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eT UTLU ond Ee ocala ycoie Dagmar M. 1. Zibas APO Liver! celo S. P da Sily CWI asi Rie} EEO Eh oer rents Cra uric mean rie} Wo crete Coreoiiecemu oneness ts politicas eduicacionais ganha een cra ti busca realizar a discussdo te netodolégica acerca dos desatios das politicas publicas € da j COR ereo caer BIRO cun 83 ill SBN 08. i sito ensaios reunidos neste livro representam © esforgo de pesquisa ¢ reflexto de intelectuais voltados para o estudo da escola ptiblica basica ‘e comprometidos com a solugao de seus problemas, Arelevancia e a atvalidade sto as caracteristicas das questoes abordadas, num rol de temas de grande abrangéncia que inch © impacto das mudangas no mundo do trabalho e na empregabilidade sobre 0 papel da escola, a contradigo entre o discurso das politicas piblicas € a realidade do cotidiano escolar, a politica de formagio de professores, as repercussdes das politicas internacionais sobre a educagio, a gestao escolar, a reforma do ensino médio, a cultura organizacional na escola, entre outros, Aprofundidade no tratamento dessas questoes ¢ a variedade de ontos de vista proporcionada pelos diversos autores garantem ‘a utlidade desta obra para todo brasileiro preocupado com a educagio escolar e as politicas piiblicas que tracam seus rumos. Cea) rein Cee ey ree see ce Er en popes eed pete Ce eed os pais Ce ee ena eres ere ar ree ee es DDemocracia ou descompromisso? De ead Cette ee ENT PEN nen Tn] Pricer eee eee ee Paneer eee ( Fundet eas vrbas da edueacio reser Luiz Fernandes Dourado Vitor Henrique Paro organizadores Dagmar M. L. Zibas * Dalila Andrade Oliveira Lucia Helena G. Teixeira * Marcelo Soares Pereira da Silva Ricardo Antunes * Sofia Lerche Vieira Ta ‘S80 Paulo 2001 © Xam Esiora 1 edigio — 2001 Edigio e cape: Expedite Correia Revisio: Estela Dist Edicoragto Eletrénica: Xama Editora Dados Internationals de Catalogacio na Publicasio (CIP) (Camara Brasileira do Livro, SR, Brasil) Politica pablieas & educagio bésica / Luiz Fernandes Dourado, Vitor Henrique Paro (organtzadores). — So Paulo: Xam, 2001. Virios surores ISBN 85-05833-88.2 |. Edueagio bislea 2. Edueagio o Estado 3. Edueagio @ Estado — Brasil I. Dourado, Lulz Fernandes. Il Paro, Vitor Henrique. 01-4907 co379 Indices para catélogo sistemética: |, Edueagio © Estado 379 2 Estado © educagio 379 3. Poltcat educacionais 379 Xara VM Edzora © Grifis tea ua Loeigreen, 943 — Vila Mariana (CEP 04040-030 — Si Paulo — SP “Tyee (011) 5574-7017 ema: vamasd@eolcom br Iimpresso no Bras setemoro — 2001 SUMARIO AaresentaSo nu Reestruturagdo produtiva € mudangas no mundo do trabalho: numa ordem neoliberal Ricardo Antunes: Polticas educacionais: consideragies sobre 0 discurso genérico a abstragio da realidade Vitor Henrique Paro A reforma do Estado e as polticas de formag4o de professores nos anos 1990 Luiz Femandes Dourado iamceracane 47 Poitcas intemacionais e educagio — cooperagio ou intervengio? Sofia Lerche Vieira . eiiieshaid iashuacwniniisatarnat 59 Reforma do ensino médio: ligSes que vér da Espanha? Dogmar M. L. Zibas... 9 Poltica educacional nos anos 1990: educagéo bisa cempregabilidade Dalila Andrade Oliveira 105 Gestéo e organizagio do trabalho na escola publica: préticas socials em educagéo em Minas Gerais (1983-1994) Marcelo Soares Pereira da Siva 123 ‘A cultura organizacional e 0 impacto das propostas de mudanga em escolas estaduais de Minas Gerais Licia Helena G. Teixeira 143 APRESENTACAO década de 1990 caracterizou-se por alteracdes fundamentais nos padtoes de intervencéo estatal, resultantes dos desdobramen- tos assumidos pelas relagdes socials capitalistas consubstanciadas pelo neoliberalismo. A emergéncia de novos mecanismos ¢ formas de gestdo, ao redirecionar as politicas puiblicas, possibilita novos ele- mentos as andlises no campo da relacao enire Estado e politicas ‘educacionais, desvelando prioridades e compromissos no escopo da materialidade de tais politicas. A andlise das politicas educacionais exige a compreensao dos atuais marcos da reestruturagao produtiva do capital, num cenério Constitutivo € constituinte das relagdes sociais mais amplas. Nesse cenério, expressam desafios 0 processo de globalizacéo/mun- dializacéo, a revolugo técnico-clentifica € 0 projeto neoliberal em ‘curso, que colocam em xeque o papel do Estado — fundamental- mente no tocante as politicas sociais sintetizadas a partir da defesa das teses de Estado minimo, desregulamentacao, privatizagao. Dessa forma, as politicas educacionais sao expressio, elas, mesmas, dos embates travados no 4mbito do reordenamento das, relacées sociais — e, conseqlientemente, do Estado — € dos des- dobramentos assumidos pelo Estado sob a égide ideolégica da slobalizacdo, que rearticula © papel social da educacao e da escola, submetendo-as, em menor ou maior escala, a um crescente proces- s0 de privatizacao. A reflexio © avaliagio das politicas educacionais nos diversos niveis e modalidades em que s4o propostas se materializam tém sido a ténica do estudo de um conjunto de pesquisadores do Gru po de Trabalho “Estado e Politica Educacional” da Associacao Naci onal de P6s-Graduacao e Pesquisa em Educagdo (Anped) nas ulti mas décadas. Com a finalidade de apresentar um conjunto significative da Produc3o desse grupo, decidimos selecionar trabalhos apresentados na 22*Reunio Anual da Anped, na cidade de Caxambu (MG), acres- centando 0 trabatho de um dos organizadores, Luiz Fernandes Dou- rado que, por ocupar a coordenagdo do GT, esteve impossibilitado, ha ocasiéo, de concorrer com trabalhos para apresentacéo. Resul- lantes da fecunda produgao desse GT, os textos pretendem forne- cer instrumentos analiticos para o mapeamento ¢ avaliacdo das condig6es objetivas em que as politicas educacionais