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6a 43 Koiiros arcaico da Atica, Grécia, 6. $90 Are Normas classicas O “Homem” e a “Arte” Grécia, Ira, 650-330 acc Grécia € 0 nome dado as terras natais de certos povos que falavam linguas si- milares ¢ concordavam em chamar-se uns aos outros de helenos. Nao se encon- traria esse tipo de comunidade na regiao do Egeu nos dias mindicos ¢ micénios, mas ela cresceu ao longo dos séculos “negeos” de despovoamento que se segui= ram A decadéncia micénica. Durante essa época, invasores vindos do norte do con- tinente europeu enriqueceram a composigio étnica da érea. A chegada do alfabeto por volta de 730 A&C permitiu que a frouxa comunidade resultante que comegava a florescer registrasse sua principal narrativa comum —a Iliada, um conto de mui- tas tribos que se reiinem para sitiara cidade de Tréia no nordeste do Egeu, a um s6 tempo auxiliadas e impedidas pelos deuses. Tal como a Melanésia, as terras ocu- padas pelos gregos (como os romanos chamariam os helenos) eram divididas por barreiras irregulares de mares ¢ montanhas, que as compartimentavam. Uma uni- dade independente de poder local, a cidade-Estado, conhecida como pails, havia se tornado a norma regional por volta de 776 AEC, quando os primeitos Jogos Pan- Helénicos ~ “de todos os gregos” ~ foram conclamados em Olimpia. ‘Como no caso da Melanésia, uma geografia e uma politica fraturadas tam- bbém podem ter estimulado os povos a competi exibindo sua arte, Mas a medida que as poleis gregas se enriqueciam com o comércio ¢ imitavam 0s fenicios esta- belecendo colénias em ultramar, a concorréncia passou a girar em torno de cita- «Ges dos habitos artisticos de seus vizinhos a leste. Os desenhos pintados sobre va- sos gregos antigos so intensamente lineares e abstratos, ¢ parecem ditados pelas origens tribais européias dos invasores que chegaram a regio na “Idade das Tre- vas”. Entio, a partir de cerca de 700 AEC, esse rigido estilo “geométrico” cedeu vez a outro mais “orientalizante” ¢ sinuoso, com portos como Corinto ¢ Rodes concorrendo para conquistar o mercado internacional com suntuosos artigos de luxo. As poleis, enquanto isso, vinham aprimorando sua propria estatuéria ri- tualistica, de olhos postos nas civilizagdes mais grandiosas e mais antigas. Essa fi- gura em tamanho real [43] da Atica, na regido em torno de Atenas, é um belo exemplo. Ela foi esculpida em algum momento por volta de 590 AEC, em marmore = material disponivel localmente que pouco fora usado desde os dias dos escul- tores ciclidicos, dois milénios antes. A julgar pela forma como o bloco foi enta- Ihado a partir de quatro faces diversas, dando a figura aspectos frontal e lateral nitidamente distintos, pela obediéncia precisa aos cinones da proporgio ¢ por sua postura geral, a estétua parece seguir 0 exemplo deixado desde os tempos dos es- ccultores egipcios do faraé Menkaure [ver 26]. A escultura grega tem a mesma certeza implacavel e jovial, a mesma aura de quem, vindo de um plano espiritual muito diferente, entra a passos largos em nosso mundo secularizado. A diferenga dbvia é que a figura esta nua. No Egito, um ho- mem em particular, o farad, ¢ divino. Na Grécia, o homem € 0 que é uma idéia ge- ral, despojada de roupas e circunstancias. Reconstituamos o pensamento por tras 44 “Rapaz de Critio”, Gréca disso. Nas culturas antigas, os deuses eram poténcias que faziam tudo acontecer a quem deviamos nos enderegar. Eles podiam penetrar um objeto que fabric4s- semos desde que conferissemos a este uma face apropriada ~ muito freqiientemente a face do animal pessoal do deus. Os mitos reiinem essas pessoas divinas em his- térias que falam das emogdes humanas. Todas as premissas desse arranjo, contudo, comegaram a fraquejar quando a Iliada e 0 outro poema atribuido a Hom 10, Odisséia, brincaram temerariamente com os mitos ao