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1 A JUVENTUDE COMO CATEGORIA SOCIAL Definigées de juventude Podemos definir a juventude como uma categoria social. Tal definigao faz da juventude algo mais do que uma faixa etdria ou uma “classe de idade”, no sentido de limites etdrios restritos — 13 a 20 anos, 17 a 25 anos, 15.21 anosetc. Também, nao faz da juventude um gru- po coeso ou uma classe de fato, aquilo que Mannheim chama de grupo social concreto.' Nao existe realmente uma “classe social” formada, ao mesmo tempo, por todos os individuos de uma mesma faixa etéria. Ao ser definida como categoria social, a juventude torna-se, ao mesmo tempo, uma representagio sécio- cultural e uma situagio social (novamente no sentido dado por Mannheim). Ou seja, a juventude é uma con- 1 Karl Mannheim. “O problema sociolégico das geragées”, in Maria- lice M. Foracchi (org.). Mannheim, Col. Grandes Cientistas Sociais- 25, So Paulo, Atica, 1982, pp. 67-95. 7 Juventude cepgao, representagao ou criacio simbélica, fabricada pelos grupos sociais ou pelos préprios individuos tidos como jovens, para significar uma série de comporta- mentos e atitudes a ela atribufdos. Ao mesmo tempo, é uma situagao vivida em comum por certos individuos, Na verdade, outras faixas etdrias construfdas moderna- mente poderiam ser definidas assim, como a infancia, a Terceira Idade e a prépria idade adulta. Trata-se nao apenas de limites etarios pretensamente naturais e obje- tivos, mas também, e principalmente, de representaces simbélicas e situagdes sociais com suas proprias formas e contetidos que tém importante influéncia nas socieda- des modernas. Poder-se-ia questionar até que ponto a categoria social “juventude” é relevante para o entendimento das sociedades modernas e dos processos sociais contempo- raneos. Para muitos cientistas sociais parece um concei- to por demais genérico e mal definido para realmente reter este status. Outros poderiam acusé-lo de ideolégi- co e escamoteador de uma realidade construida primor- dialmente por estruturas de classe ou sobre estratifica- Ges sociais. Ou, ainda, denunciar que hé o risco de que © conceito se reduza a uma definigao fisiolégica, psico- légica ou aculturalista. Na verdade, parte dessas criticas tem sua razio de ser ao basear-se em boa parte das tentativas das ciéncias ditas sociais em definir a juventude. Apesar de a historia 8 A juventude como categoria social da juventude praticamente coincidir com a histéria de seu estudo empfrico e cientifico,? na drea de interesse desta pesquisa, as ciéncias sociais, ocorre algo paradoxal, justamente no que concerne 8 definigéo de juventude (pelo menos na maior parte das obras de sociologia da juventude analisadas). Acredito que, no aspecto da defi- nigio e conceituagio do seu objeto, a sociologia da juventude tem sua mais fraca colaboragio. As definigdes de juventude passeiam por dois critérios principais, que nunca se conciliam realmente: o critério etdrio (herdei- ro das primeiras definigées fisiopsicolégicas) e 0 critério s6cio-cultural. O critério etério — que delimita a juventude de acordo com faixas de idade, por exemplo, de 15 a 21 anos, de 10 a 24 anos, de 14 a 19 anos etc. — estd sem- pre presente, expresso ou subjacente, como base prévia de uma definigio de juventude. Mesmo que negado, dificilmente chega-se a outra definigao real, e 0 mito da juventude como classe social definida por critérios eté- rios é recriado pela sociologia. Outra safda da sociologia é a de enfatizar a relativi- dade do critério etdrio, pois a juventude, 0 jovem e seu comportamento mudam de acordo com a classe social, o grupo étnico, a nacionalidade, o género, o contexto his- 2 Andreas Flinter. “Os problemas socioldgicos nas primeiras pesqui- sas sobre a juventude”, in Sulamita Brito (org.). Sociologia da juven- tude, vol. |, Rio de Janeiro, Zahar, 1968. 