ganharam fei- ‘cdo nas Ultimas décadas, a partir da discussdo te6rico-metodolégica sobre 0s desafios das politicas piblicas em educacdo e da gestéo educacional neste inicio de século. © texto de Ricardo Antunes, “Reestruturacao produtiva do ‘capital ¢ mudancas no mundo do trabalho numa ordem neoliberal”, apresentado como trabalho encomendado no GT, ao abordar alguns Pontos centrais da crise contemporanea, com particular destaque para 0 universo do mundo do trabalho, destaca a légica destrutiva assumida pelo capitalismo contemporaneo, consubstanciada pela acumulacéo flexivel e pela (des)regulacao neoliberal, privatizante e anti-social. Tal andlise nos oferece elementos teético-metodolégicos para compreendermos os paradoxos engendrados pelas atuais ten- déncias resultantes da crise estrutural do capital, conformando uma classe trabalhadora fragmentada, heterogénea e complexa, cindida entre trabalhadores qualificados e desqualificados, além de uma massa de trabalhadores “precarizados’ ou vivenciando os percalcos do desemprego estrutural. A discusséo dessas alteragdes é funda- mental para a andlise das politicas educacionais e, particularmente, do papel social da educacéo e da escola nesse contexto. Em “Politicas educacionais: consideracdes sobre o discurso genérico © a abstracéo da realidade”, Vitor Henrique Paro toma como objeto de andlise 0 descompasso que se verifica entre trabalhos teé- ricos sobre polticas pablicas relativas a escola basica e a prética pe- dagégica escolar, chamando a atencéo para a auséncia de importan- tes componentes teéricos nas atividades escolares, e para a falta de consideragao, por parte da teoria, da miitua determinagdo existente entre os condicionantes econdmicos, socials, politicos e culturals glo- bais ¢ 08 fatos e relagdes que se déo no émbito das escolas. Segun- do 0 autor, isso acaba acarretando uma negligéncia da concretude da pritica educativa escolar, com prejuizos para a eficdicia da educa- ‘go em sua desejével contribuicéo para a transformacéo social. 8 APRESENTACAO Luiz Fernandes Dourado, com 0 texto intitulado “A reforma do Estado e as politicas de formacdo de professores nos anos 1990", analisa as alteracdes ocorridas no ambito das politicas educacionais, particularmente aquelas referentes & formacdo de professores, em |, assentado em premis- sas de modemizacao conservadora. O artigo enfatiza que a regula- mentagao de uma nova organizacao académica das Instituicdes de Ensino Superior (IES), em sintonia com a nova LDB e diante do pro- cesso de diversificagao e 1¢40 da educacao superior em curso no pais, consubstanciou, como novo locus de formacao de professores, os Institutos Superiores de Educagao (ISE). Nesse sen- tido, afirma que a regulamentacdo dos ISE, instituigao de caréter profissional, redireciona a formagao docente na contramao do movimento nacional de professores e das experiéncias bem suc das na drea. No texto “Politicas internacionais e educagéo — cooperago ou interveng40?” Sofia Lerche Vieira problematiza um dos temas contro- vertidos da politica educacional contemporanea — as agOes e 0 pa- pel de agéncias ¢ organismos intemacionais na agenda educacional brasileira, nos iiltimos anos —, desvelando as influéncias dessas acdes diante do cenério de novas formas de regulacao e gestéo da educa- ‘cao em curso no Brasil. © artigo, ao analisar a interface entre as po- Iicas intemacionais e a educagao, destaca os acordos intemacionais, situando particularmente os anos 1990 como protagonistas de uma nova onda de acordos internacionais e uma redescoberta da educa- cdo como campo fértil de investimentos. Nessa ética, destaca a com- binago de trés varidveis: 1) a definicéo de uma agenda intemacional para a educacdo materializada em diversos eventos, onde so elabo- radas declarag6es de intencbes e recomendag6es com as quais se comprometem os paises signatdrios; 2) 0 estabelecimento de propos- tas firmadas no contexto da retomada de uma viséo que articula a educacdo ao desenvolvimento, em moldes semelhantes & teoria do capital humano; 3) a presenca de organizacées internacionais no pafs voltadas para 0 desenvolvimento de projetos na area de educacéo. Finalizando, Indica que, para depreender a fisionomia de uma poltt ca internacional para a educacao brasileira, é fundamental o intercruzamento dessas varidveis. Dagmar M. L. Zibas, ao tratar do tema da “Reforma do ensino médio: ligées que vém da Espanha?”, parte do pressuposto de que algumas inovagées do sistema educacional espanhol, introduzidas APRESENTACAOL ° pela Lei Organica de Ordenacao Geral do Sistema Educativo, em 1990, podem servir como subsidio para a discussdo da reforma do ensino médio que ora se implementa no Brasil. Entre os pontos destacados estdo: a escola de estrutura tinica até os 16 anos, a flexibilizacdo curricular, 0 curriculo organizado por reas do conhe- ento, a organizacdo do ensino profissional em médulos, o finan- lento piblico da escola privada e a participacéo da comunida- de na escola. Os éxitos e percalcos da reforma espanhola sio ilus- trados por meio da descricéo de algumas caracteristicas de trés escolas madrilenas estudadas. © texto “Politica educacional nos anos 1990: educagéo bésica © empregabilidade”, de autoria de Dalila Andrade de Oliveira, procu- ra demonstrar que as politicas educacionais tendem a attibuir certa centralidade educagdo basica como um direito de todos e condi- so indispensdvel a inserco no mercado de trabalho, a despeito dos crescentes indices de desemprego. Nesse sentido, a educacao basi- ca serd interpretada a partir das mudancas recentes na legislacao concemente a oferta de ensino fundamental. A paitir de uma expe- riéncia localizada — a reforma da educacdo no Estado de Minas Gerals entre 05 anos de 1991 € 1998 —, o