KRAUSS - Caminhos Da Escultura Moderna

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INTRODUCGAO Embora tenha sido escrito no século XVII, 0 tra- tado estético de Gotthold Lessing, Laocoonte'*, apli- ca-se diretamente discussdo da escultura nos dias de hoje. Isso porque, no decurso de sua argumentacio, Lessing julga necessario indagar sobre a natureza da escultura e considerar de que modo podemos definir a singular experiéncia dessa arte, Se a formulago des- sas mesmas questdes tornou-se mais necesséria ainda, & porque a escultura do século XX adotou, repetida- mente, formas que 0 piiblico contemporaneo teve di- ficuldade de incorporar as suas idéias convencionais acerca da fungio caracteristica das artes plisticas. Isso foi tio valido para os objetos criados por Brancusi, Duchamp ou Gabo na década de 20 como o é para 0 trabalho de varios escultores dos tltimos anos. A questio do que se pode considerar propriamente um trabalho de escultura tornou-se cada vez mais proble- mitica, Por conseguinte, ser conveniente, a0 se em- preender um estudo da escultura deste século, exami nar, a exemplo do que fez Lessing duzentos anos atrés, a categoria geral de experiéncia em que a escultura se insere. * Or numero sbresrtos mete 8s notas que ti nko 8 gina 339. 2.CaMINHOS DA ESCULTURA MODERNA fives, stint Marmere 2.13, Museu do Vaeane, Roma Fate Alina svTRODUGAO Ao tentar descobri-lo em seu Laocoonte, Le: comeca por definir as condigdes limitadoras de ¢: arte. Indaga se existe alguma diferenea inerente entre um acontecimento temporal e um objeto estatico e, caso exista, qual 0 seu significado para as formas de arte relacionadas com o primeiro ou o segundo tipo de construco. Ao levantar essa questo, Lessing incur- siona por aquilo que denominamos critica normativa. Ele procura estabelecer normas, ou critérios objetivos, que permitam definir 0 que é natural a um empreen- dimento artistico determinado e compreender quais seus poderes especiais de criar significado. Assim, em resposta a pergunta “o que é a escultura?”, Lessing declara que a escultura é uma arte relacionada com a disposicdo de objetos no espaco. E, prossegue, € pre- ciso distinguir entre esse cardter espacial definidor ¢ a esséncia das formas artisticas, como a poesia, cujo veiculo é 0 tempo. Se a representagdo de agdes no tem- po é natural para a poesia, argumenta Lessing, nio & hatural para a escultura ow a pintura, pois o que carac- teriza as artes visuais € o fato de serer estéticas. Em. decorréncia dessa condicdo, as relagdes entre as partes, isoladas de um objeto visual so oferecidas simulta- neamente a seu observador; estdo ali para serem perce- bidas e absorvidas em conjunto e ao mesmo tempo. Na década de 30, esse sentido de uma oposigio natural entre uma arte do tempo e uma arte do espaco tornara-se um ponto de partida basico para avaliar as realizagdes singulares da escultura. No livro Modern Plastic Art, 0 primeiro a tratar seriamente da escultu- ra do século XX, a autora, Carola Giedion-Welcker, volta-se inteiramente para 0 cardter espacial do traba- Iho escultural. O entusiasmo de Giedion-Welcker pelas realizagées modernas dessa arte decorre de sua per- cepedio da crescente pureza com que a escultura foi concentrada em seu cardter espacial - A exclusio de |CANIINHOS DA ESCULTURA MODERNA quaisquer outras preocupagdes. Em seu modo de ver, 0s recursos espaciais da escultura em termos de signi- ficado originavam-se naturalmente do fato de ser ela composta de matéria inerte, de modo que sua propria base implicava uma extensfio no espago e nao no tem- po. Ela observou, ao longo de toda a escultura moder~ na, forjar-se manifestamente uma relagdo entre essa matéria inerte e um sistema de configuragio imposto a ela, de modo que se estabelecia, no espaco estatico ¢ simultineo do corpo escultural, uma comparagio entre duas formas de quietude: a substincia densa e imével do objeto e um sistema licido ¢ analitico que aparentemente lhe havia dado forma. Ela identificou dois grandes caminhos por meio dos quais essa crista- lizago da matéria fora levada a cabo em fins da déca- da de 30. Os escultores haviam analisado o material estatico “quer através de uma deliberada simplifica~ fio dos volumes, quer em termos da desintegragio da massa pela luz”. A obra de Brancusi foi o exemplo adotado pela autora da capacidade que tem o escultor de reduzir 0 material 4 simplicidade volumétrica, ao asso que Naum Gabo avultava como 0 mais nitido expoente do uso da luz pelo construtor para abrir a ‘matéria a uma anilise de sua estrutura. Contudo, se estivermos interessados em examinar ‘as diferencas entre Brancusi e Gabo, seré insuficiente falarmos apenas dos sistemas opostos empregados por eles para dispor a matéria no espaco abstrato e simul- taneo em que, segundo presumimos, a escultura habi- ta naturalmente. Somos forgados, cada vez. mais, a fa- lar de tempo. O tratamento da forma por Brancusi sub- entende uma condi¢ao temporal diferente da de Gabo: seu significado brota de um conjunto inteiramente di- verso de apelos a consciéncia que o observador tem de seu proprio tempo ao vivenciar a obra. No Laocoonte, Lessing evidentemente compreendeu isso. Acrescen- tou, a sua célebre distingdo entre artes temporais e espa- 2, Robert Smithson (1938-73) (Quebvamar epi, 1968-70. asa, cra oes eae Rozele Pont, Grance Lago Salgado, Utah. (fate Ganfanco Gergen InTRODUCAO § ciais, uma importante adverténcia: “Todos os corpos, entretanto, existem no apenas no espago mas também no tempo. Eles continuam e podem assumir, a qualquer momento de sua continuidade, um aspecto diferente & colocar-se em relagdes diferentes. Cade um desses as- 6 CAMINHOS DA ESCULTURA MODERNA pectos e agrupamentos momentineos tera sido 0 re~ sultado de um anterior e podera vir a ser a causa de um seguinte, constituindo, portanto, o centro de uma agio presente.” ‘A premissa subjacente ao estudo da escultura mo- derna que se segue é a de que, mesmo em uma arte es- pacial, nfo ¢ possivel separar espago ¢ tempo para fins de analise, Toda e qualquer organizagio espacial traz no seu bojo uma afirmagao implicita da natureza da experiéncia temporal. A histéria da escultura mo- demna estaré incompleta sem uma discusso das con- seqiiéncias temporais de um arranjo particular da for- ma. Na verdade, a historia da escultura moderna coin cide com o desenvolvimento de duas escolas de pensa~ mento, a fenomenologia e a lingiistica estrutural, em que 0 significado € tido como dependente do