9 Juventude térico, nacional e regional etc. De um outro modo che. ga-se a indefinigao, nao por siléncio ou omissao, mas por um extremo relativismo, como na citagio abaixo; “Sociologicamente, a adolescéncia é um perfodo da vida de uma pessoa que se define quando a socie- dade na qual ela funciona cessa de consideré-la... uma crianga e nao lhe atribui 0 status, os desempe- nhos e fungées do adulto (...). Acreditamos que o comportamento adolescente é um tipo de comporta- mento de transigéo que depende exclusivamente da sociedade e, mais ainda, da posigao que o individuo ocupa dentro da estrutura social, e nao dos fenéme- nos biopsicolégicos relacionados a essa idade.”3 A dificuldade da sociologia é curiosa: nao consegue definir 0 “objeto” social que ela propria ajudou a criar ou, entao, reifica conceitos aculturais da fisiologia e da psicologia. Em geral, suas tentativas combinam o critério etério nao-relativista e 0 critério sécio-cultural relativis- fa, como nos exemplos a seguir: “O termo juventude designa um estado transi- torio, uma fase da vida humana cujo inicio € muito claramente definido pela aparigao da puberdade; ———_. ‘ norte- 3A. B. Hollingshead. “Juventude numa pequena cidade americana’, in ibid., pp. 95-118. 10 A juventude como categoria social quanto ao fim da juventude, varia segundo os crité- rios e os pontos de vista que se adotam para deter- minar se os individuos sao ‘jovens’.”4 “A idade cronolégica como critério, isto é, 0 pe- riodo de tempo dividido arbitrariamente em frag- mentos da prépria vida do sujeito, torna-se estatica se nao associada a outros critérios... E 0 sistema s6cio-cultural e econdmico que determina o infcio, 0 final, os perfodos de transigao de cada fase da vida humana.”5 Por outro lado, mesmo que se reconhega que a defi- nig&o que adotei previamente, a juventude como catego- ria social, seja mais eficiente que as acima citadas, seria a juventude um componente realmente importante, de pe- so, na formagio e funcionamento das sociedades moder- nas? Ou seria apenas um componente por demais secun- dario para poder sustentar anélises qualificadas e relevan- tes da modernidade, mesmo quando combinamos a cate- goria social juventude com outras categorias sociais (0 que uma boa anilise sociolégica sempre deve procurar fazer)? Minha intengio é demonstrar que a categoria social juventude — assim como outras categorias sociais ba- 4 Lépold Rosenmmayr. “A situagdo econémica da juventude”, in ibid., pp. 133-173. 5 Geraldo Semenzato. A adolescéncia e o conflito de gera¢ées, Paper, Faculdades Integradas de Uberaba, 1986, p. 1. 11 Juventude seadas nas faixas etdrias — tem uma importancia crucial para o entendimento de diversas caracteristicas das sociedades modernas, o funcionamento delas e suas transformagées. Por exemplo, acompanhar as metamor- foses dos significados e vivéncias sociais da juventude é um recurso iluminador para o entendimento das meta- morfoses da prépria modernidade em diversos aspectos, como a arte-cultura, o lazer, o mercado de consumo, as relagGes cotidianas, a politica nao-institucional etc. Por outro lado, deve-se reconhecer que a sociedade moder- na € constitufda nao apenas sobre as estruturas de classe ou pelas estratificagdes sociais que lhe sao proprias, mas também sobre as faixas etdrias e a cronologizacao do curso da vida. A criagdo das instituigdes modernas do século XIX e XX — como a escola, o Estado, 0 direito, o mundo do trabalho industrial etc. — também se baseou no reconhecimento das faixas etdrias e na insti- tucionalizagao do curso da vida. Através das andlises feitas aqui, espero conseguir fundamentar ainda mais esta defesa da importancia pri- maria da categoria social juventude para o entendimen- to de aspectos muito relevantes da modernidade. A modernidade é também o processo hist6rico-social de construgao das juventudes como hoje as conhecemos- 12 A juventude como categoria social Juventude e adolescéncia As faixas etdrias reconhecidas