artigo procura ilustrar os motivos ¢ iniciativas que levam os Estados a buscar adequacées nos seus sistemas de ensino. Marcelo Pereira da Silva apresenta 0 texto “Gestéo e organiza ‘¢40 do trabalho na escola piiblica: préticas sociais em educacdo em Minas Gerais (1983-1994)", no qual busca compreender como se configuram as relacdes de trabalho no interior da escola e os prin- cipios e diretrizes que engendram e determinam tals relacdes. S40 objeto de discusséo no perfodo focalizado a questéo da participa gio, do controle, da dominacao, da democratizacao e da qualidade total na organizagao do trabalho escolar. © texto “A cultura organizacional e 0 impacto das propostas de mudanca em escolas estaduais de Minas Gerais”, de autoria de Lécia Helena G. Teixeira, apresenta a sintese de uma pesquisa realiza- da em escolas de ensino fundamental, submetidas a um processo de mudanca proposto pelo govero do Estado. A perspectiva da cultura organizacional foi adotada, nesse artigo, na busca de conhecer o fun- cionamento interno das escolas, identificar os tracos marcantes da sua cultura, comparar as semelhancas e diferencas que apresentam entre si e avaliar 0 impacto que as propostas de mudanca em im- plantacdo no perfodo de 1991 a 1998 tiveram sobre elas. 10 [APRESENTAGAO Esse conjunto de artigos foi organizado na expectativa de poder contribuir para a discusséo do papel das politicas educacio- nals € dos limites que se interpGem entre estas ¢ sua materializagio na pratica educativa, entendendo a educacdo como pratica social participe das relagdes sociais mais amplas. Os organizadores. REESTRUTURAGAO PRODUTIVA E MUDANCAS NO MUNDO DO TRABALHO NUMA ORDEM NEOLIBERAL Ricardo Antunes* I sociedade contemporanea, particularmente nas Gitimas duas dé- cadas, presenciou fortes transformacées. © neoliberalismo ¢ a reestruturagdo produtiva da era da acumulacdo flexivel, dotados de forte cardter destrutivo, tém acarretado, entre tantos aspectos ne- fastos, um monumental desemprego, uma enorme precarizacao do trabalho e uma degradacdo crescente na relacdo metabélica entre homem e natureza, conduzida pela Idgica societal voltada pri tariamente para a producéo de mercadorias, que destréi o meio ambiente em escala globalizada. Curiosamente, entretanto, t&m sido freqiientes as representa- ‘gbes destas formas de (des)sociabilizagao, que se expressam como ‘se a humanidade tivesse atingido seu ponto alto, o seu felos. Muitas séo as formas de fetichizagao: desde 0 culto da sociedade demo- | Professor Iivre-docente de Sociologia do Trabalho no IFCH-Unicamp. E-mail: rartunes@obelcunicamp.br cratica, que teria finalmente realizado a utopia do preenchimento, até a crenca na desmercantilizacao da vida societal, no fim das ide- ologias. Ou ainda aqueles que visualizam uma sociedade comu- nicacional, capaz de possibilitar urna interacao subjetiva, para néo falar daqueles que visualizam o fim do trabalho como a realizacdo concreta do “reino da liberdade”, nos marcos da sociedade atual, desde que um pouco mais regulamentada e regida por relagdes mais, contrattialistas. Ao contrério destas formulac6es, pode-se constatar que a sociedade contemporanea presencia um cenério critico, que atinge também os pafses capitalisias centrais. Paralelamente a globalizacdo produtiva, a légica do sistema produtor de mercadorias vern con- vertendo a concorréncia e a busca da produlividade num proceso destrutivo que tem gerado uma imensa sociedade dos exclufdos e dos precarizados, que hoje atinge também os paises do Norte. Até © Japao € 0 seu modelo toyotista, que introduziu o “emprego vitali- cio” para cerca de 25% de: sua classe trabalhadora, hoje jé ameaca extingué-lo, para adequar-se competitividade que reemerge do ocidente “toyotizado”.* Depois de desestruturar 0 Terceiro Mundo e eliminar os pai- ses p6s-capitalistas do Leste Europeu, a crise alingiu também o cen- tro do sistema produtor de mercadorias. (Kurz, 1992) E quanto mais se avanga na competitividade inter-capitalista, quanto mais se desen- volve a tecnologia concorrencial, maior é a desmontagem de int meros parques industriais que nao conseguem acompanhar sua velocidade intensa. Da Rissia a Argentina, da Inglaterra ao México, da Itélia a Portugal, pasando pelo Brasil, os exemplos séo crescen- tes © acarretam repercussées profundas no enorme contingente de forga humana de trabalho presente nestes paises. O que dizer de uma forma de sociabilidade que desemprega ou precariza mais de 1 bilhao de pessoas, algo em torno de um terco da forga humana mundial que trabalha, conforme dados recentes da OIT? Essa ldgica destrutiva permitiu que Robert Kurz afirmasse, nao sem razdo, que regides inteiras estéo, pouco a pouco, sendo eliminadas do cenétio industrial, derrotadas pela desigual concor- réncia mundial. A experiéncia dos paises asiéticos como a Coréia, Hong Kong, Taiwan, Cingapura, entre outros, inicialmente bem * Para toyotista; toyotismo @ ocdante toyetizade var daservohimento no texte, mait a frente. (N. do E) “ REESTRUTURAGAO PRODUTIVA E MUDANGAS NO MUNDO. sucedidos na expansdo industrial recente, séo, em sua maioria, exemplos de paises pequenos, carentes de mercado interno e to- talmente dependentes do Ocidente para se desenvolverem. Nao podem, portanto, constituir modelos alternatives a serem seguidos ou transplantados para pafses continentais, como india, Russia, Brasil, México, entre outros. Suas recentes crises financeiras so ‘exemplo da sua fragilidade estrutural. E é bom reiterar que estes “novos paraisos” da industrializacao utilizam-se intensamente das formas nefastas de precarizacdo da classe trabalhadora. $6 & titu- Jo de exemplo: na Indonésia, mulheres trabalhadoras da mul- tinacional Nike ganham 38 délares por més, por longa jornada de trabalho. Em Bangladesh, as empresas Wal-Mart, K-Mart ¢ Sears utilizam-se do trabalho feminino, na confeccéo de roupas, com jornadas de trabalho de cerca de 60 horas por semana com salé- rios menores que 30 d6lares por més.