modo como qualquer forma de ser contém a experiéncia la- tente de seu oposto ~ a simultaneidade contendo sem- pre uma experiéncia implicita de seqiiéncia. Um dos aspectos mais notiveis da escultura modema é 0 mo- do como manifesta a consciéncia cada vez maior de seus praticantes de que a escultura é um meio de ex- pressfio peculiarmente situado na jungo entre repou- so € movimento, entre o tempo capturado e a passa- gem do tempo. E dessa tensio, que define a condigio mesma da escultura, que provém seu enorme poder ex- pressivo, A meta do estudo que se segue & critica e tedrica, bem como histérica. Minha intengio é investigar a organizacdo formal e as preocupacées expressivas de ‘um niimero limitado porém representativo de obras no Ambito do desenvolvimento da escultura moderna. Por conseguinte, o método utilizado esté mais préximo dos “estudos de caso” do que dos procedimentos de um panorama histérico, geral. Esses estudos visam a for- mar um conjunto de conceitos que ndo apenas revelem as questdes esculturais implicitas nas obras particulares INTRODUCAO 7 estudadas, mas que também possam ser generalizados de modo a aplicarem-se ao corpo mais vasto de objetos que compdem a histéria da escultura do século XIX. E minha esperanga que os ganhos obtidos com o exame de uma obra ou de um grupo de esculturas re- lacionadas compensario as perdas que esse método implica em termos de uma andlise historica global. Numerosos escultores que produziram obras de alta qualidade no foram incluidos neste texto, enquanto outros de mérito inferior 0 foram, Tais escolhas foram guiadas pela deciso de abordar os aspectos funda- mentais que distinguem a escultura mederna da obra que a antecede. Assim, por exemplo, a continuacio, século XX adentro, de um tratamento tradicional da figura humana nao ¢ abordada nestas piginas ao lado dos demais movimentos discutidos. Na minha opi- nido, contudo, as questdes relacionadas & decisdo de representar a forma humana, por intermédio de um ‘vocabulério primitivista, gético ou arcaico, nfo sio fundamentais para o tema do presente livro. Haverd leitores que vero nisso uma concepgdo demasiado estreita da escultura moderna. Todavia, foram as com- plexas manifestagdes de uma sensibilidade moderna 0 ‘que me propus explorar. E tenho a esperanca de que ‘5 problemas expostos no texto que se segue funcio- nem como um conjunto de investigagdes significati- vas efetuadas na grande massa da prodv¢do escultural, por meio da qual se deu forma a essa sensibilidade. CAPITULO 1 TEMPO NARRATIVO: A QUESTAO DA PORTA DO INFERNO Outubro, 0 épico cinematografico de Eisenstein sobre a Revolugio Soviética, comega com a tomada de uma estitua, friamente iluminada contra um céu escuro. Ea estétua de Nicolau II, o czar da Ritssia (ig. ), ‘a qual o cineasta explora detalhe por detalhe, cons- ‘ruindo com ela uma imagem de poder imperial. Na cena que se segue a essa abertura, uma multido acor- re para a praca ocupada pelo monumento. Cingindo-a de cordas, os insurgentes derrubam a estétua de seu pedestal, num ato pelo qual Eisenstein simboliza a destruigao da dinastia dos Romanov. Nessa primeira cena, Eisenstein expde os dois, pélos de seu filme ~ as duas metéforas opostas que estabelecem tanto sua anélise da histéria como o es- pago em que esta se desenrola. A multidao e 0 espa- | Go real em que ela se movimenta sao chamados a re- presentar o herdi da Revolugao, ao passo que o inimi g0 dessa Revolucao ¢ representado como uma série de ideologias e espacos formais, cada qual simbolizado por meio de estituas. Nessa recriacdo cinematografica da luta pela manutengao do poder imperial na Russia, as esculturas fazem as vezes de atores; e hi uma iden- 10 CAMNHOS DA ESCULTURA Mr tificagiio sistematica de icones particulares com con- ccepgdes politicas particulares. “Temos um elogiiente exemplo dessa identificagao quando Eisenstein introduz a figura de Kerenski, pre- sidente eleito do Governo Provis6rio que assumiu po- deres ditatoriais. Quando Kerenski esti postado na en- trada da sala do trono do Palacio de Inverno, Eisenstein entrecorta a cena, alternando tomadas dele com as de um pavio. Significativamente, o objeto com o qual Ke- 3, Serge’ Eisenstein (1808-1948 ‘ute otograa), 1927-28, [ot, crea do Arquivo de Fotos Cinemategrteas, The Museum at Nose At, Nova York) TEMPO NARRATIVO: A QUESTAO Dat PORTA D renski € comparado nao é um animal vivo, nem uma representagio estitica de porcelana, digamos, ou de uma tapecaria. O pavéio mostrado por Eisenstein, ade- jando uma cintilante plumagem metiliza, é um autd- ‘mato —uma ave mecinica de intrincade construgéo. E, ‘0 que Eisenstein pretende que o espectador veja, no espaco daquele flash do movimento preciso da ave, no é uma imagem de vaidade pessoal, mas o simbo- lo de um racionalismo empobrecido e cbsoleto. Como autémato, a ave representa 0 argumerto racionalista da Grande Cadeia da Existéncia, em que Deus, como Causa Primeira do universo, era equiperado ao supre- mo relojociro. Nessa analogia, a prépria existéncia do mecanismo de precisio (simbolizando a sagacidade do artificio humano) era usada como prova do I6gico, “Bom Designio” de um mundo intrinsecamente jus- to’, Para Eisenstein, esse argumento identificava-se com uma filosofia politica oposta as rmudangas e com, ‘um propésito de usar as “coisas como so” para legi- timar a opressio. Quando Kerenski entra na sala do trono, o faz para reintroduzir a pena de morte nas leis da Riissia. Em outros trechos do filme, Eisenstein explora outros tipos de escultura: imagens de Napoledo, figu- ras de Cristo e idolos primitivos'. A certa altura, mos- tra soldados do sexo feminino, que defendem o Palé- cio de Inverno do iminente ataque dolchevique, a observar duas obras de Rodin: O beijo e O idolo eter- no. Usando essas esculturas em suas versdes de mér- more, Eisenstein fotografa-as de modo que parecam, ‘macios montes de carne, que as mulheres fitam com, uum fascinio embevecido e extasiado, Com esse recur- so, Eisenstein filma um sentimento que obviamente abomina: uma nostalgia melosa das fantasias amoro- sas passadas, aspecto fundamental dessas esculturas —e de toda escultura — para Bisenstein nfo é sua qualidade mimé- 12 CAMINHOS DA ESCULTURA MODERNA tica, nfo é sua capacidade de imitar o aspecto da carne em vida, mas seu poder de personificar idéias de atitu- des. O pressuposto basico de Eisenstein é que a escul- tura, a arte em geral, é fundamentalmente ideolégica. ‘Uma das ironias do museu virtual de