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TEORIAe _ FORMULACAO de CASOS em ANALISE COMPORTAMENTAL CLINICA Ana Karina C. R. de-Farias Flavia Nunes Fonseca Lorena Bezerra Nery Organizadoras INDEX BOOKS GROUPS: Perpetuando Impressies! © Artmed Editora Ltda, 2018 Gerente editorial: Leticia Bispo de Lima Colaboraram nesta edigao: Coordenadora editorial: Claudia Bittencourt Capa: Marcio Monticelli Imagem da capa: Oshutterstock.com / Valeriy Lebedev, Portrait of a handsome young man in fashionable clothing. Isolated on a white background Imagens utilizadas na Fig. 16.2: ©shutterstock.com / MO_SES Premium, Real jet aircraft, isolated on white background. ©shutterstock.com / GraphicsRE, Illustration of the musical notes with the G-clef on a white background. @shutterstock.com / Rawpixel.com, Red car Preparacio do original: Cristine Henderson Severo Leitura final: Grasielly Hanke Angeli Editoragao: Kaéle — Finalizando Ideias 1314 Teoria e formulagao de casos em andlise comportamental clinica [recurso eletrénico ] / Organizadores, Ana Karina C.R. de-Farias, Flavia Nunes Fonseca, Lorena Bezerra Nery. — Porto Alegre: Artmed, 2018. E-pub Editado como livro impresso em 2018. ISBN 978-85-8271-473-7 1. Psicologia Cognitiva. I. Fonseca, Flavia Nunes. II Nery, Lorena Bezerra. INDEX BOOKS GROUPS: Perpetuando Impress! 683 Psicoterapia comportamental pragmatica aplicada a um caso de dores de cabeca psicossomaticas rue UCR aCe! Os sintomas corporais de origem psicolégica sempre se constituiram em um intrigante assunto dentro da Psicologia Clinica e da Psiquiatria. Desde as chocantes demonstracées feitas por Freud de analgesias, paralisias, cegueiras, entre outros sintomas sem etiologia fisiolégica, os interessados em Psicologia s&io fascinados com a chamada psicossomatica. A relagio entre 0 corpo e a psique/mente é particularmente misteriosa quando se presume o corpo como sendo de natureza fisica, e a mente, de natureza metafisica. Dai surge o problema filoséfico acerca de como eventos fisicos e metafisicos afetam um ao outro se so de naturezas distintas. De acordo com Skinner (1953/1994), muitas explicacées em Psicologia sugerem uma relacao causal entre eventos metafisicos e fisicos, o que ele considera mentalismo. Explicar uma cegueira sem comprometimento no aparato fisiolégico por uma histeria representa um exemplo de mentalismo. Para Skinner (1953/1994), esse tipo de explicagao, além de nao acrescentar informagdes titeis A anilise, pode encerrar a investigagao e, consequentemente, impedir a identificagao dos fatores realmente relevantes quanto a determinagao do evento comportamental em questio. Skinner (1953/1994), ao tratar os eventos descritos com os conceitos de mente e de psique como eventos comportamentais de natureza fisica, cria condigées para o estudo cientifico de fenémenos psicolégicos complexos como a psicossomatica sem recorrer a entidades 684 explicativas externas A interacéio entre o organismo e o ambiente. Nesse sentido, © autor sugere que a cegueira sem etiologia fisiolégica, por exemplo, seja denominada pela psiquiatria de converstio histérica e que o papel do analista do comportamento seja identificar os eventos ambientais atuais e histéricos que fizeram aquela pessoa especifica deixar de enxergar. Os sintomas (p. ex., conversées histéricas), em uma perspectiva psicanalitica freudiana, segundo Maia, Medeiros e Fontes (2012), seriam uma forma de expressao de um conflito entre as entidades psiquicas, um modo de satisfacéio pulsional e um meio pelo qual o inconsciente se manifesta. Essas trés funcdes dos sintomas tém em comum a concepgao do sintoma como uma mera representacao de atividades realmente relevantes para o estudo e a intervengao analitica, as quais so de natureza distinta do sintoma e que ocorrem em outro lugar, como na mente ou na psique. Skinner (1953/1994, 1974/2003) confere outro status aos sintomas, ao vé-los como instincias comportamentais