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condigdes de sua validade (respeito reciproco) e da possibilidade de sua Tenegociacéo, desde que aceita pelos membros do grupo (da sociedade). Piaget corrige,assim, a viséo sociocéntrica de Durkheim e Weber, atribuindo ao individuo uma participagao ativa na construgao da norma que rege o comportamento de um grupo. E Piaget corrige também a viséo conservadora de Durkheim, mostrando (0 que Weber ja havia demonstrado filogeneticamente) que a norma néo um “dado”, “uma coisa”, mas algo dinémico negocidvel e antecipdvel pelas partes. A “autonomia” moral tem para Piaget um estatuto verdadeiramente polltico ‘e democratico. "Tudo permitido, toda proposigo individual, via de regra, digna de exame. Nao hé mais delitos de opiniéo, no sentido de que 1ndo é mais contrério as leis desejar mudar as leis. Somente..., N80 se tem direito de introduzir uma inovagéo endo por via legal, isto 6, ‘convencendo previamente os outros submetendo-os, de safda, a0 veredito dda maioria, ... Em suma, a lei de agora em diante emana do povo soberano e néo da tradi¢ao imposta pelos mais velhos.” (Piaget, Le Jugement Moral Chez L'Enfant. 1932, p. 49). Em dois estudos realizados no Brasil, procurou-se saber se a Psicogénese da moralidade infantil, ostulada por Piaget, tem seu apoio empirico na realidade brasileira, Em 1980 estudou-se a consciéncia moral ‘de meninos de favela (de 6 a 16 anos) (cfe. Freitag, 1984) e Verificou-se que as condigées materiais precérias de existéncia acrescidas da falta de escolaridade bloqueavam o percurso “natural” da Psicogénese infantil. Os adolescentes da favela tinham "estagnado” no estdgio da moralidade heterénoma, Em contrapartida, meninos da mesma idade, mesmo que pobres, assegurando-se-thes oito anos de escolaridade plena em escolas piiblicas, apresentavam o ‘comportamento tipico do estégio da ‘moralidade aut6noma. A consciéncia da norma depende, pois, néo somente de processos maturacionais e de reconstrucao interna da norma por parte da crianga, mas sim das condigdes sécio-econémicas em que vive a crianga e da sua escolarizacao plena ou néo. Em um segundo estudo, realizado na rea rural de Golds e na érea urbana do Distrito Federal (Ceiléndia) (Freitag, 1986) a influéncia positiva da ‘escola sobre a reconstrugao © ‘conscientizagao da norma est4 sendo confirmada, Tudo parece indicar que ‘0 convivio entre pares de varias otigens (de classe, de regides, de religides e sexos diferentes) estimula © desenvolvimento das estruturas da consciéncia da norma. As “normas” ‘Go “apreendidas” e respeitadas na medida en que se constituem grupos sociais no patio da escola, onde as criangas passam a exercitar as “normas” através de regras de jogo: desde 0 jogo da biloca ao jogo de {futebol improvisado (‘ol6”, “olezinho”). Em todos os casos estudados as criancas desenvolvem uma consciéncia agugada da norma cuja existéncia, validade e necessidade passam a ser percebidas desde o primeiro ano primério e cujo cardter consensual e redefinivel, sob novas bases, ndo passa despercebido, desde que néo seja obstruldo 0 caminho de formaco e consolidagéo da psicogénese, Uma das vias de cobstrueo 6, como se tentou mostrar, a exclusdo da crianga da escola e a imposigao feita as criancas fora da escola de se submeterem aos ditames dos mais velhos e das classes dominantes, integrando-as pprematuramente no process de trabalho para assegurarem sua sobrevivéncia. Psicogenstica e sociologicamente falando, 0 jogo passa a ser, como vimos, uma etapa prévia e condicdo indispensével para ‘a construgdo individual e coletiva da nora. Criangas que “brincam” no patio da escola ou nas ruas estéo construindo e reconstruindo o mundo das normas dos adultos. ‘Quanto mais autonomia tiverem, mais inventivas e democraticas sero para reconstruir a sociedade brasileira em normas mais justas e aceitaveis para todos. Normas juridicas e outras normas sociais O texto, aqui reproduzido, era parte de um volume, encoriendado pela Ecitora Brasiliense, para a colego ‘Primeiros Passos” (Roberto Lyra Filho, O Que 6 0 Direilo, S80 Paulo, Brasiliense, 1982). Tive de sacrificélo, para ajustar 0 meu escrito a0 formato da série. Portanto, & preciso advert 0 Ieltor de que 0 fragmento, ora divulgado, inicia 0 debate, por assim Roberto Lyra Filho* dizer, no meio do caminho, e termina bruscamente, anunciando um exame da reat distingo entre Direito @ Moral, que nao chega a expor. Quem desejar a revisdo completa pode tomar o lio, editado pela Brasiliense, e inserir este pequeno trecho, entre 0s capitulos 4 (Sociologia ¢ Direito) ¢ Froeszor Emnéfio da Universidade de Brass: Fundador da Nova Escola Jurca ras, 51 (Dialética Social do Direito): verd, entéo, que ele se encaixa perfeitamente no lugar de onde foi retirado. ‘Apesar de tudo, creio que serd itil a divulgacdo isolada, pois aqui se discute urn ponto de especial interesse para o jurista, em perspectiva francamente *herética”; isto é, divergindo, sem rebugos, dos ritérios habituais e consagrados, na distincdo entre a norma juridica e as outras normas sociais, especialmente a moral. .