pela sociedade moder- na sofreram varias alteragdes, abandonos, retornos, supressdes e acréscimos ao longo dos dois tiltimos séculos. Do mesmo modo, as categorias sociais que delas se origi- naram também tiveram mudangas e até supressdes. Gi- raram em torno de termos como infancia, adolescéncia, juventude, jovem-adulto, adulto, maturidade, idoso, ve- lho, Terceira Idade e outros. No tocante aos trés momen- tos bdsicos do curso da vida social — nascimento-ingres- so na sociedade, fase de transigdo e maturidade —, mui- tas divisOes e subdivisdes foram criadas, recriadas e supri- midas ao sabor das mudangas sociais, culturais, e de men- talidade, pelo reconhecimento legal e na pratica cotidiana. Por exemplo, durante o periodo de transigio da fase de ingresso na sociedade para a maturidade, trés termos apareceram e aparecem com mais contundéncia, princi- palmente os dois primeiros a serem citados: juventude, adolescéncia e puberdade. Numa primeira anilise, cada termo se refere a um tipo de transformagio que o indi- viduo sofre nesta fase da vida: — As ciéncias médicas criaram a concepgao de puberdade, referente a fase de transformagGes no corpo do individuo que era crianga e que esta se tornando maduro. 13 Juventude —A psicologia, xpsicanilise e a pedagogia Criaram a concepgao de adolescéncia, relativa As mudan- gas na personalidade, na mente ou no comporta- mento do individuo que se torna adulto, — A sociologia costuma trabalhar com a concepgio de juventude quando trata do perfodo interstfcio entre as fungées sociais da infancia e as fungdes sociais do homem adulto. Numa segunda anilise, mais atenta ao uso cotidiano dos termos e considerando outros usos feitos pelas pré- prias ciéncias sociais, adolescéncia e juventude apare- cem como fases sucessivas do desenvolvimento indivi- dual, a adolescéncia ainda préxima da infancia, a juven- tude mais préxima da maturidade. Na sociologia, 0 exemplo de Marialice Foracchi ilustra bem esta disposi- Gao em seqiiéncia de adolescéncia e juventude. Para Foracchi, a crise da adolescéncia € restrita ao conflito de geragoes entre individuos e grupos circunscritos de ida- des diferentes. Esta crise evolui, mais tarde, para uma crise da juventude, quando “o conflito de geragées des- loca-se para o plano da sociedade”.6 —__ ® Marialice M. Fi Paulo, oracchi. A juventude na sociedade moderna, $40 Pioneira/Edusp, 1972, p. 30. 14 A juventude como categoria social Diversidade sécio-cultural e juventude Cléudia B. Rezende sugere 0 uso sociolégico no plu- ral do termo juventude, para que possamos dar conta da diversidade na vivéncia desta fase de transigdo 4 maturi- dade, ou de socializagio secundaria, denominada “ju- ventude”. Esta concepgio alerta-nos sobre a existéncia, na realidade dos grupos sociais concretos, de uma plura- lidade de juventudes: de cada recorte sécio-cultural — classe social, estrato, etnia, religiao, mundo urbano ou rural, género etc. — saltam subcategorias de individuos jovens, com caracteristicas, simbolos, comportamentos, subculturas e sentimentos proprios. Cada juventude pode reinterpretar 4 sua maneira o que é “ser jovem”, contrastando-se nao apenas em relagao as criangas e adultos, mas também em relacio a outras juventudes.7 A juventude como categoria social nao apenas pas- sou por varias metamorfoses na histéria da modernida- de. Também é uma representagio e uma situacao social simbolizada e vivida com muita diversidade na realidade cotidiana, devido 4 sua combinagio com outras situa- gOes sociais — como a de classe ou estrato social —, e devido também as diferengas culturais, nacionais e de localidade, bem como as distingdes de etnia e de género. 7 Claudia Barcellos Rezende. “Identidade. O que é ser jovem?”, Revista Tempo e Presen¢a, n. 240, CEDI, 1989, pp. 4-5. 