a sentencia- da pelo governo inglés, na fndia em 1919: “A medida mais degradante foi tomada ao ordenar para ‘andar de rastos’ a todo indiano que tivesse de percorrer um determinado beco da cidade onde uma doutora missiondria, a senhorita Sherwood, fora agredida durante os motins. A humilhagio de ter de se arrastar sobre as quatro patas para voltar para casa ou dela sair — no beco de fato morava muita gente - no podia ser esquecida nem perdoada”®*, S6 em 1920, depois da primeira guerra mundial ¢ a revolugdo de outu- bro, conclui-se definitivamente o capitulo de histéria dos coolies, na onda de um movimento de luta anti-colonial, que nao permite mais tolerar “o estig- ma do hilotismo” cravado por este instituto sobre “toda a raga” indiana . E verdade, apés desempenhar um papel de destaque na escravizagio ¢ no comércio dos negros ¢ ainda na promogao da semi-escravidao dos coolies, o Ocidente liberal apresenta-se como o campeio da luta contra a escravidao: é exatamente agitando esta palavra de ordem que cle promove a expansio co- lonial. Eis entao como um missiondrio descreve o trabalho que os indigenas sio obrigados a prestar nas plantacées de borracha do Congo belga: “Todo domingo, cada cidade cada distrito eram obrigados a levar um deter- minado numero de pessoas aos quartéis gerais do Commissaire. Eram arrebanhadas com a forga: os soldados empurravam a gente na floresta. Os que se recusavam cram abatidos: as suas mios esquerdas cram cortadas ¢ levadas como troféus a0 Com- misszire (...]. Essas mos, as mos de homens, mulheres e criangas eram alinhadas diante do Commisiaire™” + Litwack, 1998, p. 467. » Office d'information, 1991, p. 3. % Brecher, 1965, p. 89-90. » Tinker, 1974, p. 364. ” Toibin, 2004, p. 53. X. Liberalismo ¢ cavéstrofe do século XX 347 A imposigio do trabalho forgado as vezes se entrelaca com as priticas de genocidio, as vezes da lugar a elas. No final do século XIX, Theodore Roo- sevelt langa um alerta de cardter geral as “ragas inferiores” (inferior races): se alguma delas viesse a agredir a raga “superior” (superior), esta seria auto- rizada a reagir com “uma guerra de exterminio” (a war of extermination), chamada a “matar homens, mulheres ¢ criancas, exatamente como se fosse uma Cruzada”™ Na realidade, hd ragas das quais sc descja o desaparccimento independen- temente do seu comportamento concreto. Franklin satida como sendo um desenho providencial o massacre que o rum disseminado pelos conquistado- res estd provocando entre os peles-vermelhas. Mas, conforme uma acusacio formulada pelos legalistas refugiados no Canadé, os colonos rebeldes pro- movem diretamente 0 aniquilamento de inteiros grupos étnicos. Em 1851, enquanto enfurece a caca a cada membro dos peles-vermelhas, o governador da California sentencia: “E de se esperar que a guerra de exterminio entre as duas racas continuard a ser conduzida até a extingdo dos indios; podemos pensar com pesar pena neste resul- tado, mas bloquear o destino inevitavel desta raga vai aim do poder e da sabedoria humana”, E inequivoco 0 programa enunciado pelo general Sherman: “aos Sioux devemos responder com uma violenta agressividade, mesmo se for necessario exterminar homens, mulheres ¢ criangas. Nao h4 outra solugio para resolver © problema”. No decorrer das suas expedigdes contra os Queyenne ¢ os Arapaho um coronel ordena de matar ¢ esfolar até os recém-nascidos: “Os ovos de piolho formam os piolhos”®. Tudo isso nao parece perturbar par- ticularmente Theodore Roosevelt: “Nao chego a pensar que os indios bons sejam 0s mortos, mas creio que entre dez nove sejam assim; ¢ nem gostaria de investigar muito sobre 0 décimo”* Nao se deve pensar que essa ideologia torpe, nas suas variagdes ¢ dife- rentes gradacées, deite suas rafzes s6 nos Estados Unidos onde, por razdes hist6ricas evidentes, sente-se mais agudamente a questo racial. Veja-se a Europa. Lorde Acton observa friamente: “O pele-vermelha est progressiva- ™ Roosevelt, 1951. 