representa~ es esculturais empregado em Outubro é a inclusio de Rodin. Isso porque sua carreira, que teve fim em 1917, exatamente as vésperas da Revolugio celebrada pelo filme de Eisenstein, produziu uma arte intensa- ‘mente hostil ao racionalismo. Vista como um todo, a escultura de Rodin foi o primeiro ataque extremo a0 tipo de pensamento representado pela ave mecanica, ‘uma ideologia profundamente arraigada na escultura neoclissica, que perdurou em quase toda a escultu- ra oitocentista até a obra de Rodin. O modelo raciona- lista, ao qual se prende 0 neoclassicismo, traz dentro de si dois pressupostos basicos: 0 contexto através do qual o entendimento se desenvolve é 0 tempo; e, no caso da escultura, 0 contexto natural da racionalidade €orelevo. Os argumentos légicos — procedimentos do tipo “se X, entdo Y"- seguem um desenvolvimento tempo- ral. No émago desse tipo de raciocinio esta a nogao de causalidade, do vinculo entre os efeitos ¢ suas causas, que dependem, para seu proprio relacionamento, da passage do tempo. Nos séculos XVIII e XIX, pinto- res € escultores ambiciosos aceitavam sem contestar a nogio de que o tempo era 0 meio através do qual a 1é- «ica das instituigdes sociais e morais se revelava — dai a posicao de destaque que conferiram a pintura hist6- rica como género e aos monumentos historicos. A his- {ria era compreendida como uma espécie de narrativa, envolvendo a progressio de um conjunto de significa- dos que se reforcam e se explicam mutuamente, ¢ que parecem movidos por um mecanismo divino rumo a ‘uma conclusfo, rumo ao significado de um aconteci- mento. 4 Francois Rude (1784-1855): 4 Moroes, 183-36, Pea, © 1.281mx 0.79 m. arco do Tl, Pars Foto Graudon) TEMPO NARRATIVO: A QUESTAO DA PORTA 0 INFERNO 18 Assim, quando Frangois Rude foi incumbido de uma das esculturas do Arco do Triunfo, considerou que seu trabalho transcendia a simples representa- ao de um momento da Revolugdo Francesa. As aspi ragdes por tris da Marselhesa, também conhecida como A partida dos voluntérios (ta. 0, de 1833-36, iriam modelar a composigdo como uma espécie de corte temporal capaz de penetrar aléma da desordem dos incidentes histéricos e revelar-lhes o significado. 114 CAMINHOS DA ESCULTURA MODERNA Tal aspiragio, compartilhada por Rude com seus con- temporaneos, fora articulada no final do século XVIII por Gotthold Lessing. A obra de arte visual, “em suas composigbes coexistentes”, argumentava, “no pode utilizar mais que um tinico momento de ago e, por- tanto, deve escolher o mais fecundo deles, aquele que é mais sugestivo do que ocorreu anteriormente ¢ do que deverd ocorrer na seqiiéncia”. Na Marselhesa, Rude consegue captar esse momento, absolutamente fecundo, de formas focalizadas até um ponto de inten- sidade absoluta donde se verd emergir entéo o signifi cado, ligando essa composigao particular aos aconte- cimentos que formam seu passado e seu futuro. Para atingir esse foco, Rude organiza a composi- gio em torno de dois eixos: um eixo horizontal, que separa o friso de soldados, na metade inferior da obra, da forma estendida da vitéria alada que ocupa todo 0 campo superior; e um eixo vertical, que apruma 0 espago partindo da cabeca da vitéria, passando pelo meio de seu corpo e descendo até a juncio dos dois soldados centrais. O significado da composigio ~ ¢, conseqiientemente, do momento que retrata — gira em. torno do ponto em que esses dois eixos se intercep- tam. Rude produz a sensagdo de um movimento de rotagdo em torno do eixo vertical, sobrepondo os cor pos do campo inferior de modo a formarem um semi- circulo. A linha dos soldados parece emergir da extre- ma dircita, do préprio plano de fundo do arco, ¢ estar- se movendo para a frente & medida que se desloca para a esquerda. © ponto em que essa onda de corpos, atinge sua crista é 0 ponto de contato com o eixo ver~ tical, em que as duas figuras centrais reconhecem 0 simbolo da vitéria. Nessa juno, em que eles espe- Tham a imagem suspensa acima deles, os soldados parecem deter 0 fluxo horizontal do movimento no espaco € no tempo. Explorando o recurso formal da simetria, Rude cria um icone que iré representar um “TEMPO NARRATIVO: A QUESTAO DA PCRTA DO INFERNO 15. momento particular: o surgimento da consciéncia do significado da liberdade. E entio, seguindo para a es- querda ao longo do friso horizontal, as figuras pare- cem continuar seu movimento, dessa vez em direco ao futuro. A organizacdo da Marselhesa é essercialmente nar- rativa, Os diferentes graus de relevo, o isolamento dos membros das figuras por intermédio do planejamento, a fim de intensificar o efeito ritmico dos gestos dispos- tos em pares, a tensto entre o movimento lateral suge- rido pelas figuras da parte inferior do campo e a rigi- dez da figura superior, semelhante & de um icone — tudo isso sto meios pelos quais Rude estrutura a nar- rativa para o observador. E 0 essencial para a interpre- tagfio dessa narrativa é 0 fato de a obra ser em relevo. Isso porque, por sua natureza mesma, o meio de ex- pressiio do relevo possibilita a leitura da narrativa. A frontalidade do relevo obriga o observador a se posicionar diretamente diante da obra para vé-la e, dessa forma, assegura que o efeito da composi¢ao de modo algum seja diluido. Além disso, o meio de ex- pressio relevo depende da relagao entre as figuras es- culpidas e seu plano de fundo. Uma vez que se com- porta como o fundo ilusionista de uma pintura, esse pla- ‘no abre um espaco virtual através do qual as figuras podem dar a impressdo de se movimentarem. Nesse movimento — a aparente emergéncia do fundo para a frente — 0 escultor pode projetar os valores temporais da narrativa. Mais importante, o meio relevo interliga a visibilidade da escultura e a compreensio de seu sig- nificado, pois, do ponto de observacio tinico, & frente da obra, todas as implicagdes gestuais, todo 0 signifi- cado da forma sero necessariamente transmitidos. relevo, portanto, permite ao observador com- preender simultaneamente duas qualidades recipro- ‘cas: a forma em sua evolugo no espazo do plano de 46 CANINHOS DA ESCULTURA MODERNA fundo e o significado do momento representado em seu contexto histérico. Muito embora o observador no se desloque efetivamente em torno da escultura, recebe a ilusdo de dispor de tanta informagdo quanto teria se pudesse circunavegar as formas ~ talvez mais ainda, j4 que Ihe é dado visualizar, em uma tinica per- cepedo, tanto o desenvolvimento das massas como sua capacidade de exprimir um significado. Se