15 Juventude Por exemplo, séo importantes as implicagoes de classe nas diferentes experiéncias da juventude, A j juven. tude — e, antes, a infancia — foi vivida primeiro pelas classes burguesas e aristocratas, para depois tornar-se um direito das classes trabalhadoras. Jé a juventude tipi- ca do século XX, a juventude “rebelde-sem-causa”, radical ou delinqiiente, é, primordialmente, uma ima- gem baseada no jovem das chamadas “novas classes médias”. A juventude ideal e primitivamente construfda — urbana, ocidental, branca e masculina — outras juventudes vieram (ou tentaram) juntar-se — rurais, nao-ocidentais, negras, amarelas e mesticas, femininas etc. Sao outras juventudes que construfram para si representagGes e relagdes sociais concretas distintas, em diversos graus, do padrao considerado ideal ou t{pico da juventude em sua €poca. A juventude também é vivida diferentemente em cada um dos géneros, mesmo quando se trata de indivi- duos de uma mesma classe ou estrato social, do mesmo ambiente urbano ou rural, etnia etc. Diversos estudos descreveram as dificuldades, em geral, de as adolescen- tes experimentarem todas as prerrogativas dadas aos adolescentes — inclusive dentro de um mesmo grup? concreto juvenil.8 Por outro lado, jovens pertencentes a uma classé 8 Ver, pore " bre as dife ’ Por exemplo, as observacées de $.N. Eisenstadt sobre 16 A juventude como categoria social social ou etnia marginalizada podem criar uma identida- de juvenil calcada no reconhecimento e até na explicita- ao de sua diferenga, num gesto inesperado diante do processo que gerou o direito a juventude mais tardia- mente para as classes populares e etnias marginalizadas. Em muitos casos, grupos juvenis de operarios, de nao- brancos ou no-ocidentais adotam os mesmos simbolos, roupas e gostos culturais dos grupos juvenis brancos de classe média. Contudo, essa adogio ressignifica os obje- tos e signos tomados externamente, através de leituras que, muitas vezes, devolvem-nos com significados con- testados aos seus detentores originais.? Por fim, contemporaneamente, parece ser um trago marcante das vivéncias juvenis a formagao de grupos concretos que constroem identidades juvenis diferencia- das de acordo com os simbolos e estilos adotados em cada grupo em particular, inclusive nos casos em que ha coincidéncia étnica, de classe, género e localidade. Esta caracterfstica mais recente das juventudes vem sendo rengas entre os grupos femininos e masculinos de jovens nos Esta- dos Unidos dos anos 50. “Alguns tipos de grupos etérios”, in De geracdo a geracdo, Colecao Estudos/41, Sao Paulo, Perspectiva, 1976, cap. 2. 9 Sobre a adocdo de elementos da cultura juvenil de classe média e da cultura de massa por grupos juvenis proletarios e de negros, ver Stuart Hall and Tony Jefferson (orgs.). Resistance through rituals. Youth subcultures in post-war Britain, Londres, University of Birming- ham, Utchinson and Co., 1976. 17 Juventude tomada como uma das “provas” da diversidade S6cio-cyl. tural contemporanea apregoada pelos “pos-modernog”, Contudo, o propésito aqui é descrever e analisar processos mais gerais de construgao das juventudes modernas, buscando encontrar um paradigma que apre- sente uma diregdo para os diferentes e, apesar de tudo, complementares projetos de constituigdo dos grupos juvenis na modernidade. Encontramos, do século XIX até o infcio do século XX, uma nog&o de juventude engendrada pelas prdticas e discursos das instituicées sociais oficiais, estatais, liberais, burguesas, capitalistas etc., nogao legitimada pelas ciéncias modernas. Ao des- vendar este paradigma mais geral da criagao das juventu- des na modernidade, iremos deparar-nos com a dificul- dade de aplicagao do ideal da juventude, como uma fase transit6ria e de aquisicao da maturidade social, em rela- Gao a realidade sécio-cultural miltipla e complexa. Na verdade, reconhecer a diversidade das juventudes nao significa desistir do objetivo de entender por que 4 modernidade criou e recria a propria possibilidade da juventude. A criagio das juventudes