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seinsi2024, 12:52 ‘Sem igualdade nfo hé lberdade - Le Monde Diplomatique OS DIREITOS HUMANOS, UM BLOCO INDIVISIVEL Sem igualdade nao ha liberdade Ao adotarem a Declaragdo Universal dos Direitos Humanos, em 10 de dezembro de 1948, 58 paises entraram, pela primeira vez, em acordo sobre os princ{pios que permitem a cada um viver em liberdade, igualdade e dignidade, Muito progresso se fez desde ento, mas a explostio das desigualdades ameaga tanto as liberdades politicas como os direitos econémicos e sociais Kumi Naidoo 14 de margo de 2019 Ler e reler a Declaragao Universal dos Direitos Humanos, setenta anos apés NagGes Unidas em Paris, é sempre um exercicio util, pois o texto propée, ainda hoje, a vi mais progressista daquilo que nosso mundo poderia ser. No momento de comemorar seu aniversirio, seria logico ressaltar os inegdveis progressos realizados em conjunto nos diltimos anos a fim de transformar essa visdo em realidade. Mas a honestidade nos obriga a dizer que a intolerncia aumenta e que as desigualdades extremas se disseminam, enquanto os Estados parecem incapazes de tomar coletivamente as medidas necessarias para enfrentar as ameagas globais, Encontramo-nos exatamente na situagdo que os pafses signatérios da Declaragao prometeram evitar. Por isso, no nos contentemos com uma simples comemoragio e aproveitemos a ocasido historica para fazer um balango ¢ tentar concretizar os direitos humanos para o maior mimero, ‘a adogio pelas io Ho <||> O antigo 2 da Declaragdo Universal reza que os direitos por ela proclamados pertencem a cada um de nés, sejamos ricos ou pobres, no importando nosso sexo ou a cor de nossa pele, o pais onde vivemos, a lingua que falamos, aquilo que pensamos ¢ aquilo em que acreditamos. Longe de se traduzir em fatos, esse universalismo, que subentende todos os direitos da pes humana, sofre hoje ataques violentos. A Anistia Internacional, a semelhanga de outras organizag6es, nao cessa de sublinhar que os discursos promotores da estigmatizacio, do édio edo medo se desenvolveram de maneira inédita no mundo a partir dos anos 1930, a A recente vitéria de Jair Bolsonaro na eleicZo presidencial brasileira, apesar de um programa francamente hostil aos direitos fundamentais, ilustra muito bem os desafios que temos pela frente, Se conseguir por em pratica as promessas de uma campanha desumanizadora, Bolsonaro, chegando ao poder, ameagard as populagSes indigenas, as comunidades rurais, tradicionais — chamadas “quilombos” -, as lésbicas, os gays, os bissexuais, os transgéneros € intersexuais (LGBTD), a juventude negra, as mulheres, os militantes e as organizagdes da sociedade civil. E crucial nos perguntarmos por que estamos exatamente na situagio que a Declaragao pretendia evitar — uma situagiio na qual os direitos humanos sao atacados e repelidos porque protegeriam alguns, ¢ no todos. bitpsaiplomatique.org.bisemigualdade-nac-ha-iberdade-2/ 14 seinsi2024, 12:52 ‘Sem igualdade nfo hé lberdade - Le Monde Diplomatique Se as miltiplas razdes que conduziram a esse impasse de fato so complexas, uma coisa parece certa: o que est em causa é, em parte, nossa incapacidade de considerar os direitos humanos como um conjunto indivisivel de direitos intrinsecamente associados ¢ aplicéveis a todos. A Declaragdo Universal nao separava os direitos civicos dos direitos culturais, econémicos, politicos e sociais. Nao distinguia a necessidade de concretizar o direito alimentagao da exigéncia de garantir a liberdade de expresso, Ja reconhecia 0 que hoje admitimos naturalmente: as duas sdo estreitamente ligadas. No curso das décadas que se seguiram 4 adogo do