a ati- tude do escultor para com o relevo & a de um narrador onisciente a comentar a relagdo de causa e efeito das formas, no espago histérico e plastico, a atitude cor- respondente do observador é definida pela natureza do proprio relevo: o observador assumira uma onis- ciéncia paralela em sua leitura da obra em toda a luci- dez desta. Com efeito, os tedricos oitocentistas que escreve- ram acerca da escultura prescreviam que toda forma, fosse ela independente ou no no espago, deveria al- cangar a clareza que parece constituir a esséneia mes- ‘ma do relevo. “Todos os detalhes da forma devem reu- nir-se em uma forma mais abrangente”, escreve Adolf von Hildebrand. “Todos os juizos particulares de pro- fundidade devem integrar-se num juizo unitario, abran- gente, de profundidade. De modo que, em titima ané- lise, toda a riqueza da forma de uma figura apresenta- se a nés como uma continuacio para tras de um tinico ¢ simples plano.” E acrescenta: “Onde isso ndo ocor- re, perde-se o efeito pict6rico unitério da figura. Veri- fica-se entio uma tendéncia a elucidar aquilo que néo podemos perceber a partir do nosso ponto de vista pre- sente por meio de uma mudanga de posigo. Dessa for- ma, somos levados a contornar a figura sem que ja~ mais scjamos capazes de apreendé-Ia de uma vez em sua totalidade”™* Tal, portanto, é o sentido em que a ave mecénica, © autémato dourado de Outubro, vincula-se & escultu- ra de Rude na Marselhesa. O autémato faz parte de 5. Auguste Ron (1840-1917 4 port do nfemo, 1880-1817 Bone, 548 m x 3,651 x0,83 m Pribdepha Museu ef rt. Ft 2) ya, forego 6 stl) UERGS Sist. de Bibliotecas 18 CAMINHOS DA ESCULTURA MODERNA um testemunho da ordem do mundo. A capacidade do homem de criar a ave é utilizada para proclamar sua capacidade de compreender, por analogia, os esforgos do Criador do mundo: Sua engenhosidade Ihe propor- ciona uma base conceitual segura na légica de um designio universal. Da mesma forma que a ave meci- nica traz em si a aspiragdo de compreender, via imita- ‘¢40, 0 funcionamento interno da natureza, o relevo de Rude aspira a compreender e projetar o movimento do tempo historico ¢ o lugar nele ocupado pelo homem. ‘A arte narrativa do relevo & 0 meio de expressio de Rude, 0 que torna essa obra um paradigma de toda a escultura do século XIX... exceto a de Rodin. ‘Mas por que no a de Rodin também? alguém po- deria perguntar. Em certo sentido, a carreira de Rodin é totalmente definida pelos esforgos que dedicou a um ‘inico projeto, A porta do inferno, iniciado em 1880 ¢ ‘no qual trabalhou até a época de sua morte — um pro- jeto para o qual praticamente toda a sua escultura foi originalmente criada. Tal como 4 Marselhiesa, A porta do inferno (a. 5) é um relevo, uma decoracio esculpi- da para um conjunto monumental de portas que servi- riam de entrada a um futuro museu’. Também como A Marselhesa, a obra esta vinculada a um esquema nar rativo, tendo sido encomendada como um ciclo de ilus- tragdes da Divina comédia, de Dante. No inicio, Rodin seguiu, para a Porta, uma con- cepoiio que obedecia as convengdes do relevo narrati- vo. Seus primeiros esbogos arquitetdnicos para 0 pro- jeto dividem a superficie externa do portal em oito ppainéis separados, cada um dos quais conteria relevos narrativos organizados seqiiencialmente. Os modelos evidentes desse formato eram os grandes portais re- nascentistas, particularmente a Porta do paraiso, de Ghiberti, para o batistério da Catedral de Florenca. Contudo, com a conclusio da terceira maquete de ter- 6 Rin: A porta do inno (rmaqute, 1880. Teaco, ‘mmx 0,63. Museu Roa, Pais (Foto Geottey Clements) TENPO NARRATIVO: A QUESTAO D8 FORTA DO INFERNO 19 racota (fis. 6, ficou claro que o impulso de Rodin era no sentido de represar 0 fluxo do tempo seqiiencial. Nessa maquete, as divisdes entre os paingis isolados foram suprimidas praticamente por completo, ao pas so que um grande icone estitico foi implantado no meio do espago dramatic. Composto por uma barra horizontal e uma haste vertical, encimado pela pree- minente massa vertical do Pensador, essa imagem cru- ciforme tem o efeito de centralizar e aplainar o espaco das portas, sujeitando todas as figuras a sua presenga abstrata, Em sua versio final, porta do inferno resiste a todas as tentativas de ser compreendida como uma narrativa coerente. Dentre a profustio de grupos de figuras, somente dois esto diretamente relacionados & narrativa original da Divina comédia. Sio eles os grupos Ugolino e seus filhos e Paolo e Francesca (@s.7), ambos lutando por espago na metade inferior da porta esquerda. E mesmo a separagio e a inteligibili- dade dessas duas “cenas” ficam comprometidas pelo fato de a figura do filho moribundo de Ugolino ser ‘um duplo da figura de Paolo’. Esse ato de repetico ‘ocorre na outra porta, em que, na metade da parte in- ferior direita, na lateral, podemos ver 9 mesmo corpo ‘masculino (ig. 6, numa extrema distens2o, dirigindo- se para o alto. Em uma de suas aparigSes, o ator sus- ‘ém uma figura feminina estirada. As costas dele es- to arqueadas pelo esforco desse gesto, e a tensfo a0 longo da superficie de seu torso completada pelo im- pulso para trés de sua cabeca ¢ de seu pescoco. Essa figura, quando fundida e exibida isoladamente do por- tal, recebe o nome de O fitho prddigo 169.9. Quando acoplada a figura feminina e reorientada no espaco em relag&o ao corpo dela, a figura masculina torna-se parte de um grupo intitulado Fugit Amor (ig. 19. Na superficie da porta direita, o casal que compe 0 Fu- git Amor aparece duas vezes, sem nenhuma modifica 7 ESQUERDA Ren A pote do Interna (setae So patel ifetior ‘aqurdo), Piadephia Museum of bre roto A Wyat Tatars da instituio) 8, BXTRENA DIREITA Rodin: A porta ‘a infer (tale do panel det foto: Fre rebar) 9. OREIA Rodin: O fio prédigo, tts de 1889. Bronze, 140m IiB4 m 20,69 cm. Muses Rodi, Pare. Foo Brun Je) 10, ACIMA A ESQUERDA Ron: Fosjramer, ants de 187. Maree, 1 ema |e x 1720. Muse Rodin, Pos. ote Als) so, com excegdo do angulo em que esta relacionado, a0 plano de fundo da obra. Esse duplo aparecimento & notavel, e a prépria persisténcia de tal duplicagio nd pode ser interpretada como acidental. Antes, parece de- notat 0 rompimento do prinefpio da sirgularidade es- pago-temporal que é um pré-requisito da narrativa 16- ica, uma vez que a duplicagao tende a destruir a pos- sibilidade mesma de uma seqiiéncia narrativa logi No topo da Porta, Rodin recorre novamente & es: tratégia da repeticdo. Ali, As trés