e, como tal, possuem uma fungao de adaptagao do organismo ao ambiente. Em outras palavras, a relagdéo entre o sintoma e a sua funcgdo se constituem em comportamentos selecionados pelo ambiente, entre outras diversas variacées comportamentais que nao resultaram nas mesmas consequéncias adaptativas. No caso da cegueira psicossomatica, por exemplo, teremos de investigar quais fatores ambientais fizeram os comportamentos perceptivos visuais deixarem de ocorrer, A cegueira psicossomatica, portanto, nao seria uma representacao de conflitos inconscientes, de satisfagao pulsional, nem uma forma de manifestacéio do inconsciente para Skinner, e, sim, um comportamento cuja fungao deve ser 0 objeto de investigagao do analista do comportamento. Sidman (1989/1995) discute como certos sintomas denominados por eles de neuréticos so comportamentos operantes com a fungao de fuga ou esquiva, ou seja, so controlados pela retirada ou pelo adiamento da apresentacéo de um estimulo aversivo. Uma pessoa pode, por exemplo, passar a cocar-se com alta frequéncia sem nenhuma reacao alérgica em sua pele que produzisse o comportamento de sentir coceira. Ao fazé-lo, produz feridas na pele que a impedem de sair de casa, j4 que a possivel reagao das pessoas as suas feridas e os efeitos do sol sobre a sua pele machucada sao aversivos. De acordo com o seu relato: “ndo quero que me perguntem o que ¢ isso”; “nao quero que sintam nojo de mim”; “nao posso ir para o sol com essas feridas”. Ao mesmo tempo, esse cliente hipotético pode relatar desejar muito arrumar uma namorada. Entretanto, dificilmente conseguira uma permanecendo em casa em decorréncia das feridas. 685 Ao analisarmos o histérico de relacionamentos afetivos desse cliente hipotético, verificamos que ele teve apenas uma namorada de poucos meses, a qual havia rompido o relacionamento no momento em que ele estava envolvido afetivamente. Ele sofreu bastante em decorréncia desse término, levando cerca de dois anos para se recuperar. As tentativas de iniciar novos relacionamentos apés esse término foram malsucedidas, com muitos casos de rejeico. Desse modo, por mais que ele relate sentir-se s6 e que seja pressionado pela familia e por amigos para conhecer e se relacionar com novas pessoas, os comportamentos que mudariam essa situac3o apresentam baixa probabilidade de ocorréncia. Provavelmente, as situagées de flerte, de inicio de relacionamento e de relacionamentos em si adquiriram fun¢6es aversivas, diminuindo a probabilidade de comportamentos como sair de casa, iniciar conversas, fazer convites e ir a festas. Quando questionado acerca das razées de relatar desejar ter alguém e nao fazer nada a esse respeito, o cliente poderia dizer que tem medo de sofrer novamente, que teme a rejeicéio e que se acha incapaz de conseguir alguém. Esse tipo de justificativa provavelmente seria punida pelas outras pessoas e admitir esse medo pode ser aversivo para o préprio cliente (Medeiros & Rocha, 2004). Nesse sentido, as coceiras teriam a fungo de esquiva ao impedir a emissio desses comportamentos que foram punidos ou nao foram reforcados no passado. Dificilmente, de acordo com Medeiros e Rocha (2004), ele apresenta respostas de autoconhecimento quanto a essas relagdes comportamentais complexas. © conceito de autoconhecimento proposto por Skinner (1953/1994) é fundamental para compreendermos a psicossomatica na visio da Anélise do Comportamento. O autoconhecimento, para Skinner, diz respeito a um repertério verbal especializado em descrever outros comportamentos do individuo e suas varidveis controladoras. Uma resposta de autoconhecimento nada mais é do que uma descrigéo verbal de um comportamento ou de uma propriedade do comportamento do préprio organismo e de suas varidveis controladoras. No caso do exemplo citado, dizer que nao tenta conhecer mulheres pelo medo de sofrer novas rejeigdes e decepcdes amorosas ilustra uma resposta de autoconhecimento, utilizando a linguagem leiga. Skinner acrescenta que, provavelmente, uma das caracteristicas mais importantes do autoconhecimento é que ele pode nao existir e descreve um conjunto de varidveis que impedem o autoconhecimento. A mais relevante no caso da psicossomatica é 0 histérico de punicéo para o comportamento autoconhecido e para as proprias respostas de autoconhecimento em si. Justamente o caso do exemplo anterior. 