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ROGÉRIO HAFEZ

NIESTZSCHE Um “crítico”da ciência ?


Leitura do aforismo 344 de A Gaia Ciência

Em que medida nós também somos devotos ainda — ”Na ciência


as convicções não têm nenhum direito de cidadania, assim se diz
com bom fundamento: somente quando elas se resolvem a rebai-
xar-se à modéstia de uma hipótese, de um ponto de vista provisório
de ensaio, de uma ficção regulativa, pode ser-lhes concedida a
entrada e até mesmo um certo valor dentro do reino do conhecimen-
to — sempre com a restrição de permanecerem sob vigilância
policial, sob a polícia da desconfiança. — Mas isso, visto com mais

ROGÉRIO HAFEZ
precisão, não quer dizer: somente quando a convicção deixa de ser
Professor de Grego
do Instituto de convicção, ela pode ter acesso à ciência? A disciplina do espírito
Estudos da
Linguagem (IEL) científico não começa com o não mais se permitir convicções?...
da Universidade
Estadual de Assim é, provavelmente: só resta perguntar se, para essa dis-
Campinas
(UNICAMP). ciplina poder começar, já não tem de haver uma convicção,

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ACIMA, O FUTURO

FILÓSOFO, AOS 16

ANOS; AO ALTO,

NIETZSCHE COM A

MÃE, EM FOTO DE

1892; AO LADO,

BUSTO DO

PENSADOR ALEMÃO,

POR MAX KLINGER,

1904; NA OUTRA

PÁGINA, O AUTOR DE

O NASCIMENTO DA

TRAGÉDIA, EM 1873,

AOS 29 ANOS

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e aliás tão imperiosa e incondicional, que sacrifica a si mesma todas
as outras convicções? Vê-se que também a ciência repousa sobre
uma crença, não há nenhuma ciência ‘sem pressupostos’. A ques-
tão, se é preciso verdade, não só já tem de estar de antemão respon-
dida afirmativamente, mas afirmada em tal grau que nela alcança
a expressão esta proposição, esta crença, esta convicção: ‘Nada é
mais necessário do que a verdade, e em proporção a ela todo o resto
só tem um valor de segunda ordem’. — Essa incondicionada von-
tade de verdade: o que é ela? É a vontade de não se deixar enganar?
É a vontade de não enganar? Pois também desta última maneira
poderia ser interpretada a vontade de verdade: pressuposto que sob
a generalização ‘eu não quero enganar’ esteja incluído também o
caso particular ‘eu não quero me enganar’. Mas por que não enga-
nar? Mas por que não se deixar enganar? — Note-se que os funda-
mentos do primeiro caso ficam em um domínio totalmente outro do
que os do segundo caso: não se quer deixar-se enganar, sob a hipó-
tese de que é pernicioso, perigoso, fatal ser enganado — nesse
sentido, ciência seria uma longa prudência, uma cautela, uma uti-
lidade, contra a qual, porém, se poderia, com justiça, objetar: como?
o não-querer-se-deixar-enganar é efetivamente menos pernicioso,
menos perigoso, menos fatal? O que sabeis de antemão do caráter
da existência, para poder decidir se a maior vantagem está do lado
do desconfiado incondicional ou do confiante incondicional? Mas,
caso ambas forem necessárias, muita confiança e muita desconfi-
ança: de onde então poderia tirar a ciência sua crença incondicionada,
e sua convicção, que repousa sobre ela, de que verdade é mais
importante do que qualquer outra coisa, do que qualquer outra
convicção? Justamente essa convicção não poderia ter surgido, se
verdade e inverdade se mostrassem ambas constantemente como
úteis: como é o caso. Portanto — a crença na ciência, que agora
está aí incontestavelmente, não pode ter tirado sua origem de um
tal cálculo utilitário, mas, antes, a despeito de lhe ter sido cons-
tantemente demonstrada a inutilidade e periculosidade da ‘von-
tade de verdade’, da ‘verdade a todo preço’. ‘A todo preço’: oh,

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nós o entendemos bastante bem, depois que oferecemos e truci-
damos uma crença depois da outra sobre esse altar! — Conse-
qüentemente, ‘vontade de verdade’ não quer dizer ‘eu não quero
me deixar enganar’, mas sim — não há nenhuma escolha — ‘eu
não quero enganar, nem sequer a mim mesmo’: e com isso estamos
no terreno da moral. Pois basta perguntar-se fundamentalmente:
‘Por que não queres enganar?’, especialmente se houvesse a apa-
rência — e há essa aparência — de que a vida depende de aparên-
cia, quero dizer, de erro, impostura, disfarce, cegamento,
autocegamento, e se, por outro lado, a grande forma da vida sem-
pre se tivesse mostrado, de fato, do lado dos mais inescrupulosos
polytropoi. Um tal propósito poderia, talvez, interpretado bran-
damente, ser um quixotismo, um pequeno desatino entusiasta;
mas poderia também ser algo ainda pior, ou seja, um princípio
destrutivo, hostil à vida... ‘Vontade de verdade’ — isso poderia
ser uma velada vontade de morte. — Dessa forma a questão: por
que ciência? reconduz ao problema moral: para que em geral
moral, se vida, natureza, história, são ‘imorais’? Sem dúvida
nenhuma, o verídico, naquele sentido temerário e último, como
o pressupõe a crença na ciência, afirma com isso um outro mundo
do que o da vida, da natureza e da história; e, na medida em que
afirma esse ‘outro mundo’, como? não precisa, justamente com
isso, de... negar seu reverso, este mundo, o nosso mundo?... No
entanto, já se terá compreendido aonde quero chegar, ou seja, que
é sempre ainda sobre uma crença metafísica que repousa nossa
crença na ciência — que também nós, conhecedores de hoje, nós
os sem-Deus e os antimetafísicos, também nosso fogo, nós o
tiramos ainda da fogueira que uma crença milenar acendeu, aque-
la crença cristã, que era também a crença de Platão, de que Deus
é a verdade, de que a verdade é divina... Mas, e se precisamente
isso se tornar cada vez mais desacreditado, se nada mais se de-
monstrar como divino, que não seja o erro, a cegueira, a men-
tira — se Deus mesmo se demonstrar como nossa mais longa
mentira? “ (Friedrich Nietzsche, A Gaia Ciência, § 344).

