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Capitulo 9 O MITO COMO JUSTIFICACAO DA FACGAO E DA MUDANCA SOCIAL Agora deixarei de parte a discussao das diversidades de organizacao chan e kachin e sua permutabilidade e examinarei meu tema principal de um Angulo diferente. Afirmei no capitulo 1 que, na linguagem empregada neste livro, mito e ritual sao essencialmente uma coisa s6. Ambos sic modos de fazer afirmagées sobre relagGes estruturais. No capitulo 5, onde descrevo alguns importantes conccitos que ocorrem na ideologia kachin gumsa, desenvolvi esse tema. O que descrevo sio objetos, agGes e idéias definidos culturalmente; o que me interessa é a sua impli- cago para as relagdes formais que existem entre pessoas soci: Até agora procurei enfatizar mais o ritual que o milo — isto é, mais as agdes que as afirmagGcs verbais que sao contrapartes da agdo, mas j4 em alguns exemplos, particularmentc quando tentei explicar a diferenga conceitual entre gumsa e gumiao, tive de explicé-la por meio do mito. Isso suscita questGes de importancia tedrica, das quais a mais importante ¢ “Como pode a mitologia ser usada para justificar a mudanga na estrutura social?” Nao ser4 quase uma contradigao de termos sugerir tal possibilidade? Dentro do complexo geral kachin-chan temos, a meu ver, alguns subsistemas instaveis. Comunidades particulares conseguem mudar de um subsistema para outro. Suponhamos por enquanto que esta andlise seja correta do ponto de vista sociolégico. Devemos entdo perguntar-nos como tais mudangas e formas alterna- tivas de organizagio se apresentam para os kachins ¢ chans participantes? 307 SISTEMAS POLITICOS DA ALTA BIRMANIA Afirmei que a estrutura social é “representada” no ritual. Mas, se as estruturas sociais com que estamos lidando sao instaveis, essa instabilidade deve também estar “representada” no sistema ritual. Mas seré o ritual, respaldado que € pela tradigao, sempre ¢ seguramente o elemento mais rigido ¢ conservador na organi- zacao social? Parece-me razoavel dizer que a maioria dos antropdlogos britanicos geral- mente consideram o mito do mesmo ponto de vista que 0 adotado por Malinowski em seu conhecido ensaio Myth in Primitive Psychology’. Segundo esse ponto de vista, deve-se imaginar 0 mito e a tradigao basicamente como uma sangao ou justificagio de uma agio ritual. A agao ritual reflete a estrutura social, mas é também uma recapitulagao dramitica do mito. Mito e ritual sio assim complemen- tares e servem para perpetuar um ao outro, Nao faz parte dessa doutrina que os mitos de qualquer cultura devam ser mutuamente congruentes, mas a adesio ao restante da tcoria funcionalista de Malinowski conduz a pressuposigio de que efetivamente o sao. No esquema malinowskiano, os varios aspectos de uma cultura so necessariamente integrados para formar um todo coerente; por conseguinte, os mitos de um povo devem ser mutuamente coerentes — para qualquer grupo de pessoas ha apenas uma cultura, um sistema estrutural, um conjunto mutuamente coerente de mitos. Ora, a meu ver é desnecessario postular esse tipo de coeréncia. Acho que os antropélogos sociais tendem apenas a pensar que os sistemas de mitos sao cocren- tes internamente porque conservam algo da nogao do etndlogo segundo a qual o mito é uma espécie de histéria. Devido a esse preconceito, tornam-se seletivos em sua andlise do mito e tendem a discriminar entre versdes “corretas” e “incorretas” do mesmo conto. No caso da mitologia kachin, nao pode haver possibilidade de eliminar as contradigGes e incoeréncias. Elas so fundamentais. Onde existem versées rivais da mesma histéria, nenhuma versio é “mais correta” do que outra. Ao contrario, afirmo que as contradig6es sao mais significativas do que as uniformidades. Os kachins recontam suas tradig6es em ocasides determinadas, para justificar uma querela, para legitimar um costume social, para acompanhar uma repre- sentagao religiosa. O ato de contar uma histéria tem, portanto, um propésito; serve para validar o status do individuo que conta a histéria, ou antes do individuo que contrata um bardo para contar a hist6ria, porquanto entre os kachins a tarefa de narrar contos tradicionais é uma ocupacio profissional desempenhada por sacer- dotes e bardos de varios graus (jaiwa, dumsa, laika). No entanto, se 0 status de 1. Malinowski (1926). 308 0 MITO COMO JUSTIFICAGAO DA FACGAO E DA MUDANGA SOCIAL, um individuo é legitimado, isso quase sempre significa que 0 status de um terceito € denegrido. Entao pode-se quase inferir dos principios basicos que cada conto tradicional ocorreré em vdrias versGes diferentes, cada uma delas tendendo a corroborar as alegacdes de um direito adquirido diferente. E € 0 que acontece. Nao existe uma “versio auténtica” de tradigéo kachin com a qual todos as kachins concordariam; existem apenas algumas histérias que dizem respeito mais ou menos ao mesmo conjunto de personagens mitolégicas e que fazem uso dos mesmos tipos de simbolismo estrutural (por exemplo, o casamento de um homem com a filha de um nat), mas que diferem entre si em pormenores fundamentais de acordo com aquele que narra o conto. Pode-se ver um bom exemplo desse tipo de adaptagéo nas duas versées publicadas da histéria da origem do nat Nsu — 0 espirito do citime -, as quais ja se fez referéncia. O estereétipo kachin de uma situagao de citime € a relagdo entre o irmio mais velho € o irmao cagula. Dojs etndgrafos kachins, Hanson e Gilhodes, recontam de maneira bastante aproximada o mesmo mito, mas uma € o inverso da outra’, Na histéria de Gilhodes, o irmao mais velho tem citime do irmo cagula, que é favorecido pelos nats. No fim, o irmao mais velho é afogado num ataide que ele preparou para o irmao cagula e este se torna um chefe poderoso. Na histéria de Hanson, os papéis sao invertidos e o irmao cagula, tendo por longo tempo defrau- dado o mais velho, é finalmente afogado no atatide que preparou para o irmao mais velho. Nem uma nem outra dessas versdes pode ser considerada a mais correta. E simplesmente que, onde existe conflito entre um irmio mais velho e um irmio cagula, cada parte pode suspeitar que a outra esti provocando desgraga por pensamentos de inveja; cada parte pode entao fazer uma oferenda ao nat Tsu. Se é © irmao cagula que faz a oferenda, a versao-de Gilhodes figurara como a sangao mitica; se é o irmao mais velho que a faz, a verséo de Hanson serviré ao mesmo. objetivo. O sacerdote-bardo (dumsa) adaptar4 suas histérias de acordo com a platéia que o contratou. Ora, no passado, os etnégrafos kachins nunca levaram em conta esse ponto. Consideraram a tradigaéo como uma espécie de histéria malcontada. Quando encontravam incoeréncias no registro, sentiam-se justificados para escolher a verso que lhes parecia mais plausivelmente “verdadeira” ou mesmo para inventar partes da est6ria que pareciam estar faltando, 2. Gilhodes, pp. 52-54; Hanson, pp. 126,128. A histéria completa é longa. Todos os incidentes na versio de Hanson ocorrem (invertidos) na versio de Gilhodes, porém esta dltima tem alguns aspectos que faltam na primeira. Ver também p. 220, acima. 309

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