* Portanto, entre tantas destruig6es de forgas produtivas, da natureza e do meio ambiente, h4 também, em escala mundial, uma aco destrutiva contra a forca humana de trabalho, que encontra- se hoje na condicdo de precarizada ou excluida Em verdade, estamos presenciando a acentuacdo daquela tendéncia que Istvan Mészéros sintetizou corretamente, ao afirmar que 0 capital, despro- vido de orientacéo humanamente significativa, assume, em seu sis- tema metabélico de controle social, uma légica que € essencialmente destrutiva, onde 0 valor de uso das coisas totalmente subordina- do ao seu valor de troca. (Mészéros, 1995, especialmente parte 3) Se constitul grande equivoco imaginar o fim do trabalho na sociedade produtora de mercadorias e, com isso, imaginar que es- tariam criadas as condigées para o reino da liberdade €, entretanto, imprescindivel entender quais mutacées © metamorfoses vém ocor- Tendo no mundo contemporaneo, bem como quais sao seus pri cipais significados ¢ suas conseqiéncias mals importantes. No que diz respeito ao mundo do trabalho, pode-se presenciar um conjun- to de tendéncias que, em seus tracos basicos, configuram um qua- dro critico e que tém direcées assemelhadas em diversas partes do mundo, onde vigora a légica do capital. E a critica as formas con- cretas da des-sociabilizagdo humana & condi¢do para que se possa empreender também a critica e a desfetichizagéo das formas de 2 Dados extraides de “Time for a global new deal”, em Foreign Aas, i PB. m hp 8. fer 1994, w. RICARDO. ANTUNES 5 representagéo hoje dominantes, do idedrio que domina nossa soci edade contemporanea. Nas paginas seguintes pretendemos oferecer um esboco ana- Iitico (resumido) de alguns pontos centrais da ctise contemporanea, com particular destaque para 0 universo do mundo do trabalho. I © capitalismo contempordneo, com a configuragéo que vern assumindo nas Gltimas décadas, acentuou sua légica destrutiva. Num contexto de crise estrutural do capital, desenham-se algumas ten- dencias, que podem assim ser resumidas: 1) © padrao produtivo taylorista e fordistat vem sendo cres- centemente substituido ou alterado pelas formas produtivas flexibilizadas e desregulamentadas, das quais a chamada acumula- 40 flexivel e 0 modelo japonés ou toyotismo® séo exemplos; 2) 0 modelo de regulacéo social-democrata, que deu susten- tacao ao chamado Estado de bern-estar social em varios paises cen- trais, vera também sendo solapado pela (des)regulacdo neoliberal, privatizante anti-social. Pelo proprio sentido que conduz estas tendéncias (que, em verdade, constituem-se em respostas do capital a sua prépria crise), acentuam-se os elementos destrutivos que presidem a légica do capital. Quanto mais aumentam a competitividade e a concorréncia Intercapitais, interempresas ¢ interpoténcias politicas do capital, mais, nefastas s4o suas conseqiiéncias. Duas manifestacées s4o mais virulentas e graves: a destrui- g40 e/ou precarizacdo, sem paralelos em toda era moderna, da forca humana que trabalha e a degradagao crescente, na relacéo metabélica entre homem e natureza, conduzida pela légica volta- da prioritariamente para a producéo de mercadorias que destréi o melo ambiente. 3 Entendemos 0 taylorismo e o fordisme como © padrio produtivo captalsta devervol- vido a0 longo do séeulo XX e que se fundamentou basicamente na produgio ern massa, ‘am unidades produtivas concentradas e vertialzadas, com um controle rgido dos tempos .@ dos movimentes, desenvolvides por um proletariado coletive e de massa, sob forte despotismo e controle fabri 4.0 toyotismo expressa 2 forma particular de expansio do eapitalsmo monopolisa do Japio no pés-1945, cujos tragos principals serio desenvolvides adiante. 6 REESTRUTURAGAO PRODUTIVA E MUDANGAS NO MUNDO... Trata-se, portanto, de uma aguda destrutividade, que no fun- do 6 a expresso mais profunda da crise estrutural que assola a (des)sociabilizagéo contemporanea: destréi-se forca humana que trabalha; destrocam-se 0s direitos sociais; brutalizam-se enormes contingentes de homens e mulheres que vivem do trabalho; torna- se predatéria a relacdo producao/natureza, criando-se uma.monu- mental “sociedade do descartdvel”, que joga fora tudo que servi como “embalagem” para as mercadorias € o seu sistema, manten- do-se, entretanto, 0 circuito reprodutivo do capital. Neste cenério, caracterizado por uma triade que domina o mundo (com os Estados Unidos da América e 0 seu Nafta, a Alema- mha a frente da Europa unificada e 0 Japao liderando os demais paises asiaticos), quanto mais um dos pélos se fortalece, mais os outros se ressentem e se debilitam. Por isso a crise freqientemente muda de centro, ainda que ela esteja presente em varios pontos, assumindo mesmo uma dimenséo mundial. No embate cotidiano que empreendem para se expandir pe- las partes do mundo que interessam € também para co-ad trar as suas situagdes mais explosivas, em suma, para disputar ¢ a0 mesmo tempo gerenciar as crises, acabam por acarretar ainda mais destruigéo e precarizacdo. A América Latina se integra a cha- mada mundializagao destruindo-se socialmente. Na Asia, a enorme expansao da-se as custas de uma brutal superexploracao do tra- balho, de que as recentes greves dos trabalhadores da Coréia do Sul, em 1997/8, sao firme denincia; superexploracao que atinge profundamente mulheres ¢ criancas. E preciso que se diga de forma clara: desregulamentacéo, flexibilizagdo, terceirizacdo, bem como todo esse receltuério que se esparrama pelo “mundo empresarial”, so expressdes de uma 16gi ca societal onde o capital vale e a fora