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Para o leitor que se lança ao texto de prio Nietzsche. Por outro lado, desejo melhor
Nietzsche sem anteparos, a primeira impres- caracterizar, ao final, a “crítica” a que se sub-
são causada pela linguagem desse filósofo é, mete, admitidamente, a ciência nesse
freqüentemente, a de um profundo descon- aforismo. Se, com essa leitura, puder auxiliar
certo. Esse fenômeno praticamente se torna os novos leitores atraídos pelo texto de
regra no universo particular — e ao mesmo Nietzsche, ou, eventualmente, o próprio lei-
tempo tão amplo — dos aforismos de tor familiarizado com algumas das dificulda-
Nietzsche. Exemplo especialmente interes- des do aforismo nietzschiano, meu propósito
sante é o do aforismo “Em que medida nós terá se realizado inteiramente (2).
também somos devotos ainda” (“Inwiefern O aforismo, em seu conjunto, sustenta a
auch wir noch fromm sind”), que integra o tese indicada já em seu título. Trata-se de de-
livro quinto de A Gaia Ciência. Tem-se a monstrar a permanência de uma relação de
impressão de que o filósofo aí realiza, sobre- devoção (3) (no original, fromm: “devoto,
tudo, uma livre interpretação de todo o com- piedoso”), bem como a pertinência dessa re-
plexo de atividades a que chamamos hoje lação a um grupo que dela se imagina afasta-
“ciência”, e a interpretação de Nietzsche, em do: “Nós também (auch) somos devotos ain-
parte graças à sua persistente novidade, cer- da (noch)”. Atentando para o emprego do
tamente não parece ao leitor ser de todo des- advérbio temporal no título do aforismo, con-
tituída de arbitrariedades. De fato, custa àquele cluiremos que era objetivo de Nietzsche apon-
que enfrenta a máquina do texto acompanhar tar não só a permanência dessa devoção em
os passos demasiado rápidos do pensamento “nós”, mas também a sua presença surpreen-
de Nietzsche, sem deixar de sentir, e por ve- dentemente insistente: somos devotos, quan-
zes lamentar, alguns “saltos” no encadeamen- do “dávamos por certo” que essa relação aca-
to das idéias, “lacunas” lógicas que compro- bara por completo. A tese se ergue, conse-
metem a verossimilhança dessa fábula inte- qüentemente, contra a expectativa ambiente.
lectual. Ainda que todo o discurso do aforismo A estranheza dessa tese será atestada, já no
1 Para a Genealogia da Mo- tenha sido sinalizado, preventivamente, por início do aforismo, pela descrição da nova
ral, III, §24.
Nietzsche — que nele sublinha, por exemplo, economia intelectual vigente, o que se fará
2 Ao leitor que não conheça suas objeções e conclusões —, resta ao leitor, através de uma rica imagem então
o aforismo 344 de A Gaia
Ciência, ou que dele não nesse momento, uma sensação de vertigem sugerida — a do “Estado Científico”.
tenha clara lembrança, re-
comendo vivamente uma semelhante à do viajante vencido pela alta No território da ciência, diz-se “com bom
breve (re)leitura do texto
antes de acompanhar este velocidade, e que se vê obrigado a refazer o fundamento” (mit gutem Grunde), as convic-
exame da crítica de percurso, para melhor apreciar, na paisagem ções não possuem “nenhum direito de cida-
Nietzsche. Para tanto, re-
produziu-se a tradução de oscilante, um possível continuum. “Nesta dania” (kein Bürgerrecht), nenhuma partici-
Rubens Rodrigues Torres
Filho (São Paulo, Abril, Col. passagem é preciso parar e meditar pação reconhecida como legítima ou
“Os Pensadores”), à qual se
tecerão comentários. Já as longamente” — eis, de resto, a auto-imposi- determinante. “Convicção é a crença de es-
expressões do original ale-
mão de Die fröhliche
ção do próprio Nietzsche ao retomar, em outro tar, em algum ponto do conhecimento, na
Wissenschaft foram toma- momento, sua crítica da ciência (1). posse da verdade incondicionada” (4) —
das às seguintes edições
das obras de Nietzsche : Nietzsche: um opositor frontal do espírito assim se poderia pronunciar a Constituição
Gesammelte Werke
(München, Musarion científico — essa já é, porém, desde a primei- desse “reino do conhecimento”, supomos,
Verlag) e Werke (Leipzig,
Alfred Kröner Verlag). ra leitura, a estranha conclusão a que chega- pela sua aversão a crenças e convicções (o
3 Interessa, aqui, marcar a
mos, e certamente não convém dissimulá-la, sentido desses dois últimos termos no
etimologia do termo utiliza- mas sim interrogá-la. O que nos leva à cons- aforismo, como no excerto citado, tende a se
do na tradução portuguesa.
Devoção procede do latim trução dessa equação? Se ela não é satisfatória, unificar). Como se não bastasse o inglório
votum, isto é, o que entra
na relação do homem com o que nela se perdeu? Tal é, em suma, o pro- político, as convicções devem decididamen-
uma divindade: tanto aqui-
lo que promete o devoto,
pósito deste trabalho: por um lado, assumir a te depor a altivez, de que são signo, e rebai-
quanto aquilo que ele es-
pera, através de seu com-
perspectiva daquele que se inicia no texto xar-se à “modéstia de uma hipótese” (aquilo
promisso, obter do deus. desse filósofo, para melhor explicitar, assim, que é dado como simples princípio plausí-
Ver, a propósito da ambi-
güidade do termo latino: o movimento da leitura face às acrobacias da vel), “de um ponto de vista provisório de
Émile Benveniste, “Le
Voeu”, in Le Vocabulaire formidável composição conceitual do ensaio” (uma precária perspectiva resultante
des Institutions Indo-
européennes, vol. II, Paris,
aforismo nietzschiano. Nesse sentido, o da falência do universal, numa expressão que
Minuit, 1969, sobretudo pp. aforismo nos remeterá à leitura de vários toca o pleonasmo), “de uma ficção regulativa”
235-7.
outros textos, mas procurarei recorrer, prefe- (enfim, como artifício possivelmente útil),
4 Humano, Demasiado Hu-
mano , IX, §630. rencialmente, a passagens tomadas ao pró- isso para que elas possam obter a entrada e

