4. A ESCALA DIATONICA E O PROBLEMA DO TRITONO
JA vimos que as escalas pentatdnica e diatonica sio geradas igualmente
pelo ciclo de quintas. Em algumas tradicées o ciclo é interrompido na altura
82OY
da quinta nota, onde se considera que esté formado um con
cjente. Em outras, prossegue-se até a sétima nota,
nica é considerada como 0 limite que nao se dey
junto escalar sufi-
€ dessa vez a escala heptato-
€ ultrapassar. Donde dé-ré-
_mi-fé-sol-ld-si (estou dispondo as notas segundo a nomenclatura ea ordem
adotadas pela misica tonal moderna),
A geragao da escala diatonica
De fato, existem razées estruturais fortes para que esses dois pontos sejam
marcos na constituigao das escalas. E que, se o engendramento por quintas
prossegue para além da pentaténica (mais além do 14 quando partimos do fa),
surgem problemas novos, que a escala de cinco notas nao colocava e que fario
da diat6nica (a escala de sete notas) uma estrutura bem mais intrincada. Em
primeiro lugar, o acréscimo de uma nova nota, no caso do mi (a quinta supe-
tior do 4), vai produzir um encavalamento de meio tom com o fé (apresentan-
doo mie o fa um grau de proximidade que se distingue das demais notas vi-
inhas, separadas por um tom). Em segundo lugar o si, a sétima do ciclo de
quinta a partir do f4 (e quinta superior do mi), vai apresentar também um
encavalamento de meio tom com o dé, formando uma escala de sete notas que
apresenta um novo tipo de desigualdade interna: cinco intervalos de um tom*
(d6/ré, ré/mi, f4/sol, sol/la e lé/si) e dois intervalos de semitom* (mi/fé e si/d6,
Visiveis no teclado do piano pela auséncia das teclas pretas entre essas notas).
A escala diatonica preenche os buracos da pentaténica, mas com intervalos
Recessariamente menores e desiguais, 0s dois semitons. |
As melodias resultantes dessa escala apresentarao matizes 2 ee "i
‘ervalares que a pentatdnica nao contém, e que se devem a essa en :
diferencas internas, a sucessio desigual de tons e semitons (0 que dé : esc ss
“2 Fiquera, mas também um excedente de problemas a resolver, na onms 8
Administracéo da desigualdade). O espaco da escala, que é 0 da oitava, 8 2P
83nsamente ocupado de notas, ¢ essa densidade “popy
rece bem mais de:
onal
sua ver um jogo de forgas (estrutural) mais tenso, cor ‘
implica po
possibilidades maior
tabilizadora). Parece cl
aordem heptatonica a evitam, pe
a aventura temerdria da evolucao, com 0 a
ado p,
es de polarizagao (estabilizadora) € antipolarizaci ? or
(ing.
Jaro, assim, que certos sistemas musicais que conte,
rmanecendo no quadro da pentatonicg —
se nao quisessem se langar ae
mento de contradigdes que ela comporta (ou seja, percebe-se o limite estruty,
ral que serd ultrapassado quando se vai da pentatonica & heptatonica),
‘A-escala diaténica é uma escala cujo rendimento depende da sua deg.
gualdade constitutiva, do fato de que seus intervalos incluem dois insidiosos
semitons cromaticos, com seus deslizamentos, e as propriedades sedutoras que
os caracterizam (e sobre as quais jé falei antes).
Vou adiantar também um outro elemento de graves consequéncias para
o desenvolvimento ulterior da musica europeia: a presenga de um tritono*, 0
tritono é um intervalo de trés tons, como aquele que temos entre as notas fé/
si, e funciona como uma espécie de antitese da oitava. Enquanto a oitava é um
intervalo inteiramente estavel, baseado na relacao 1/2, sendo igual a sua pré-
pria inversdo (pois d6/d6 é igual a d6/d6), 0 tritono divide a oitava a0 meio, é
um intervalo do mesmo tamanho
também igual 4 sua propria inversio (fa/si
de si/fa) e instavel, baseado na relagdo 32/45 (pulsos melédicos em relagio
complexa, que sé coincidem depois de ciclos longos). Com os atritos que estio
subjacentes a sobreposicao desses dois pulsos e o grau maior de “ruido” que
eles introduzem na escala, a diatonica mostra-se, assim, uma escala de consti-
tuigéo mais problematica, mais complexa, ao mesmo tempo que mais rica de
relagoes intervalares.
Sobre 0 tritono, pode-se dizer ainda que ele se opée a oitava como 0 sim-
bolo se opde (etimologicamente) ao diabo (isto é, ao diabolus). A palavra “sim
bolo” diz, na sua raiz grega, “o que joga unindo”, como a tessera romana (pes
que consiste em duas partes que se justapdem perfeitamente, recompond?
aad unidade). Assim, o triangulo formado pelas notas (d6-sol-d6), onde @
oltava (d6-d6) se divide harmonicamente em uma quinta (d6-sol) e uma qu
a integrando as relagdes intervalares 1/2, 2/3 e 3/4 (2/3 x 3/4 = 1
— epee unificadoras do simbolo, Mas a oitava divide ne?
Priedades esquizantes ee (eo ae F 0
iabolus (0 que joga através, 0 que joga cortando.
84que joga para dividir). w fato de que a escala diaténica abrigue dentro de si
necessariamente @ falha” do tritono, a dissonancia incontornavel, se torn
na Idade Média um problema nao sé musical, mas moral e metafisico: 0 die
bolus in musica intervém na criagao divina, penetrando na escala diatonica no
iltimo momento da sua constitui¢ao (a sétima nota do ciclo de quintas), de-
vendo ser evitado e contornado por uma série de expedientes composicionais
(como veremos mais adiante). Por esse mesmo motivo (isto é, 0 “defeito” que
introduz na ordem escalar) a nota si, embora existisse na escala, nao tinha
nome durante toda a Idade Média: ela consiste propriamente no inominavel,
e, assim como é contornada e desconversada na pratica compositiva, ¢ no-
meada através dos complexos torneios de solmizagdo, sistema de nomeacio e
de transposi¢ao de intervalos que se acopla a evitagao sistematica do tritono.'*
As histérias da musica nao costumam se demorar na interpreta¢ao desse
recalque, que tem a maior importancia para o entendimento da economia sim-
bélica (sonora e cosmolégica) da musica modal europeia, que prepara o cam-
po da tonalidade: o canto gregoriano e seus desenvolvimentos polifénicos en-
tre os séculos 1x-xv. Esse assunto ser objeto de consideragao mais adiante.
Por ora, importa assinalar que a escala diaténica, que permitird grandes desen-
volvimentos 4 musica melédica, e posteriormente polifonica e harménica, pe-
las possibilidades contrastivas e conflitivas que ela comporta, oferece, em cer-
to passo da sua historia, a imago mundi da perfeicao defeituosa, de uma ordem
onde transam harmonia e perversio potencial, campo dramatico sobre o qual
atonalidade se constituird, mais tarde, fazendo desse conflito, e de sua resolu-
§40, 0 seu elemento mobilizador.