686 £ comum pensarmos que, quando 0 autoconhecimento é estabelecido nos casos de conversao histérica, os sintomas deixem de ocorrer, uma vez que 0 préprio individuo ja descreve as varidveis que controlam 0 seu comportamento. No caso da coceira com fungao de esquiva, bastaria o cliente assumir que nao se engaja em comportamentos relativos a conhecer mulheres em decorréncia de seus fracassos no passado e que a coceira seria uma forma eficaz de fazé-lo, evitando a cobranga das pessoas e do préprio cliente. Desse modo, a coceira, aparentemente, nao seria mais necessaria e, portanto, deixaria de ocorrer. Entretanto, as presses para que passe a emitir comportamentos que resultem em conhecer novas pessoas continuario e, caso o cliente hipotético ndo passe a emitir outras respostas de esquiva, as coceiras podem continuar. O ideal, nesse caso, seria a mudanga da funcao aversiva condicionada das situacdes de flerte. Para que isso ocorresse, é inevitavel que o cliente hipotético deva se expor novamente a essas situacées. Skinner (1953/1994) sugere que o individuo que apresenta autoconhecimento se encontre em condi¢ées favoraveis de mudar o proprio comportamento caso manipule as varidveis das quais 0 comportamento é fungao. Entretanto, de acordo com Medeiros (2010), a probabilidade de o cliente manipular tais variaveis depende de outros fatores, entre eles como fazé-lo. Provavelmente, a primeira forma que se pensa para gerar o autoconhecimento e levar o cliente a atuar sobre as varidveis que controlam o seu comportamento é instrui-lo (Medeiros, 2010). Em Anélise do Comportamento, o conceito de regra é o equivalente a instrugao na linguagem cotidiana (Skinner, 1969/1984). Para Skinner, regras sao estimulos verbais que especificam uma contingéncia. Estas exerceriam funcao discriminativa sobre o comportamento. Desse modo, bastaria dizer ao cliente porque ele sente tanta coceira e, a partir dai, o que fazer para deixar de senti-lo. Infelizmente, de acordo com Medeiros (2010), a questo é muito mais complexa do que isso, j4 que a fungao da regra sobre o comportamento é discriminativa e nao causal. Em primeiro lugar, podemos nos perguntar: qual seria a reagio de uma pessoa se o terapeuta Ihe dissesse que a sua coceira, sua cegueira, sua paralisia e suas dores excruciantes sdo, na realidade, formas de atuar sobre o comportamento de outras pessoas e sobre o préprio comportamento? E que esses sintomas sio modos de evitar cobrangas, retaliacées, criticas, rejeicdo e, ao mesmo tempo, de produzir atenco, reconhecimento, pena, solidariedade e caridade? Além disso, qual seria a reacao dessa pessoa caso lhe fosse dito que a melhor forma de tratar isso é se expor a situagdes fortemente temidas? Nao seria de se estranhar caso a reacao dela fosse sair porta afora do consult6rio dizendo 687 impropérios. Mesmo que a pessoa no reaja assim, qual é a chance de essa regra exercer controle sobre o seu comportamento se envolver mudangas tao radicais? Medeiros e Medeiros (2011) sugerem que a melhor maneira de gerar autoconhecimento 6 por meio de um procedimento denominado por eles de questionamento reflexivo. Esse procedimento tem por meta criar condigdes para que o cliente formule regras que (1) descrevam as relagdes entre o seu comportamento e as varidveis que o controlam (i.e., respostas de autoconhecimento — regras analiticas); (2) especifiquem quais mudangas devem ser feitas nas varidveis controladoras (ie., regras modificadoras de comportamentos); e (3) como atuar em termos praticos