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“até mesmo um certo valor” dentro do reino Afinal, a instauração do Estado Científi-
do saber. Se Nietzsche acaba de estabelecer a co poderia caracterizar o nascimento de uma
condição de possibilidade da entrada das con- nova economia intelectual, capaz de prescin-
vicções no pensamento científico, ele insisti- dir de todas as convicções? Em outras pala-
rá, uma vez mais, no retrato da condição de vras, não seria necessário que houvesse, pre-
permanência das mesmas convicções, uma viamente, como condição de possibilidade da
vez que, nesse “território”, elas restam sub- efetividade dessa disciplina (do espírito cien-
metidas ao olhar vigilante da contrária “polí- tífico) também uma convicção, “e aliás tão
cia da desconfiança” (die Polizei des imperiosa e incondicional (bedingungslose),
Misstrauens). que sacrifica a si mesma todas as outras con-
Depreende-se o estado mendicante a que vicções?” Incisiva, a resposta, ao insistir numa
se vê, então, submetida a convicção, levada a caracterização genérica: “Vê-se que também
aceitar os planos mais acessórios do novo a ciência repousa sobre uma crença (einem
regime, da nova hierarquia. As convicções, Glauben), não há nenhuma ciência ‘sem pres-
de modo vicário, recebem seu valor a partir supostos’ (es gibt gar keine ‘voraus-
de uma instância doadora de sentido que, ipso setzungslose’ Wissenschaft)”. Qual, então, a
facto, as instrumentaliza no interior de uma convicção própria da ciência? Nietzsche a
disciplina. Disciplina que pode ser lida como expõe: a convicção da necessidade
a própria metodologia da ciência, enquanto apriorística, incondicionada, da verdade. À
estratégia que visa ao saber e, ao mesmo tem- questão “é preciso verdade?”, deve se seguir
po, se obriga a negá-lo enquanto posse de não só uma resposta afirmativa, mas uma
alguém (como convicção). “O que distingue afirmação no grau que leve à seguinte certe-
o século XIX não é o triunfo das ciências, mas za: “nada é mais necessário do que a verdade,
o triunfo, sobre as ciências, do método cien- e em proporção a ela todo o resto só tem um
tífico”, eis uma importante observação de valor de segunda ordem”. A ouvidos habitu-
Nietzsche, lembrada por Jean Beaufret (5). ados a uma tradição monoteísta, parte dessa
Note-se ainda, na imagem sugestiva do Esta- proposição recordará facilmente um dos
do Científico, a indicação da magnitude do mandamentos bíblicos.
domínio e do poder da ciência: do contrário, O primeiro segmento do aforismo se en-
como entender a necessidade de as convic- cerra, assim, com uma completa reviravolta.
ções “baterem à porta” desse reino? No contraste entre duas teses — a que está
Nietzsche faz uma intervenção e coloca, dada no título (“temos ainda uma convicção”)
sob duas diferentes formas, uma questão: e a que é apresentada na imagem do Estado
“visto com mais precisão”, esse quadro não Científico (“não convivemos mais com qual-
significa que a ciência exige uma transfor- quer convicção”) —, a primeira sai vitoriosa
mação das convicções, e tamanha, que as enquanto implicada logicamente na segunda:
leva a perderem sua antiga natureza, a “dei- “Não existe, a rigor, uma ciência sem pressu-
xarem de ser” (aufhört...zu sein) convicções? postos: o pensamento de uma tal ciência é
A colocação em termos lógicos radicaliza as impensável, paralógico” (6). Convém insis-
imagens iniciais: a “disciplina do espírito tir, no entanto, que a positividade da imagem
científico” (die Zucht des wissenschaftlichen do Estado Científico, sua pertinência descri-
Geistes) acarretaria não só o “dizer não” às tiva, longe de ter sido refutada, permanece
convicções, mas, antes, o aniquilamento des- intacta. Como Nietzsche certa vez afirmou,
sas mesmas convicções, inapelavelmente “nego a alquimia, isto é, nego seus pressu-
abolidas. “Assim é, provavelmente”, respon- postos: não, porém, que houve alquimistas
de Nietzsche de imediato e com moderação, que acreditavam nesses pressupostos e agi-
como se participasse de um diálogo de Platão, am por eles” (7). Desse modo, a disposição e
investido na maiêutica socrática. No entan- o procedimento do espírito científico conti-
5 Der Wille zur Macht, §466
to, o que interessa a Nietzsche, mais ainda nuam como objeto de exame, e à æ citado por Jean Beaufret
em seu ensaio “Philoso-
do que sugerir o extermínio da totalidade “incondicionada vontade de verdade” phie et Science”, (in Dialo-
gue avec Heidegger, vol.
das convicções, filtradas na disciplina cien- (unbedingte Wille zur Wahrheit) Nietzsche III, Paris, Minuit, 1974).
tífica, é poder atingir rapidamente, através dedicará, doravante, sua atenção. 6 Para a Genealogia da Mo-
dessa mesma sugestão, a questão decisiva Duas hipóteses interpretativas dão início ral , III, §24.

subseqüente. ao segundo segmento do aforismo: a vontade 7 Aurora , II, §103.

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de verdade entendida como “vontade de não aquelas duas disposições. O engano
se deixar enganar” (de não sofrer passiva e (Täuschung) é, assim, o termo que impede
inconscientemente um engano, como seu que a “vontade de verdade” seja interpretada
objeto) ou como “vontade de não enganar, abstratamente, inserindo-a inapelavelmente
nem sequer a si mesmo” (de não ser causador no âmbito da concretude. A objeção de
consciente de um engano, ainda que esse Nietzsche é então imediata, e visa sondar os
engano não envolva outrem e tenha como fundamentos (die Gründe) dessas duas dis-
objeto apenas o próprio agente). Nessas for- posições: “Mas por que não enganar? Mas
mulações, a expectativa do leitor é quebrada por que não se deixar enganar?” Segundo nos
logo cedo pela modéstia das hipóteses, que, alerta Nietzsche, esses dois fundamentos re-
já pelo seu número reduzido, rapidamente pousam em domínios completamente distin-
desmistificam possíveis ressonâncias tos. Avançando a vista, notamos que a partir
augustas do substantivo verdade (Wahrheit), dessa distinção serão opostos o domínio mar-
então substituído pela concretude de verbos e cado por um cálculo preventivo-utilitário, que
de locuções verbais diretamente referentes à compreende uma conformação às pulsões
trama humana. Mas, ainda que entendido esse naturais (matéria da digressão do segundo
procedimento retórico, a propriedade da equa- segmento do aforismo), e o domínio marcado
ção “vontade de verdade = vontade de não- pelo interdito moral, compreendendo uma
engano” poderia parecer frágil, ou então exi- recusa das mesmas pulsões (matéria do ter-
gir enquadramento na esfera da utilidade: ceiro segmento) (9).
O homem não se quer deixar enganar (pri-
“Os homens não procuram tanto evitar meira possibilidade interpretativa), sob a
serem enganados, quanto serem prejudi- admissão de que é pernicioso (schädlich),
cados pelo engano: o que odeiam, mesmo perigoso (gefährlich), fatal (verhängnissvoll)
nesse nível, não é a ilusão, mas as conse- vir a ser enganado. Essa gradação dos adjeti-
qüências nocivas, hostis, de certas espé- vos perante a terminal negação da vida nos
cies de ilusões. É também em um sentido assegura que, “nesse sentido, a ciência seria
restrito semelhante que o homem quer uma longa prudência (Klugheit), uma cautela
somente a verdade: deseja as conseqüên- (Vorsicht), uma utilidade (Nützlichkeit) (10)”,
cias da verdade que são agradáveis e con- um prestar serviço à vida, finalmente. Não
servam a vida; diante do conhecimento tarda a indignada objeção de Nietzsche —“O
puro sem conseqüências ele é indiferente, não-querer-se-deixar-enganar é efetivamen-
diante das verdades talvez perniciosas e te menos fatal?”—, que, ao substantivar uma
destrutivas ele tem disposição até mesmo longa locução verbal, nos recorda que a série
hostil” (8). de adjetivos vinha qualificando, afinal, um
8 Sobre Verdade e Mentira no processo. Essa qualificação do verbo impli-
Sentido Extra-moral , §1.
Esse excerto de Sobre Verdade e Mentira ca, obrigatoriamente, uma qualificação auto-
9 A vinculação da segunda no Sentido Extra-moral, de cunho mática de seus correlatos gramaticais e
hipótese interpretativa
(“Não querer enganar, nem marcadamente schopenhaueriano, é exemplo conceituais: para que o tomar proteção face
sequer a si mesmo”) ao in-
terdito moral esclarece, por excelente do exercício aproximativo da “von- ao engano seja considerado positivo, todo
fim, a própria formulação
que ela recebe de tade de verdade” e da “vontade de não-enga- engano deve comportar um prejuízo, um ris-
Nietzsche: depreende-se
que a coerção moral atinge
no”, exercício recorrente em Nietzsche. Po- co, uma negação da vitalidade. Ora, o que
seu ápice ao limitar o domí- demos acolher com maior familiaridade, por- possibilitaria essa convicção, essa garantia
nio excelente da liberdade
a exclusiva atuação do su- tanto, as hipóteses interpretativas lançadas de que a cautela e a proteção diante de todo
jeito sobre si mesmo.
no aforismo 344 de A Gaia Ciência, assegu- engano sejam, na realidade, menos engano-
10 Note-se que, nessa passa-
gem, o substantivo “pru- radas, porém, de que recusam qualquer saber sas, e mais saudáveis ou aconselháveis?
dência” (Klugheit, também “O que sabeis de antemão do caráter da
“esperteza”) se opõe ao ad-
“elevado”, toda forma “contemplativa” do
jetivo “pernicioso” ( schä- conhecimento (“diante do conhecimento puro existência (vom Charakter des Daseins), para
dlich ); do mesmo modo,
“cautela” (Vorsicht, literal- sem conseqüências ele é indiferente”). Con- poder decidir se a maior vantagem está do
mente “previdência”) se
opõe a “perigoso” trariamente, as hipóteses lançadas no aforismo lado do desconfiado incondicional ou do con-
( gefährlich ); “utilidade”
(Nützlichkeit), encerrando a
subordinam por completo “verdade” e “en- fiante incondicional?” Reexaminada a ques-
nova gradação, opõe-se a
“fatal” ( verhängnissvoll), e
gano” ao plano da práxis, já que, na experiên- tão, essa medicina preventiva, essa recomen-
recebe com isso o sentido cia vital, um mesmo interesse pelas conse- dação a priori de um procedimento determi-
de um apego à vida, uma
defesa da vida. qüências da verdade e do engano dominam nado, visando ao maior “proveito” (Vorteil),