somiras (ig. 1 S80 ‘uma representacao triplice do mesmo corpo — trés fi- guras idénticas irradiando-se a partir do ponto em que seus bragos esquerdos estendidos se encontram. Des- 22 CAKINHOS DA ESCULTUNA MODERN sa forma, As trés sombras funcionam como uma paré- dia da tradigao de agrupar figuras triplices, tipica da escultura neoclissica ‘No desejo de transcender a informagtio parcial que qualquer aspecto isolado de uma figura pode transmi- tir, o escultor neoclissico divisa estratégias para apre- sentar 0 corpo humano de miltiplas vistas. Seu inte~ esse nos pontos de observagio miltiplos provém de ‘uma convicgio de que deve encontrar um ponto de vista ideal, que conterd a totalidade da informacao ne- cessiria a uma apreensio conceitual do objeto. Dizer, por exemplo, que alguém “sabe” o que é um cubo, nao pode significar simplesmente que 0 individuo viu tal objeto, pois qualquer observagio tinica de um cubo & necessariamente parcial incompleta. O paralelis- ‘mo absoluto dos seis lados e doze vertices — essencial a0 significado da geometria do cubo — jamais poderé ser revelado por uma observacdo Unica. O conheci- 1, ESQUERDA Rodin: As es Sombrs, 1880. Bronze, am 1.80 mx 0.76 0 used Rocn, Pts 12, ACIMA Antonio Canova (757-1882) as es ras, 1813. Nurnore. Herta, Lennard (ote aint 13. ESQUERDA Bett Thorwalden (ines) As oes organ, 1821 Nore Plz Brera, iso, (Fa Brg) 1M, DITA lan-SaptsteCorpeaux (hazr5: dnga, 1873 Teraclo, 228m 142 m. Opera hare Foto Arch, Phot Pee ‘mento que se tem do cubo deve ser o cenhecimento de ‘um objeto que transcende as particularidades de uma perspectiva tinica, da qual s6 se podem ver, no mximo, tués lados. Deve ser um conhecimento que faculte a0 individuo, em certo sentido, ver o objeto a partir de todos os pontos ao mesmo tempo, compreender 0 ob- jeto até mesmo enquanto o “ve” __ Noclassicismo, a transcendéncia do ponto de vista ‘inico costumava ser tratada explicitamente, pela utili- zagio de figuras agrupadas em pares ou trios, de mo- do que a vista frontal de uma figura era apresentada simultaneamente com a vista posterior de sua contra- parte. Sem destruir a singularidade ds forma indivi- dual, surge, entdo, a percepcdo de um ideal, ou um, tipo, genérico de que cada figura isolada é vista como participe; e a partir deste — representado em seqiién- cia, em uma série de rotagdes — 0 significado do corpo solitirio € estabelecido. Durante o inicio do século 24 CANINHOS DA ESCULTURA MODERNA XIX, nas esculturas neoclassicas de Canova e Thor- waldsen representando As trés gracas (igs 12€12) depa- ramos com a manutengao dessa tradi¢ao juntamente com o significado que Ihe é implicito. O observador nfo vé uma mesma figura em rotagdo, mas sim trés nus femininos que representam 0 corpo em trés angu- los diferentes. Como num relevo, essa representacao distribui os corpos ao longo de um plano frontal tinico, de modo a ser instantaneamente legivel. A persisténcia dessa estratégia como uma aspi- ragdo da escultura ocorre décadas mais tarde no con- junto de Carpeaux para a fachada da Opera de Paris. ‘Ali, na Danga (fg. 1), de 1868-69, as duas ninfas que adeiam a figura masculina central desempenham para 1 observador um papel muito semelhante aquele que haviam desempenhado as Gracas de Canova. Espe- thando a postura uma da outta, as duas figuras giram em contraponto, expondo a vista as partes frontal € posterior do corpo. A simetria de seu movimento pro- porciona ao observador satisfagiio pela percepgio total da forma e pelo modo como ela se funde com a nogio de equilibrio que permeia toda a composigio. Muito embora rompa com as qualidades superficiais do estilo neoclissico, A danga mantém suas premissas implicitas e satisfaz, sob todos os aspectos, a maxima de Hildebrand sobre a necessidade de toda escultura ‘obedecer aos principios do relevo. Fa nfio-obediéncia de Rodin a esses principios que torna ds irés sombras uma obra perturbadora. Pela simples repetigao da mesma figura trés ve7es, Rodin retira do grupo a idéia de composigao ~ a idéia de um arranjo ritmico das formas, cujo equilibrio pretende revelar o significado latente do corpo. O ato de sim- plesmente alinhar trés exemplares idénticos da forma humana, um em seguida ao outro, no contém nada do significado tradicional da composigao. Em lugar do Angulo/ngulo inverso pretendido por Canova ou Car- TEMPO NARRATIVO: A QUESTAO DA PORTA 00 INFERNO 25 peaux, Rodin impde as suas Sombras um embotamen- to inflexivel e mudo. Faz isso com a disposigao sim- ples, quase primitiva, das trés cabegas no mesmo ni vel, ou com a estranha repetigao dos pedestais idénti- cos — porém separados — sobre os quais se ergue cada ‘membro do grupo. Os engenhosos arranjos de Canova ¢ Carpeaux tinham feito as vistas extemas de suas fi- jguras parecerem transparentes a um sentido de signi- ficado interno. Contudo, a aparente simplicidade de Ro- din dota suas figuras de um sentido de opacidade. As Sombras nao criam entre si uma relaga que parega ca- paz de significacio, de criar um signc transparente a seu significado. Em lugar disso, a repetiggo das Som- bras redunda na criagdo de um signo totalmente auto- referente. ‘Ao dar a impressio de no oferecer ao observador nada além da producio triplice do mesmo objeto, Rodin substitu o conjunto narrativo por um conjun- to que no conta coisa alguma, além do repetitivo processo de sua propria criagdo. As Sombras, que figuram como uma introdugdo ao espago do portal e, ‘a0 mesmo tempo, como um climax dese espago, séo ‘Go hostis a um impulso narrativo quanto as ‘“cenas” que transcorrem na superficie do portal propriamen- te dito. corolério da proposital confusio narrativa de Rodin € 0 tratamento que da ao fundo real do relevo, pois plano de fundo da Porta simplesmente nio & concebido como a matriz ilusionista de que emergem as figuras. O relevo, como vimos, deixa suspenso 0 volume pleno de uma figura a meio caminho entre sua projecio literal acima do fundo e sua existéncia vir- tual no “espaco” do fundo. A convengio do relevo exige que nio se leve ao pé da letra o fato de uma figura estar apenas parcialmente liber'a de seu s6lido entorno. Antes, o fundo de um relevo funciona como o plano de um quadro, e é interpretado como um espa- 26 CRNANHOS DA ESCULTURA MODERNA 0 aberto em que se encontra a extenso da parte de trés de um rosto ou de um corpo. ‘Ao longo de todo o século XIX, os escultores bus- caram continuamente fornecer ao observador infor- mages acerca das faces ndo vistas (e evidentemente