retratar um mundo con trolado por uma sticia depravada, mesquinha e briguenta de luminosos super- seres. Se os deuses podiam se parecer com 0s mortais, por que nao o contrario? Nao haveria um poder ou prinefpio inerente & humanidade em si? Foi essa fron- teira indistinta entre categorias cada ver mais fluidas que a nudez minima das es tétuas da Atica cruzou - embora se deva mencionar também o evidente entusiasmo dos gregos antigos por corpos masculinos em boa forma e, aliés, pelo jogo sexual entre homens, Esse tipo de esti 1a, popular durante mais de um século a partir de 630 ac, é conhecido como koiiros [rapaz]. Ela poderia representar 0 deus Apolo ou algum jovem morto em batalha, em meméria do qual a familia a teria encomendado: se uma coisa ou outra, ou ambas, no hé como dizer Porém, mesmo admitindo um pensamento tio fluido, como passamos daquele kotiros [a3] a este [48], 0 chamado “Rapaz de Critio”*, de c. 480 AEC, em pouco mais de cem anos? LA o marmore é dotado de carga espiritual e, todavia, ainda transmite a impressio de ser marmore; aqui, parece de fato uma pessoa viva. Essa transigo é conhecida entre os historiadores da arte como a passagem do “arcaico” a0 “clissico”, Sua influéncia mundial permanece enorme. Outro rétulo retros pectivo para o novo principio da escultura pode ser a “imitagao da natureza”. Mas essa expresso precisa ser qualificada. Como jé vimos, em todos os tipos de eu tura houve artistas que imitaram brilhantemente a aparéncia da carne ou a im pressdo de corpos vividos em movimento. Alcangar semelhangas impressionantes era uma das faganhas em que os artistas gregos concorriam, ¢ essa concorréncia certamente estimulou o ritmo rapido da mudanga. O que nao tinha precedentes era.a estratégia que adotaram. Na verdade, o kofiros anterior aponta o caminho para ela. Suas linhas esquematicas separando o peito do diafragma e 0 torso dos membros sugerem que o escultor estava interessado em analisar as diferentes par tes que compdem um corpo humano. F intrigante para os historiadores o fato de que o periodo entre 600 ¢ 400 AKC tenha testemunhado o advento de novos estilos de pensamento filoséfico em varias culturas muito distanciadas - néo apenas na Grécia, mas também na [i dia ena China, Somente na Grécia, contudo, os argumentos criticos sobre a re- lagdo entre aparéncia e realidade resultaram numa total segmentagao analitica daguilo que os olhos contemplam ao inspecionar um corpo. Por tras da pele es to os masculos, ¢ por trés dos miisculos os ossos ~ trés niveis de realidade, com © *Homem” ea “Arte” * 64, + Normas clisicas suas transigdes facilitadas por gordara e sangue e decoradas por cabelos. Ra- paz de Critio converte esse sutil complexo de interligagbes num individuo, pois seu escultor também indicou que uma consciéncia interior é o pivé de todo o sis- tema ~ uma atitude reflexiva que inclina ligeiramente a cabeca da escultura, como se esta estivesse alerta ao mundo & sua volta, A estétua é~ ele é — um ser plena- mente acabado, Tal era a logica conceitual da revolugao artistica que vinha ganhando veloc: dade em Atenas nas décadas que precederam essa escultura “pré-chissica” (rétulo que 0s historiadores do ao perfodo para assinalar a firmeza e a severidade per- sistentes das esculturas entre os anos 480 € 450, que logo desapareceriam). A lé- gica técnica é em alguns aspectos, mais dificil de reconstituir, Repensar 0 corpo iveis fica mais facil se vocé deixar de lado humano como um sistema de miltiplos seu bloco de mérmore e trabalhar com a argila, que é semelhante & carne, por cima de uma armadura de gravetos semelhantes a ossos. Entio é possivel forjar os re- sultados no caro ¢ glamouroso bronze. Era isso que muitos escultores atenienses vinham fazendo durante as décadas em questo, mas geragées posteriores con-

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