sobre tais varidveis. Os autores defendem a eficdcia desse procedimento em relagao A emissao de regras. pelo terapeuta em funcdo de diversos fatores, entre eles o grande potencial aversivo que podem ter certas regras emitidas por outras pessoas (Medeiros, 2010). O questionamento reflexivo, de acordo com Medeiros e Medeiros (2010) e Medeiros (2014a), envolve cadeias de perguntas abertas, isto é, aquelas que permitem uma grande variedade de respostas além de “sim” e “néo”. Ao elaborar uma pergunta, 0 terapeuta pressupde algumas respostas provaveis do cliente. A previsio das respostas do cliente esté sob 0 controle de informacées que © terapeuta jA tem sobre o caso; das andlises funcionais j4 realizadas; de respostas do cliente a perguntas funcionalmente equivalentes feitas no passado; e das respostas dadas por outros clientes 4s mesmas perguntas. Obviamente, o cliente nem sempre responde o que havia sido previsto, requerendo do terapeuta uma grande variabilidade de perguntas que o permitam continuar o procedimento ou que permitam o seguimento da sesso por outros rumos. Para Medeiros (2014a), a previsio das respostas do cliente as perguntas permite o seu encadeamento, ja que a resposta do cliente a uma pergunta é o estimulo discriminativo para a elaboracao da proxima. Essa cadeia de perguntas, como apresentado anteriormente, se for bem-sucedida, culminaré na emissao de um dos trés tipos de regras descritos. O ponto de partida de qualquer questionamento reflexivo 6 a formulacao privada do terapeuta da regra que deve ser emitida pelo cliente ao final da cadeia. Essa regra é formulada a partir da analise funcional. O questionamento reflexivo é um dos principais procedimentos da psicoterapia comportamental pragmatica (PCP), uma das vertentes nacionais de terapia analitico-comportamental (Costa, 2011). Essa vertente, de acordo com Medeiros e Medeiros (2011), tem como caracteristica principal a possibilidade 688 de uma terapia analitico-comportamental menos diretiva. Ainda que objetivos especificos sejam elaborados para cada cliente, a PCP utiliza procedimentos menos diretivos para atingi-los. Menos diretivos no sentido em que o terapeuta raramente emite regras, nao utiliza procedimentos punitivos (p. ex., como a confrontagao ou o bloqueio de esquiva), nao utiliza reforcamento arbitrério e utiliza perguntas abertas na maior parte do tempo. O presente capitulo teve por objetivo apresentar um estudo de um caso de dores de cabeca crénicas com fungao de esquiva atendido em PCP. Para tanto, serdo apresentados um breve resumo do caso, as principais andlises funcionais, os procedimentos aplicados, os resultados obtidos e as consideragées finais acerca dos resultados. Ao longo da descri¢ao do caso, serao feitos comentarios tedricos justificando o modo pelo qual foram feitas as anilises e as intervengdes. FORMULAGAO COMPORTAMENTAL Dados demograficos Nome ficticio. Bernardo. Idade na época do atendimento. 22 anos. Profissdo/ocupagdo. Estudante de Direito em uma universidade federal bastante concorrida. Familia nuclear. Os pais eram vivos e divorciados ha seis anos. Vivia com a mae e com o irmao em um bairro de classe média de Brasilia. Queixas Bernardo veio a terapia por indicag&o de um neurologista em decorréncia de um quadro de dores de cabega crénicas. No inicio do tratamento, queixava-se de dores de cabeca praticamente constantes, as quais s6 ficavam suportaveis com 0 uso de fortes analgésicos de uso continuo. Havia semanas, nao existia um dia sequer sem dor de cabeca. Como queixas secundarias que foram surgindo ao longo do processo terapéutico, Bernardo relatava estar insatisfeito com o seu namoro de dois anos. A sua namorada, Gisele (nome ficticio), cobrava muito a sua presenga, impunha os programas dos dois e raramente cedia as sugestdes de atividade de Bernardo. A sua relagio com a mae também era fonte de queixas, na medida em que Bernardo relatava que ela reclamava muito