54, vol. I, p. 377 (carta a C. H. Pearson, 11 de maio de 1894). » Horsman, 1981, p. 279. Jacquin, 1977, p. 141-42, *' Roosevelt, cit. in Hofstadter, 1960, p. 208. 348 mente se retraindo diante do »Pioneiro € perecera dentro de poucas geracdes ou desapareceré no deserto”*. Ha racas - pensa por sua vez Disraeli — que sofrem “um exterminio sem persecugio, em virtude de uma irresistivel lei da Natureza, que é fatal para os bastardos””’. Na realidade, nao se trata de um proceso totalmente espontineo, como o proprio Disraeli indiretamente acaba reconhecendo, quando aponta para o tragico fim dos “astecas”, “der- tubados por Cortés e um punhado de godos”, com base em uma “inexoré- vel lei da natureza” que sanciona_a completa vitéria da “raga superior” € a derrota irremedisvel da “inferior”. Mais explicito € Burckhardt, pelo qual 0 “cancelamento ou a subjugagio das racas mais fracas” parece fazer parte da “grande economia da histéria mundial”. A mesma conclusio chega Renan (um autor que gosta de se colocar entre os “liberais iluminados”” ¢ que é valorizado por Hayck pela sua importante contribuigao a essa tradic¢io de pensamento)’: as “racas semi-selvagens” esto destinadas a ser subjugadas ou exterminadas pela “grande familia ariano-semitica”™. Nem as maiores personalidades da tradicio liberal conseguem opor uma resisténcia eficaz a essa visio. E 0 caso de Tocqueville que, enquanto traca um quadro claramente repugnante dos aborigines, torna-se um cantor apai- xonado do refrio do “bergo vazio”, isto é, do funesto mito genealégico caro aos colonos. Ainda que de forma mais reduzida, o proprio John S. Mill vai na mesma linha. O seu discurso dificilmente pode suscitar um forte interesse de simpatia pelas vitimas. Os peles-vermelhas parecem pertencer ao 4mbito das “comunidades”, cujas condigdes, “do ponto de vista da cultura ¢ do desen- volvimento, sio de pouco superiores as dos animais mais inteligentes”. De qualquer modo, “nenhuma forga, salvo uma imposigdo estrangeira, poderia obrigar [...] uma tribo de indios da América do Norte a submeter-se as or- dens de um regular governo civil””. Aqui nao se fala nem de fatal desapareci- mento nem, menos ainda, de aniquilamento dos peles-vermelhas; teoriza-se mais uma temporéria ditadura pedagdgica. Mas, como emerge da posi de um conceituado expoente do liberalismo inglés, na ocasiao de Asperos conflitos, de estratégia pedagogica, a ditadura sobre os barbaros corre 0 risco # Acton, 1985-88, vol. I, p. 261. © Disraeli, 1982, p. 221 (livro IV, cap. 15). * Disracli, 1852, p. 495 (cap. 24). + Burckhardt, 1978, p. 190. * Renan, 1947, vol. I, p. 443. © Hayek, 1969, p. 483, nora 32 Renan, 1947, vol. VIII, p. 585. « Mill, 1972, p. 197, 178 (= Mill, 1946, p. 39, 13). X. Liberalismo ¢ catéstrofe do século XX 349 de tornar-se exterminadora. Apés a revolta que desafia o Império inglés na india, Macaulay escreve: “As crueldades dos nativos sepoys inflamaram a nac4o em proporgdes sem precedentes na minha meméria. As sociedades pela Paz, as Sociedades pela protesio dos aborigines ¢ as sociedades pela recuperagdo dos criminais estio caladas. Ecoa por toda a parte um terrivel grito de vinganca... O sentimento praticamente universal é que em volta de Nova Delhi nenhum sepoy deveria ser poupado, ¢ eu confesso que este € um sentimento com o qual nao posso deixar de simpatizar”®. Quem manifesta efetivo dissenso sio representantes inesperados da tradi¢ao liberal ou figuras que se movem as suas margens. Enquanto in- terpreta o conflito social na metrépole em chave socialdarwinista, Spen- cer protesta contra “a maxima barbara” com a qual os mais fortes “tém um direito legitimo a todos os territérios que podem conquistar”. A expropriagao dos derrotados na realidade segue-se 0 seu “exterminio”: quem paga a conta nao sao apenas os “indios da América do Norte” e os “nativos da Australia”; na {india “foram condenados a morte regimentos inteiros”, culpados de “terem ousado desobedecer aos comandos tiri- nicos dos seus opressores”” . Infelizmente, “entramos em uma época de canibalismo social em