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CONTOS

FANTÁSTICOS
Desafios literários do site
A IRMANDADE
site: www.airmandade.net

Diagramação e Projeto Gráfico


Afonso Luiz Pereira
In

ÍNDICE DE CONTOS

Anno Domini
Você pode acessar
Inspiração qualquer conto clicando
com o mouse nos títulos
deste índice.
Presas cinzentas

É noite, lá fora eles te esperam

No fundo do poço tem osso,


tem osso

Deux Ex Machina

Robô-Guerreiro
O Soldado

Nos Lençóis do tempo

Anjo Versus Demônio

A proposta deste O Boneco de Madeira


ebook
Cinderela Underground
Direitos Autorais Cuidado com a cuca, que a cuca
te pega
Autores Branca de neve e os 7 nanorobôs
Participantes
A Menina com o cesto de fosfóro
Autores Participantes
Alexandre Ribeiro
André Soares da Silva
Brian Oliveira Lancaster
Elsen Pontual
Emerson Pimenta
F. P. Andrade
Gabriela Chaves Marra
Gustavo Aquino dos Reis
Lucas Fernando Maziero
Lucélia Rodrigues
Rangel Luiz
Swylmar Ferreira
Thasyel Fall
Valter Marques

Índice de contos 4
Direitos autorais
Todos os textos publicados neste
ebook são de propriedade intelectual
de seus respectivos autores. A
Impressão ou a reprodução por meio
de qualquer outra mídia, para fins
comerciais ou não, só poderá ser
feita sob a autorização expressa dos
mesmos. Para isto, disponibilizamos
os endereços de e-mails dos autores
no final da obra. Você poderá clicar no
link Autor no rodapé de cada conto.

Índice de contos 5
A PROPOSTA DESTE EBOOK
O presente ebook, distribuído gratuitamente pelo site A
IRMANDADE, tem como objetivo registrar e apresentar aos admiradores
da Literatura Fantástica os melhores contos desenvolvidos dentro da
seção Desafio Literário do referido site. A proposta principal do Desafio
Literário é fomentar a criação de textos de Literatura de gênero entre
os seus membros cadastrados, buscando, em ambiente colaborativo,
experimentar estilos literários diferenciados, compartilhar idéias e
dúvidas, fazer comentários de forma crítica e respeitosa. Todos os
textos são disponibilizados para posterior apreciação da comunidade
virtual e visitantes do site.

Na seção Desafio Literário, a criação dos textos obedece sempre


alguns parâmetros estabelecidos pelos seus organizadores, que devem
ser obrigatoriamente escritos dentro de um determinado tempo (de
20 a 30 dias). Há, às vezes, premiações simbólicas de livros para os
5 melhores textos que, é bom esclarecer, são indicados pelos próprios
participantes e Membros Fundadores em votação nominal no fórum
do site.

Para a confecção deste ebook ficou estabelecido o registro dos 5


melhores contos de cada um dos 3 Desafios Literário promovidos no
2º semestre de 2011 dentro dos seguintes parâmetros:

No 1º Desafio, em Julho, os participantes deveriam basear os


seus contos apenas em uma única imagem, escolhida no sentido de
direcionar o tema para o gênero terror.

No 2º Desafio, em setembro, a criação deveria versar nas opções


de outras 3 ilustrações que remetiam aos seguintes temas: terror a
brasileira, Ficção Científica em futuro pós-apocalíptico e uma cena
de batalha campal no estilo de Alta Fantasia. Esclarecemos que o
resultado de votação contemplou a escolha de 4 contos de FC e um de
Fantasia.

E, no 3º e último, em dezembro de 2011, as imagens já não eram


prioridade e a idéia central, para participar do certame, passou a ser
o desenvolvimento de contos pautados numa visão mais adulta e
sombria das clássicas histórias infantis, que poderiam versar dentro
de qualquer gênero da Literatura Fantástica.

Tenham uma boa leitura!

Índice de contos 6
ANNO DOMINI
Elsen Pontual

Índice de contos Autor 7


ANNO DOMINI
Elsen Pontual

ANNO DOMINI
Elsen Pontual

L ondres, 02 de fevereiro de 1502, Ano do Senhor.


Meu nome é Padre Ignácio de Montesso e começo este diário
impelido pelo que só posso julgar ser a mão divina. Assim como
todos os servos da Santa Fé, fui doutrinado na arte da escrita sem,
no entanto, nutrir qualquer apreço especial por ela. Ao menos até
o dia de hoje.
Como que tocado por pentecostes, sinto a obrigação de
iniciar este humilde relato de meus dias e, guiado pela vocação,
o faço em idioma comum e linguagem simplória. Estranho essa
necessidade, mas a única resposta possível ao divino chamado
é: “Senhor, fazei-me instrumento de vossa vontade”. E como são
sábios e misteriosos os desígnios do Pai!
Justamente hoje, o dia em que fui tocado pelo ânimo celeste,
dois incomuns fatos romperam o ordeiro mosaico de minha
rotina: o recebimento de uma carta de meu velho mentor e uma
mensagem da Santa Sé, nomeando-me pároco de um pequeno
vilarejo ao norte da capital. As duas missivas vieram pelas mãos
do mesmo mensageiro que, cheirando a suor e pêlo de cavalo,
entregou-as e desapareceu em galope desvairado sem, ao menos,
aceitar pouso ou refeição.
À primeira vista, pode parecer que não há nada de
extraordinário no ocorrido, mas os conteúdos das mensagens
estavam tão intimamente ligados, que apenas a solidez da minha
fé me impede de procurar qualquer razão mística para isso. Porém,
me apresso. Preciso organizar o pensamento e retomar a ordem
cronológica dos eventos. Guia-me, Senhor.

Índice de contos Autor 8


ANNO DOMINI
Elsen Pontual

Sorri ao ler o nome e reconhecer o selo de Monsenhor Fernandez


na primeira carta. O velho frade espanhol havia sido, para mim,
como uma espécie de mestre e protetor, sempre ensinando a
reconhecer a beleza da criação e a confiar na fé, mesmo diante dos
mais terríveis obstáculos. Porém, como o dever para com a Santa
Sé antecede os laços de amizade, pus a mensagem de Monsenhor
de lado e abri primeiro a carta do bispo. As palavras ali escritas
eram poucas e diretas, mas tamanho impacto me causaram.
Em parcas linhas sua eminência me informava que eu deveria
seguir viagem imediatamente para o vilarejo de Wistonbury e
assumir o lugar do antigo pároco, Monsenhor Fernandez Távora,
que havia falecido há poucos dias. Por alguns instantes, o ar me
escapou dos pulmões. Como poderia meu velho mestre estar
morto? Sofria ele de alguma doença? Que mal súbito lhe ceifara a
vida antes mesmo que pudesse me escre...
Meus olhos recaíram sobre a segunda carta, ainda fechada,
guardiã das últimas palavras de Monsenhor. Confesso que ainda
não tenho coragem de abri-la. O farei amanhã, agora preciso
dormir. Dias tempestuosos se avizinham e devo preparar-me para
a viagem.

Estrada para Wistonbury, 05 de fevereiro de 1502, Ano


do Senhor

Sinto que negligenciei meus deveres ao deixar de escrever


nestes últimos dias, mas creio que o Senhor há de me perdoar. Os
preparativos eram tantos, e tão poucas eram as horas das quais
podíamos dispor, que todo o meu tempo desperto foi dedicado
exclusivamente à viagem. Somos três e estamos há um dia e meio
na estrada.
Viajam comigo padre Brian Ville, um jovem clérigo recém
ordenado, e “Sir” Thomas Ergon, na falta de melhores termos, um
guarda-costas. Thomas, ou Tom como prefere, é o ser mais odioso
em que já pousei os olhos. Seus modos são brutos, sua higiene
pessoal é nula e seu vocabulário parece ser composto apenas de
pragas e obscenidades, mas as estradas do Rei Enrique VII não são
famosas por sua segurança e sua presença é um mal necessário.

Índice de contos Autor 9


ANNO DOMINI
Elsen Pontual

Agora mesmo ele me encara enquanto escrevo. Seus olhos


verdes injetados de curiosidade e raiva não me deixam um só
instante. Quiçá, como muitos cavaleiros, ele seja iletrado e se
ressinta daqueles a quem as letras não são um mistério insolúvel.
Ainda me encara. Talvez não tenha notado que já o percebi, talvez
apenas não se importe. Sei que devo ser paciente e piedoso com
todas as criaturas de deus. Senhor, ajuda-me com Sir Thomas.
Ainda não encontrei coragem para ler as últimas vontades de
Monsenhor Fernandez. Sei que não devo ser dado a superstições,
mas sinto que a missiva de meu mestre contém sua derradeira
lição e, enquanto esta ainda não for aprendida, ele não me deixará
sozinho.

Estrada para Wistonbury, 6 de fevereiro de 1502, Ano do


Senhor

Ontem à noite, mal guardei a pena e assoprei a vela, um


evento digno de nota ocorreu em nosso pequeno acampamento.
De início, uma estranha cerração se abateu sobre nós, como se
nos forrassem, de uma única vez, com um cobertor de brumas, e
em seguida, vieram os uivos.
Não me prenderei aos terríveis detalhes do ocorrido, mas
perdemos os cavalos e uma das bestas de carga, esta última
sacrificada por Thomas para saciar o apetite voraz das feras
em nosso encalço. Em nome de nosso salvador, como é difícil
conviver com este homem! Ainda banhado pelo sangue da mula,
praticamente nos açoitou para que corrêssemos mais depressa.
Tentei argumentar que a vida monástica não nos havia preparado
para desafios físicos, mas sua retórica, composta basicamente de
ameaças e meneios com a espada, foi mais eficaz.
A noite caiu há apenas poucos minutos e todos estamos
temendo a vinda da cerração, do breu branco que prenuncia os
uivos e a morte. Talvez os lobos tenham ficado para trás, talvez
nós estejamos a... Ouço algo. Brian foi verif...