impossiveis de ser) dos objetos inteitos embutidos no fundo do relevo. Dada a incontestavel frontalidade do relevo, as informages sobre o lado oculto da figura deveriai vir simultaneamente com a percepgio de TEMPO NARRATVO: A QUESTAO DA PORTA DO INFERNO 27 ela nao funciona, como seria de se esperar, introduzin- do uma quantidade de espago vazio nas formas cerra- das da escultura, tampouco servindo como um fulcro de escuridio em que os dois volumes banhados de luz se equilibram. Em lugar disso, a sombra produz um testemunho visual do outro lado da cabega da mulher. As superficies expostas das faces, que carregam a Iembranga continua do toque do escultor ao modelé las, convertem-se, por causa da sombra, na mais in- sua face frontal pelo observador. Uma das estratégias 5, pnema Thomas fkns tensa e pungente Area de toque: 0 contato entre a face para consegui-lo jé foi examinada por nés: a represen- (84-1816). fandeia, 1882-83 oculta da mie e a testa encoberta do filho. E como se taco da rotagiio do corpo por intermédio de uma série Phiodkiphis museum of Art. Rosso sentisse que nao bastava extrair figuras do de figuras, como nas Trés gracas, de Canova. Essa in- #0 "at otgto ce fundo do relevo; ele também fornece dados sobre as formagdo também era fornecida — ¢ cada vez mais, jy exrseMa DREITA Ad ven freas de interagdo imersas de tal modo na matéria da através do século XIX — por meio do uso intencional iband (1847192) ula de de sombras reais projetadas sobre o plano de fundo {1'im muscu WalietRchane "f pelos elementos figurativos em relevo. Os bronzes de eine. Thomas Eakins de cenas de costumes contempori- hneas (ig. 1) ou as placas de Hildebrand com temas da Antiguidade (ig. 19 so marcados por um impulso for- ‘mal unificador. Quer observemos a obra de um arden- te realista, quer a de um decidido classicista, veremos que as formas so arranjadas de modo que as sombras por elas projetadas dirijam a atencZo do observador para os lados ocultos e invisiveis das figuras. Em uma escultura de Medardo Rosso, contempora- nea do trabalho inicial de Rodin para a Porta, o uso da sombra projetada funciona da mesma forma que em Rude, Eakins ou Hildebrand. Pois sua Mae e filho dor- ‘mindo (ig. 1) contém nao dois, mas trés elementos fi- gurativos. O primeiro € o circulo levemente avoluma- do da cabeca da crianga. O segundo é o sensual tecido da face feminina, em que as formas cOncavas ¢ conve xas da testa, bochecha e boca estio reunidas dentro do contorno simples do perfil. O terceiro, situado entre ambos, é o campo da sombra projetada pela mie sobre © rosto do filho. O surpreendente nessa sombra é que 28 CAMNHOS DA ESCULTURA MODERNA escultura que nem seus dedos penetrantes nem nosso olhar as conseguiriam alcangar. Seguramente faz par- te do significado pretendida par Rosso o fato de que. para além do brilho de sua modelagem, que permite que a luz exponha ¢ penetre as superficies por ele criadas, existe uma regio invisivel da forma, sobre a qual ele € compelido a fornecer informagées’ Jé na Porta de Rodin, a sombra projetada parece enfatizar o isolamento e a independéncia de figuras com pleno volume em relagio ao fundo do relevo e reforgar 17. {SQUERDA Medardo Reso (1858-1928: 4456 flho ormin, 1883. Bronze, 35 cn, (lego particular. 18 OREITA Rodi: Je sus bole 1882 Bronce, 75cm x40 cm x 29,5 cm Museu Roan, Pas eto ce) TEMPO NARRATIVO: A QUESTAO DA 70RTA DO INFERNO 29 nossa impressio desse fundo como um objeto sélido A parte, uma espécie de objeto que nac permitiré a ilu- so de que alguém pode enxergar, através dele, um es- ago além. ‘Além disso, a sombra realga a impressio de que as figuras so intencionalmente fragmeniadas e necessa- riamente incompletas, e no apenas perceptivamente incompletas, como em Rosso. Com a Porta, o fundo de um relevo atua pela primeira vez no sentido de seg- mentar as figuras que contém, de apresenté-las como literalmente truncadas, de negar-Ihes a ficcao de um espago virtual em que podem dar a aperéncia de se ex- pandirem. Portanto, a Porta & despojada simultanea- mente do espago e do tempo que serviriam de supor- te para o desenrolar de uma narrativa. © espago na obra é congelado e imobilizado; as relagdes temporais, sto conduzidas em direcdo a uma densa auséncia de clareza. Existe ainda um outro nivel em que Rodin desen- volveu esse veio quase perverso da opacidade: 0 modo como relacionava, ou deixava de relacionar, 0 aspecto externo do corpo a sua estrutura interna. Os gestos fisicos produzidos pelas figuras de Rodin nao parecem originar-se do que sabemos da subestrutura do esque- eto que suporta o movimento do corpo. Basta compa- rar, por exemplo, o grupo de Rodin intitulado Je suis, belle (ig. 188 com uma obta mais no estilo classico, Hercules e Anteu, de Pollaiuolo ts. 19, para perceber como isso se dé. Em ambas, uma figura masculina ‘nua, em pé, suporta uma segunda erguida no ar. O momento de luta mostrado por Pollaiuolo é plena- mente explicado em termos do sistema de sustentagiio interna do corpo. A pressio do brago de Hércules cin- gindo e esmagando Anteu em um determinado ponto de sua coluna vertebral ocasiona uma reagio que faz Anteu arquear-se e estirar-se; 0 mesmo tempo que, forcando para baixo os ombros de Hércules, o faz 30 CANINHOS DA ESCULTURA MODERNA dobrar-se para trés da forma inferior, Cada ago das dduas figuras implica um impulso e um contra-impulso que revelam a resposta do sistema esquelético pres- so externa. Nessa obra, 0 gesto é nitidamente um re- sultado desse sistema interno e, ao mesmo tempo, uma revelagio dele. 49, ALTO Antoni Plaiuolo (h4z5 98) Heres Aten, {, onze, 45,7 om. Museo Nazonale Forenca 20, MBALKO Cane: Hercules © Thea, 181215 (original, 1796) Ikmove 3.5m Gata de Arte Mens, Roma, (Foto Ardesor) ‘TEMPO NARAATIVO:& QUESTAD DA SORTA 00 INFERNO 31 A clareza de contornos que se pode encontrar no bronze renascentista & realgada e exagerada quando nos voltamos para uma obra neoclassica que explora o m mo sistema gestual de peso e sustentigfo. Hércules € Licas, de Canova (a. 20, explora a relacao entre dois cor- pos em Tuta dentro de um contorno tinico, definido mais radicalmente ainda e a partir de uma frontalidade ainda mais explicita. A satisfago que se tem a0 considerar a obra de Canova é a que advém de uma sensagaio de defi- nico — a sensago de que nossa visio particular da obra, quando a observamos de frente, permite-nos co- nhecer com absoluta seguranga a mecinica do esforgo que consome os dois corpos e que investe a