que as nagdes mais fortes estio devorando as mais fracas”; entao, pode-se dizer que “os brancos selvagens da Europa es- tdo superando em muito os selvagens de cor por toda a parte””. Claro, Spencer aponta o dedo acusador contra a “colonizagao estatal” (state colonisation)’ , contra o estatalismo que inunda qualquer setor: como se esse estatalismo nao tivesse acompanhado a histéria do Ocidente li- beral desde as suas origens ¢ como se as praticas horriveis denunciadas por Spencer muitas vezes nio tivessem sido promovidas na pratica em nome do autogoverno e da livre disponibilidade da propriedade € nao se fossem configuradas, para usar as palavras de Hobson, como “massacre privado” (supra, cap. VII, § 1)! % Macaulay, cit. in Williams, 1972, p. 152. 5" Spencer, 1981, p. 224. © Spencer, 1996, p. 410 (carta a M. D. Conway, 17 de julho de 1898). 5 Spencer, 1981, p. 224. 350. CONTRA-HISTORIA DO LIBERALISMO 4. A “solusio final e completa” da questo india e negra E 0 proprio Hobson (um autor contiguo aos ambientes liberal retrata- dos como “socialistas” por Mises e Hayek) sintetiza com cficdcia a atitude em relacao aos barbaros que o Ocidente assume, e em primeiro lugar 0 Ocidente liberal, que est na diregao da expansio colonial, no Far West ou nos terri- t6rios ultramarinos: sobrevivem as populagdes que “podem ser exploradas com proveito pelos colonizadores brancos supefiores”, enquanto as outras “tendem a desaparecer” ou a serem aniquiladas™. De fato, a partir do final do século XIX torna-se obsessivo o motivo do fatal desaparecimento dos sel- vagens ¢ dos povos nao utilizaveis como forca-trabalho coagida. Quem agita esse motivo muitas vezes s4o autores que ao mesmo tempo satidam o triunfo das instituigdes e das idéias liberais no mundo civil. Em 1885, 0 livro do pas- tor protestante Josiah Strong alcan¢a um extraordinario sucesso nos Estados Unidos. £ apaixonada a sua celebracao da “liberdade”, do “autogoverno”, do “direito do individuo para si mesmo”; € constante a evocacao de Burke, Tocqueville, Guizot, Macaulay, Spencer; nitida e enfitica € a afirmagio do primado do mundo anglo-saxio, ao qual cabe o mérito de encarnar de modo privilegiado ao mesmo tempo “o amor pela liberdade” ¢ 0 “génio da colo- nizag3o”™, que amplia a 4rea da liberdade. Mas, essa expansio comporta também a irrefreavel “extingao das racas inferiores””. De maneira andloga argumenta, no final do século, Albert J. Beveridge, senador republicano ¢ personalidade politica estadunidense de primeira grandeza: a homenagem oferecida ao “Evangelho da liberdade”, aos “filhos da liberdade”” e, em particular, aos Estados Unidos como pais e “povo que doa a liberdade” ¢ a irradia no mundo inteiro, se acompanha com a afirmacao pela qual é “parte do insondavel plano do Onipotente o desaparecimento das civilizagdes infe- riores e das racas decadentes (decaying races) frente ao avango das civilizagoes superiores formadas pelos tipos mais nobres ¢ mais viris de homens”. Emerge até uma palavra de ordem, que no século XX assume um ine- quivoco significado de genocidio ¢ conhece uma tragica fortuna: se Strong invoca a “solucio final e completa (final and complete solution), indicada por Deus, do grave problema do paganismo difuso entre os povos inferiores”™, “ Hobson, 1974, p. 214. Strong, 1963, p. 200. % Strong, 1963, p. 200, 212. * Strong, 1963, p. 215. * Beveridge, 1968, p. 249, 247. » Beveridge, 1968, p. 42. “ Strong, 1963, p. 216. X. Liberalismo e catistrofe do século XX _ _ 351 em 1913 um livro publicado em Boston evoca j4 no titulo a “solugdo final” (ultimate solution) da questio negra. Também nesse caso, nao se trata de um autor alheio ao mundo liberal, e nao sé pelo fato que vive ¢ opera nos Esta- dos Unidos, agitando idéias difusas e ecoadas também por notérias persona- lidades da época, Longe de lamentar a “pratica repugnante” da escravidio, ele se identifica com os “poucos homens iluminados ¢ liberais”, isto é, com os “intelectos liberais”, que teriam desejado aboli-la j4 no momento da