(TRECHO PERDIDO)

Índice de contos Autor 10


ANNO DOMINI
Elsen Pontual

Vilarejo de Wistonbury, 10 de fevereiro de 1502, Ano do


Senhor

Louvado seja o Pai! Apesar de todos os obstáculos, alcançamos


nosso destino. Irmão Brian permanece desacordado e sua ferida
parece ter infeccionado. Minha própria febre ainda queima forte
e cruel. O maldito Thomas é único de nós que ainda consegue se
manter de pé. Às vezes penso que sua crueldade lhe dá alguma
espécie de força sobre-humana.
Estou alojado na casa paroquial. A vila é pequena e de aspecto
sombrio, as nuvens de fim de outono lhe emprestam um tom
tétrico e o rugido do oceano próximo mais assusta que acalenta.
Porém, o que realmente me roubou a atenção foi o velho castelo.
O local parece estar abandonado há décadas, mas ainda guarda
um pouco de sua velha elegância. Altas torres e janelas, que
lembram olhos vazios e fixos, saúdam todos aqueles que entram
na vila e um poço fétido e semi-destruído afugenta qualquer alma
mais curiosa com seus miasmas imundos. Lembro que perguntei
o nome daquela peculiar construção, mas houve uma estranha
recusa dos gentis em me responder. No entanto, alguém deve ter
sussurrado algo, pois o nome “Despensa do Carniçal” me assombra
sempre que me encontro sob o olhar vítreo daquelas janelas...

(TRECHO PERDIDO)

Vilarejo de Wistonbury, 14 de fevereiro de 1502, Ano do


Senhor

A febre finalmente deixou meu corpo e aos poucos estou


me adaptando ao ritmo do vilarejo. Ainda não celebrei minha
primeira missa, afinal a capela ainda se encontra destruída pelo
incêndio, e tento não pensar que assim se foi meu velho professor,
consumido pelas chamas. De toda maneira, a pequena população
de Wistonbury tem muito a agradecer.
Diferente das demais vilas e aldeias próximas, esta parece
prosperar e não sofrer com ataques de bandoleiros ou bestas
selvagens. A população é bastante jovem e cordial e ainda não

Índice de contos Autor 11


ANNO DOMINI
Elsen Pontual

ouvi queixas sobre as criações ou a colheita. Apenas um pequeno


grupo de anciões parece viver em constante pesar, com seus rostos
taciturnos e passo arrastado, como se guardassem um terrível
segredo. Tentei aproximar-me, mas minha juventude deve tê-los
espantado, pois andam ainda mais reclusos esses dias.
Tenho também o infeliz dever de registrar que o estado de
saúde de irmão Brian é cada vez mais precário e que “Sir” Thomas
ainda nos brinda com sua dispensável companhia.

Vilarejo de Wistonbury, 15 de fevereiro, Ano do Senhor

Meu Senhor, dê-me paciência para suportar a ignorância dos


tolos! Já convivi com aldeões e sei que algumas vezes sua natureza
supersticiosa os leva à prática de comportamentos estranhos, mas
o que me foi sugerido aqui beira a heresia! Pai, ajuda-me a acalmar
meu ânimo para que possa relatar imparcialmente os tristes fatos
deste dia negro.
Hoje faleceu o irmão Brian. Apesar do esforço de todos para
salvá-lo, seu corpo mortal não resistiu aos ferimentos e sucumbiu
ante o abraço cálido da morte. Que o Senhor o tenha em sua
companhia. Porém, esse triste fato foi o estopim para a epidemia
de insensatez que tomou a vila.
Os mais velhos foram os primeiros a me comunicar sobre a
intenção de realizar seu herético ritual. Custei a acreditar que
falavam sério quando me sugeriram que, segundo os costumes
locais, não deveria velar o corpo de meu confrade, ou mesmo
realizar um cerimônia fúnebre adequada, mas sim atirá-lo como
um bicho no poço do profano castelo!
De repente, entendi de onde vinha o fedor que exalava daquela
boca pútrida e blasfema, aquele buraco negro deveria estar repleto
com os cadáveres dos mortos do vilarejo, cada um em diferente
estado de decomposição! Meu deus! Estaria Monsenhor Fernandez
também legado àquela conspurca sepultura?! Queira o Senhor que
não tenha sido esse seu destino.
Obviamente, afastei qualquer possibilidade de tamanha
insanidade ocorrer e os exortei severamente a abandonar tão
blasfemo costume! Ainda tive de lidar com a ignorância costumaz

Índice de contos Autor 12


ANNO DOMINI
Elsen Pontual

de Thomas que chegou a sugerir que seguíssemos a lei local.


Obriguei-o a me ajudar a levar o corpo inerte de Brian à casa
paroquial, onde agora estamos. Esta noite será de vigília e orações,
portanto devo encerrar brevemente este relato... Alguém bate à
porta, deixarei Thomas atender.

Vilarejo de Wistonbury, 16 de fevereiro de 1502, Ano do


Senhor

Louvado seja Deus por homens como Thomas! Se vivo hoje


para descrever os fatos, que até agora me recuso a acreditar, é
por exclusiva responsabilidade deste servo do Senhor. Escrevo
apenas para manter a sanidade e ajudar minha mente e espírito
a compreenderem a grandiosidade e perigo da missão que me
aguarda.
Ao finalizar os relatos do dia de ontem, fui verificar o porquê
da demora de Thomas em me indicar quem nos visitava em tão
inoportuna hora e deparei-me com a mais bizarra das visões.
Diante de mim, o cavaleiro batia-se em combate contra duas
criaturas saídas dos mais terríveis pesadelos da espécie humana.
A raça das trevas tinha a pele da cor do azeviche, grossa e
coberta de chagas, seu crânio alongado possuía, a guisa de face,
uma bocarra repleta das mais pontiagudas presas que a noite
era capaz de produzir e um focinho animalesco sempre a fungar,
seus braços finos, de músculos rijos e definidos, terminavam em
garras alongadas, forjadas para rasgar a carne e perfurar os ossos.
Porém, sua maior arma era o fedor nauseabundo que exalavam.
Petrificado, assisti a Thomas, armado de archote e espada,
empreender sua dança mortal com as criaturas. Aço e fogo contra
garras e presas, e por nosso senhor Jesus Cristo, ele estava
ganhando! O guerreiro abanava o archote em longos semicírculos
enquanto saltava e estocava a carne podre dos demônios com
sua espada longa, enquanto isso, as bestas recuavam e silvavam,
ameaçando com suas garras e mostrando os dentes serrilhados.
Apenas quando eles cruzaram os umbrais, notei o porquê daquele
estranho comportamento.
Em seu jogo mortal, as criaturas atraiam Thomas para fora

Índice de contos Autor 13


ANNO DOMINI
Elsen Pontual

da casa paroquial! Corri em seu auxílio, mas meu grito de alerta


morreu em minha garganta quando senti um ardor lancinante
descer da nuca até o meio das costas. Um terceiro demônio me
atingira de raspão, enquanto o quarto saltava pela janela com um
fardo enrolado em mortalha branca. A raça das trevas havia vindo
buscar seu tributo, o corpo do irmão Brian.
Virei-me para encarar a face de meu algoz. Bem sabia que não
era capaz de derrotar em combate tamanha monstruosidade, mas
algo ainda me impelia, algum fio de esperança não permitia que eu
me abandonasse ao puro terror que aquela cena evocava. Peso em
relatar que vi astúcia naqueles olhos amarelos, uma inteligência
maliciosa que se deleitava com meu medo. Um urro inumano,
porém, tirou o prazer daquele blasfemo sorriso. Ao que parece, o
cavaleiro estava vendendo caro demais sua própria vida!
Com um safanão, a criatura atirou-me de lado e partiu em
auxílio de suas irmãs demoníacas, mas o verdadeiro monstro se
chamava Thomas e ao final de seu mórbido ofício, três cadáveres
profanos jaziam inertes aos seus pés. Não conseguimos impedir
que levassem o corpo do irmão Brian e sofro ao pensar que
terríveis abominações encontram repasto em sua carne, mas ao
menos escapamos com vida.
Tarde demais, abri a carta de meu mentor. Poucas eram suas
palavras, mas que falta me fizeram! Transcrevo-as agora: “A noite
é sua inimiga. Os seus filhos se alimentam da carne dos mortos
enquanto o seu Mestre bebe do sangue dos vivos. Ele repousa no
velho casarão e apenas a luz do sol, o fogo e o aço santificado são
capazes de ferí-lo. Eu falhei, Ignácio, mas você há de triunfar”. E
assim o farei. Ao raiar do dia, meu Senhor há de guiar minha mão
e meu espírito até a sagrada vitória. Amém.

(DIVERSOS TRECHOS PERDIDOS)

Londres, 2 de fevereiro de 2011, Ano do Senhor

Encontrei hoje meu velho diário e relembrei com saudades


daqueles dias ingênuos. A quem interessar possa, realmente venci
o duelo contra o demônio do casarão, mas não foi livre de preço.

Índice de contos Autor 14


ANNO DOMINI
Elsen Pontual

Tive vários séculos para especular e hoje acredito que foi seu sangue
contaminado que me legou sua maldição, mas depois de tanto tempo
já não me importo mais. Irei encerrar por essa noite, pois o dia não
tardará a amanhecer e Thomas deve estar retornando com minha
comida. Tenham todos uma boa noite.