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implica um saber prévio acerca das determi- moral, a negar um risco implicado em todo
nações da existência, como a própria condi- engano. Mas por que disso tanto difere a ava-
ção de possibilidade — para fazermos uso, liação feita pelo espírito científico, investido
uma vez mais, da linguagem de Kant — desse de uma crença “que agora está aí incontesta-
juízo, dessa decisão. É preciso dizer, tam- velmente”?
bém, que o termo que aí estabelece a autono- Nietzsche não deixa de sugerir, antecipa-
mia das alternativas (“ou”, oder) é emprega- damente, certo entorpecimento da sensibili-
do, quase certamente, com boa dose de iro- dade do objetivo espírito científico. O cálcu-
nia. A confiança e a desconfiança incondici- lo utilitário não só está ausente da crença ci-
onais, longe de serem atitudes essencialmen- entífica, como também — e aqui se tem a
te diferentes, consistem em sintomas de um segunda conclusão necessária — é negligen-
mesmo espírito: o desejoso de absoluto, o que ciado pelo espírito científico, que se ergue “a
não admite condições. Trata-se da mesma despeito (trotzdem) de lhe ter sido constante-
duplicidade vigente entre a “polícia da des- mente demonstrada a inutilidade (Unnütz-
confiança” e os que afirmam que “nada é mais lichkeit) e periculosidade (Gefährlichkeit) da
necessário do que a verdade”: na realidade, a vontade de verdade a todo preço”. O movi-
desconfiança incondicional tende a ser a for- mento que reverte, sobre tal “vontade de ver-
ma aparente da confiança incondicional, dade”, os signos da inutilidade e da
imanente, num valor ou necessidade máxi- periculosidade, uma vez implicado, é ilustra-
ma. Desse modo, para que se proponha uma do com a imagem da oferenda e do sacrifício,
mesma atitude incondicional diante da exis- na digressão que elucida a nova expressão “a
tência, faz-se necessário um saber à parte todo preço” (um jeden Preis, afinal outra
dessa existência. Será ele possível, para variante de “incondicional”). Note-se, nessa
Nietzsche? imagem que redesenha o extermínio da
Quando, numa passagem de Crepúsculo pluralidade das crenças no “reino do conhe-
dos Ídolos, Nietzsche tentou “sintetizar seu cimento”, à parte o manifesto halo religioso
único ensinamento”, não pôde deixar de ser (atestado na expressão “altar”, Altare), a cla-
veemente: “... É-se necessariamente, é-se um ra sugestão de que a participação nesse exter-
pedaço de fatalidade, pertence-se ao todo, é- mínio não deve circunscrever apenas o cien-
se no todo — não há nada que pudesse julgar, tista, podendo estender-se a um raio mais
medir, comparar, condenar nosso ser, pois isso amplo de espectadores e admiradores (“nós”,
significaria julgar, medir, comparar, condenar enfatizado por três formas verbais).
o todo... Mas não há nada fora do todo!” (11). Excluída a primeira chave interpretativa,
De fato, o aforismo de Nietzsche prossegue e “não há outra escolha”, diz Nietzsche — tal-
deixa aparentemente “sem resposta” a ques- vez parodiando a dicção metodológica da
tão — afinal retórica — que colocara. Uma ciência —, a não ser interpretar a
vez refutada a possibilidade de um juízo que “incondicionada vontade de verdade” como
avalizasse a vantagem utilitária de um com- uma disposição de cunho moral: pois tal é o
portamento incondicional, ergue-se po- terreno (Boden) da proposição “eu não quero
rém uma suspeita: “caso ambas — confiança enganar, nem sequer a mim mesmo” (segun-
e desconfiança (12) — forem necessárias”, da, e última, possibilidade). Mas com o
11 Crepúsculo dos Ídolos ,
isto é, na condição de que não se procure um depreender aí a obrigação, a interdição arbi- §8, “Os Quatro Grandes
escape diante das determinações da existên- trária, essa “tirania contra a ‘natureza’ e tam- Erros”.

cia, então a convicção que subjaz à crença na bém contra a ‘razão’”, que caracteriza, para 12 Note-se que nesta passa-
gem, diversamente da an-
ciência não poderá resistir às evidências da Nietzsche, toda moral, “em oposição ao terior, não se trata mais de
confiança e desconfiança
experiência. Seguem-se, necessariamente, laisser aller”? (14). Para que se comprove o incondicionais.
duas conclusões: a primeira é a de que a cren- fundamento moral dessa segunda proposição, 13 A propósito, bastaria recor-
ça na necessidade incondicionada da verdade antes de serem levantadas objeções a esse dar o juízo que Nietzsche
faz do fenômeno da arte,
não pode ter sua origem (Ursprung) num fundamento, é preciso que se evidencie uma basicamente considerada
uma ilusão estimulante æ
“cálculo utilitário”, visto que, por paradoxal divergência, um choque com as solicita- que afirma a vida.
que soe, “verdade e inverdade se mostram ções — por assim dizer — da natureza. E se 14 Para Além de Bem e Mal ,
constantemente como úteis” (13). Nesse pon- segue uma passagem que requer muita aten- §188. No mesmo texto,
Nietzsche sublinha a se-
to, ecoa a argumentação já vista no excerto de ção: com efeito, “basta perguntar-se funda- guir: “Isso, porém, não é
ainda uma objeção contra
Sobre Verdade e Mentira no Sentido Extra- mentalmente (gründlich)”, diz Nietzsche, ela”.