pro- mulgacao daquele “espléndido instrumento” que é a Constituicao dos Esta- dos Unidos, “destinada a tornar-se a estrela polar do maior poder temporal da histéria””'. E, no entanto, na terra da liberdade nao ha lugar para as racas intelectualmente incapazes de participar 4 “superior civilizagdo e cultura cau- cdsica”” . Ao chegar a essa conclusdo, o autor tem consciéncia de se colocar na trilha de Franklin e Jefferson. Felizmente, a natureza ¢ a lei da “sobre- vivéncia do mais apto” j4 providenciam naturalmente: os afro-americanos sio ceifados pela tuberculose, pela pneumonia, pelas doencas venéreas ¢ por outras enfermidades que confirmam a inferioridade natural deste povo; poucas as criancas negras que nascem sem tendéncias escrofulosas, raq mo, cegucira” ou outros sinais de “infecc3o ancestral”. A “solugio final” da “questio negra” est4 no horizonte ¢ essa sera a réplica feliz da j4 ocorrida solugao final da questo amerindia’ . Nas palavras de um senador do Sul sin- tonizado com essa mesma linha: “A lei divina da evolugdo, a sobrevivéncia do mais apto e a extingao do inapto, est4 em curso”, ¢ ela trara um toque de branco ao Sul e aos Estados Unidos no seu conjunto™, a marca de branco jé sonhada por Franklin. De fato, os peles-vermethas tém sido j4 amplamente eliminados da face da terra. Em 1876, para celebrar os seus ccm anos de existéncia como pais independente, os Estados Unidos organizaram em Filadélfia uma exposi¢ao que chama a aten¢io do mundo sobre o seu extraordindrio desenvolvimento. Juntamente com as maravilhas da industria e da técnica, mostras paralelas exibem “criangas selvagens do Borneo, um cavalo com cinco patas ¢ figuras em cera de famosos chefes indios””*. No vero de 1911, em uma 4rea remota da California é descoberto um indio que nao consegue se comunicar em in- glés nem cm espanhol. Especialistas etndlogos verificam depois que se trata * Eggleston, 1973, p. 133-35, 141-43. Eggleston, 1973, p. 62. Eggleston, 1973, p. 183-85, 224. John Sharp Williams, cit. in Fredrickson, 1987, p. 257-58. * Slotkin, 1994, p. 4 352 CONTRA-HISTORIA DO LIBERALISMO de um sobrevivente da tribo Yahi, amplamente exterminada ao longo de uma geragio. O desconhecido, que sc recusa a dizer 0 seu nome ou a contar a histéria da sua familia destru(da, ¢ posto em um museu, onde torna-se ob- jeto de uma grande e divertida curiosidade de adultos ¢ criangas, ainda mais pelo fato que a imprensa local atrai a atengao sobre o “iiltimo aborigine”, sobre o “homem selvagem da Califérnia”, sobre o “genuino sobrevivente da barbérie da idade da pedra”. Apés a morte, o seu cérebro € oportunamente guardado para ulteriores estudos. Um grande filésofo, Edmund Husserl, de firme orientacio liberal ¢ democratica, duas décadas depois vai observar, infelizmente, sem algum acento critico: totalmente estranhos para a Europa ¢ o Ocidente, os indios, melhor os seus sobreviventes, “sio mostrados nos galpdes das feiras”””. 5. Do século XIX ao século XX Nos anos que antecedem a eclosio da Segunda guerra dos Trinta Anos, acumula-se um gigantesco material explosivo. No final do século XIX, a for- magdo na Europa da Liberty and Property Defense League corresponde nos Estados Unidos a formagio das White Leagues (e do Ku Klux Klan); trata-se de bloquear ou de fazer recuar as duas lutas pelo reconhecimento que ja conhecemos: do outro lado do Atlintico a revanche da supremacia branca alcanga o seu triunfo jé a partir de 1877; na Europa a Liga pela Defesa da Liberdade e da Propriedade deverd esperar até 1922 para conseguir, na Itlia, a sua primeira vitéria. A persistente inquietagZo dos servos ou ex-servos na metrépole ¢ dos escravos ¢ semi-escravos coloniais ou de origem colonial ¢ crescente agressividade dos ambientes sociais ¢ politicos que se sentem amea- gados por essas duas agitages, se somam, no ambito da comunidade dos livres e da estirpe teutdnica (anteriormente celebrada no seu conjunto como © povo ou a raga eleita da liberdade), contradigdes que tendem a assumir uma forma