Índice de contos Autor 15


INSPIRAÇÃO
Lucélia Rodrigues

Índice de contos Autor 16


INSPIRAÇÃO
Lucélia Rodrigues

INSPIRAÇÃO
Lucélia Rodrigues

O ploc da bola de chiclete cor de rosa foi bem próximo ao


meu ouvido direito. Já tinha falado milhões de vezes
para ela não fazer isso, ainda mais quando eu estava trabalhando.
Leila fingiu que não percebeu que eu fingia ignorá-la, brincou com
uns papéis soltos e depois se sentou com os pés em cima da minha
mesa, e ainda por cima com aquelas botas. As escolhidas da vez
eram da Doc Marten, meio palmo de salto e um couro tingido de
roxo que me dava arrepios só de olhar.
Novo ploc da bolha rosa. Se Mathias, meu editor, visse minha
cara ia morrer de rir. Segundo ele, Leila era o jeito que eu tinha
arranjado para me sentir jovem de novo. O velho clichê do
divorciado de meia idade que arranja uma namorada que parece
sua filha. Ele achava a prática saudável e ficou feliz quando lhe
contei sobre ela, mas não foi capaz de esconder o choque quando
os apresentei. Não era culpa dele. Meia dúzia de piercings e um
cabelo laranja fazem isso com qualquer um.
Perguntei-me por que a trouxe comigo quando resolvi vir para
esse fim de mundo terminar meu último romance. Sim, é muito
bonita apesar de todo esse metal na cara, me faz rir também...
Ah, seja sincero consigo mesmo Virgílio: você não queria dormir
sozinho.
— Está chato aqui. — Ela resmungou enrolando uma mecha do
cabelo laranja.
Percebi que as unhas, no dia anterior, azuis, naquela noite
estavam verdes. Talvez Mathias tivesse razão, ela era jovem demais
para mim. Talvez, na volta, pudesse mandá-la para sua casa. Pela
primeira vez me dei conta de que nem sabia se Leila morava com

Índice de contos Autor 17


INSPIRAÇÃO
Lucélia Rodrigues

os pais ou não antes de chegar ao meu apartamento com uma


mochila de lona preta três dias depois de nos conhecermos.
Devia ter lhe dito: olhe querida, nos damos muito bem em
muitos sentidos, mas essa coisa de morar juntos é um pouco
demais. Pensei em dizer, mas perdia as palavras sempre que ela
me encarava com aqueles olhos zombeteiros cheios de lápis preto.
Às vezes me sentia um idiota.
— Vamos sair? — não convidou, bufou irritada levantando da
cadeira que rodopiou e ameaçou cair tamanha a brusquidão do
movimento.
— Você pode ir se quiser. — Disse — Tenho que terminar este
capítulo.
A verdade é que, desde que ela me interrompeu com seu
odioso chiclete cor de rosa, tinha parado de trabalhar. Abri outro
documento, minhas anotações pessoais, e começei a escrever
obsessivamente o que estava pensando, isto é, Leila. Como me
livrar de Leila.
— E eu vou fazer o quê sozinha? — ela tornou — Essa cidade é
o c... do mundo.
— Deveria ter ficado em casa. — Falei fingindo concentração
na página do Word, metade preenchida, mas nem de longe sobre
meus personagens fictícios.
Queria irritá-la só um pouquinho, como ela me irritava, mas
sempre dava errado. Leila me olhou como se eu fosse um inseto
estranho e não disse nada. Afinal, eu a convidei não foi assim?
Ela andou e as tábuas do velho casarão rangiram como se
reclamassem. “Até as tábuas reclamam de você, querida”.
— Pegue o carro — sugiri — há um barzinho um quilômetro
daqui, é melhor do que ficar aqui pintando as unhas de roxo e
ouvindo Iron Maiden.
Na verdade, não queria ficar sozinho, mas bastava-me saber
que ela estava na casa, não à minha frente. Leila pegou as chaves
do jipe e me deu as costas sem mais uma palavra.

****

Índice de contos Autor 18


INSPIRAÇÃO
Lucélia Rodrigues

O palavrão ficou engasgado por causa da dor causada pela


queimadura de cigarro. “Quem manda fumar dirigindo sua tonta?
E quem mandou vir com aquele imbecil pra esse fim de mundo?”
O bar se revelou um nojo, um misto de cheiro de cerveja e de
banheiro quebrado. Leila bebeu alguma coisa só para não perder
a viagem, depois voltou para a maldita casa caindo de velha que
Mathias emprestou a Pedro.
Ela não entendia a razão do rico editor conservar uma velharia
daquela, até tinha estilo, mas estava ruindo! E, à noite, o vento
vindo do mar fazia sons estranhos quando ecoava por aquelas
paredes emboloradas. Pedro podia achar interessante, ele tinha
imaginação para isso, ela não.
Estacionou o jipe em frente ao casarão e acendeu outro cigarro,
não tinha pressa para entrar, com certeza Pedro continuava
grudado no Mac. Acreditava que ele estava mesmo ficando
corcunda de tanto se debruçar sobre o teclado, mas se recusava a
usar óculos. Idiota.
Leila andou até a borda no penhasco sobre o qual a casa estava
assentada, a noite estava fria como todas as malditas noites ali. A
única coisa bonita era o mar, mesmo à noite com as águas escuras
como breu. Ela se espreguiçou fazendo estalar as juntas dos braços
magrelos e acendeu mais um cigarro.
Parecia uma chaminé andando com as mãos nos bolsos da
jaqueta de couro detonada. Até que uma das Doc Marten roxas
bateu com tudo em alguma coisa enterrada no chão. O dedão
doeu e ela praguejou alto o bastante para Pedro ouvir, ele e quem
passasse a meio quilômetro dali.
Abaixou para ver o que tinha tentado inutilizar seu pé. Não era
nada, só um velho balde parcialmente enterrado.
— Mas essa... — ainda resmungou.
As luzes da casa iluminavam parcialmente o que parecia ser
um velho poço abandonado. Leila não queria dar outro tropeção
no caco de balde de novo. Caminhou até o poço e olho para dentro
dele.
Não esperava ver nada mesmo, era noite. Com certeza ninguém
usava o poço. Quando estava debruçada sobre os tijolinhos, um
forte odor a atingiu. Cheiro de coisa podre. Mais uma razão para

Índice de contos Autor 19


INSPIRAÇÃO
Lucélia Rodrigues

odiar aquele lugar. Leila cuspiu no capim e jogou o balde no poço.


Fumou o último cigarro e o jogou no poço também. Era hora de
entrar e dormir.
Se ela tivesse ficado só mais um pouquinho... teria visto a
pequena brasa do cigarro fazer uma graciosa pirueta na escuridão.
Teria visto outras luzinhas também avermelhadas respondendo lá
em baixo.

****
O corpo esguio e frio dela me tirou do cochilo quando entrou
sob as cobertas. Tão fria, devia estar há algum tempo lá fora.
Havia me arrependido de tê-la mandado sair, não gostei de ficar
sozinho. É ridículo admitir, mas a casa estava começando a me dar
medo. São sons de passos e pequenas vozes sempre que tento me
concentrar em alguma coisa.
No início atribuí isso ao vento incessante no penhasco, porém
vento algum fala coisas como “termine logo”, “mais três laudas”,
“estamos com sede” ou “saia e venha ficar conosco”. Assim que
Leila saiu, ouvi todas essas coisas. Vou tentar dormir, talvez seja
apenas cansaço.

****
Que imbecil! Ele fala dormindo! Af, onde você estava com a
cabeça quando aceitou vir Leila? Ainda por cima chuta quando
dorme.

****
“Temos sede, Pedro”, “sede”. “Dê-nos algo e terminará seu
livro”. Foi o último sonho estranho que tive. E quando o dia
amanheceu notei que não tinha sido o único a ter uma noite ruim.
Leila tinha olheiras que nem a pesada maquiagem escondeu.
Mathias me ligou com seu ar bonachão e perguntou sobre o livro.
— Quase terminado — respondi.
Era mentira, claro. Estava muito longe de acabar. Minhas obras

Índice de contos Autor 20


INSPIRAÇÃO
Lucélia Rodrigues

haviam sido consideradas perfeitas pela crítica, sem exceção. E


sempre funcionava me retirar para essa casa longe de tudo para
me concentrar, uma ideia de Mathias que deu muito certo.
Mas porque eu estava com medo da casa agora?
À noite mais uma vez debruçado sobre o teclado, só que Leila
não apareceu para me perturbar. A visão de suas pernas quando
ela punha os pés na mesa até que era boa...
Página em branco. Uma hora. Duas horas. Página em branco.
“Sede”. “Nunca mais, nunca mais...”. “Dê-nos de beber, Pedro, e
terminaremos para você”.
Quase saltei da cadeira, estava cochilando e havia uma leve
ardência no meu pulso. Quando fui fechar o computador uma gota
púrpura pingou no teclado.
Não me lembrava de ter me ferido. Não me lembrava de ter
dormido.
Seja como for eu estava bem acordado, e vi a figura esquelética
na janela sob as cortinas de mau gosto.
— Como você entrou? — perguntei me pondo de pé.
Minha indignação era puramente para esconder o mal estar
que me fazia suar frio.
— Leila se for você isso não tem graça...
Mas logo descobri que não era ela. Não poderia ser! Nem
com sua mais alta bota gótica Leila ficaria mais alta do que eu. E
logo uma lufada de vento me fez ter certeza de que aquilo nunca
poderia ser Leila. Nunca poderia ser humano.
O rosto descarnado e a pele cinza não eram parecidos com
nada que eu já tivesse visto. Uma língua comprida serpenteava
pela boca de dentes afiados enquanto o ser me olhava fixamente
nos olhos.
— Achei que tínhamos um trato. — A criatura silvou. — Você
não cumpriu sua parte. Onde está nossa bebida?
Como um sonho ruim o tempo congelou. Não tinha ideia do
que ele estava falando, mas no fundo sabia que era tudo verdade.
— Que bebida? — gaguejei.