humana de trabalho 36 conta como parcela imprescindivel para a reproducdo desse mes- ‘mo capital. Isso porque o capital 6 ineapaz de realizar sua auto-va- lorizacdo sem ulilizar-se do trabalho humano, Pode diminuir 0 tra- balho vivo, mas ndo elimind-lo. Pode precarizé-lo e desempregar parcelas imensas, mas nao pode extingui-o. O claro entendimento desta configuracao atual do mundo do trabalho nos leva a entender suas principais mutacdes, 0 que pro- curaremos fazer de modo um pouco mais detalhado a seguir. Nas tltimas décadas, particularmente depois de meados de 1970, 0 mundo do trabalho vivenciou uma situagao fortemente cri- RICARDO ANTUNES v tica, talvez a maior desde o nascimento da classe trabalhadora e do Proprio movimento operdrio inglés. O entendimento dos elementos constitutivos desta crise € de grande complexidade, uma vez que, neste mesmo perfodo, ocorreram mutac6es intensas, de ordens ferenciadas e que, no seu conjunto, acabaram por acarretar conse- qiiéncias muito fortes no interior do movimento operario e, em Particular, no ambito do movimento sindical. O entendimento deste quadro, portanto, supde uma andlise da totalidade dos elementos constitutivos deste cenério, empreendimento ao mesmo tempo difi- cil e imprescindivel, que néo pode ser tratado de maneira ligeira. ‘Vamos indicar alguns elementos que so centrais, em nosso entendimento, para uma apreensao mais totalizante da crise que se instalou no interior do movimento operario e sindical. Seu de- senvolvimento seria aqui impossivel, dada a amplitude e complexi- dade de questdes. A sua indicagao, entretanto, € fundamental por- que afetou tanto a materialidade da classe trabalhadora, a sua for- ma de ser, quanto a sua esfera mais propriamente subjetiva, politi- a, ideol6gica, dos valores € do idedrio que pautam suas acées € praticas concretas. ‘Comecamos dizendo que neste periodo vivenciamos um qua- dro de crise estrutural do capital, que se abateu sobre 0 conjunto das economias capitalistas, especialmente a partir do infcio dos anos 1970, Sua intensidade € téo profunda que levou o capital a desen- volver praticas materials da destrutiva auto-reprodug4o ampliada possibilitando a visualizacéo do espectro da destruigéo global, a0 invés de aceltar as necessédrias restrig6es positivas no interior da producao para satisfacéo das necessidades humanas. (Mészéros, 1995. Ver também Chesnais, 1996 e Kurz, 1992) Esta crise fez com que, entre tantas outras conseqiéncias, 0 capital implementasse um vastissimo processo de reestruturacao do capital, com vistas @ recuperacéo do ciclo de reproducao do capital e que, como veremos mais adiante, afetou fortemente 0 mundo do trabalho. Um segundo elemento fundamental para 0 entendimento das causas do refluxo do movimento operdrio decorre do explosive desmoronamento do Leste Europeu (e da quase totalidade dos pafses que tentaram uma transicao socialista, com a ex-Unido Sovi- ética & frente), propagando-se, no interior do mundo do trabalho, a falsa idéia do “fim do socialismo”. 8 REESTRUTURAGAO PRODUTIVA & MUDANGAS NO MUNDO. Embora a longo prazo as conseqiiéncias do fim do Leste Eu- ropeu sejam eivadas de positividades (pois coloca-se a possibilida- de da retomada, em bases inteiramente novas, de um projeto soci- alista de novo tipo, que recuse entre outros pontos nefastos, a tese staliniana do “socialismo num s6 pais” e recupere elementos cen- trais da formulaco de Marx), no plano mais imediato houve, em significativos contingentes da classe trabalhadora e do movimento operdtio, a aceitacdo e mesmo assimilagao da equivocada tese do “fim do socialismo” e, como dizem os defensores da ordem, do fim do marxismo. ‘Como conseqtiéncia do fim do chamado bloco socialista, os paises capitalistas centrais vém rebaixando brutalmente os direitos @ as conquistas sociais dos trabalhadores, dada a “inexisténcia”, segundo © capital, do perigo socialista hoje. Portanto, 0 desmorona- mento da Unio Soviética e do Leste Europeu, ao final dos anos 1980, teve enorme impacto no movimento operario. Bastaria somente lem- brar a crise que se abateu sobre os partidos comunistas tradicio- nais e sobre 0 sindicalismo a eles vinculado. Um terceiro elemento fundamental para a compreensao da crise do mundo do trabalho refere-se ao desmoronamento da es- querda tradicional da era stalinista. Ocorreu um agudo processo politico e ideol6gico de social-democratizagéo da esquerda e a sua conseqiiente atuaco subordinada a ordem do capital. Esta opcao social-democrata atingiu fortemente a esquerda sindical e partidé- tia, repercutindo, conseqlentemente, no interior da classe trabalha- dora. Ela atingiu também fortemente o sindicalismo de esquerda, que passou a recorrer, cada vez mais freqtientemente, & institu- cionalidade e & burocratizacdo, que também caracterizam a social- democracia sindical. E preciso acrescentar ainda — ¢ este ¢ 0 quarto elemento central da crise atual — que, com a enorme expansio do neolibe- ralismo ao final da década de 1970 e a conseqiiente crise do welfare state, deu-se um proceso de regresséo da prépria social- democracia, que passou a atuar de maneira muito proxima da agen- da neoliberal. © neoliberalismo passou a ditar 0 ideétio e pro- grama a serem implementados pelos paises capitalistas, inicialmente no centro e logo depois nos paises subordinados, contemplando reestruturagdo produtiva, privatizacao acelerada, enxugamento do estado, politicas fiscais e monetdtias, sintonizadas com os organi RICARDO ANTUNES ia mos mundiais de hegemonia do capital; ‘como 0 Fundo Monetério internacional. ‘A desmontagem dos direitos socials dos trabathadores, 0 com- bate cerrado aos sindicalismo classista, a propagacéo de um subjetivismo ¢ de um individualismo exacerbados — dos quais a cultura “pés-moderna” € exemplar —, bem como a clara animosi- dade contra qualquer proposta socialista que se choque com valo- res e interesses do capital, s40 tracos marcantes deste periodo re- cente. (Harvey, 1992; Mcliroy, 1997; Beynon, 1995). Vé-se que se trata de uma processualidade complexa que podemos resumir em: 1) uma crise estrutural do capital ou um efeito depressivo profundo que acentua seus tracos destrutivos; 2) a derrocada do Leste Europeu, onde parcelas importantes da esquerda se social-democratizaram; 3) esse processo efetivou-se num momento em que a prdpria social-democracia sofia forte crise; 4) forte expansao do projeto econdmico, social e politico neoliberal. Tudo isso acabou por afetar fortemente 0 mundo do traba- Iho, em varias dimensoes. Vamos indicar a seguir as tendéncias mais, significativas que vém ocorrendo no interior do mundo do trabalho, ag Como resposta do capital @ sua crise estrutural, varias muta- ges vém ocorrendo € so fundamentais nesta virada de século, Uma delas, que tem importéncia central, diz respelio as metamorfoses no processo de produgao do capital e suas repercusses no proceso de trabalho. Particularmente nos tiltimos anos, como respostas do capl- tal a crise dos.anos 1970, intensificaram-se as transformagoes no proprio processo produtivo, através do avango tecnolégico, da constituigdo das formas de acumulacdo flexivel ¢ dos modelos al- ternativos ao bindmio taylorismo/fordismo, e que se destaca, para © capital, especialmenté, o toyotismo. Estas transformagées, decor- rentes, por um lado, da propria concorréncia intercapitalisia e, por ‘outro, da necessidade de controlar 0 movimento operério e'a luta de classes, acabaram por afetar fortemente a classe trabalhadora € 0 seu movimento sindical e operério. (Murray, 1983; Bihr, 1998) Fundamentalmente, essa forma de produgéo flexibilizada bus- ‘ca a adesao de fundo, por parte dos trabalhadores, que devem ace 2 REESTRUTURAGAO PRODUTIVA E MUDANGAS NO MUNDO... tar integralmente 0 projeto do capital. Procura-se uma forma daqui- Jo que chamei, em Adeus ao trabaiho?, de envolvimento manipulatério Ievado ao limite, no qual o capital busca 0 consentimento e a ade- so dos trabalhadores, no interior das empresas, para viabilizar um projeto que é aquele desenhado e concebido segundo os fundamen- tos exclusives do capital. Em seus tracos mais gerais, 0 toyotismo (via particular de consolidagao do capitalismo monopolista do Japao do pés-1945) pode ser entendido como uma forma de organizacdo do trabalho que nasce a partir da fabrica Toyota, no Japao, e que vern-se ex- pandindo pelo Ocidente capitalista, tanto nos paises avancados quanto naqueles que se encontram subordinados. Suas caracteris ticas basicas (em contraposigéo ao taylorismo/fordismo) sao: 1) sua produgéo € muito vinculada a.demanda; 2) ela € variada e bastan- te heterogénea; 3) fundamenta-se no trabalho operdrio em equi- pe, com multivariedade de funcées; 4) tem como principio 0 just in time, 0 melhor aproveitamento possivel do tempo de producao @ funciona, segundo o sistema de kanban, placas ou senhas de comando para reposigao de pecas € de estoque (que, no toyotismo, deve ser minimo). Enquanto na fébrica fordista cerca de 75% era produzido no seu interior, somente cerca dé 25% & produzido dentro da fabrica toyotista. Ela horizontaliza o processo produtivo e transfere a “ter- ceiros” grande parte do que anteriormente era produzido dentro dela. (ver especialmente Gounet, 1991 ¢ 1992 e a coleténea organi- zada por Amin, 1996) ‘A faldcia da “qualidade total” passa a ter papel de relevo no proceso produtivo, Os Circulos de Controle de Qualidade (CCQ) proliferaram, constituindo-se como grupos de trabalhadores que séo incentivados pelo capital para discutir o trabalho e desempe- mho, com vistas a melhorar a produtividade da empresa. Em ver~ dade, € a nova forma de apropriagdo do saber fazer intelectual do trabalho pelo capital. despotismo torna-se entéo mesclado com a manipulagéo do trabalho, com o “envolviménto” dos trabalhadores, através de um. processo ainda mais profundo de intetiorizacao do trabalho aliena- do (estranhado). O operério deve pensar e fazer pelo ¢ para 0 capi- tal, © que aprofunda (ao invés de abrandar) a subordinacéo do tra- balho ao capital. No Ocidente, 0s CCQs tém variado quanto & sua implementacdo, dependendo das especificidades e singularidades dos pafses em que eles sdo implementados. RICARDO ANTUNES 2 Esta forma flexibilizada de acumulacdo capitalist, baseada na “reengenharia”, na “empresa enxuta”, para lembrar algumas ex- pressées do novo dicionério do capital, teve conseqiiéncias enor- mes no mundo do trabalho. Podemos aqui téo somente indicar as mais importantes: 1) Crescente redugao do proletariado fabril estavel, que se desenvolveu na vigéncia do binémio taylorismo/fordismo e que vem diminuindo com a reestruturagdo, flexibilizagdo e desconcentracao do espaco fisico produtivo, tipico da fase do toyotismo; 2) Enorme incremento do novo proletariado, do subpro- letariado fabril e de servigos, o que tem sido denominado mungial- mente de trabalho precarizado. Sao os “terceirizados”, subcon- tratados, part-time, entre tantas outras formas assemelhadas, que se expandem em inémeras partes do mundo. Inicialmente, estes pos- tos de trabalho foram preenchidos pelos imigrantes, como os gastarbeiters na Alemanha, o lavoro nero na Italia, os chicanos nos Estados Unidos, os dekassegui no Japo etc. Mas hoje, sua expan- sao atinge também os trabalhadores especializados ¢ remanescen- tes da era taylorista-fordista; 3) Aumento significative do trabalho feminino, que atinge mais de 40% da forca de trabalho nos paises avancados, e que tem sido preferencialmente absorvido pelo capital no universo do trabalho precarizado e desregulamentado; 