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“por que não querer enganar?, nomeadamen- tante de qualquer predicado dito “essencial”.
te: Diante disso, impõe-se imediatamente a con-
I) se houvesse a aparência — e há essa clusão de que o propósito de “não enganar”
aparência — de que a vida depende de apa- só pode ser radicalmente alheio à economia
rência (das Leben auf Anschein angelegt da vida, que tem como necessidade, como
wäre), quero dizer, de erro, impostura, dis- sua condição necessária, exatamente aquilo
farce, cegamento, auto-cegamento (Irrthum, que se quer, através desse propósito, abolir.
Betrug, Verstellung, Blendung, Pois recusar-se a enganar significa, em suma,
Selbstverblendung)” (15); recusar-se a produzir uma falsa aparência, o
II) “e se, por outro lado, a grande forma da que implica distingui-la, conseqüentemente,
15 Toda a série enumera atos vida (die grosse Form des Lebens) sempre se de uma essência verdadeira que, para
vinculados ao domínio da
“aparência” e visados pelo tivesse mostrado, de fato, do lado dos mais Nietzsche, resta utópica. Para o filósofo, por-
interdito moral.
inescrupulosos polytropoi” (16). tanto, já se faz patente o cunho moral dessa
16 Do grego polys (“nume-
roso”,“muito”) + tropos (“vol- Não há dúvidas de que Nietzsche esteja disposição — isto é, o fato de ela estar regida
ta, giro” ou “modo, atitude”). pela negação da natureza mesma da vida-
Portanto polytropos signifi-
caracterizando a vida, esteja dando cores ao
ca, primeiramente, “versá- fundo sobre o qual há de se revelar, decisiva- aparência. O homem que se impede de enga-
til” ou “multímodo” e, impli-
citamente, “experiente”. O mente, a real silhueta do propósito em ques- nar se vê, assim, desfavorecido pelo dinamis-
termo será, a seguir, exa-
minado mais atentamente. tão. Entretanto, o que nos impressiona forte- mo da vida, e parece mesmo não atender a
17 Para a exposição e a defe-
mente, desde o primeiro momento, é a pró- uma exigência vital.
sa dessa tese, ver O Aves-
so da Dialética, de Gérard
pria capacidade de subverter as ressonâncias, Diante disso, como ler a segunda parte
Lebrun (São Paulo, Compa- as implicações retóricas de toda caracteriza- dessa argumentação, que, em contrapartida,
nhia das Letras, 1988).
ção. De fato, acaso encontraríamos com faci- define aqueles que agem em consonância com
18 A Gaia Ciência , §54, “A
Consciência da Aparência”. lidade um equivalente para o termo aparên- a vida? Uma vez que já se demonstrou o ca-
19 Seja exemplo o português
cia, tal como Nietzsche o emprega e matiza ráter moral da proposição “eu não quero en-
“politécnico”, “poliglota”, na primeira parte dessa argumentação? O que ganar, nem sequer a mim mesmo”, antecipa-
“polígamo”, etc.
ele entende, afinal, por aparência? Se, à épo- damente sabemos que o significado dessa
20 Há que se evitar, na leitura
da expressão ca desse aforismo, está ainda em gestação o segunda passagem será, no máximo, enfático
unbedenklichsten
polytropoi (“inescrupulosos
código da vontade de potência (17), a que em relação à primeira, quando não simples-
polytropoi”, na tradução de recorrerá posteriormente o próprio Nietzsche, mente redundante; mas considero que seria
Rubens Rodrigues Torres
Filho), a conotação moral o melhor é dar ouvidos a outro excerto toma- grande pena se nos permitíssemos, com isso,
hoje diretamente implicada
pelo termo português escrú- do à mesma A Gaia Ciência: negligenciar o texto de Nietzsche. Nele há,
pulo . O adjetivo alemão
unbedenklichsten remete, assim creio, um convite para que acompa-
antes, a uma operação in- nhemos, ao lado da sagacidade do filósofo,
telectual (denken: “pensar,
“ O que é agora, para mim, ‘aparência’!
refletir”), e a expressão sig- Na verdade, não o contrário de alguma algo da experiência do filólogo Nietzsche. A
nifica, fundamentalmente,
“os polytropoi menos hesi- essência — o que sei eu dizer de qualquer segunda passagem argumentativa está
tantes”.
essência, a não ser, justamente, apenas os centrada sobre o adjetivo grego polytropos,
21 É de se notar, como salien-
ta Pietro Pucci, em predicados de sua aparência! Na verdade, substantivado no texto de Nietzsche sob sua
Odysseus Polutropos æ
Intertextual readings in the
não uma máscara morta, que se poderia forma plural. O termo tem ampla ocorrência
Odyssey and the Iliad pôr sobre um x desconhecido e que tam- na literatura grega, na qual se registram vári-
(Ithaca, Cornell University
Press, 1987, p. 24), que bém se poderia retirar! Aparência, para os dos seus empregos e acepções. Note-se
Odisseu partilhe o epíteto
polytropos exclusivamente mim, é o próprio eficiente e vivente, que que um de seus componentes, o prefixo ver-
com o deus Hermes (v. Hino
Homérico a Hermes, vv. 13
vai tão longe em sua zombaria de si mes- bo-nominal polys, atinge bom número das
e 439). O termo, afirma o mo, a ponto de me fazer sentir que aqui há línguas modernas, especialmente em seu lé-
autor, “qualifica a inteira
essência literal e literária de aparência e fogo-fátuo e dança de espíri- xico científico (19), tomado à tradição clássi-
Odisseu, uma vez que ele
evoca ou nomeia ao mes- tos e nada mais...” (18). ca. A um leitor entusiasta de Nietzsche, “de
mo tempo suas muitas via-
gens, suas muitas astúcias, muitas voltas” (sentido primeiro do termo)
e suas muitas habilidades poderia sugerir — em que pesasse a dificul-
retóricas”. Ao longo de seu
Seremos obrigados a abandonar a lógica
livro, Pucci insiste várias que opõe “aparência” a “essência”, se quiser- dade de acomodação sintática do adjetivo —
vezes nesse último traço,
recordando que tropos é, mos compreender a definição que nos é então a expressão do Eterno Retorno; já o leitor
entre outras coisas, a pró-
pria palavra grega que de- proposta: a vida, o próprio eficiente e viven- ansioso por retratar Nietzsche como homem
signa a metáfora; como tal,
o termo polytropos “por si te, é aparência. Não uma falsa aparência, cujos atraído por uma forma perversa da personali-
mesmo nomeia a impossi-
bilidade de se separar o
predicados jamais coincidem com os de uma dade, ele se poderia julgar dono de uma prova
sentido literal do metafóri- essência verdadeira e dela distinta, mas a irrefutável de sua tese, ao ouvir na expressão
co” no verso inicial da Odis-
séia. “aparência” enquanto portadora única e cons- “os (homens) versáteis mais inescrupulosos”

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o mais puro elogio de um comportamento polytropos, termo que ademais não o vincula
imoral (20). Considero ambas as leituras equi- necessariamente à posse de um saber. Odisseu
vocadas, e creio ser indispensável, para o não é propriamente um sábio, adverte Giorgio
correto entendimento do texto, que se come- Colli: “sábio não é o rico em experiências, o
ce por investigar, ainda que brevemente, o que se sobressai em habilidade técnica, des-
significado do termo tomado à cultura grega, treza, expedientes, tal como ocorre na idade
aqui inspiradora do filósofo. homérica” (23). É bastante curioso, afinal, o
A vida se põe ao lado dos que têm a capa- esforço que temos de fazer na tradução desse
cidade de variar sua atitude. A compreensão epíteto homérico, tradução que mereceu, em
imediata que temos da segunda parte da ca- nosso século, o comentário de um grande
racterização é, portanto, a de que a vida não poeta, Ezra Pound, numa passagem em que
possui direção única, roteiro previamente não faltam ressonâncias — talvez
determinado. Mas seria isso suficiente para involuntárias — da linguagem de Nietzsche:
opô-la, de maneira precisa e enfática — como
certamente era desejo de Nietzsche —, a um “Odisseu é ainda ‘demasiado humano’; 22 Como observa o mesmo
Pietro Pucci (op. cit.), afo-
regime de coação? Com efeito, não haveria não é de nenhum modo um presunçoso ou ra seu emprego no proêmio
da Odisséia , o epíteto
na opção de Nietzsche pelo termo grego algu- uma bela figura de tapeçaria [...] A única polytropos ocorre apenas
uma vez em toda a epo-
ma outra ressonância por ele proposta para tradução legível que conheço desse as- péia, exatamente no mo-
mento que Circe reconhe-
marcar, afinal, a oposição da vida à moral? pecto de Homero foi feita por Amadis ce Odisseu (Odisséia, X,
Convém lembrar que Nietzsche nomeava a Jamyn, secretário e leitor regular do Rei vv. 330-332). Percebendo
que sua poção mágica não
moral “a Circe de todos os filósofos”, decerto (Henrique III da França). Ele se refere a tem, sobre ele, o mesmo
efeito que tivera sobre seus
aludindo, com isso, aos terríveis encantos de Odisseu como “ce rusé personnage” (esse companheiros (transfor-
mados em porcos), a deu-
que são vítimas os filósofos incapazes de ladino personagem). sa se recorda do aviso do
deus Hermes, que a pre-
pensar “além de bem e mal”. Curiosamente, É impossível trocar Odisseu pelo Enéias venira da chegada do he-
se partirmos da própria imagem de Circe, de Virgílio. Odisseu é positivamente o ‘su- rói.