documento, os Estados seccionaram os dois tipos de direito, instaurando o desequilibrio em sua percepgao e protegdo.! Mas as organizagdes internacionais de defesa dos direitos humanos, como a Anistia Internacional, devem também assumir sua parte de culpa nessa distorgdo, Nossa entidade é conhecida sobretudo pela defesa da liberdade de consciéncia e por seu apoio aos prisioneiros politicos, isto é, As pessoas presas em razdo do que sao e daquilo em que acreditam. Lutamos também contra a tortura, pela aboligdo da pena de morte ¢ em favor da liberdade de expresso. S6 comegamos a estudar a defender ativamente os direitos econdmicos, sociais ¢ culturais nos anos 2000. Desde entdo, promovemos campanhas conjuntas contra as violagdes do direito 4 moradia decente, a satide e a educagao. Sabemos que ainda ha muito a fazer. Actise econémica mundial, cujas consequéncias se fazem sentir em profundidade, ilustra perfeitamente a urgéncia de aceitar esses desafios do ponto de vista dos direitos humanos. Os acontecimentos em diversos paises curopeus puseram a nua fragilidade, talvez mesmo a inexisténcia pratica, de uma protegao social de base. Pior ainda: nos paises mais afetados, as legislagdes econdmicas e sociais continuam na maioria dos casos insuficientes. Isso significa que os cidadios nao podem fazer valer seus direitos na justiga, mesmo quando estes so notoriamente violados. Em varios paises, os governos preferiram responder a crise econémica com medidas de austeridade de elevado custo humano, entravando o acesso aos bens de primeira necessidade, A saiide, 4 moradia e alimentagdo. A Espanha fornece um bom exemplo: apés a crise econdmica, 0 governo reduziu as despesas publicas, inclusive na drea da satide. Os tratamentos de qualidade esto agora inacessiveis e mais caros, em detrimento sobretudo dos pobres, mas também das pessoas afetadas por doengas crénicas ¢ deficiéncias fisicas ou mentais. Um homem interrogado sobre esse assunto declarou que deverd agora escolher entre comida € medicamentos: “Sofro muito e preciso tomar meus remédios. Ou me cuido ou me bitpsaiplomatique.org.bisemigualdade-nac-ha-iberdade-2/ 24 seinsi2024, 12:52 Sem igualdade no hé tberdade -Le Monde Dislomatique mato [de tal forma a dor é insuportivel]... Portanto, se for necessirio me privar de comida, farei isso, do contrario ndo poderei comprar os medicamentos”. A maneira como os governos reagiram aos movimentos antiausteridade ¢ outra prova do carater indissocivel dos direitos politicos, econdmicos, sociais ¢ culturais. No Chade, as medidas restritivas adotadas pelas autoridades mergulharam ainda mais a populacdo na pobreza. Barraram 0 acesso aos cuidados de saiide elementares e colocaram a educagio fora do alcance da maioria, Muitos chadianos se ‘manifestaram e fizeram greves. Em vez. de ouvir suas reivindicagdes, o governo decidiu calar os contestadores. Optou pela repressio brutal, prendendo os militantes ¢ atentando flagrantemente contra sua liberdade de reuniao, A crise mundial pode parecer distante, mas ainda observamos suas ramificagdes sociais € econdmicas. As desigualdades, a corrupgdo, 0 desemprego e a estagnaco econdmica, que castigam as populagSes, criam terreno propicio emergéncia de dirigentes prontos a semear a divisdo e 0 ddio, com as consequéncias explosivas que todos conhecem. presidente francés Emmanuel Macron se arvora em paladino da luta contra esses discursos, que ameaam enraizar-se. “A Europa pende quase em toda parte para os extremos e, de novo, cede ao nacionalismo”, declarou ele pela televisio em 16 de outubro de 2018. “Precisamos, nestes tempos conturbados, de todas as energias da nagao [...]