de suas saidas e do seu consumo 689 social de Alcool. Essas reclamagdes da mae incomodavam Bemardo principalmente por ele se descrever como excelente aluno e como alguém muito responsavel com as proprias atribuicées. Histérico Bernardo era filho de pais com alto nivel cultural e com uma boa condigao financeira. Seus pais, em decorréncia disso, foram muito reforgadores quanto aos seus sucessos académicos. Apesar de nao serem criticos quando Bernardo nao tirava notas boas (o que era muito raro), eram mais afetuosos e elogiosos quando ele se destacava academicamente. Seus pais se separaram quando Bernardo tinha por volta de 16 anos. Ele relatou ter aceitado bem a separacéio, reconhecendo que os pais nao estavam felizes juntos. Entretanto, dizia sentir pena da mae, que parece ter levado mais tempo para se recuperar do que o pai, que ja havia iniciado uma nova relacaio com outra pessoa. Bernardo era um jovem extrovertido, apresentava uma boa aparéncia de acordo com os padrdes culturais de estética vigentes, tinha varios amigos e tocava violao. Ele relatou gostar muito de sair com os seus amigos, o que gerava muitas desavencas com a sua mie, principalmente depois da separagio. A sua mée reclamava da frequéncia com a qual Bernardo safa de casa para bares, festas e casas de amigos. Ela também reclamava da hora que ele chegava em casa e do consumo de alcool nesses eventos sociais. Essas reclamagdes costumavam culminar em brigas entre os dois, j4 que Bernardo reagia de forma agressiva a essas reclamagoes, consideradas por ele injustificadas. No inicio do tratamento, Bernardo estava namorando Gisele por volta de dois anos. Queixava-se desse namoro pelo modo autoritério com o qual Gisele se portava na relagdo. Muitas vezes, Bernardo fazia coisas que nao queria ou deixava de fazer coisas que queria fazer e, assim, evitava brigas com ela. Bernardo relatava, portanto, que a possibilidade de brigas com a namorava afetava muito o seu comportamento, o que 0 deixava insatisfeito com a relacao. Ele nao conseguia dizer para Gisele as suas insatisfagdes, defender os seus interesses e negar as suas imposi¢ées. Bernardo cursava o sétimo semestre de faculdade de Direito em uma universidade federal, sendo esse um dos cursos mais concorridos da instituigao. Além de apresentar boas notas, Bernardo objetivava, no inicio do tratamento, ser aprovado em concursos para tabeliao ou juiz. Essas duas carreiras, além de 690 muito bem remuneradas, implicam uma grande dificuldade para o ingresso. Além de os concursos serem muitos concorridos, a concorréncia é, em geral, de alto nivel. Para atingir essa meta, Bernardo se programava para estudar 12 horas por dia. Com as dores de cabega crénicas, entretanto, ele ficava alguns dias da semana sem conseguir estudar e nao rendia o esperado quando insistia em fazé- lo. Bernardo estava ha um ano e meio em tratamento de suas dores de cabega com um neurologista. Ele utilizava analgésicos fortes de uso continuo. Ao procurar a terapia, relatava que os remédios atenuavam as suas dores, porém, sempre sentia algum desconforto nas témporas e na nuca. As dores ficavam piores quando bebia ou tinha uma noite de sono ruim. Objetivos terapéuticos Em psicoterapia comportamental pragmatica, os objetivos terapéuticos sio estabelecidos em termos de mudanca de frequéncia dos comportamentos-alvo (Medeiros & Medeiros, 2011). Uma intervencio comportamental, nessa perspectiva, objetiva alterar a probabilidade de comportamentos que tenham relevancia clinica na medida em que implicam a adaptago do cliente ao seu ambiente (i.e., comportamentos-alvo). Mesmo partindo do pressuposto behaviorista radical de que todo comportamento possui uma funcio de adaptacio, para a PCP, um comportamento pode produzir consequéncias em curto prazo que o mantém e, ao mesmo tempo, produzir consequéncias aversivas em longo prazo de maior magnitude. Esse tipo de comportamento é designado como comportamento