é um dos funda- Mentos da modernidade, e a existéncia da multiplicida- de quase que incontroldvel de juventudes é um sinal de que este fundamento, assim como outros fundamentos da modernidade, possui suas contradigées. A diversida- de das juventudes modernas é um dos frutos das contra dligdes dos Projetos modernizadores que objetivaram 18 A juventude como categoria social criar as faixas etérias preparatérias 4 maturidade. O entendimento dessa diversidade passa pela aplicagao combinada de outras tantas categorias sociais que, assim como a juventude, se referem a realidades sociais con- traditérias: classe social, estrato social, etnias, géneros, oposigéo urbano-rural, relagdo nacional-local, global- regional etc. Ou seja, a multiplicidade das juventudes nao se fun- da num vazio social ou num nada cultural, nao emerge de uma realidade meramente diversa, ininteligivel e esvaecida. Tem como base experiéncias sécio-culturais anteriores, paralelas ou posteriores que criaram e recria- ram as faixas etarias e institucionalizaram o curso da vida individual — projetos e agGes que fazem parte do pro- cesso civilizador da modernidade. Geragoes Outro conceito sociolégico que é importante definir aqui é o de geragao, renomeado pela demografia contem- poranea como coorte. Karl Mannheim, interessado na explicagdo da construgio do conhecimento social, pro- curou definir a geragio como um “fato coletivo”, como uma forma de situagio social. Ou seja, analogamente ao conceito de juventude, a unidade de uma geragio nao é um grupo concreto como familia, tribo ou seita. Enquanto um grupo social concreto define-se como 19 Juventude “ynido de um numero de individuos através de] naturalmente desenvolvidos ou conscientemente dea dos”,!0 a geragao é estruturalmente semelhante a a fee de classe de um individuo na sociedade. Se a ca classe é baseada na situagao comum de certos individu, dentro das estruturas econdmicas e de poder, a situacig de geragao é “baseada na existéncia de um ritmo biol i- co na vida humana”.!! Tanto a vivéncia de uma Posigio de classe quanto a experiéncia comum de individuos situados em uma mesma fase crucial do curso da vida — segundo Mannheim, a juventude — “proporcionariam aos individuos participantes uma situagao comum no processo hist6rico e social e, portanto, os restringe a uma gama especifica de experiéncia potencial e a um tipo caracterfstico de acao historicamente relevante”. ! A julgar pelo critério em que, para Mannheim, se ba- seia a situagio de geracao, a experiéncia comum de uma transformacao biolégica — 0 curso natural da vida —, a geracao poderia ser considerada uma vivéncia social criada a partir de um fundamento natural. No entanto, de acordo com 0 conceito de juventude que aqui procu- ro definir, mesmo as faixas etdrias e as categorias sociais delas oriundas sio criagées sécio-culturais; jamais um dado puro e simples da natureza. O que temos, na ver- 10 Karl Mannheim. “O problema sociolégico das geracdes”, °P- cit. 1 Ibid. p. 71. 12 Ibid, p. 72. 20 A juventude como categoria social dade, tanto no conceito de juventude quanto no de gera- cao, é a possibilidade de se criarem representagoes € relagGes sociais derivadas de outras relagées e represen- tagdes sociais. No caso, relagGes e representagdes social- mente estabelecidas a individuos e grupos definidos como jovens. Mannheim, num segundo momento, parece distin- guir a situagao de geracao da unidade da geragao, sendoa segunda uma possibilidade, uma potencialidade de cada momento histérico particular e de cada situagao social. Uma unidade de geragio possui “grande semelhanga dos dados que constituem a consciéncia de seus membros”, !3 ligando, esses dados, individuos relativamente distantes no espaco e possibilitando, até mesmo, a participagao em “um destino comum e das idéias e conceitos de algum modo vinculados ao seu desdobramento”, criando, em uma situacio-limite, uma “identidade de reagdes”.!