recordaremos de imediato um emprego do jeito sabido’, o matreiro, o obstinado 23 Giorgio Colli, “A Loucura
É a Fonte da Sabedoria” in
termo polytropos que então repercutirá, lon- Odisseu. A maioria dos seus companhei- O Nascimento da Filosofia
(La Nascita della Filosofia),
gínqua e belamente, no texto de Nietzsche. ros parece sofrer de algo que deve ter sido Campinas, Edunicamp,
De fato, um de seus registros mais antigos, e o equivalente grego da neurose de guer- 1992. Colli é o responsá-
vel, com Mazzino
dos mais notáveis, é aquele que se dá já na ra” (24). Montinari, pela edição crí-
tica da obra de Nietzsche
abertura da mesma epopéia de Homero, que, ( Werke. Kritische
Gesamtausgabe . Walter
de resto, é muito cara à sensibilidade moder- Virgílio e seu piedoso Enéias podem su- de Gruyter, Berlin-New
York).
na — a Odisséia. O termo que, no aforismo portar essas observações de Pound. O que se
de Nietzsche, caracteriza aqueles que são deseja, afinal, é simplesmente reverter ao 24 Ezra Pound, ABC da Lite-
ratura (ABC of Reading),
favorecidos pela vida-aparência, e que esca- herói homérico o traço de um claro afasta- tradução de Augusto de
Campos e José Paulo
pam habilmente à moral, é na Odisséia um mento das categorias morais a ele posterio- Paes, São Paulo, Cultrix,
1978.
dos adjetivos que caracterizam, como epítetos, res. Odisseu não é, como o herói da Eneida,
seu principal herói, Odisseu (Ulisses, na for- aquele que resiste por uma severa obediência 25 Para o estudo aprofundado
do vocabulário relaciona-
ma latina que nos é familiar). Logo no pri- às prescrições dos deuses e da Fortuna, mas do à métis na antiguidade
grega, é preciso remontar
meiro verso do poema, se lê: “Andra moi sim, e por excelência, o homem multifário, ao fundamental Les Ruses
de l’Intelligence: la “mètis”
ênnepe, moûsa, polytropon...” (“Canta-me, capaz de enfrentar qualquer impasse por con- des Grecs , de Marcel
Detienne e Jean-Pierre
Musa, o homem versátil...” (21). seguir tirar partido do que os gregos denomi- Vernant (Paris,
Cantar Odisseu polytropos, o herói que, navam métis — a aptidão para a clara percep- Flammarion,
Odisseu, “la ruse fait
1974).

após a queda de Tróia, em seu longo périplo ção e superação de um obstáculo da práxis homme” (p. 30), e seus
múltiplos epítetos, entre os
de retorno a Ítaca, conhece ainda diversas (25). Se a leitura procede, Odisseu, o fino quais polymetis , são aí
objeto recorrente (ver, po-
provações — entre as quais se inclui a magia calculista e exímio enganador, aquele que rém, especialmente, toda
a primeira parte do livro,
de Circe (22) —, era o propósito de Homero. Dante viria a confinar como falsário num dos intitulada “Les Jeux de la
Odisseu é o homem experiente e de infinitos círculos de seu Inferno (26), é um modelo que Ruse”). Essa obra é um
marco na investigação
recursos — “astucioso” ou “engenhoso”, se- fortemente se indicia nessa passagem do ampla e sistemática de for-
mas de inteligência e de
gundo as traduções mais comuns desse seu aforismo 344 de A Gaia Ciência, e ao qual pensamento que, margina-
lizadas pela filosofia do IV
epíteto. Mas a astúcia e o engenho de Odisseu convém atentar. Em apoio a essa leitura, creio século a.C., ficariam au-
são palavras que remetem o leitor a um regis- que falará decisivamente outro aforismo de sentes do auto-retrato que
a Grécia antiga propôs ao
tro elevado, que traduz mal a concretude da Nietzsche, presente em Aurora e significati- Ocidente.

experiência do herói, bem retratada em vamente intitulado “Ideal Grego”, no qual o 26 Inferno, 26, 90.