indesejavel ou comportamento a enfraquecer (Medeiros & Medeiros, 2011). Com base na anélise funcional individual feita pelo terapeuta, a intervencao tem como objetivo reduzir a frequéncia dos comportamentos a enfraquecer, principalmente em decorréncia das suas consequéncias aversivas em longo prazo. Paralelamente, outros comportamentos, presentes ou ausentes no repertério do cliente, podem produzir consequéncias reforgadoras em curto e em longo prazo de maior magnitude. Esses comportamentos, entretanto, ocorrem com baixa frequéncia, provavelmente em decorréncia de histérico de punig&o ou pelo reforcamento intermitente ter sido insuficiente para estabelecé-los (Moreira & Medeiros, 2007). As consequéncias em curto prazo desses comportamentos também podem ser aversivas de pequena magnitude, de modo que as 691 consequéncias em longo prazo dificilmente exercem controle sobre a sua probabilidade de ocorréncia, 0 que comumente é descrito pelo rotulo de impulsividade (Rachlin & Green, 1972). Devido ao potencial de produzir consequéncias reforcadoras de maior magnitude em longo prazo, esses comportamentos, aps a realizagio da andlise funcional individual, sao designados como desejaveis ou a fortalecer. Logo, a intervencao tem como meta aumentar a sua frequéncia. Comportamentos a enfraquecer. 1. Estudar. O comportamento de estudar é de grande valorago social, ou seja, geralmente produz consequéncias sociais reforcadoras em curto prazo, como admirac&o, respeito e reconhecimento. Também tem alta probabilidade de produzir consequéncias reforgadoras de grande magnitude em longo prazo, como alta remuneragao, status e reconhecimento. Para muitas pessoas, o comportamento de estudar 6 estabelecido como um comportamento a fortalecer devido as consequéncias reforgadoras descritas, entretanto, as anlises so individuais e, para o caso de Bernardo, 0 comportamento de estudar deveria ter a sua frequéncia reduzida. Portanto, o objetivo da interveng’o quanto ao comportamento de estudar foi reduzir a sua frequéncia para entre 8-9 horas de estudo diarias em média nos dias titeis, incluindo o tempo gasto na faculdade e no curso preparatorio para concursos. Durante os finais de semana, esse comportamento nao deveria exceder quatro horas diarias. Também foi estabelecido como objetivo incluir folgas semanais do estudo, variando o dia a depender da semana. 2. Acatar de forma acritica as demandas da namorada. O padrao relacional de Bernardo com Gisele poderia ser caracterizado por passividade, inassertividade ou baixo repertério de habilidades sociais (Caballo, 1996; de-Faria, 2009). Em vez de utilizar essas categorias mais amplas, foram analisadas categorias mais especificas, como acatar as demandas da namorada de forma acritica. Foi objetivo da intervencdo que Bernardo passasse a ceder aos pedidos ou as cobrangas de Gisele com uma frequéncia menor, j4 que ele entrava em contato com estimulos aversivos e perdia acesso a estimulos reforcadores quando o fazia. Entre as demandas que Bernardo acatava, é possivel exemplificar as idas aos encontros com Gisele e com o seu grupo de amigas em eventos sociais e visitas a Gisele em dias nos quais Bernardo ja estava muito cansado. 692 3. Operante sentir dores de cabeca. De acordo com a presente anilise, 0 comportamento de sentir a dor de cabega tinha fungao operante e precisava diminuir de frequéncia, j4 que ocorria de forma praticamente continua mesmo com o uso da medicacao controlada. A meta final da intervengao sobre esse comportamento foi reduzir a sua frequéncia, de tal modo que Bernardo nao precisasse mais de remédios de uso continuo para controlar as dores de cabeca e que ele deixasse de senti-las sem uma causa aparente. Comportamentos a fortalecer: 1. Engajar-se em atividades de lazer individuais e sociais. Essa categoria envolvia respostas como assistir a filmes e seriados, tocar violéo, jogar videogame, aceitar convites, fazer convites e ir