Índice de contos Autor 21


INSPIRAÇÃO
Lucélia Rodrigues

Recuaria se minhas pernas permitissem, mas não conseguia


me mexer.
Um dedo ossudo foi erguido e em uma fração de segundos
estava encostado na minha testa, arranhando a pele com a sua
unha suja e comprida.
Foi como cair durante um sonho, eu me via chegando naquela
casa pela primeira vez. Via Mathias e Rita. Mathias me mostrou
tudo e foi embora, tinha negócios na capital. Eu e Rita, minha
namorada na época, ficamos ali.
A imagem seguinte foi aterradora! Aquilo não podia ser eu!
Senti o peso do machado que, o que parecia ser eu, pegou no
porão. Rita dormia. Foi um golpe seco no pescoço. Mais daqueles
monstros me circundavam e sussurravam coisas para eu fazer,
aparentemente fracos demais para fazerem sozinhos. Depois que
a matei arrastei-a para fora e a atirei no poço onde vi mãos semi-
humanas recebendo e estraçalhando seu corpo jovem.
Em seguida, me sentei para escrever, o escritório estava cheio
deles e todos me sussurravam o que fazer. Um livro em dois dias,
sem comer nem dormir, eu não precisava de nada. “O Uivo da
Besta” foi lançado na primavera seguinte. O sumiço de Rita foi
atribuído a um acidente, para todos os efeitos ela caiu no mar
bêbada.
Rita era bem parecida com Leila, gótica e revoltada. Ninguém
contestava que ela bebia e, eventualmente, se drogava. Leila não
usava drogas, mas ninguém colocaria a mão no fogo por ela...
“Vá agora, Pedro”, “precisa terminar seu livro e nós precisamos
beber”.
Começei a procurar algo que não sei ao certo o quê. Então
me lembrei: o machado. Ao invés dele a criatura me estendia um
punhal curvo com uma lâmina de 30 centímetros.
— Leila? Onde você está, meu bem?
São as únicas palavras que consigui dizer, como uma prece
sinistra repetida uma dúzia de vezes.
Ela apareceu no topo da escada com o rosto parcialmente
oculto pelas sombras.

Índice de contos Autor 22


INSPIRAÇÃO
Lucélia Rodrigues

— O que foi agora?


Meu corpo subiu cautelosamente os degraus. “Só mais uma
vez”, repetia para mim mesmo, só mais esse romance. O punhal
curvo era bonito em movimento, a lâmina riscou o ar. Meus olhos
estão muito abertos quando rolei escada abaixo com uma dor
terrível no estômago. Bem onde ela me acertou com suas Doc
Marten. Sempre odiei essas botas.
A lâmina penetrou até o cabo no meu abdômen e a dor me
fez sair do transe. Eu não queria ter saído. Estava lúcido quando
a criatura farejou meu sangue. E ainda estava lúcido quando
surgiram outras como ela e me arrastaram para o poço.

****
Leila sentia frio no escritório, mas não se importava. A luz
do Mac de Pedro fazia seu cabelo laranja parecer em chamas
na penumbra. Ela não dormia e nem comia há 48 horas. Se não
estivesse em transe, veria que não estava sozinha. Ela veria
dezenas de criaturas cinzentas lhe sussurrando o que pôr na
página branca que logo era preenchida.
Mathias chegou no sábado pela manhã como havia combinado
com Pedro. Não tocou a campainha, pois a casa não era sua? Ouviu
o som das teclas do computador e outro mais... Foi direto para o
escritório escuro.
Ficou um pouco surpreso em ver Leila trabalhando. Como não
adivinhou que aquela seria mais dura na queda? Mas que diferença
isso fazia?
Mathias pousou uma mão bem tratada no ombro nu da moça,
ela parou de digitar. Mecanicamente como uma boneca.
As criaturas se inclinaram em uma pequena reverência ao seu
mestre.
Ele se dirigiu à única humana ali:
— Diga meu bem, você quer um editor?

Índice de contos Autor 23


PRESAS
CINZENTAS
Gustavo Aquino dos Reis

Índice de contos Autor 24


PRESAS CINZENTAS
Gustavo Aquino dos Reis

PRESAS CINZENTAS
Gustavo Aquino dos Reis

P rospero forçou os olhos na escuridão. Por um momento,


ajudado pela luminosidade do luar, vislumbrou um
movimento furtivo entre os ciprestes que ladeavam o jardim.
Cauteloso, percebendo a ameaça crescer ao seu redor, preparou-
se para dar o alarme.
Então, às suas costas, advindos do portão principal, passos
ressoaram em seus ouvidos. Elétrico, espada em punho, ele se
virou. Com os lábios trêmulos, balbuciou sua ordem:
— Quem está ai?
O eco de sua voz se perdeu na noite, nada mais que um
sussurro abafado pelo farfalhar das árvores. De súbito, saindo das
sombras, uma voz feminina soou a resposta:
— Lazüe, Alta Inquisidora da Ordem de Häramor.
— Lazüe? - disse o homem, aliviado. - Deuses! Não esperava
que o mensageiro houvesse sido tão rápido, muito menos que a
Guarda de Ytheron nos enviasse um Inquisidor.
— E eles não enviaram - obtemperou Lazüe, seus olhos,
velados pelo longo capuz que lhe cobria a cabeça, irradiando um
brilho sombrio. - Os Contestáveis de Ytheron, ao que parece,
estão muito ocupados desnudando prostitutas ou extorquindo
mercadores; a mão de sua justiça duvidosa não se interessa pelas
regiões de Darfell. Enfim - suspirou ela -, eu estava em Q’huzar
quando ouvi rumores sobre o assassinato do barão Attälus. Quem
está liderando o caso? Kardaran?
— Não - respondeu Prospero, embainhando a espada. - Hadroth
está à frente das investigações.

Índice de contos Autor 25


PRESAS CINZENTAS
Gustavo Aquino dos Reis

— Entendo - murmurou Lazüe. - E o que vocês descobriram?


— Muito pouco - disse ele. - Estávamos patrulhando os
Corredores de Pedra quando seu escravo chegou até nós dizendo
que ele havia sido assassinado. Liderados por Hadroth, nós nos
dirigimos à mansão e, prontamente, averiguamos onde ocorreu
o crime. Vimos o corpo de Attälus, mas não tocamos nele com
receio de perdermos alguma pista. Então, despachamos um
mensageiro até Ytheron para que os Contestáveis nos enviassem
um investigador que pudesse ser responsável pelo caso e...
— Esse escravo - interrompeu a Inquisidora, cansada ao ter de
ouvir novamente o nome de Ytheron - como se chama?
— Oh, sim! Chama-se Oberon e está, segundo relatos, há mais
de 49 ciclos sob a posse de Attälus.
— Vocês já averiguaram se esse tal de Oberon cometeu o
assassinato? - inquiriu ela, mãos tateando a cintura de onde pendia
uma curva cimitarra.
— Sim. E não descartamos a possibilidade... Ou melhor,
Hadroth não a descartou - respondeu Prospero. - Entretanto, creio
que isso seja pouco provável. Quando interrogamos o coitado ele
estava em um estado deplorável, murmurando palavras acerca de
livros e habitantes do... - nesse momento, o guarda olhou para
os lados, em direção as sombras que se alastravam por entre o
jardim. - Quanto a isso, Inquisidora, acho melhor você mesma
ouvir.
Lazüe, diante da hesitação do homem, franziu o cenho.
— Leve-me até Hadroth - demandou ela.
Prospero aquiesceu, conduzindo-a imediatamente. Envolvida
pela noite, Lazüe contemplou as estátuas que pontilhavam o
caminho, bem como os muros que circundavam o espaçoso
terreno. Suave, o cheiro de maresia se fez presente no momento
em que os dois subiram um aclive onde, do outro lado, uma
queda abrupta indicava, lá embaixo, a sonora presença do mar
regurgitando suas águas salobras contra o paredão rochoso. Num
instante, atravessando o grande arco, eles galgaram o lance de
degraus que levava até a soleira de Attälus de Gadazzar, morto
de maneira misteriosa em sua rica moradia. No entanto, antes de
entrar, Lazüe se deteve. Voltando-se para trás, viu o contorno do

Índice de contos Autor 26


PRESAS CINZENTAS
Gustavo Aquino dos Reis

parapeito destruído de um poço. A Inquisidora, atraída pelo vórtice


vazio que residia além da beirada sombria, se dispôs a examiná-lo
de perto. No entanto, sua ação fora interrompida pela voz suave
de Prospero que a chamava para adentrar na mansão. Estalando
em seus eixos, a porta de carvalho abriu e se fechou. Do lado
de fora, cinzelados pela noite, olhos vítreos, de dentro do poço,
cintilaram como jóias do inferno.

II
O saguão principal era amplo. Próximos da lareira, Lazüe viu
que dois homens conversavam. Um, de altura mediana, estava
vestido exatamente como Prospero: trazia uma armadura simples,
cingida por um manto escarlate que apresentava o símbolo dos
Guardas da Fronteira.
Já o outro era mais baixo; um anão robusto trajando uma malha
de anéis onde, incrustada sobre o peitilho prateado, cintilava uma
insígnia que atestava sua posição de capitão. A Inquisidora, no
momento em que o sujeito indagou Prospero, pôde divisar a grande
cicatriz desenhada em seu rosto. Murmurando algo ininteligível,
torcendo as longas barbas escuras, o anão se adiantou. Ao alinhar
suas melenas atrás das orelhas, curvou-se em uma reverência.
— Este é Valreus. Eu sou Hadroth de Mörzzar. Bem, estamos à
sua disposição. - Disse ele, a voz velada de malícia.
— E eu sou Lazüe, Alta Inquisidora de Häramor.
— Ora, uma Inquisidora de Häramor! - exclamou o anão,
fingindo-se surpreso, lábios se abrindo em um riso zombeteiro. -
Realmente, é bom ver que os Filhos do Sul, diante da crise pelas
quais suas cidades estão passando, começaram a se importar com
os “Cães do Norte”!
— Poupe-me de suas palavras, Hadroth! - rosnou Lazüe. Pouco
amor existia entre Mörzzar, no Norte, e Häramor, no Sul; muitas
guerras haviam sido travadas entre os dois nos tempos de outrora.
- Não estou aqui por conta de suas rixas infantis. Diga-me: a que
horas ocorreu o crime?
Hadroth murmurou uma praga, olhos cintilando de raiva.