antagénica. E, mais ainda, esses miltiplos conflitos sio ulterior- mente exacerbados por um clima ideolégico caracterizado pela afirmacao de tendéncias (socialdarwinismo, leitura em chave racial da historia e teoria do compl6) presentes desde o inicio no ambito da tradicao liberal, mas que ago- ra cncontram uma resisténcia cada vez mais fraca, tornando assim impossiveis uma compreensio racional € uma limitag3o do conflito. Nao € por acaso que Geertz, 2004, p. 4. Cf. Losurdo, 1991, cap. 3, § 8. X, Liberalismo ¢ catdstrofe do stculo XX __ 383 ouvimos duas funestas palavras de ordem: a primeira proclama que “tudo é raga”; a segunda invoca a “solugao final” ou a “solugio final e completa” da questio racial! O clemento de continuidade entre os séculos XIX ¢ XX nao passou ino- bservado a um conjunto de estudiosos, ¢ de estudiosos insuspeitos de hostilida- de preconceituosa em relacdo a0 mundo liberal. Embora passe generosamente por cima da repiiblica norte-americana (que tinha o mérito de ter-Ihe oferecido abrigo), para explicar a génese do totalitarismo do século XX Hannah Arendt parte das colénias do Império britanico: € nesse ambito que surge “uma nova forma de governo”, “uma forma de governo mais perigasa que o despotismo € a arbitrariedade™ e que comeca a emergir a tentacdo dos “massacres admi- nistrativos” como instrumento para manter o dominio”. Mas, nesse contexto, €acima de tudo interessante o fato de que nio poucos estudiosos estaduniden- ses, para explicar a historia do seu pais, recorram a categoria de “democracia para 0 povo dos senhores” ou de Herrenvolk democracy, com uma elogiiente mistura lingiifstica de inglés de um lado e de alemao de outro, e de um alemao que remete por muitos aspectos & historia do Terceiro Reich. Nao apenas o universo de concentrag3o no seu conjunto, mas também cada uma das instituigdes totais do século XX comegaram a delinear-se muito antes do fim da presumida belle époque. Convém partir da deportacao. As sucessivas, sangrentas deportacées dos indios, comegando com a realizada pela América de Jackson (apontada como modelo de democracia por Toc- queville), evocam 0s “horrores provocados pelos nazistas com o tratamen- to infligido por cles aos povos subjugados”””. Os peles-vermelhas nao sio as tinicas vitimas dessa pratica. O comércio dos negros representa “o mais macigo deslocamento involuntério de seres humanos de toda a histéria””’. Os deportados sio obrigados a trabalhar em uma plantagio escravista, que apresenta analogias com o campo de concentragao_. A compara¢do nao deve parecer exagerada. E nessc ambito que 0 processo de desumanizacio alcan- ou pontas dificilmente igualaveis. Na Jamaica, no britanico império liberal de meados do século XVIII, observamos a prética de um tipo de punigio por si clogiiente: “um escravo era obrigado a defecar na boca do escravo culpado, que depois era costurada por quatro ou cinco horas”, Também os compa- Arendt, 1989, p. 259, 295-97. Arendt, 1989, p. 182, 186, 301. 1m T. Hagan, reportado com consenso por Hauptman, 1995, p. 5. Wood, 2004, p. 43. Elkins, 1959. 73 Wood, 2004, p. 43. 354 CONTRA-HISTORIA DO LIBERALISMO nheiros totalmente inocentes eram obrigados a fazer parte da desumanizagao da vitima ¢, com ela, do grupo étnico comum de pertencimento. Se tudo isso no fosse parecer suficientemente cruel, se pense entéo nos métodos com Os quais, entre o fim do século XIX € 0 inicio do século XX, € imposta nos Estados Unidos a supremacia branca: “Noticias dos linchamentos eram publicadas nas folhas locais e vagoes suple- mentares eram acrescidos aos trens para espectadores, 3s vezes milhares, provenien- tes de localidades a quilémetros de distancia. Para poder assistir ao linchamento, as criangas das escolas podiam ter o dia livre. O espetéculo podia incluir a castrac3o, 0 esfolamento, a assadura, 0 enforcamento, os golpes de arma de fogo. Os souvenires para compradores podiam incluir os dedos das mios ¢ dos pés, os dentes, os ossos € até os genitais da vitima, assim como