- Admite-se, em geral, que 0 Direito se exprime através de um certo tipo de norma ~ a norma juridica. Devemos, entretanto, salientar que esta é a embalagem: 0 Direito ¢ 0 contetido. Ele se forma antes de ser acondicionado na norma juridica, e nem tudo que nela € posto sera Direito legit inclusive porque hd mais de uma série de normas juridicas, em coexisténcia conflitual, a cada ‘momento, e todas elas pertencem a dialética social do Direito. Veremos isto no préximo capftulo, buscando, ‘numa proposta diferente, a alternativa para a antinomnia aparentemente insoldivel, isto 6, 0 critério de superagao das oposicbes ideolégicas entie “direito positive” e “direito natural” Os positivistas tendem a reduzir 0 Direito as normas ou, ainda mais restritamente, &s rorrras legais, neste aso rejeitando as tentativas de ver 0 fendémeno juridico num produto prelegislativo, nos mores e costumes da classe @ grupos dominantes (positivismo historicista ow sociologista), seja, objetivamente, ‘como “cultura” @ Volksgeist — esplrito do povo ~ monopolizados por aquela classe e grupos; seja, subjetivamente (positivismo psicologista), no “aireito livre” do intérprete; no “direito jucicial” 82 \Gudge-made law) dos aplicadores Contenciosos oficiais; ou na *fenomenologia juridica", dos pesquisadores de “essBncias” (que ppetmanecem limitados pelas diretrizes de um s6 enfoque, o da classe © grupos dominantes). Isto j& {oi explicado, aliés, no capftulo 3, Nessas oscilagées, dentro de uma faixa arbitrariamente contralda, 6 que se estabelace certa divergéncia, entre 08 positivismos. Aiguns (e &, ainda hoje, a maioria, a partir do que se chamou o Estados"Modemo") circunscrevemse &s leis, embora no ra10 isto thes cause embaraco, diante das “superieis” (que também aspiram 2 autofundamentagao. juridica’), oriundos de grupos que tormam 0 poder, para reafirmar diretamente 0 ‘dominio classistico, ainda que, para isto, tenham de pagar o prego do rompimento de todo um sistema de legalidade, sujeitando-se a discusséo do problema jurfdico da prépria legitimagdo. AV & que se insere 0 paradoxo de negar a intocabilidade de tum ordenamento estatal completo, inclusive na cdpula constitucional (0 que importa em admitir pardmetro de aleri¢do superior &s leis), e logo em seguida, recomposta uma outra legalidade, reverter & idéia de que esta é intocdvel e nao pode ser mudada, nem mesmo por meios paclficos (como se aquele pardmetro fosse monop6lio dos vitoriosos eventuais e questo fechada de um sistema tinico, legitimado por si mesmo). Neste contexto, fala-se, 8 vyezes, em revolucdo, confundindo a revolugdo verdadeira, que 6 conceito da ciéncia hist6rica e sociol6gica, importando na reestruturacao ‘completa da sociedade, a partir de suas bases, @ golpe de Estado, que & ‘movimento poiltico, em que 0 governo passa de um grupo a outro, sem {tocar de classe dominante, nem remadelar basicamente a ordem assente. O propésito dos golpes de Estado é, em geral, evitar essa remodelacdo, inclusive a que se tente poor via legal (em cuja iminéncia os defensores da ordem” chegam a aluar por cima das leis). Mas é Sbvio ue, no golpe de Estado assim efetivado, néo hd revolugdo ou sequer reforma, porém a conservagao brusca, Esta confissao jd se encontrava no préprio Kelson. Em todo 0 caso, os posi nem sempre do & norma jurfdica o mesmo sentido, Alguns limitam-se as leis, deoretos-lei e seus decorrentes decretos, regulamentos e outras miudezas. Outros dilatam o conceito de norma juridica e, embora sem abandonar 0 legalismo, admitem um processo de derivacdo, que, embora 1néo ultrapassando aqueles marcos, chega &s,"normas individuais", isto 6, produzidas em algum caso concreto ~ ‘como as sentengas dos magistrados & 0s contratos, celebrados entre particulares ou envolvendo érgaos pailicos. E 0 caso, novamente, de Kelsen. A Teoria Geral do Direito, como usualmente praticada, é campo anémico, desenvolvido a partir da tradigéo dos juristas burgueses do séoulo XIX. Nao pretendemos -convidar 0 leitor para um passeio nessa caatinga. Como as colegdes de selos, 05 jogos de xadrez @ as palavras cruzadas, a referida teorizagdo exige um gosto muito particular e nao traz grande esclarecimento ou efeito pratico para o que é, de fato, a vida do Direito. isto néo significa, é claro, que consideremos indteis todos os ‘estudos de Légica Juridica; apenas afirma que ela definha e morte, ern ‘construgées alambicadas, enquanto se exacerba em acrobacias mentais de Légica Formal. Alienando-se, acriticamente, perante os problemas reais da vida juridica e social, da origem das normas € ‘seus efeitos de dominagao, 0 formalista dedica-se a0 passatempo que parece dar certo rigor cientifico aos exercicios conformistas, de servico prestado a *vontade” do legislador. \Vejamos um exemplo do frenesi {6gico-formal no polonés Leszek Nowak. Ele toma a seguinte proposiao de Wréblewski ~ “6 preciso estabelecer 0 sentido, de tal sorte que nenhuma das expresses ‘compreendidas nas normas seja reputada supértlua, isto 6, sem importdncia, nem que a noma interpretada seja declarada indtil, na ‘moldura de um determinado ato jurldico” ~ 0 que, segundo a Logica Juridica Tradicional, &rigorosamente ‘uma banalidade meio cabreira do positivismo (@ faz caso omisso, 6

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