. Confio em voets, confio em nds.” Contudo, 0 povo francés esté inquieto com as politicas de Macron nas areas de direito trabalhista, aposentadoria e acesso & universidade. A Anistia Internacional pés em evidéncia também as restrigdes impostas ao direito de manifestago na Franga, sob a alegagio de estado de emergéncia. Em 2018, as mobilizagdes em favor de leis respeitosas dos direitos econémicos, sociais e culturais suscitam, no maximo, a indiferenga do presidente francés e, no minimo, uma violenta repressio policial Esse esquema esté por toda parte no mundo. Impde-se que os governos se reconhegam incapazes de fazer respeitar todos os direitos, de todos os tipos. Para esse fim, nao basta reclamar a liberdade de expressdo e de manifestagZo; devemos examinar igualmente os motivos da contestagao. Tomemos o exemplo de Jamal Khashoggi, o jornalista saudita agora conhecido no mundo inteito por ter sido brutalmente assassinado, em outubro dltimo, no consulado da Arabia Saudita em Istambul. Como iniimeros defensores dos direitos humanos em seu pafs, ele estava na mira de Riad por ter ousado exercer sua liberdade de expressio. Em um tltimo artigo, publicado no Washington Post, escreveu que seus compatriotas nao podem tratar abertamente das questdes relativas a vida cotidiana, “Padecemos de pobreza, inctiria politica e ma educagdo”, disse ele. “A criagdo de um forum internacional, independente dos governos nacionalistas que semeiam o édio, permitiria aos cidaddos comuns do mundo arabe encontrar solugdes para os problemas estruturais de sua sociedade.”’ Khashoggi havia compreendido perfeitamente por que os direitos humanos formam um todo. A liberdade de expressio € essencial por nos permitir reivindicar os outros direitos; mas no basta. Por isso, 0 povo egipcio entoava “Pao, liberdade, justica social!” durante a Primavera Arabe de 2011. 0 que nem sempre conseguimos entender, os manifestantes da Praga Tahrir, no Cairo, jé entendiam dolorosamente ha sete anos: em matéria de direitos humanos, é tudo ou nada. Ou exercemos todos ou ndo exercemos nenhum. Se quisermos que, verdadeiramente, os direitos humanos se tomem uma realidade para todos, impdem-se medidas de emergéncia. Como movimento de defesa dos direitos humanos, precisamos nao apenas salvaguardar, como sempre fizemos, a liberdade de expresso ¢ de manifestagdo, mas também estabelecer um vinculo com as decisées econémicas ¢ financeiras tomadas por nossos dirigentes. Temos de trabalhar com organizagdes semelhantes & nossa para exigir, dos responséveis politicos, que prestem contas da utilizagao do dinheiro pablico no combate 4 corupgiio, as transagGes ilegais de capitais e as falhas na fiscalizagdo internacional. Devemos nos empenhar na busca de solugdes para os problemas estruturais de nossas sociedades. bitpsaiplomatique.org.brisemigualdade-nac-ha-tberdade-2/ 34 ‘o1osi2026, 12:52 Sem igualdade no hé tberdade -Le Monde Dislomatique Esse é um projeto de grande envergadura, que sé se concretizara se unirmos nossas forgas para a criagdo de coalizées com nossos parceiros de outros movimentos: militantes de direitos humanos, advogados, sindicalistas, representantes de movimentos sociais, economistas € lideres religiosos. Com a ajuda de nossos aliados em todas as regides do mundo, seremos os porta-vozes daqueles que precisam ser ouvidos. Somente a solidariedade nos permitira edificar um mundo sem desigualdades ¢ injustigas, um mundo a altura dos compromissos assumidos na Declaragéo Universal dos Direitos Humanos, *Kumi Naidoo ¢ secretirio-geral da Anistia Internacional. bitpsaiplomatique.org.brisemigualdade-nao-ha-iberdade-2/ ais

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