postais ilustrados do evento”. Novamente nos deparamos com um processo de desumanizagio dificil de ser igualado. ‘Antes no Norte ¢ depois, com o fim da guerra de Secessio, no Sul, os negros em teoria “livres” sofrem humilhagées € persecugdes de todo tipo, tornam-se até alvo — ressalta um historiador recorrendo a uma linguagem que mais uma vez exige a nossa ateng3o — de verdadeiros “pogrom”. Estes, sao praticados por bandos ja ativos no Norte nos anos 20 e 30 do século XIX € que, mais tarde, no Sul assumem uma forma acabada no Ku Klux Klan, uma organizacao que parece antecipar as “cami as pretas” do fascismo italiano ¢ as “camisas marrons” do nazismo alemio . Nao menos brutal que a violéncia extra-legal é a justica oficial: no Sul os negros continuam a se- rem submetidos a um sistema penitencidrio tdo sédico que leva a pensar nos “campos de concentracao da Alemanha nazista””. O que associa as duas situagdes é em todo caso a violéncia da ideol racista. Theodore Roosevelt pode ser tranqiiilamente aproximado a Hitler Para além das personalidades individuais convém nao perder de vista 0 qua- dro geral: “Os esforcos para preservar a ‘pureza da raga’ no Sul dos Estados Unidos antecipavam alguns aspectos da perseguicao desencadeada pelo regi- me nazista contra os hebreus nos anos trinta do século XX”. 74 Woodward, 1998, p. 16. * Brown, 1975, p. 30. ™ MacLean 1994, p. 184. ” Fletcher M. Green, cit. in Woodward, 1963, p. 207. ™ Van den Berghe, 1967, p. 13; Dyer, 1980, p. XIII. X. Liberalismo ¢ catastrofe do stculo XX 355 Se depois considerarmos a regra pela qual no Sul dos Estados Unidos bastava uma sé gota de sangue impuro para ser cxcluidos da comunidade branca, uma conclusio se impée: “A definicgo nazista de um hebreu nun- ca foi tao rigida como a norma definida ‘the one drop rule’, prevalente na classificagao dos negros nas leis sobre a pureza da raga no Sul dos Estados Unidos””’. Mais. De “Nazi Connection” ou de “heranga americana” presente no nazismo tém falado recentemente dois estudiosos estadunidenses para ex- plicar a parébola da eugenética, esta “ciéncia”, nascida na Inglaterra libe- ral e difundida de modo macigo no outro pais cléssico dessa tradigao de pensamento, que alcanga os scus maximos triunfos no Terceiro Reich”! A esse respeito verifica-se até um paradoxo. Desaparecidas com a Alemanha hitleriana, as medidas eugenéticas continuam a sobreviver por algum tempo nos Estados Unidos. Vejamos a situacio em 1952: “Atualmente uns trinta Estados da Unido proibem o ‘matriménio inter-racial’. Em quase todos os Estados 0 cruzamento racial € um delito de traigo, em muitos € um crime de menor gravidade”. S40 considerados elemento de contaminagao nao ape- nas os “negros”, mas também, neste ou naquele Estado, os “mulatos”, os “indianos”, os “monggis”, os corcanos, “membros da raga malés”, chineses, toda “pessoa de origem negra ou indiana até a terceira geragao incluida”, isto é, toda “pessoa que tem 1/8 ou mais de sangue negro, japonés ou chi- nés” ou também “que tem 1/4 ou mais” de “sangue kanaka (hawaiano)”". Quem traz esses dados é um estudioso estadunidense, que depois € obrigado a tirar uma amarga conclusio a propésito do “racismo” (e do nazismo): “O monstro que chegou a se lancar livremente sobre 0 mundo é em grande parte nossa criagdo, ¢ estejamos ou nao dispostos a enfrentar a realidade, nds todos, individual ¢ coletivamente, somos responsavcis pela forma horrenda que cle assumiu”™ Enfim o genocidio. Um eminente estudioso como Tzvetan Todorov de- finiu © aniquilamento dos peles-vermelhas, cujo capitulo final se consome antes nas colénias inglesas e depois Ros Estados Unidos, como o “maior genocidio da historia da humanidade”™’, Outros autores, a propésito da tra- gédia dos nativos na América, na Australia ou nas colénias inglesas em geral, » Fredrickson, 2002, p. 8, 134-35. % Kiihl, 1994; Black, 2003, p. 385-409. "' Montagu, 1966, p. 386ss. ® Montagu, 1966, p. 340-41. " Todorov, 1984, p. 7. 