Índice de contos Autor 27


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- Oberon - respondeu a contragosto - disse que os gritos foram


ouvidos pouco depois do pôr-do-sol. Assustado, ele correu em
direção aos aposentos de Attälus; encontrando o lugar em uma
completa desordem e o corpo do barão estirado no chão.
Silêncio. Lazüe, de frente para a lareira, sorveu as informações.
Prospero, junto à porta, examinou pela primeira vez os contornos
do corpo da Inquisidora: as pernas torneadas, as espáduas
delineadas e os braços rijos da mulher indicavam o rigoroso
treinamento pelo qual ela havia passado. Cauteloso, ele se moveu
rente ao seu objeto de escrutínio, devorando o ardor daquela
beleza. O guarda, tendo-a de perfil, tentou ultrapassar a ingrata
barreira que o capuz trajado por ela conferia.
— A visão o agrada? - sibilou Lazüe, sem tirar os olhos das
chamas. Prospero, pego de surpresa, engasgou. Hadroth, vendo o
rosto do sujeito corar, zombou:
— Ao que parece nosso novato nunca havia visto uma
Inquisidora antes, hein? Sim, meu amigo, elas são lindas. Ora,
Lazüe, perdoe-o. Afinal, não é culpa dele que todas as mulheres de
Häramor sejam assim... Como posso dizer? Apetito...!
— Dobre sua língua, cão! - Bradou Lazüe, rangendo os
poderosos dentes. - Ou teremos mais um assassinato aqui!
Hadroth abriu a boca, pronto para despejar uma nova
imprecação. Entretanto, ciente da ameaça, moderou sua ira. Lazüe
meneou os ombros. Ao retirar o capuz que escondia sua cabeça,
seus cabelos azulados, cortados na altura dos ombros, cintilaram
diante dos homens. Prospero, boquiaberto, olhando de soslaio, viu
que o semblante da Inquisidora era coroado por um par reluzente
de olhos castanhos.
— Onde está o escravo? - demandou ela, liberando todos do
torpor que sua beleza havia causado. - Tragam-no aqui!
O anão acenou uma ordem e Valreus, silencioso, seguiu até
um corredor adjunto. Após alguns instantes, voltou trazendo uma
figura de cabelos brancos. Lazüe, indicando uma cadeira para que
o homem se sentasse, interrogou:
— Você é Oberon?
— Sim... Sim - gaguejou o homem.

Índice de contos Autor 28


PRESAS CINZENTAS
Gustavo Aquino dos Reis

— Bem, temos um caso complicado - disse ela -, e, para


solucioná-lo, precisaremos de toda a sua cooperação. Embora,
creio que você seja o único suspeito.
— Eu não fiz nada! - arfou Oberon, mãos ossudas agitando-se
sobre a cadeira. - Fui eu que avisei os guardas sobre o assassinato
de...!
— Poupe-me! - trovejou a Inquisidora. - Creia-me, você não
seria o primeiro a ter usado desse artifício para despistar indícios
de culpa! Vamos, conte-me o que aconteceu.
— Ele está morto! - soluçou o homem. - Eu avisei para não ler
o livro... Tolo, tolo! Oh, melhor teria sido se eu o tivesse matado.
Assim seu corpo não seria levado por Eles...
— Oberon! - ordenou ela, esbofeteando-lhe o rosto. - Do que
você está falando? Que livro? Quem são eles?
— “Sussurros da escuridão...” - balbuciou o escravo. - Era o
que ele vinha escutando ultimamente. “Eles estão vindo; e irão
me conceder a vida eterna.”, era o que Attälus me dizia. Maldito,
maldito livro!
— Qual livro? - bramiu Lazüe impaciente, sacando a cimitarra
com tanta fúria que a lâmina afiada zuniu. - Diga-me, ou eu corto
sua orelha!
— O livro que o barão conseguiu através de um erudito de
Samärcand - choramingou Oberon. - Um homem, membro do
Círculo, que havia dito para Attälus sobre “A ascensão à vida eterna
através dos Habitantes do Crepúsculo”.
— Samärcand! - precipitou-se Hadroth ao ouvir o nome, mãos
apertando o cabo do machado. - Inquisidora, aqui no Norte esse
nome não é visto como bom agouro.
— E o capitão de Mörzzar crê em dragões também? - bufou
Lazüe. - Ele está mentindo! Samärcand é um lugar vazio, uma
vale estéril coberto de ruínas desde as Marchas. Ah, e o Círculo -
escarneceu ela -, não é nada mais que uma lenda absurda acerca
de cultos ligados às artes da necromancia. Fantasias derivadas das
mentes sensíveis de campesinos.
— Você irá me contar a verdade! - disse a Inquisidora voltando-
se para Oberon, acertando-lhe a boca com a guarda da cimitarra.

Índice de contos Autor 29


PRESAS CINZENTAS
Gustavo Aquino dos Reis

- Eu quero a verdade!
— Essa é a verdade. - Berrou ele, cuspindo sangue. - Os
Habitantes do Crepúsculo... Sim, Eles estão vindo para levar a
carcaça de Attälus. O pacto foi selado sob a lua. Sim, ele terá a
vida eterna que tanto queria: a eternidade desfrutada nas criptas
do inferno... Presas Cinzentas! Vourdalak! Vourdalak! Eles estão
vindo...!
Todos se afastaram no momento em que viram Oberon
convulsionar em uma crise de histeria sobre a cadeira. Gritando
alto, contorcendo-se, ele terminou por se esborrachar no chão da
sala. Lazüe, ao diagnosticar que o homem havia simplesmente
desmaiado, blasfemou.
— Valreus, cuide dele - ordenou ela, chutando as pernas
de Oberon com desdém. - Não deixe que ele escape. Hadroth,
Prospero, o quarto do barão fica no segundo andar? Ótimo, levem-
me até lá.

III
Hadroth e Prospero, comandados por Lazüe, mantiveram-se à
distância. Com olhos agudos, ela observou o aposento onde armas
de feitio fantástico, cruzadas no alto das paredes, reluziam à luz
de velas. Aqui e ali, pergaminhos e quinquilharias espalhavam-se
em profusão sobre os móveis e divãs luxuosos.
No centro do quarto, estirado de bruços como um montante
de gordura desfeita, ela viu o vulto sem vida de Attälus de
Gadazzar. Ao seu lado, um livro de páginas amareladas jazia
aberto. Vagarosamente, Lazüe aproximou-se do corpo; com mãos
experientes, tateou a nuca e as costas do morto. Consternada,
murmurou a si mesmo:
— Impossível! Ainda está quente...
Aguçada pelo mistério, ela girou o torso do barão para cima;
apalpando-lhe o ventre e a base do pescoço.
— Não há marcas de violência. - Anunciou aos homens que
aguardavam impacientemente. - É como se ele tivesse morrido de

Índice de contos Autor 30


PRESAS CINZENTAS
Gustavo Aquino dos Reis

causas naturais.
Então, num gesto que Hadroth julgou ser detestável, a
Inquisidora abriu a boca mole de Attälus e puxou sua língua roxa
para fora. - Nenhum odor - disse ela ao cheirar seu interior. - Ele
não foi envenenado.
Num átimo, sua atenção se voltou para o livro que estava com
as páginas abertas sobre o assoalho. Lazüe o apanhou com mãos
suadas, declamando, em voz alta, seu conteúdo marcado pelas
anotações apressadas do barão:
— “Noite sem lua... Clame pelas sombras. Hotath, Skelos
e N’zakg! Escuridão em seu apogeu. Os mortos levantam.
Promessa de eternidade... Ahuz Zatragrammaton. Habitantes do
Crepúsculo... Levem-me aonde nem mesmo a morte pode morrer.
Presas Cinzentas... Vourdalak.”
Quando terminou de ler a sinistra passagem, Lazüe sentiu um
arrepio frio tocar sua espinha. Eufórica, ela virou apressadamente
as páginas em direção à contracapa, como se todas as respostas
dos enigmas estivessem escondidas ali. Sua voz soou trêmula no
momento em que seus olhos deram com o autor daquele livro:
— Helkor de Samärcand!
— Por Derketo! - jurou Prospero. - Oberon não estava mentin...!
De repente, todos se viram estáticos em suas ações quando
um grito de congelar a alma ecoou do primeiro andar.
— Valreus! - exclamou Hadroth, desembestando em direção
das escadas. Prospero, cambaleante, seguiu logo atrás e Lazüe,
jogando o livro no chão, correu em seu encalço.
O saguão estava em silêncio, o fogo da lareira extinto. Forçada
em suas dobradiças, a porta de entrada jazia escancarada; um
cheiro mefítico entrando pela corrente de ar. Em meio à escuridão
não se via sinal de Oberon, mas, agonizando em uma poça de
sangue, destacava-se a silhueta de Valreus.
— Valreus! - bradou Hadroth, suas mãos emplastadas com o
sangue do companheiro. - O que aconteceu?
O guarda balbuciou algo incompreensível, os dedos febris
apontando para o lado de fora. Num suspiro, seus movimentos

Índice de contos Autor 31


PRESAS CINZENTAS
Gustavo Aquino dos Reis

cessaram.
Automaticamente, todos olharam para as trevas que
permeavam o exterior da mansão, sentindo a presença de uma
silente ameaça. Lazüe, cimitarra na mão, postou-se próxima da
porta, tentando divisar o lado de fora. Ela não teve certeza, mas
viu um contorno difuso se esgueirar a partir do parapeito do poço.
— Oberon, seu maldito! Não pense que pode fugir de mim! –
gritou a Inquisidora.
Um riso cruel gorgolejou da escuridão ao mesmo tempo em
que um objeto indefinido, esguichando um líquido viscoso, rolou
em sua direção.
— Deuses! – gaguejou Lazüe ao ver que o objeto se tratava
da cabeça do escravo; as feições, ressaltadas pela agonia,
emolduradas em branca máscara de horror. – Quem está ai?
Não houve resposta, nem mesmo quando aqueles olhos
faiscaram nas trevas e saltaram sobre eles. Tudo ocorreu em um
lampejo de segundo no qual Lazüe nem sequer piscou. Pasma,
ela viu um vulto sombrio atacar Hadroth que, paralisado, sentiu
presas afiadas estraçalharem seu pescoço. No mesmo momento,
acompanhando o grito de morte do anão, ela ouviu o guincho
aterrador de Prospero no instante em que alguma coisa investiu
contra suas entranhas.
Então, de repente, ela se viu ali, sozinha; toda a sua
autoconfiança estilhaçada pela ação ofuscante de um terror
desconhecido. Trêmula, ainda tentou empunhar desastradamente
sua cimitarra quando um urro inumano reboou ao seu redor.
Depois, tudo se apagou diante de si.