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filósofo esclarece, com a devida ênfase, a implicação desse propósito incondicionado.
interpretação e o uso que faz da figura de Entretanto, ao invés de desferir na disciplina
Odisseu polytropos: do espírito científico os aguardados golpes
finais que o leitor, tendo passado pelo suspense
“O que os gregos admiravam em Ulisses? do corredor lógico, quer ver perfeitos,
Antes de tudo, a aptidão à mentira e às Nietzsche prefere retomar, nessa altura de sua
represálias terríveis e dissimuladas; um reflexão, uma problematização genérica da
modo de ser à altura das circunstâncias; moral, e é precisamente esse fato que deve
de se mostrar, se preciso, mais nobre que receber nossa máxima atenção. Para
o mais nobre; o poder de ser aquilo que se Nietzsche, a questão da fundamentação da
quer ser; a tenacidade heróica; a arte de atividade científica (“por que ciência?” (29)
pôr em operação todos os meios; o ter reconduz (führt...zurück) ao problema moral
espírito — seu espírito é admirado pelos (das moralische Problem). Longe de ser a
deuses, eles sorriem quando pensam instância decisiva, apaziguadora dos confli-
nele — : tudo isso constitui o ideal grego! tos de valor, a moral deve ser tomada não
E o mais curioso de tudo é que a oposição como limite da disposição crítica, mas como
da aparência à essência não é aí nem per- problema: “Para que em geral moral, em face
cebida nem, em conseqüência, apreciada da radical imoralidade da natureza e da histó-
moralmente. Jamais houve comediantes ria” (30), da própria vida? Curiosa enumera-
assim tão consumados!”. ção de Nietzsche (Leben, Natur, Geschichte),
que estende de maneira enfática a imoralida-
Nietzsche demonstra assim, por duas ve- de da vida — talvez demasiado abstrata até
zes, o cunho moral da proposição “eu não aqui — à concretude natural e histórica. O
quero enganar, nem sequer a mim mesmo”, e efeito importante dessa enumeração, note-se,
poderá então, na seqüência do aforismo 344 é o de subtrair a última paternidade plausível
de A Gaia Ciência, submeter a um novo jul- (a histórica ou consuetudinária) ao fenômeno
gamento a “incondicionada vontade de ver- moral. Destituída de enraizamento biológico
dade” que subjaz a esse propósito. No con- e temporal, restaria ainda pertinência à lei
texto vital — o único decisivo —, uma vez moral?
que a vida tem na inverdade sua condição de Resta à moral apenas uma característica:
possibilidade (27), o que poderia significar um querer ser à parte, ser um extra em face
“um tal propósito”? Uma vez mais, o filósofo dos condicionamentos da vitalidade, um afir-
é cuidadoso com as possibilidades de signifi- mar o incondicionado. “Sem dúvida nenhu-
cação: “interpretado brandamente”, esse pro- ma, o verídico (der Wahrhaftige), naquele
pósito poderia ser tomado como “um sentido temerário e último (isto é, ‘nada é
quixotismo, um pequeno desatino entusias- mais necessário do que a verdade’), como o
ta” (eine Don-Quixoterie, ein kleiner pressupõe a crença na ciência, afirma com
schwärmerischer Aberwitz) — como já su- isso um outro mundo (eine andre Welt) do
gerido no segundo segmento, uma exaltação que o da vida, da natureza e da história” — à
conseqüente de um embotamento, de um exata semelhança da moral. Insisto nessa lem-
alheamento do espírito. Mas esse propósito brança pois, a partir desse ponto, o texto de
poderia ser algo “ainda pior, ou seja, um prin- Nietzsche exige, em sua extrema concisão,
cípio destrutivo, hostil à vida” (ein uma série de correspondências que
lebensfeindliches zerstörerisches Prinzip): complementem a crítica econômica — e nem
sob essa derradeira hipótese, a mesma vonta- por isso incompleta — do final do aforismo.
27 Para Além de Bem e Mal , de incondicionada equivaleria a uma “velada A eleição de “um outro mundo” (do
§4.
vontade de morte” (ein versteckter Wille zum incondicionado) não seria dramática se não
28 Para a Genealogia da Mo- Tode). Essa passagem do aforismo repercute acarretasse, segundo Nietzsche, a negação do
ral, §23.
com precisão na terceira dissertação de Para “nosso mundo” (unsre Welt), como sua con-
29 Questão cuidadosamente
discutida na referida tercei- a Genealogia da Moral: “A ciência é hoje um dição necessária. No embate da vida com os
ra dissertação de sua pos-
terior Para a Genealogia da
esconderijo (Versteck) para toda espécie de propósitos morais, afirmados num dado grau
Moral, notadamente em seu
§24.
desânimo, descrença, verme corrosivo, (a exemplo da crença científica), faz-se sen-
despectio sui, má consciência” (28). sível um choque entre dois âmbitos de valo-
30 Aurora , “Prefácio” (1886),
§3. Nietzsche desentranha, assim, a última res excludentes. Assim, o âmbito de valores

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da veracidade só pode restar num espaço outro ria capaz de insistir através de sistemas reco-
que o da vida, a ela não se pode integrar ou nhecidos, a princípio, como distintos.
conformar, pois ambos se impossibilitam Chega-se ao período final do texto, que
mutuamente, por princípio. Nosso mundo é o enumera três hipóteses que restam, sedutora-
reverso (Gegenstück) desse outro mundo: mente, à reflexão do leitor. Seria ingênuo,
dizer sim a um (ja sagen) leva a negar o outro inicialmente, tomar dois recursos retóricos
(verneinen), inapelavelmente. como dificuldades lógicas. Na verdade, é
“Já se terá compreendido aonde quero possível reduzir as três hipóteses a uma só: a
chegar” — uma vez mais, é o próprio da falência do plano metafísico. Já o aparente
Nietzsche quem nos auxilia: nossa crença na paradoxo final, que poderia criar um impasse,
ciência, na verdade como necessidade máxi- se resolve com uma consulta ao “dicionário”
ma e incondicionada, repousa ainda sobre criado pelo próprio texto de Nietzsche. A
“uma crença metafísica” (ein metaphysischer crença de que “Deus é a verdade, a verdade é
Glaube). É a insistência na constituição de divina” poderá se enfraquecer, afirma
um além-mundo, de um mundo ideal, de va- Nietzsche, “se nada mais — a não ser o erro,
lores “em-si” (incondicionados, apartados de a cegueira, a mentira (die Lüge) — se revelar
toda contingência), é essa insistência que como divino.” É preciso então lembrar que,
opera em nossa crença na ciência. Vale recor- nesse caso, o que se estaria divinizando —
dar que, segundo Nietzsche, “a crença funda- involuntariamente, como Nietzsche certa vez
mental dos metafísicos é a crença nas oposi- frisou — seria a própria vida, pois o que são
ções de valores” (31), em sua antinomia, in- os deuses remanescentes senão as próprias
dependência, possibilidade de origem própria, condições necessárias da vida-aparência?
em sua fundamentação “no seio do ser”. Te- Trata-se de uma subversão por princípio.
mos, assim, a origem do impasse anterior. Desse modo, a frase final do aforismo já não
Retoma-se, com isso, a tese lançada no poderá soar como blasfêmia, ou libelo provo-
título do aforismo: “nós, os conhecedores de cador, mas antes como o exato reconhecimen-
hoje, os sem-Deus (Gottlosen) e os anti- to daquilo que não se quis reconhecer: “Deus
metafísicos” — nós que aparentemente ne- mesmo” (Gott selbst), uma ficção, pode se
gamos crenças religiosas e metafísicas em demonstrar como “nossa mais longa menti-
favor da objetividade laica da ciência —, nós ra” (unsre längste Lüge) — entenda-se, como
não extinguimos o “incêndio” (Brand (32)) uma especial condição necessária à vida, isto
que uma crença milenar favoreceu extrema- é, a serviço da vida. Resta aos homens, po-
mente: a crença na equação da verdade e da rém, assumir as ficções que produzem en-
divindade. Nietzsche imediata e explicitamen- quanto tais, sem recair na crença metafísica
te aponta os pilares dessa crença milenar, da antinomia dos valores, que todo o período
naturalmente dois de seus maiores alvos, o final do aforismo fez sucumbir, sem a inten-
platonismo e o cristianismo, e insiste no símile ção de criar paradoxos fáceis — esses, de resto,
31 Para Além de Bem e Mal ,
entre eles, em que pese o caráter reconheci- só válidos no regime daquela antinomia, e §2.
damente polêmico da inspiração platônica da não mais após ter sido sugerida a
32 Permito-me discordar,
mitologia cristã. De minha parte, tenho difi- “transvaloração de todos os valores”, exigida aqui, da tradução de
Rubens Rodrigues Torres
culdade em aceitar que o “deus máximo” para a partir da queda do plano metafísico (o plano Filho, de resto, a meu ver,
justamente respeitada.
Platão seja a Verdade, como então sugere incondicionado). Ocorre que a tradução pro-
Nietzsche, pela simples segurança de que, se Tendo acompanhado o aforismo de posta não reproduz o as-
pecto grandiosamente ne-
houver tal visão no pensamento do filósofo Nietzsche, podemos agora voltar às questões gativo que o termo Brand
deve adquirir nesse con-
grego, ela estará preenchida, antes, pela levantadas no início deste texto. Claro está texto. Pierre Klossowski,
um dos tradutores da edi-
“Idéia” do Bem. Por outro lado, a atitude de que não nos contentaremos mais com a fór- ção Colli-Montinari das
obras de Nietzsche em
Nietzsche será mais compreensível se notar- mula “opositor frontal do espírito científico”, francês, parece-me ter
mos que nesse momento seu interesse não que não conserva parte sequer do movimento conseguido responder
melhor ao original: “ nous
estava voltado propriamente para uma do aforismo. Entretanto, antes de abandoná- puisons encore notre feu à
l’incendie qu’une croyance
reavaliação da filosofia de Platão, mas sobre- la, convém justamente sondar o que nela se millénaire a enflammé ” (Le
Gai Savoir æ Fragments
tudo para a sugestão da existência de uma investiu, e do que ela pode ser signo. Lembre- Posthumes (1881-1882) ,
Paris, Gallimard, 1967 —
tradição insuspeita. Seu intuito maior pode- mos, inicialmente, que a maior desvantagem tomo V de Friedrich
ria ser o de apontar, nessa crença, certa di- do título “opositor da ciência” era o de suge- Nietzsche. Oeuvres
Philosophiques
mensão de herança inconsciente, que a torna- rir o caráter absoluto de uma disposição (a Complètes).