escultura de significado. O contomo que unifica as figuras define-se em um iinico desenho cuneiforme — sua extremidade principal exercendo um impulso para ¢ frente, contra a forga em sentido contratio que resiste« ele. Essa clareza de contorno é a primeira coisa que deixamos de perceber em Je suis belie, pois Rodin 0 obscureceu ao unir o peito da figura masculina ao, torso da figura feminina que a primeira sustenta. Os corpos séo fundidos, assim, em um tinico contorno que torna a reciprocidade de seu gesto altamente am- bigua. As costas arqueadas ¢ os pés afastados da figu- ra masculina indicam que ela esti ao mesmo tempo caindo em razo do peso que carrega ¢ erguendo-se para agarrar ou segurar a outra figura. Lido ao mesmo tempo como queda ¢ expansio, o gesto contém uma ambivaléncia a qual o conhecimento que se tem da estrutura corporal néo é capaz de apreender racional- ‘mente. Analogamente, a figura feminina, recurvada e convertendo-se em uma bola de came, projeta, a0 ‘mesmo tempo, uma sensagio de peso e flutuagio. E impossivel penetrar como que no niicleo esquelético do corpo para descobrir o significado desses gestos. ‘Nao é uma simples questio de se estar othando o grupo de um angulo incorreto, mas sim a de que, a0 32 CAMINHOS DA ESCULTURA MODERNA contrétio de Canova ou Pollaiuolo, a obra de Rodin nfio tem um Angulo de visio que seria o “correto” — nenhum ponto de observagiio que pudesse emprestar coerénoia as figuras. A opacidade imposta por Rodin a0 fundo do relevo, na Porta, e a0 desenvolvimento das relagGes narrativas sobre este é a mesma opacida~ de que imprime aqui aos corpos de suas figuras: uma opacidade entre os gestos através dos quais elas emer~ ‘gem no mundo e o sistema anat6mico interno por cujo intermédio esses gestos seriam “explicados”. Essa opacidade gestual em Je suis belle & mais promunciada ainda na figura isolada de Addo (fa. 20 & em sua triplice apari¢do, como as Sombras que enci- mam A porta do inferno. Em Addo, podemos observar o extremo alongamento do pescogo da figura e 0 avo- lumamento macigo de seu ombro. Vé-se de que modo essas duas partes do corpo sto colocadas em um plano praticamente horizontal, como se um peso enor- me tivesse puxado a cabeca até deslocé-la, de forma que o ombro esta distendido para tras a fim de ajudar a sustenti-la. E a relagdo entre as pernas — uma esti- cada e a outra flexionada — nfo produz o efeito rela- xado do contraposto, em que 0 peso suportado por ‘uma perna deixa a outra livre para formar uma leve curva, Em lugar disso, a perna dobrada de Addo esté softida e repuxada, a coxa alongada a quase o dobro do comprimento da outra. ‘Que causa externa produz essa postura atormentada em Addo? Que arcabougo interno podemos conceber, ao observar a figura de fora, capaz de explicar as possi- bilidades de sua distenstio? Novamente, sentimo-nos contra um muro de ininteligibilidade. Pois nto é como se existisse um ponto de vista diferente que pudéssemos procurar a partir do qual pudéssemos encontrar es- sas respostas. Exceto um, ¢ ndo é exatamente um Ju- ‘gar do qual se deva observar a obra qualquer obra de 21 Ron: Abo, 1880. Bronze, 1910.75 mx075.m, Phiadephia Museum of An. TEMPO NARRAIVO: A QUESTAO D& FORTA D0 i ANO 33 Rodin -, mas, antes, uma condigio. Poderiamos dizer que essa condicao é uma crenga na manifesta inteligi- bilidade das superficies, 0 que implica renunciar a certas nogdes de causa, enquanto relarionada ao sig- nificado, ou aceitar a possibilidade de significado sem a prova ou a verifica¢do da causa. Isso significa- ria aceitar que os préprios efeitos se aplicam a si mes- ‘mos ~ que sio significantes, inclusive na auséncia do que se poderia considerar 0 fundamento légico que thes dé origem. E possivel avaliar o significado do que denominei essa “condigo” pela fora com que desafia a imagem normal que se tem do eu e do modo como esse eu se relaciona com outros eus. Isso porque normalmente consideramos 0 eu uma subjetividade com um acesso especial a seus proprios estados de consciéncia, um acesso simplesmente negado a terceiros externos a ele. Uma vez que cada individuo registra as impres- ses sensoriais mediante seus mecan'smos pessoai de tato ou visio, aquilo que vejo, ougo ou sinto me & disponivel com um tipo especial de imediagdo indis- pensivel a qualquer outro. Da mesma forma, meus pensamentos parecem transparentes 4 minha mente ou & minha consciéneia de um modo que somente a mim é direto e presente. A impressio que se tem & que © que penso pode apenas ser inferido por outra pes- soa, pode atingi-la apenas indiretamerte, se eu optar por transmitir meus pensamentos. Essa imagem do eu desfrutando uma relagdo privi- legiada ¢ direta com os contetidos de sua consciéncia € uma imagem do eu como sendo basizamente priva- do e discreto. E uma imagem que evoca todo um con- junto de significados derivados de uma esfera de experiéncias privadas as quais cada um de nés tem um, acesso subjetivo, significados esses que existem ante- riormente a nossa comunicagio com os outros no pre- sente. Constituem, poder-se-ia dizer, o préprio funda- | 24 CANINHOS DA ESCULTURA MODERNA mento sobre o qual essa comunicagdo deve ser cons- truida, 0 substrato do qual deve originar-se. E somen- te por ter eu essa experiéncia anterior a meu contato ‘com outra pessoa que posso saber o que ela pretende dizer com suas diferentes agGes, seus diferentes ges- tos e seus diferentes discursos. Se transferida a observaco para o dominio da es- cultura, a impressiio que se tem é a de que uma lingua- gem escultural somente pode tornar-se coerente e in- teligivel se estiver direcionada para essas mesmas con- digoes subjacentes da experiéncia. Sei que meu rosto sofre determinadas contragGes musculares quando ex- perimento dor e que, portanto, essas contragGes se tor- nam uma expresso de dor, uma representacdo desta, por assim dizer. Sei que determinadas configuracées, anatémicas correspondem a determinadas ages por mim praticadas, como caminhar, erguer, virar-me e em- purrar. Pareceria, portanto, que o reconhecimento de tais configuragdes no objeto escultural fosse necessé- rio para a identificagdo de seu significado; que devo ser capaz de perceber, a partir da configuragao super- ficial, o substrato anatémico da possibilidade de um gesto a fim de perceber o significado deste. E essa co- miunicagdo entre a superficie e as profundezas anat6- micas que é frustrada por Rodin. Ele nos oferece ges- tos desprovidos do suporte das alusdes a seu substra- to