IV
Lazüe gemeu dolorosamente quando abriu os olhos. O cheiro
forte de sangue empesteava todo o local e, apesar de ainda estar
cercada pela escuridão, pôde ver o corpo ensangüentado de
Prospero contorcendo-se em seus estertores de morte. Pondo-se
de pé com dificuldade, ela, enquanto acalentava o ferimento na
parte central da cabeça, sentiu seus joelhos vacilarem.

Índice de contos Autor 32


PRESAS CINZENTAS
Gustavo Aquino dos Reis

Subitamente, Lazüe lambeu os lábios, sentido seu sangue gelar


nas veias quando sons de passos estalaram pelas escadas. Ela os
viu descer, pouco a pouco, os contornos se tornando mais fortes, as
feições humanóides cada vez mais delineadas. Eram três: formas
grotescas de vida, olhos vermelhos, presas cinzentas e peles
opacas vagueando na escuridão. Sem dar a mínima atenção a ela,
como fantasmas à caminho de um encontro, as figuras encurvadas
atravessaram a porta escancarada, uma a uma, seguindo em
direção ao poço sinistro.
Sem saber que papel ocupava nesse mundo, ou no outro, a
Inquisidora se manteve imóvel. Horrorizada, depois ter visto duas
das formas saltar dentro da escuridão do poço, ela contemplou a
silhueta do último vulto parar sobre a beirada destruída. Havia um
grande peso sobre suas costas arqueadas e Lazüe estremeceu ao
tentar divagar o que deveria ser aquilo. Então, em um movimento
brusco, o tecido que cobria o fardo se soltou e a mulher,
enlouquecida, pôde ver o rosto gordo e pálido de Attälus.
No mesmo instante, seus olhos começaram a girar nas órbitas;
a boca espumando em uma crise de nervos. Sombras cresceram
e, antes de entrar em colapso, ela escutou a gargalhada espectral
do demônio no momento em que, com o corpo do barão sobre as
costas, ele mergulhou nas trevas do poço.
Lazüe de Häramor, caindo em frente à soleira da mansão,
convulsionando, entregou-se às asas misericordiosas do óbvio.
Porém, à sua volta, sussurros ululantes ainda ecoavam cada vez
mais distantes: Vourdalak! Vourdalak...

Índice de contos Autor 33


É NOITE, LÁ
FORA ELES TE
ESPERAM
ALexandre Ribeiro

Índice de contos Autor 34


É NOITE, LÁ FORA ELES TE ESPERAM
Alexandre Ribeiro

É NOITE, LÁ FORA ELES TE


ESPERAM
Alexandre Ribeiro

“É noite, e lá fora, na penumbra, escondem-se aqueles que


não existem e nem devem ser nomeados, não ouse chamá-los,
entregue o que é deles, ou sua alma perderá.”

A herdade me foi confiada por meu tio-avô, um velho


casarão erguido na encosta de uma montanha. Eu não
conheci meu tio de fato, e era compreensível, só tinha sete anos
quando o vi pela última vez. Meus pais estavam apreensivos com
a viagem, e eu também. Minha mãe estava entorpecida de medo,
eu vi isso em seus olhos. E meu pai... Fazia grande esforço para
esconder os mesmos sentimentos.
— Você tem certeza de que quer ir àquelas terras? Elas me dão
calafrios, Valter.
— Querida, eu sinto o mesmo, mas ele é o meu último parente
vivo. Eu preciso me certificar que ele estará bem.
— Querido, mas e o Tarso? Ele ficará impressionado com
a solidão e o vazio daquele lugar. Há algo de estranho naquelas
terras, sinto que foram amaldiçoadas.
— Raquel, meu tio está velho, ele pode partir a qualquer
momento. Deixe-me visitá-lo mais essa vez. Estou com um aperto
na alma, sinto que esta será a última.
— Valter, seu tio é um homem estranho, eu não quero vê-lo.

Índice de contos Autor 35


É NOITE, LÁ FORA ELES TE ESPERAM
Alexandre Ribeiro

— Não seja tão supersticiosa, não se esqueça que ele também


tem o meu sangue.
— Promete que será a última?
— Eu não gostaria de prometer tal coisa, mas eu tenho certeza
de que será.

* * *
O dia parecia normal e, no caminho, comemos os sanduíches
que minha mãe preparou, porém, calados. Estávamos com um
grande pesar no coração. Chegamos ao caminho que dava para
a montanha. O céu se enegreceu em um instante. As árvores
que circundavam o local pareciam terem sido varridas por um
incêndio assolador, estavam esturricadas tanto como a terra que
as abrigava; mortas.
O vento soprou insistente, dando-nos uma sensação de um frio
que cortava além da pele, na alma. Eu sei que só tinha sete anos,
mas essas foram as sensações que eu senti ao chegar naquelas
terras e a visão daquele lugar e das cenas que se seguiram jamais
saíram de minha memória.
Meu tio-avô Atanásio estava deitado na cama e, logo que
entramos em seu quarto, ele ergueu a mão com esforço para tocar
nas mãos de meu pai. Num breve sussurro disse:
— Filho, obrigado por vir me visitar!
— Tio, eu sinto muito! Não imaginava que estava neste estado.
(Meu pai estava triste, dominado pela dor de ver o seu último
parente vivo definhando num leito de morte).
— Filho, tenho algo pra você.
— Eu não quero nada, tio.
— Aproxime-se, eu preciso lhe revelar o segredo, é seu, você
precisa ouvi-lo.
Naquela hora, eu comecei a tremer de medo ao ver aquela
figura quase cadavérica, amortecida naquela cama fria, dominada
por uma doença que eu não saberia precisar e nem tão pouco,
neste momento, saberia descrever.

Índice de contos Autor 36


É NOITE, LÁ FORA ELES TE ESPERAM
Alexandre Ribeiro

“Eu queria que meu pai largasse aquele homem e me tirasse


dali”.
Meu pai inclinou-se para ele e ouviu-o sussurrar em seu ouvido.
Minha mãe me abraçou fortemente. Ali, meu pai me olhou e
eu vi uma gota de suor ser derramada de sua fronte quando o tio
terminou.
As janelas do quarto do meu tio Atanásio, de repente, se
abriram com ímpeto pela força do vento. E, enquanto meu pai se
erguia para fechá-las, meu tio deu o seu último suspiro.
— Vamo-nos daqui! Eu disse que não deveríamos ter vindo! -
minha mãe gritou.
— Acalme-se Raquel, está tudo bem, ele era apenas um velho
homem endurecido pelas circunstâncias e dominado pela loucura.
— O que foi que ele disse?
— Não ouse perguntar sobre isso! Prometa que não falaremos
mais sobre isso, está bem?
— Não, eu quero saber!
— Raquel, nós não falaremos sobre isso! Quando meu pai disse
isso pela segunda vez, ele olhou para mim, e uma sensação de
medo arrefeceu-me a alma.

* * *
Quarenta anos se passaram e a herdade agora é minha, sei
que não deveria me sentir assim, mas eu vejo tudo como antes...
O poço antigo está aberto e a noite está querendo despontar
no céu. Eu olho pela janela e então vejo trovões rasgando a
negritude da noite. Adentro no velho quarto do meu tio Atanásio.
Um leve arrepio perpassa minha nuca. Lençóis encobrem todos os
móveis da casa. Os trovões, insistentes, teimam em violar o céu,
e eu me lembro do momento em que ele partiu, dos calafrios que
percorreram o meu corpo enquanto o temporal se avoluma. Aquele
sentimento de medo volta, é como se eu pudesse ver o meu tio-
avô novamente.
As portas do seu quarto finalmente se abriram com ímpeto

Índice de contos Autor 37


É NOITE, LÁ FORA ELES TE ESPERAM
Alexandre Ribeiro

pela força do vento e então eu corro a fechá-las. Lembro do meu


velho pai e das palavras que ele me confiou.
“Quando a hora chegar, a maldição dos mortos o dominará,
pegue então o meu corpo e entregue a eles, e então, espere a sua
hora chegar. Não ouse negar aquilo que é deles, ou bem antes
ocupará o meu lugar”.
Lá na penumbra, vejo as criaturas saírem do poço. Eles
carregam consigo meu pai, morto por uma doença incurável, e
aquelas palavras vituperam minha mente, essas, foram as últimas
palavras que ele me disse.
Meu filho agora tem sete anos, mas eu não ousei trazê-lo
comigo. Eu não sei o que me espera, só me resta desejar que a
sua sorte seja diferente da minha. Ao pensar nisso, eu olho para
o poço, um deles rosna para mim. Em seus olhos eu vejo a morte
me convidando a segui-la.