+ A unidade de geragio pode ser dada por um reper- tério comum de experiéncias sociais, dramaticas ou nao, singulares ou cotidianas, de individuos situados nas mes- mas faixas etérias, principalmente naquelas faixas de transicéo 4 maturidade, como a juventude. Para Man- nheim, na infancia e juventude as experiéncias sociais tornam-se “padrées inconscientemente ‘condensados’, 13 [bid., p. 87. 14 Ibid., p. 89. 21 Juventude meramente ‘implicitos* ou ‘virtuais””.!5 Sao 9 fundo de experiéncias sociais que vém aba outros modelos ¢ padroes sociais, os segundos jé conscientemente reco- nhecidos. Para Mannheim, na juventude os individuos realizam pela primeira vez a absorgdo consciente de suas experiéncias sociais, passam a ter realmente uma experi- mentagao pessoal para com a vida. J4 na maturidade, as novas experiéncias sociais recebem, em geral, elucidacao racional e reflexiva, sendo julgadas e analisadas pelo individuo a partir de padrdes de conhecimento jé sedi- mentados. A resisténcia dos individuos maduros a mudanga social é, portanto, muito maior que a dos jovens, pois os adultos j4 t€m seu quadro de referéncias formado, segundo Mannheim. Esta recepgio diferente dos acontecimentos, principalmente das transformagées Sociais, explica Por que os grupos etdrios mais velhos nao participam da mesma unidade de geragao dos gru- Pos etérios mais jovens. “Na juventude..., a vida é nova, as forgas forma- tivas esto comegando a existir, e as atitudes bdsicas €m processo de desenvolvimento podem aproveitar © poder modelador de situagdes novas.” 16 a '5 Ibid, p. 78, 16 lbid., p. 78, 22 A juventude como categoria social Cabe agora analisar a objegao ao conceito de gera- cao feita por Walter Jaide. Jaide descarta a possibilidade de as vivéncias comuns de um grupo de idade, em uma dada sociedade, virem a constituir uma unidade de gera- Gao. Defende que € mais forte a multiplicidade dos gru- pos concretos e das suas concepgées de vida.!7 Con- cordo que a multiplicidade social relativiza 0 alcance da unidade de geragio, no sentido de que um grupo etario possa construir uma mesma interpretagao para vivéncias comuns de acontecimentos histéricos e transformagées sociais. Contudo, a geracio, a juventude, além de outras categorias sociais advindas da institucionalizagao do cur- so da vida, sao também realidades sociais atuantes e nado despreziveis para o entendimento das relagGes sociais e de suas transformagoes. A modernidade também é construfda sobre o reconhecimento, a criagao e a recria- gio das faixas etarias que podem proporcionar realida- des semelhantes as que Mannheim chama de unidade de geracio. E légico que uma anilise social eficiente deve sempre combinar a categoria social juventude ou gera- Gao com outras categorias sociais, procurando tornar mais inteligivel a reconhecida multiplicidade social pro- clamada por Walter Jaide. Mannheim procura pensar também sobre o quanto as diferengas entre geragdes devem-se ao ritmo vertigi- 17 Walter Jaide. “As ambigiidades do conceito de geragéo”, in Sulamita Brito (org.), op. cit., vol. III, pp. 16-30. 23 Juventude noso das transformagoes sociais da modernidade. Na sociedade moderna, as experiéncias sociais vividas pelas juventudes, em uma dada geragio, sao radicalmente diferentes das experiéncias vividas pelos adultos quando estes eram jovens. Relativizando esta concepgio, deve. mos lembrar que a situagao de geragao nao garante a for- magio da unidade (ou unidades) de geracio. E, segundo o préprio Mannheim, a unidade de geragSo nao desen- volve representagdes e atitudes necessariamente “pro- gressistas”, muito menos agdes benéficas para a criagéo de uma sociedade democratica planificada, como era o desejo do planejador social Mannheim. A juventude, segundo Mannheim, é paradoxal — uma ameaga que é impossivel neutralizar e que deve ser conquistada. Socidlogo alemao radicado na Inglaterra durante a Segunda Guerra Mundial, Mannheim trazia muitas referéncias dos grupos juvenis formados pelo nazismo. Sabia muito bem que a mobilizagao da juventu- de podia ser perversa, direcionada ao “conservantis- mo”.!8 Também dizia que se a intelligentzia, grupo de intelectuais que deveria dirigir a criagao da sociedade pla- nificada democratica, nao tivesse 0 apoio da juventude, a reagao conservantista podia fazé-lo e impedir as transfor- magoes. A juventude de Mannheim é uma “forga poten” 18 Karl Mannheim. Diagnostico de nosso tempo, Rio de Janeiro, Zahar, 1961. 