anatémico proprio, gestos que ndo podem reportar- se de maneira l6gica a uma nossa experiéncia anterior reconhecivel. Mas e se 0 significado nao depender desse tipo de experiéncia anterior? E se o significado, em lugar de anteceder a experiéncia, ocorrer na experiéncia? E se ‘© conhecimento que tenho de uma sensacao, a dot, por exemplo, nao depender de um conjunto de lem- brangas sensoriais, mas for inventado de forma inédi- tae singular cada vez que ocorre comigo? Mais ainda, e se, a fim de experimenté-la, eu tiver de sentir seu 0 NARRATIVO: A QUESTAO DA PORTA 0 INFERNO 35. registro por meu corpo em relago ay modo como utra pessoa me observa e reage aos meus gestos de dor? E, no que se refere as sensagdes de um outro, poderiamos indagar se ndo existe uma certa suficién- cia na expresso delas por parte desse outro, uma suficiéncia que nfo requer que consaltemos nosso \éxico particular de significados para compreendé-las ~ se, na verdade, tal expressio nao amplia nosso léxi- co pessoal, acrescentando-Ihe um terr0 novo, ensi- nando-nos algo novo na prépria originalidade de sua ocorréncia Essa imagem do significado enquanto sincrdnico com a experiéncia, e nfo necessariamente anterior a ela, foi desenvolvida por Edmund Husserl (1859- 1938), um fildsofo em atividade & época em que a car- reira de Rodin estava em sua maturidace’. Abordando © que foi chamado “‘o paradoxo do alter-ego”, Husserl questionava a nog&o de um eu essencialmente particu- lar e inacessivel,(salvo indiretamente) aos outros. Se devéssemos acreditar nessa nogio do eu particular, argumentava, cada um de nés seria uma pessoa para nés € outra pessoa para os outros. Para que o eu seja uma mesma entidade para mim e para meu interlocu- tor, devo tornar-me tal como me manifesto aos outros; meu eu deve ser formado na jungdo entre o eu do qual tenho consciéncia e 0 objeto externo que vem A tona em todos os atos, gestos e movimentos de meu corpo. Muito embora Rodin nao tenha tido, até onde se sabe, nenhum contato com a filosofia de Husserl, suas esculturas manifestam uma nogdo do eu que tal filosofia comecara a investigar. Ha neles uma falta de premeditagio, uma falta de conhecimento prévio, que nos faz depender intelectual e emocionalmente dos gestos e movimentos das figuras no mamento em que estas se exteriorizam. Do ponto de vista narrativo, diante da Porta mergulha-se na percepgio de um acon- tecimento no momento em que este se plasma, sem 0 36 CANINHOS DAESCULTURA MODERN distanciamento com relagdo a esse acontecimento que uma historia de suas causas conferiria, Na Porta como um todo, bem como em cada figura individual, somos detidos na superticie. A superficie do corpo, a fronteira entre o que con- sideramos interno, particular, e 0 que reconhecemos como externo e piiblico, é a sede do significado na es- cultura de Rodin. E é uma superficie que expressa igualmente os resultados das forgas internas e exter- nas. As forgas internas que condicionam a superficie da figura so, evidentemente, anat6micas, muscula- res, As forgas que dio forma a figura a partir de seu exterior provém do artista: 0 ato da manipulago, 0 attificio, seu processo de elaboragao. Certas esculturas de Rodin quase poderiam servir de ilustragdes para um manual de modelagem em bronze, tamanha é a clareza com que documentam os processos de sua formagdo. Esculturas como o Torso, de 1877 (tig. 22, esto crivadas dos acidentes da fun io: orificios nao vedados causados por bolsas de ar; rugosidades e bothas surgidas no estagio de molda- gem € no limadas — uma superficie marmorizada com as marcas do processo que Rodin nao removeu, ‘mas manteve, de modo a converterem-se em testemu- hos visuais da passagem do meio de expresso de ‘um estégio a outro. Tal documentago da feitura nfo se limita aos aci- dentes do bronze derretido no processo de fundig&o. AS figuras de Rodin também esto mareadas com si- nais que falam de seus ritos de passagem durante 0 estigio de modelagem: 0 dorso do Homem que anda (tig. 29 recebeu uma profunda goivadura em seu molde de argila e a reentrancia jamais foi preenchida; a Fi- ‘gura voadora (fg. 26) exibe um corte a faca que remo- veu parte da panturritha da perna estendida — mas ne- nhuma porg&o adicional de argila substituiu essa per- da; ¢ as partes inferior do dorso e superior das nadegas 22, OREIA Ron: Torso masculo, 1877. Brome, 528. 227,99 1918 cm. Musee dy Pett Faas Pars. Fat Bul) 23, EXTREMA OETA Rodin ‘hamem que anda (ita poster, setae), 1877. Boras, 8 Natonal Galery, Washington, D. (Feta Henry Moore) da mesma figura trazem a marca de um objeto pesado que raspou a argila ainda timida, aplainando e apagan- do seu desenvolvimento anat6mico, fazendo com que a superficie testemunhasse unicamente 0 fato de que algo passou sobre ela desbastando-a" Rodin obriga o observador, em repetidas ocasiées, a perceber a obra como o resultado de um processo, uum ato que deu forma a figura ao longo do tempo. E tal percepeao converte-se em outro falor a impor a0 observador aquela condicdo a que jé me referi: 0 signi- ficado nao precede a experiéneia, mas ocorre no pro- cesso mesmo da experiéncia. Coincidem na superficie da obra dois sentidos de processo: nela a exterioriza- ‘sao do gesto encontra-se com a marca impressa pela agi do artista ao dar forma 4 obra. Em nenhuma outra obra de Rodin essa localizagao do significado na superficie é levada a cabo de forma ‘mais elogiiente e direta do que no monumento a Balzac [38 CANINHOS OA ESCUCTURA MODERNA (6g. 28, que Rodin produziu por encomenda em 1897. Embora os estudos preliminares de Rodin para a obra sejam de uma figura nua, a versao final envolve pot completo o corpo do escritor em seu robe. Mal se con segue identificar por debaixo da vestimenta os bragos eas mios a segurd-la firmemente; e o robe revela tao pouco do corpo — 0 tecido cai dos ombros até os pés, as mangas vazias da roupa acentuando a verticalidade de sua queda — que Rilke foi levado a descrever a cabeca do Balzac como algo inteiramente & parte do corpo. A cabeca parecia “viver no apice da figura”, escreveu Rilke, “como aquelas bolas que dangam sobre jatos d’agua”” A metafora de Rilke, em sua formidavel precisio, aponta para o modo pelo qual Rodin engolfa o corpo do Balzac em um iinico gesto que se converte na representagdo da vontade da figura representada. Ao envolver-se em sua vestimenta, a figura faz 0 corpo 24, ACIMA Rodin: Fura veadea 1880:57 Bronze, 514 cm 762

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