4) Incremento dos assalariados médios e de servicos, o que Possibilitou um significativo incremento no sindicalismo destes se- tores, ainda que o setor de servicos j4 presencie também niveis de desemprego acentuado; 5) Exclusdo dos jovens e dos idosos do mercado de trabalho dos pafses centrais: os primeiros acabam muitas vezes engrossan- do as fileiras de movimentos neonazistas e aqueles com cerca de 40 anos ou mais, quando desempregados e exclufdos do trabalho, dificilmente conseguem o reingresso no mercado de trabalho; 6) Inclusao precoce e criminosa de criangas no mercado de trabalho, particularmente nos paises de industrializagao inter- medidria e subordinada, como nos paises asidticos, latino-ameri- canos etc. 7) Expanséo do que Marx chamou de trabalho social combinado (Marx, 1978), em que trabalhadores de diversas partes do mundo participam do processo de producao e de servicos. £ evidente, isso néo caminha no sentido da eliminacdo da classe tra- 2 REESTRUTURACAO PRODUTIVA E MUDANGAS NO MUNDO... balhadora, mas da sua precarizagao e utilizacéo de maneira ainda mais intensificada. Em outras palavras, aumentam os nivels de ex- ploragao do trabalho. Portanto, a classe trabalhadora fragmentou-se, heterogeneizou- se e complexificou-se ainda mais (Antunes, 1998). Tornou-se mais qualificada em varios setores, como na siderurgia, onde houve uma relativa intelectualizagao do trabalho, mas desqualificou-se e pre- carizou-se em diversos ramos, como na indistria automebilistica, com © ferramenteiro nao tendo mais a mesma importancia, sem falar na redugdo dos inspetores de qualidade, dos gréficos, dos mineiros, dos portudtios, dos trabalhadores da construgéo naval etc. Criou-se, de um lado, em escala minoritéria, 0 trabalhador *polivalente e multifuncional” da era informacional, capaz de ope- rar com méquinas com controle numérico de, por vezes, exer citar com mais intensidade sua dimensao mais intelectual. E, de outro lado, h4 uma massa de trabalhadores precarizadados, sem qualificagdo, que hoje estd presenciando as formas de part-time, emprego temporario, parcial, ou entéo vivenciando o desempre- go estrutural. Estas mutagdes criaram, portanto, uma classe trabalhadora mais heterogénea, mais fragmentada e mais complexificada, di da entre trabalhadores qualificados ¢ desqualificados, do mercado formal e informal, jovens e velhos, homens e mulheres, estaveis € precdrios, imigrantes e nacionais, brancos € negros etc, sem falar nas divisdes que decorrem da insergao diferenciada dos paises e de seus trabalhadores na nova diviséo internacional do trabalho. Ao contrario, entretanto, daqueles que defendem o “fim do papel central da classe trabalhadora” no mundo atual, 0 desafio maior da classe-que-vive-do-trabalho® nesta virada de século € sol- 5 Usizamos a expresso clate-que-vive-do-trbalho como sndnimo de cass trabahadora ‘Ao contriio de autores que deferem 0 fim do trabalho @ 0 fim da chasse tabaladore, ‘itd expressio pretonde enftizr 0 sentido contemporineo da classe trabahadora (e do trabalho). Ela compreende: |) todos aqueles que vender sua forga de trabalho, induindo tanto 0 trabalho produtve quanto o improditve (0o seetido dado por Mars); 2) inc os _ussalariados do sefor de servigos @ também o proletariado rural; 3) incul proletariado precarizado, sem direitos « também of trabalhadores desemprogados, que compraendem (0 exérato industrial de reserva; 4) © exci, raturalmente, of gestores © altos funconirios do capital, que receber rendimentot elevados ou viver de jurs, Essa expresso incorpora Integraimente a idéa marsiana do trabalho socal combinado, tal como aparece no Capitulo Wi (inédito}, & qual nos referimos arteriormence. (Miarx.1978) RICARDO ANTUNES 2 dar os lagos de pertencimento de classe existentes entre os di- versos segmentos que compreendem o mundo do trabalho. E, desse modo, procurando articular desde aqueles segmentos que exercem um papel central no processo de criagao de valores de troca, até aqueles segmentos que estéo mais 4 margem do pro- cesso produtivo, mas que, pelas condi¢ées precatias em que se encontram, constituem-se er contingentes sociais potencialmente rebeldes frente ao capital ¢ suas formas de (des)sociabilizagao. (Wer Bihr, 1998) ‘A logica societal, em seus tragos dominantes, ¢ dotada, por- tanto, de uma aguda destrutividade, que no fundo € a expresso mais profunda da crise que assola a (des)sociabilizacio contempo- ranea, condigéo para a manutencéo do “sistema de metabolismo social do capital”, conforme expresséo de Mészéros (1995) ¢ seu circuito reprodutivo. ‘As conseqiiéncias no interior do mundo do trabalho eviden- ciam que, sob 0 capitalismo, nao se constata o fim do trabalho como medida de valor, mas uma mudanca qualitativa, dada, por um lado, pelo peso crescente da sua dimenséo mais qualificada, do trabalho multifuncional, do operério apto a operar com maqui- nas informatizadas, da objetivacdo de atividades cerebrais (Lojkine, 1995) e, por outro, pela intensificacéo levada ao limite das formas de exploragdo do trabalho, presentes e em expansdo no novo pro- letariado, no subproletariado industrial e de servicos, no enorme Teque de trabalhadores que s40 explorados crescentemente pelo capital, nao s6 nos paises subordinados, mas no préprio coracéo do sisterna capitalista. ‘Tem-se, portanto, cada vez mais uma crescente capacidade de trabalho socialmente combinada, que se converte no agente real do processo de trabalho total, 0 que toma, segundo Marx, absolutamen- te indiferente 0 fato de que a funcdo de um ou outro tabalhador seja mais préxima ou mais distante do trabalho manual direto (Marx, 1978). E, ao invés do fim do vetor-trabalho, pode-se constatar uma inter-relacdo acentuada das formas de extracéo de mais valia relati- va e