a atividades sociais com outras pessoas além de Gisele. Os comportamentos dessa categoria estavam com uma frequéncia inferior a uma vez por semana. Foi objetivo da intervengéo que Bernardo passasse mais tempo se divertindo individualmente e com os amigos e familiares em relagéo ao tempo que Passava estudando. De preferéncia, que esses eventos ocorressem no minimo duas vezes por semana com uma duragao de trés horas em média cada um. 2. Reportar insatisfagaio 4 namorada. Bernardo queixava-se de que as cobrangas agressivas de Gisele o chateavam bastante. As respostas agressivas de Gisele ocorriam principalmente quando Bernardo nao fazia algo que ela queria que ele fizesse, como ir a um evento social com as amigas dela. Foi estabelecido como meta que Bernardo dissesse para Gisele o qué, em seu comportamento, o incomodava. Esse comportamento tinha a frequéncia proxima a zero. A topografia da resposta verbal de Bernardo deveria envolver dois tatos:! 0 que ela fez e como ele se sentiu com o que ela fez; e um mando:2 pedir para que ela agisse de modo diferente no futuro. Essas respostas deveriam ocorrer quando Gisele fizesse algo que nao agradasse a Bernardo, porém, ele deveria emiti-las em outros momentos que nao contiguamente pr6ximo ao evento que o desagradou. Analises funcionais © modelo de anélise funcional utilizado pela PCP quanto a descri¢do da contingéncia de tés termos envolve: (a) 0 contexto de ocorréncia do comportamento, que descreve os eventos antecedentes proximos temporalmente 693 ‘ou contiguos ao comportamento operante como os estimulos discriminativos e as operacées estabelecedoras;* (b) a resposta, que é uma categoria que contém o nome do comportamento-alvo, as informagées sobre as topografias de respostas e alguma indicaco sobre a sua frequéncia de ocorréncia; e (c) a categoria consequéncias 6 subdividida em duas subcategorias, consequéncias em curto e em longo prazo. As consequéncias em curto prazo envolvem consequéncias contiguas ou temporalmente proximas a emissio do comportamento; ja as consequéncias em longo prazo podem vir dias, meses ou anos apés a emissiio do comportamento. As consequéncias sublinhadas nas tabelas com as anilises funcionais séio apontadas como aquelas mais relevantes no controle da frequén- cia atual do comportamento. Fora do esquema da contingéncia de trés termos descrita, encontram-se as variveis historicas, as quais se subdividem em trés subcategorias: (a) historia de condicionamento, que diz respeito ao efeito das interagdes do comportamento analisado com as suas consequéncias no passado; (b) modelos, que se refere a influéncia da observacdo do comportamento de outras pessoas sobre a probabilidade de ocorréncia do comportamento analisado; e (c) regras, as quais incluem a influéncia das descrices verbais das contingéncias que envolvem o comportamento analisado. Por fim, o modelo de anélise funcional utilizado pela PCP é 0 denominado por Goldiamond (1974) de andlise nao linear. A andlise no linear investiga a interacao entre diferentes comportamentos do proprio individuo, sendo que a probabilidade de ocorréncia de um dado comportamento nao é afetada apenas pelas suas proprias consequéncias, como também é determinada pelas consequéncias de outros comportamentos do préprio individuo. Quando a emissio de um dado comportamento resulta na alteracéio da probabilidade de ocorréncia de outro comportamento, as consequéncias desse segundo comportamento afetam a probabilidade de ocorréncia do primeiro. Comportamentos-alvo: 1. Estudar. Esse comportamento apresentava alta frequéncia em relacdo as demandas de vida do cliente no momento, ou seja, ocorria cerca de 12 horas por dia em média. Ao longo da histéria de Bernardo, o seu comportamento de estudar se tornou provavel pelo reforcamento positivo como aprovacio no vestibular, notas e elogios; por modelos, uma vez que seus pais eram

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