24 A juventude como categoria social cial de transformagao da sociedade”. Mas também pode ser, e este é o problema, uma forga de conser vagao. “Quando eu era jovem, a crenga corrente era de que a juventude é progressista por {ndole. Desde entao isto revelou-se falso, pois aprendemos que movimentos reacionérios ou conservadores também podem formar organizagoes juvenis... A juventude nao € conservadora nem progressista por indole, porém é uma potencialidade pronta para qualquer nova oportunidade.”!9 A juventude e as novas gerag6es aparecem em Man- nheim como forgas transformadoras da modernidade, elementos dinamicos de um tempo em constante mudan- ca, independentemente do sentido “progressista” ou “conservador” de sua atuagao. Para Mannheim, enquanto as sociedades tradicionais depositam o prestigio e o poder nos mais velhos, além de relutarem “em encorajar novas forgas latentes dos jovens”, as sociedades dinamicas, co- mo as modernas, “contarao principalmente com a coope- racio da juventude” quando quiserem mudar sua filosofia social ou politica. Em Mannheim, a juventude € reconhe- cida como “agente revitalizador” da modernidade.?° 19 [bid., pp. 40-41. 20 Karl Mannheim. “Fung6es das geragdes novas”, in Luiz Pereira e Marialice M. Foracchi (orgs.). Educa¢ao e sociedade. Leituras de so- ciologia da educa¢do, 1978, pp. 91-100. 25 Juventude A concepgio de juventude e de “geragdes novas» de Mannheim é abrangente, envolvendo as trés Nocdes gerais de juventude trabalhadas pela sociologia, segundo Helena W. Abramo: — A nogao de transitoriedade, na qual a juventude antecede a vida social plena. — A nogio de projeto — “a etapa juvenil como es- tégio de preparacao para uma vida posterior so- cialmente plena”.?! — A nogio de crise e ruptura. Além da abrangéncia, na sua conceituagao de juven- tude e geracéo, Mannheim promove alguns avangos, pri- meiro, preocupado com a sociologia do conhecimento, segundo, preocupado com a planificagao de uma socie- dade democratica em meio aos tempos sombrios da Segunda Guerra Mundial, esperando ver os jovens longe de organizagGes nazi-fascistas que marcaram a atuagao das novas gerac6es no Entre-Guerras na Europa. Con- tudo, na sua definigdo de geracao, Mannheim ainda prende-se demais & aparéncia biolégica do curso da vida, a visdo objetivista-naturalista que as ciéncias modernas 21 Abramo, Helena Wendel. Grupos juvenis nos anos 80. Um estilo de atuacao social. Dissertacao de mestrado em Sociologia, Depar- tamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras € Ciéncias Humanas da Universidade de Sao Paulo, Sao Paulo, 1992, P- 20. 26 A juventude como categoria social impregnaram na sua marcagao rigida dos estagios da vida e das faixas etdrias. A préxima tarefa seré a desmistificagao deste funda- mento “natural” da juventude, mostrando que a faixa e- taria juvenil, assim como os demais grupos de idade, séo uma criagio sécio-cultural prépria, marcante e funda- mental dos processos de modernizagao e da configura- Gao das sociedades contemporaneas. Essa criagio surge ao lado ou em conjungao com outras categorias sociais essenciais, como estruturas e estratificagdes sociais, relagdes de género, relagdes étnicas e outras, bem como junto a fendmenos histéricos cruciais, como 0 capitalis- mo, o imperialismo, o “ocidentalismo” etc. 27

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