356 CONTRA-HISTORIA DO LIBERALISMO tém falado respectivamente de “holocausto americano” (ou de “solugao fi- nal” da questao dos amerindios), de “holocausto australiano” e de “holo- caustos tardovitorianos”™. Para nao falar depois do “holocausto negro” (a deportagao € a cscraviza¢4o dos sobreviventes, um entre trés ou quatro), so- bre o qual procuram chamar a atengio os afro-americanos, e que teve como grandc protagonista 0 mundo liberal. Enfim, retratado como o protagonista de uma tragédia a ser considerada como prototipo dos genocidios do século XX, o principal responsével (sir Trevelyan) da politica inglesa que em meados do século XIX leva a morte por inani¢ao diversas centenas de milhares de irlandeses foi as vezes definido 0 “proto-Eichmann”™ Nao é esse o lugar para proceder a uma comparagdo dos massacres, das dizimagdes ou dos genocidios ¢ para discutir a pertinéncia das categorias utilizadas para descrevé-los. Um ponto, no entanto, parece-me firme: € ba- nalmente ideolégico caracterizar a catastrofe do século XX como uma es- de uma nova invasio barbara que de repente agride ¢ atropela uma sociedade sadia e feliz. O horror do século XX projeta a sua sombra sobre 0 mundo liberal mesmo fazendo abstracao das colénias e dos povos de origem colonial. “Sociedade totalitaria” foi definida aquela que na Australia engole os deportados da Inglaterra’. E, com referéncia em particular ao “desenvol- vimento do capitalismo industrial” Propriamente 1 na Inglaterra, foi afirmado que “o gulag no é uma invengio do século XX”. A hagiografia usual resul- ta inconsistente até se, na reconstrugao do mundo liberal, nos limitarmos 4 analise da metrépole ¢ da comunidade branca. Considere-se um autor celebrado por Tocqueville como 0 ponto mais alto da tradigao liberal. Jefferson evoca o espectro do genocidio em trés con- textos sensivelmente diferentes: a propdsito dos indios fala do “exterminio” como de um processo em curso nos Estados Unidos, que nao pode ser mais interrompido e que no entanto deve ser atribuido exclusivamente aos in- glescs. Por outro lado, ele aponta no “exterminio” dos negros o resultado inevitavel da utopia da construgao de uma sociedade multirracial. Enfim, vive 0 choque com a Inglaterra como uma guerra total, destinada a desembocar no “exterminio” de um dos dois contendores (supra, caps. 1, § 5; cap. V, § 14; cap. VIIL, § 16). Como ¢ possivel ver, também um conflito totalmente "Stannard, 2001; Jacquin, 1977, p. 116; Schmid, 2000; Davis, 2001. Losurdo, 1997, cap. V, $6 10, 13; Stannard, 2001, p. 260 nota (a propésito do comér cio dos negros ¢ da relagdo entre deportados ¢ sobreviventes). % Hughes, 1990, p. 453. " Castel, 1995, p. 157. X. Liberalismo ¢ catastrofe do sétculo XX 357 interno 4 comunidade dos livres suscita uma violéncia ideologica, que pode muito bem levar a pensar no século XX. 6. Depois da catastrofe e além da hagiografi: a heranga permanente do liberalismo O horror do século vinte nao é algo que irrompe repentinamente ¢ de fora sobre um mundo de convivéncia pacifica. Por outro lado, nao se conten- tar com 0 quadro edificante da hagiografia usual para se colocar no terreno do real, com as suas contradi¢des ¢ os seus conflitos, nao significa de modo algum nao reconhecer os méritos ¢ os pontos de forga da tradigao de pen- samento aqui objeto de indagagao. Claro, € necessario abandonar uma vez para todas o mito da passagem gradual ¢ pacifica, a partir de motivagdes € impulsos puramente internos, do liberalismo 4 democracia, isto ¢, do gozo generalizado da liberdade negativa ao reconhecimento em escala cada vez mais ampla dos direitos politicos. Resta claro que resulta totalmente imagindrio o pressuposto deste dis- curso: a comunidade dos livres se afirma reivindicando para si ao mesmo tempo a liberdade negativa ¢ positiva ¢ excluindo de ambas seja as popula- écs de origem colonial seja os semi-escravos ¢ os servos da metrépole. Mas, aqui, gostaria de mostrar o valor de uma série de razdes, que apresento em ordem de importancia crescente. Em primeiro lugar, ndo se deve