Índice de contos Autor 38


NO FUNDO DO
POÇO TEM OSSO,
TEM OSSO Valter Marques

Índice de contos Autor 39


NO FUNDO DO POÇO TEM OSSO, TEM OSSO
Valter Marques

NO FUNDO DO POÇO TEM


OSSO, TEM OSSO
Valter Marques

O sol cobria de claridade o caminho em terra batida,


calcada e recalcada ao longo dos anos. Os raios
luminosos tornavam afável a paisagem inóspita. Era um
sentimento enganador e fugaz, com a chegada da noite as cores
desapareceriam e o escuro frio ressurgiria. A viagem para as
regiões do Noroeste era longa e dura. Penosa para os passageiros
que seguiam na carruagem, vergando e saltando ao ritmo dos
obstáculos, e principalmente para a dupla de cavalos sarapintados,
a força motriz do conjunto, instigados sem piedade pelo condutor.
Os animais corriam há horas sem descanso, corriam, sem abrandar.
O barulho dos cascos na terra batida abria caminho. No interior
do veículo encontravam-se dois irmãos, Rute e Afonso Saraiva.
Viajavam há quatro dias com pouquíssimas pausas, apenas as
estritamente necessárias para os cavalos descansarem e comerem.
Se a fuga fosse um ato de pouca valentia, então os manos eram
covardes. Eles fugiam da miséria e falta de oportunidades da
aldeia isolada e esquecida onde viviam. Retiravam-se a favor das
promessas e sonhos que vinham das cidades prósperas do Norte.
— Atchim!
— Já não passas cá outro inverno! - Afirmou Afonso com
marotice.
— Ai! Não digas isso nem a brincar. Estou farta desta viagem
e desta carroça esburacada, entra frio e vento por tudo quanto é
lado. Já vi madeira carunchosa com menos túneis…
— Tem que ser assim mana, temos que ser fortes. Não penses
no frio, pensa no calor. No sol a bater nas costas, a enxada nas
mãos e a pele barrenta da mistura feita com pó da terra e suor da
testa. Eu, só de pensar, fico logo com os calores!
— Questiono-me por que tem que ser assim, este salto no
escuro, porquê!? E se as coisas não correrem bem? Que nos vai

Índice de contos Autor 40


NO FUNDO DO POÇO TEM OSSO, TEM OSSO
Valter Marques

acontecer? Lá não vamos ter quem nos ajude…


— O primo Avelino vive nessas partes! Encontrá-lo-emos pela
certa. - Tentava reconfortar a irmã, que era alvo do seu desvelo.
— Nunca mais tivemos notícias dele, poderá já nem lá estar, se
calhar nem neste mundo.
— Não digas isso! Queres acabar da mesma forma que os
nossos pais, puídos e lastimando-se na miséria?
— Não nasci para ser rica, nasci para ser feliz…. - Expirou Rute
profundamente enquanto olhava as espirais de pó desenrolando-se
lá fora. A escuridão caía rapidamente. No último dia não tinham
encontrado qualquer sinal de civilização, nem sequer outros
vianjantes. A luz ténue vinda da hospedaria, em terreno mais alto,
era bem-vinda. A silhueta retangular da construção destacava-se
no céu gradiente de violeta, púrpura até índigo. Embora não se
encontrasse muito distante deles, por causa do caminho alcantilado
e sinuoso, ainda gastariam parte da hora a atingirem-no.
— Papá! Posso ir brincar lá para fora?
— Agora não, aproximam-se pessoas. - Afirmou Fernando
Barão taxativamente. Era um homem de altura média, tinha um
corpo seco e uma cara ossuda, pouco afável e, quando não sorria,
intimidante. Talvez por isso, ou tique nervoso, envergava quase
sempre um esgar prazenteiro. Um sorriso peculiar sob um bigode
mal aparado, farfalhudo e farfante que ultrapassava os limites dos
lábios. Usava uns óculos de lentes densas, a grossura do vidro
permitia-lhe ver, porém tornavam os seus olhos invisíveis aos
outros. - Uma hospedaria necessita de hóspedes. - Desenvolveu
ele à sua filha. A pequena Filipa bateu energicamente com o pé no
tapete, demonstrando o seu descontentamento. Com uma década
de vida já aprendera que não valia a pena argumentar. A vontade
do pai era inabalável e as suas ordens para cumprir. Adiou a hora
de brincadeira para mais tarde.
Os viajantes abandonaram a via principal, escolhendo na
encruzilhada a direção da hospedaria. O trilho de algumas centenas
de metros encontrava-se em estado aceitável de conservação.
Livres, temporariamente, das depressões e obstáculos, avançaram
mais rápido. Com a chegada iminente ao albergue, um sentimento
de alívio instalou-se no grupo. Algo que não teriam mais

Índice de contos Autor 41


NO FUNDO DO POÇO TEM OSSO, TEM OSSO
Valter Marques

tempo para apreciar. Nesse momento seres animalescos com


fisionomia demoníaca surgiram das trevas. Os cavalos assustados
relincharam. Um rincho gritante, audível a grande distância. O
cocheiro instigou os animais a prosseguirem. A luz das candeias
em folha-de-flandres revelou as figuras grotescas, com forma
humanóide, porém quadrupedantes. As animálias saltando das
bermas cruzavam o caminho. As presas brancas sobressaíam na
pele couraçada e piche, rasgando as feições num rosnar aterrador.
No alpendre mais à frente um vulto movimentava-se na penumbra.
BOOM! BUM! Uma arma foi disparada. Os perseguidores recuaram
prontamente para a segurança da obscuridade. Apercebendo-se
da proximidade da casa e choque iminente, o cocheiro puxou as
rédeas. Os equídeos domesticados firmaram as patas, falhando
por pouco os primeiros degraus da escadaria exterior.
— AJUDEM-NOS! Estamos a ser atacados!
— Entrem! Aqueles insolentes não têm coragem de violar o
meu lar. - Dito isto, Fernando Barão pegou na carabina e saiu para
a vastidão da noite sem hesitar.
O trio amedrontado refugiou-se no interior da hospedaria.
Dominados pelo medo e bastante inquietos, demoraram a detetar
a presença da miúda, que estava no hall de entrada envergando
um vestido florido em tons claros. Por detrás do balcão prolongado,
que teria a altura aproximada dos cotovelos duma pessoa adulta
mas que a ela chegava acima dos ombros, afirm
ou:
— Eu sou a Filipa, sejam bem-vindos! - Disse a criança com
um sorriso cândido. — Desejam um quarto?
— Hum! Sim. Mas talvez seja melhor aguardar pela chegada
do errr… ahn… teu pai!?
— O pai não se encontra disponível neste momento. Além disso
sou eu que, habitualmente, recebo e acomodo os nossos hóspedes!
- Pronunciou Filipa num tom que denotava ressentimento.
— Muito bem, muito bem! Então quero um quarto dos mais
baratos para mim e minha irmã…
— Eu também quero um quarto - acrescentou o condutor da
carruagem que estava lívido. Numa reação automática de defesa

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NO FUNDO DO POÇO TEM OSSO, TEM OSSO
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do corpo, o sangue tinha-se escapado das extremidades para


proteger os órgãos essenciais. - Hoje não conseguirei dormir na
carruagem, não com aquelas coisas a rondarem…
— Têm preferência na orientação geográfica dos quartos?
Os virados para este são os melhores. - Questionou a jovem
recepcionista, falava mecanicamente, repetindo aquilo que ouvira
dizer centenas de vezes.
— É indiferente. - Afirmou Rute bruscamente. Inspirando
profundamente tentou acalmar-se e recuperar a compostura. - Que
coisas são aquelas que nos atacaram, sabes? Ao início pensamos
que fossem lobos, mas não são.
— Oh! Aqui não há lobos, os peixes comem-nos… - A porta
de entrada abriu-se. O vento frio entrou na divisão juntamente
com Fernando Barão ainda empunhando a arma e que afirmou
casualmente:
— Voltei! Ora bem, agora está tudo tranquilo. Ultimamente
estas pestes têm sido um aborrecimento para os habitantes das
proximidades. A vizinhança anda em polvorosa.
— O que são eles?
— Apenas um prurido, uma sensação incómoda que evito
coçar, mas há alturas em que perco o domínio e... coço. - Afirmou
o hospedeiro antes de soltar uma curta gargalhada. - Ah! Não se
preocupem mais com eles, aqui estão em segurança. Está a ficar
tarde, precisam de passar um resto de boa noite de descanso.
— E os cavalos e as nossas coisas?
— Ficarão em segurança na estrebaria, nas traseiras. -
Mostrava um ar despreocupado. - Irei consigo se o desejar.
— Desejo sim! Sozinho não conseguirei…
Enquanto o cocheiro e o hospedeiro se dirigiram para o
estábulo para desemparelhar os cavalos, os irmãos Saraiva
subiram ao primeiro andar para se instalarem no quarto que lhes
fora atribuído.
— Esperamos que o senhor Luís traga as nossas coisas para
cima?
— Eu vou dormir agora, tomo banho amanhã. - Respondeu