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crítica) e, por outro lado, de um disponível res” que se ergue a crítica de Nietzsche,
como objeto (a ciência). Desde logo, o que afirmando que “esses corneteiros da
poderíamos fazer de certas declarações do efetividade são maus musicistas”, e notan-
filósofo, como esta: “haveria ali (na ciência), do que em suas vozes não se pode ouvir,
precisamente, tanto de útil para fazer... Eu finalmente, a profundeza da consciência ci-
não contradigo; o que eu menos gostaria seria entífica — “pois hoje a consciência cientí-
de corromper o prazer desses honrados traba- fica é um abismo” (36). Essa última e enig-
lhadores com seu ofício: pois eu me alegro mática expressão, não será ela uma nova
com seu trabalho” (33)? Da mesma maneira, imagem para descrever a economia inte-
é preciso destacar que a crítica de Nietzsche lectual resultante da queda do plano
não se endereça a um objeto previamente metafísico? É bastante provável. De todo
conhecido, mas antes o constitui — com ine- modo, é patente que a constante tendência
33 Para a Genealogia da Mo- gável surpresa. intelectual para a arquitetação de um plano
ral , III, §23.
Sem poder reconstruir aqui a ampla re- incondicionado não era, então, desarmada
34 A “crítica da ciência” res-
ponde pelo vigor de muitas
flexão que Nietzsche dedicou à ciência (34), pelo discurso científico, que antes acabava
páginas, notadamente: A podemos contudo dizer, a partir do aforismo mobilizado, paradoxalmente, em favor da
Gaia Ciência (livro V), Para
a Genealogia da Moral (III, lido, que o filósofo não elegeu, como prin- segurança de uma convicção
§23 a 27), e os prefácios a
Aurora (o de 1886) e a O cípio de sua crítica, uma incursão pelo tra- (Ueberzeugung) (37).
Nascimento da Tragédia no
Espírito da Música balho experimental daquela atividade, o que Com efeito, quando Nietzsche afirma
(intitulado “Ensaio de o levaria, possivelmente, ao maior mosaico que sua época necessita de um antídoto face
Autocrítica”).
já sonhado pelo homem: pouco falta para ao conhecimento, ou quando diagnostica
35 Na mesma linha de leitura,
desenvolveu-se o trabalho que a civilização adentre o laboratório que como doentio o período que expõe em suas
paciente e esclarecedor de
Jean Granier, Le Problème será o século XX. Tampouco se interessou, “vitrinas” um “puro conhecer isento de
de la Verité dans la
philosophie de Nietzsche
pelo menos nesse momento, pela já vasta vontade” (38), ele certamente não deseja
(Paris, Seuil, 1966). Ver aí,
especialmente, o capítulo
coleção de teorias científicas, hoje vascu- realizar uma crítica obscura, cujas motiva-
“Le Rationalisme Scienti- lhadas pela historiografia epistemológica. ções não possamos depreender. Nesse sen-
fique, Conséquence de la
Métaphysique”. E, por outro lado, pacificamente concorda- tido, é importante notar que quando censu-
36 Ainda Para a Genealogia remos com a afirmação de que a crítica da ra Spencer, ou quando contesta (não sem
da Moral , III, §23. ciência, em Nietzsche, envolve a visão de humor) Darwin (39), Nietzsche já se inte-
37 O termo português, assim um processo, um desentranhar as raízes da ressa por investir contra expressões que,
como o alemão, prende-se
ao verbo “convencer” disciplina científica, uma vez que essa crí- tornadas instantaneamente lugares-comuns,
(überzeugen), o que suge-
re a matriz de um circuito tica está diretamente vinculada à sua críti- conhecerão pouco mais tarde uma duvido-
oral de coação, possivel-
mente visado por
ca das normas morais, que, por sua vez, só sa celebridade: “seleção natural”, “teoria
Nietzsche. adquire seu sentido quando integrada à crí- da adaptação”, etc. No tocante a essa fre-
38 Para Além de Bem e Mal , tica por ele movida contra a tradição qüente intersecção de formas cristalizadas
VI, §208.
metafísica da filosofia. É essa mesma tra- da linguagem com a construção da crença-
39 Sobre Spencer, ver Para a
Genealogia da Moral , II, dição que recebe, afinal, a oposição frontal convicção, convém não esquecer certa
§12; quanto a Darwin, ver de Nietzsche, e é a sua presença latente na visualização da história como Weltprozess,
Crepúsculo dos Ídolos , §14
(intitulado “Incursões de um disciplina científica que esclarece a crítica que mereceu o sarcasmo de Nietzsche, mas
Extemporâneo”), onde
Nietzsche afirma: “É preci- do filósofo à ciência (35). No entanto, falta cuja força, assim como o prestígio equívo-
so não confundir Malthus
com a natureza”. ainda definir o momento mesmo em que a co da ciência, não acabou.
40 Uma tal oposição poderia
atividade científica, enquanto acontecimen- Algo da alta tensão retórica do aforismo
configurar uma estratégia
intelectual altamente con-
to, enquanto fenômeno que ganhará a cena nietzschiano, assim como nossa constante
traditória e, afinal, pública do final do século XIX, se torna re- sede de absolutos, nos levava a querer vê-
irracionalista. Contra um tal
equívoco de visão da rela- levante e, aos olhos de Nietzsche, suspeita. lo, um dia, como “opositor do espírito cien-
ção da filosofia de
Nietzsche com o discurso Nietzsche decidiu realizar uma crítica tífico”. Revisitado o seu texto, vê-se a crí-
científico, podem ser úteis
as breves e finas observa-
da ciência — segundo me parece e como tica de Nietzsche voltada não contra a ciên-
ções de Paul de Man agora desejo explicitar — a partir do pris- cia (e que sentido faria essa oposição?) (40),
(“Genesis and Genealogy”
in Allegories of Reading — ma da inserção social dessa atividade em mas contra as crenças que nela se dissimu-
Figural Language in
Rousseau, Nietzsche, sua época, do prestígio que a avaliação lam ou dela se alimentam, sem admitir o
Rilke, and Proust , New
Haven and London, Yale pública então lhe concedeu, diga-se mais, investimento aí realizado, ou a
University Press, 1979, da difusão e recepção eufóricas do conhe- problematização dos valores que acarretam.
especialmente pp. 85-6).
cimento científico como boa nova. É con- A ciência, essa, “fora de todas as cultu-
41 “A Gaia Ciência”, in Ecce
Homo. tra “um tal alarido e tagarelice de agitado- ras equívocas”, pôde um dia ser gaia (41).

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