absohuta, que se realiza em escala ampliada e mundializada. Estes elementos — aqui somente indicados em suas tendén- cias mais genéricas — nao possibilitam’ conferir estatuto de valida- de &s teses sobre 0 fim do trabalho sob 0 modo de produgéo ca- pitalista, 0 que se evidencia ainda mais quando se constata que a ™ REESTRUTURAGAO PRODUTIVA & MUDANGAS NO MUNDO. maior parte da forca de trabalho se encontra nos paises do cha- mado Terceiro Mundo, nos quais as tendéncias anteriormente apon- tadas tém inclusive um ritmo bastante particularizado e diferencia do. Restringirse & Alemanha ou a Franca e, a partir dai, fazer gene- ralizagées © universalizagées sobre o fim do trabalho ou da classe trabalhadora, desconsiderando o que se passa em paises como india, China, Brasil, México, Coréia do Sul, Russia, Argentina ou.o Japao, configura-se como um equivoco de grande significado. Vale acrescentar que a tese do fim da classe trabalhadora, mesmo quan- do restrita aos paises centrais é em nossa opiniao, desprovida de fundamentacdo, tanto empfrica quanto analitica. Uma nogao am- pliada de trabalho, que Jeve em conta seu caréter multifacetado, é forte exemplo desta evidéncia. ‘Ademais, a eliminacao do trabalho e a generalizacao desta tendéncia sob o capitalismo contemporéneo — nele incluido 0 enorme contingente de trabalhadores do Terceiro Mundo — su- poria a destruicdo da prépria economia de mercado, pela inca- pacidade de integralizagéo do processo de acumulacao de capi- tal, uma vez que os robds nao poderiam participar do mercado como consumidores. ‘A simples sobrevivéncia da economia capitalista estaria com- prometida, sem falar em tantas outras conseaiiéncias sociais € po- Iticas explosivas que adviriam desta situagio. Tudo isso evidencia que © equivoco de pensar na desaparigéo ou fim do trabalho enquanto perdurar a sociedade capitalista produtora de mercadorias e — 0 que é fundamental — também nao é possivel ter em perspectiva nenhuma possibilidade de eliminagao da classe-que-vive-do-trabalho, enquanto forem vigentes os pilares constitutivos do modo de pro- ducao do capital. Tal investigacéo assume especial importincia especialmente pela forma pela qual estas transformacGes vém afetando o movimen- to social e politico dos trabalhadores (nele inclufdo 0 movimento sindical), particularmente em paises que se diferenciam dos pafses capitalisias centrais, como é 0 caso do Brasil, onde hé tracos parti culares bastante diferenciados da crise vivenciada nos paises cen- trais. Se estas transformagées sao eivadas de significados e conse- qiténcias para a classe trabalhadora e seus movimentos sociais, sin- dicais € politicos, nos pafses capitalistas avancados, também 0 so em paises intermedidrios ¢ subordinados, porém dotados de relevan- te porte industrial, como 0 Brasil. RICARDO ANTUNES. 2% entendimento abrangente e totalizante da crise que atinge © mundo do trabalho passa, portanto, por este conjunto de proble- mas que incidiram diretamente no movimento operério, na medida em que so complexos que afetaram tanto a economia politica do capital, quanto suas esferas politica e ideolégica. Claro que esta crise € particularizada e singularizada pela for- ma pela qual estas mudangas econdmicas, sociais, politicas e ideo- logicas afetaram mais ou menos direta e intensamente os diversos paises que fazem parte dessa mundializagao do capital que é, como se sabe, desigualmente combinada. Para uma andlise detalhada do que se passa no mundo do trabalho, o desafio € buscar essa totalizaco analitica que articularé elementos mais gerais deste qua- dro, com aspectos da singularidade de cada um destes paises. Mas € decisive perceber que ha um conjunto abrangente de metamor- foses e mutagdes que vém afetando a classe trabalhadora, nesta fase de transformacées no mundo pfodutivo dentro de um universo em que predominam elementos do neoliberalismo. REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS: AMIN, Ash (04). Post-ordism, a reader: Oxiord, Blackwell, 1996, ANTUNES, Ricardo. Adous ao trabalho? Ensaio sobre as metamorfoses © a cenraidade do mundo do trabalho. 6. ed., Sio Paulo, Cortez, 1998. BEYNON, Huw. The changing practices of work. International Centre for Labour Studies. Manchester, 1995. BIHR, Alin. Da grande noite & alternativa. © movimento eperirio europeu em exse. So Paulo, Boitempo Edtoral, 1998, CHESNAIS, Francois. A mundializagio do capital. Sao Paulo, Xam, 1996. GOUNET, Thomas. 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RICARDO ANTUNES a POLITICAS EDUCACIONAIS: CONSIDERACOES SOBRE O DISCURSO GENERICO E A ABSTRACAO DA REALIDADE! Vitor Henrique Paro? uando se entra em contato com a realidade de nossas esco- las ptblicas basicas, nao é incomum constatar-se certo desCompasso entre a pratica que af se desenvolve € os contetidos de estudos académicos que versam sobre as politicas péblicas em educacao. Pode-se dizer que esse descompasso se expressa, inicialmen- te, na auséncia de importantes componentes teéricos nas ativida- des escolares. Embora nao se tenha conhecimento de pesquisas que examinem essa questo (e isso talvez seja evidéncia da pouca importancia que se da ao assunto), em conversas com professores, coordenadores pedagégicos e diretores de escola, pode-se perce- ber a falta, ou a presenca ainda muito timida, de posturas criticas sobre temas como o neoliberalismo, os efeitos da agao do Banco Mundial na politica educacional, a privatizacdo do ensino; a | Terao aprasentado, como trabalho encomendado, no Grupo de Trabalho "Estado Poltica Educainal", durante a 22° Reuniéo da Anped, reakzada de 26 a 30/9/1999, em Coambu. 2 Professor titular da Faculdade ‘de Educagio da Universidade de Sto’ Paulo. E-mail: vaparo@usp.br

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