esquecer que os clissicos da tradigao liberal nao apenas falam com frieza, hostilidade € 4s vezes com aberto des- prezo da democracia, mas consideram o seu advento como uma ruptura ar- bitréria e intoleravel do pacto social c, portanto, como uma causa legitima de “apelo ao céu” (nas palavras de Locke), isto €, as armas. Em segundo lugar, deve ser levado em consideragao que as cldusulas de exclusdo foram superadas nao de forma indolor, mas por meio de convulsdes violentas € as vezes de violéncia inaudita. A aboligao da escravidao na estcira da guerra de Sccessio custou aos Estados Unidos mais vitimas do que a soma dos dois conflitos mundiais. No tocante a discriminagio censitaria, para o scu cancelamento deu uma contribuicio decisiva o ciclo revolucionario francés. Enfim, em grandes paises como a Rissia, a Alemanha, os Estados Unidos o acesso das mulheres aos direitos politicos tem atras de si as convulsdes bélicas ¢ revolucionarias do inicio do século XX. Em tercciro lugar, além de nio ser indolor, 0 processo histérico cul- minado no advento da democracia nao é absolutamente linear. A eman- 358 CONTRA-HISTORIA DO LIBERALISMO cipagdo, isto é, a aquisigao de direitos anteriormente ndo reconhecidos ¢ nao gozados, pode muito bem se seguir uma des-emancipagio, ou uma privacao dos direitos dos quais os exclufdos haviam arrancado o reconheci- mento e 0 gozo. Afirmado na Franga na trilha da revolugdo de fevereiro de 1848, o sufragio universal (masculino) é cancelado dois anos depois pela burguesia liberal, ¢ logo depois é reintroduzido em decorréncia nao de um processo de amadurecimento do liberalismo mas do golpe de Estado de Luis Napoledo, do qual se serve para a encenacio do rito da aclamac3o plebiscitaria. Nesse 4mbito o exemplo mais clamoroso nos é fornecido pe- los Estados Unidos. O fim da guerra de Secessio inaugura o periodo mais feliz na histéria dos afro-americanos, os quais agora conquistam os direitos civis e politicos e entram a fazer parte dos organismos representativos. Mas, trata-se de uma espécie de breve intervalo da tragédia. O compromisso que ocorre em 1877 entre brancos do Norte ¢ do Sul comporta para os negros a perda dos direitos politicos ¢, muitas vezes dos préprios dircitos civis, como é testemunhado pelo regime de segregacdo racial e pela violéncia sel- vagem dos pogrom e dos linchamentos. Essa fase de des-emancipaclo, que se desenvolve no ambito de uma sociedade que continua a se autodefinir “liberal”, dura quase um século. Existe depois uma quarta razio. O processo de emancipaco muitas ve- zes tem tido um impulso totalmente externo ao mundo liberal. Nao se pode compreender a abolicao da escravidao nas colénias inglesas sem a revolucio negra de Santo Domingo, vista com horror, ¢ muitas vezes combatida, pelo mundo liberal no scu conjunto. Aproximadamente trinta anos depois 0 ins- tituto da escravidio é cancelado também nos Estados Unidos; mas sabemos que os abolicionistas mais fervorosos so acusados pelos seus adversérios de serem influenciados ou contagiados por idéias francesas e jacobinas. A breve experiéncia de democracia multirracial segue-se urna longa fase de des-eman- cipagdo marcada por uma terrorista supremacia branca. Quando acontece o momento da virada? Em dezembro de 1952 o ministro estadunidense da justica envia para a Corte Suprema, empenhada em discutir a questdo da integracdo nas escolas piiblicas, uma carta elogiiente: “A discriminagdo racial leva 4gua para a propaganda comunista e suscita dividas também entre as nagées amigas a respeito da intensidade da nossa devocao a f democratica”. Washington - observa o historiador american que reconstr6i esse aconteci- mento — corria o perigo de perder as “racas de cor” nao apenas no Oriente € no Terceiro Mundo, mas no proprio corag30 dos Estados Unidos: aqui tam- bém a propaganda comunista alcangava um sucesso considerdvel na sua ten- tativa de ganhar os negros para a “causa revolucionéria”, provocando neles 0

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