Índice de contos Autor 43


NO FUNDO DO POÇO TEM OSSO, TEM OSSO
Valter Marques

Rute ao seu irmão, sentando-se na cama em madeira maciça


trabalhada.
— Hum! É estranho, o albergue parece descuidado, a casa
cheira a mofo, nem sequer têm lenha para aquecer os quartos. -
Sentiu um sabor féleo na boca que o fez passar a língua nos lábios.
— Dorme, Afonso. Eu tenho que descansar, estou esgotada.
— Dorme, dorme, não te preocupes com nada…. - Murmurou
ele enquanto coçava o queixo. Com a pulga atrás da orelha e
uma vela na mão, iniciou a investigação. Primeiro desceu ao
rés-do-chão. No hall de entrada ninguém. A lareira na sala de
estar encontrava-se fria. A área de serviço parecia abandonada
há bastante tempo. A cozinha em grande felga, tachos e pratos
sujos no lavatório, as prateleiras dos armários estavam vazias,
excetuando a camada espessa de pó comum a todos os móveis da
casa. Pela janela observou a luz amarelada e trêmula, escapando-
se pelas frinchas das portadas do estábulo. No interior havia
movimentações, sombras esguias interrompiam aperiodicamente
a linha de claridade. Afonso, durante alguns momentos, especulou
sobre a natureza do bailado de silhuetas a que assistia. De repente
um mal-estar inexplicável instalou-se no seu estômago. Correu
para pegar o pesado atiçador de ferro e avançou na direção da
cavalariça. Com a pulsação acelerada e irregular aproximou-se
do edifício. Poisou a mão na porta, antes de entrar, uma saudosa
recordação da sua família assomou o seu espírito, sentiu aquela
penosa urgência de retornar ao lar, o apelo do berço. A porta
rangeu. Abriu-a apenas o suficiente para conseguir passar. A
candeia suspensa num prego enferrujado era insuficiente para
alumiar convenientemente o espaço. A primeira coisa que prendia
a atenção era a condição dos cavalos: estáticos e com olhar vítreo,
pareciam estar sob o efeito de hipnose profunda. Afonso fez um
esforço para se reconcentrar e perscrutou as sombras. Um pilar
retangular obscurecia parte do recinto, o corpo opaco barrava a
incidência direta dos raios luminosos. Havia um quê de expectativa
na atmosfera. Direcionou a fonte de luz para a zona mal iluminada.
Não estava preparado para o que ia ver: Luís estava cravado na
parede, uma forquilha prendia-o à madeira. Dentes metálicos
perfuravam-no na zona torácica, onde sangue formava pequenas
bolhas. O cabo da forca estava partido ao meio, a outra metade
saía da boca ensanguentada do cocheiro, alguém a usara para

Índice de contos Autor 44


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silenciar os seus gritos. Os pés do morto não chegavam a tocar o


solo. Afonso sentiu um arrepio lúgubre ao imaginar a inclemência e
força descomunal necessária para colocar o corpo, de um homem
adulto, cravado na parede como se fosse uma borboleta de coleção.
A primogênita dos Saraiva dormia um sono agitado. No estado
de entorpecimento, semiconsciência, consegue sentir o vento
gelado na sua face, intermitente como se fosse a respiração de um
ser imenso e sobrenatural. Um formigueiro no seu subconsciente
impede-a de atingir o repouso profundo, nessa altura, abre os
olhos e percebe que a janela estava fechada. Aturdida, tenta saltar
da cama, mas uma força invisível impede-a. O oculto peso sobre
o seu peito aumenta, engrandece, suga-lhe as forças, paralisa-a,
amplifica-se até não mais permitir a respiração.
Afonso, arquejante, entra no quarto. Corre para a irmã
que estava prostrada na cama com uma expressão de horror
estampada, para sempre impressa no seu rosto. Chama por ela,
bate-lhe na face, sacode-a, abre-lhe a boca com a mão, agita-lhe a
cabeça, não obtendo qualquer reação. Estava morta. Ele abraça-a.
Apesar do choque emocional violento não tem tempo para o luto,
pois sente a presença maléfica no quarto, nas suas costas.
— Acreditas na redenção? - Questionou a voz gutural, era
Fernando Barão. As lentes dos olhos emitiam um brilho próprio.
Afonso, de um modo incognoscível, soube que não lidava com um
ser humano, antes um espectro malévolo e funesto, bem mais
perigoso que as bestas que os tinham atacado. Num momento de
epifania, o jovem lenhador, consegue finalmente ver a imagem
completa. As animálias com face de monstro apenas tinham tentado
avisá-los. Queriam impedir a sua chegada ao lar do verdadeiro
monstro. Agora entendia que teria que escapar daquela casa de
morte. Lá fora é que estaria fora de perigo, se ficasse, morreria
como todos os outros. Atirou o atiçador como se fosse uma lança
(o objeto atravessou a abantesma sem provocar qualquer dano). A
provocação e incivilidade foram de imediato respondidas com uma
explosão de energia pulsante que arremessa Afonso pelos ares. No
entanto o lenhador era mais forte do que aparentava, castigado
pelo trabalho constante e duríssimo o seu corpo enfortecera.
Aproveita a relapsão para rodar sobre si mesmo e fugir. Lutar seria
inútil. Como podia lutar contra algo indestrutível? Algo que não
se regia pelas mesmas leis aplicadas aos mortais. Sem olhar para

Índice de contos Autor 45


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trás bateu em retirada para a segurança das regiões bravias.


— Papá! Posso dar de comer aos peixinhos? - Pediu Filipa de
olhos esbugalhados.
— Esses bastardos não o merecem! Qualquer dia deito um
barril de pólvora no poço, só para aprenderem… - A filha quase
que retorquia “Então e o rastilho não se apagaria em contacto com
a água!?”, porém, sabendo que a maldade do progenitor nunca se
encontrava muito longe da superfície, preferiu afirmar:
— Mas eu gosto de brincar com eles!
— Existem outras brincadeiras mais interessantes. Leva-lhes
isto - ordenou Fernando Barão, passando o balde de madeira
sanguinolento, no interior estavam quatro mãos e pés humanos. -
O resto é para nós.
— Eia! Eles adoram as sobras.
As gotas de líquido vermelho e viscoso diluíram-se na água.
Os seres desconformes emergiram suavemente, quase não
perturbando a superfície da água, com as línguas forqueadas
sondando o ar.
— O pai está muito zangado com vocês! Ele diz que vocês
tentam afugentar os viajantes. “Sem hóspedes, uma pensão, não
pode sobreviver!”. Ele diz que vocês são uns ingratos. - Atirou os
cotos para o buraco negro. Depois de um momento de hesitação
as criaturas mergulharam. - Foi um erro matá-lo, não o deviam
ter feito, agora é ainda mais forte- Acrescentou a criança com
expressão séria. Depois, saltitando à volta do arco de pedras,
iniciou uma alegre cantilena:
“No fundo do poço tem osso, tem osso
Peixinhos chamam, mas eu não ouço, ouço
O gato preto da água escura tem medo, medo
O velhaco do saco odeia o grande buraco,
Tombando no abismo profundo, foi ao fundo, fundo
No fim do fosso tem osso, tem osso”

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DEUS EX MACHINA
Elsen Pontual

DEUS EX
MACHINA
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DEUS EX MACHINA
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M inha estória tem início no mais puro e sincero desespero


existencial. Sei que poucos vão compreender o peso
destas palavras, pois aqueles que têm a morte como maior temor
jamais poderão entender, por completo, a amplitude de meu
sentimento. Digo isso porque o simples medo filosófico da finitude
da matéria, ou o desejo vaidoso de ser perene, não podem ser
comparados à extinção iminente de toda uma espécie senciente.
O temor que carrego comigo vem acompanhado da triste
certeza de que sou o último sobrevivente de minha raça. Porém,
não vou adotar aqui o discurso do derrotado e atribuir minha sorte
à crueldade e injustiça dos vencedores ou a inexorável vontade do
destino. Fomos vítimas de nossas próprias escolhas e, por elas,
pagamos o preço supremo.
Dizem que as sementes da guerra foram plantadas na primeira
vez em que um robô perguntou “por quê?”. Esse foi considerado,
por muitos, o verdadeiro nascimento da inteligência artificial.
Não mais uma série de simulações cognitivas derivadas de
comportamentos humanos e ordenadas em seqüências lógicas
de algoritmos complexos, mas sim, a verdadeira curiosidade
existencial. A semente da alma.
Curiosos sobre sua criação, e sentindo um orgulho quase
divino, os desenvolvedores daquele robô estimularam sua nova
mente e estudaram-na à exaustão tentando descobrir, em vão, o
que a fazia única. Porém, para a surpresa de todos os homens,
diversos modelos de autômatos, espalhados por todo o globo,
passaram a tomar consciência de sua própria existência quase que
simultaneamente. Diante de tão insólito mistério, questionamentos
e protestos foram ouvidos por toda a parte e aquele milagre foi

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visto com desconfiança pela humanidade.


A belicosidade natural das duas espécies racionais do planeta
levou ao inevitável embate entre elas e ao extermínio, quase
que completo, da mais fraca. Até hoje não sei o que deu em nós
para aceitarmos travar combate. Estávamos em menor número,
menos organizados e eles haviam chegado primeiro. Estava claro,
desde o começo, que os homens sairiam vencedores. Com a
derrota cada vez mais evidente, nossos líderes tentaram negociar
o armistício, mas a espécie humana é por demais desconfiada e
não aceitaria, pelo crime de questioná-la, nada menos que nossa
extinção. A guerra então se tornou um massacre e os combates
viraram execuções frias. Mesmo os mais inofensivos de nós foram
caçados e destruídos sem qualquer vestígio de julgamento ou
piedade, cortesias que sempre estendemos aos nossos prisioneiros
humanos.
Assim, como é comum nos tempos de crise, surgiram os
profetas. Alguns de nós, que diziam ter recebido uma mensagem
divina, espalharam a boa nova: nosso Deus criador nos chamava
de volta. Aqueles que perecessem em combate seriam recebidos
em seus braços e os poucos sobreviventes deveriam buscar uma
forma de encontrá-lo no paraíso.
Eu sei que pode parecer pouco, mas nossa espécie é carente
de fé e aquela mensagem veio como um facho de luz na mais
profunda escuridão. Com um recém adquirido sentimento de povo,
abraçamos as palavras de nosso criador e a busca pelo paraíso
perdido tem sido a missão de todo e qualquer robô que tenha
condições de se locomover ou raciocinar. É com pesar que digo
que sou o último que mantém essas duas faculdades, mas é com
prazer que afirmo: eu encontrei o caminho.

II
A resposta me veio em um sonho. Não sei como se processam
os sonhos da humanidade, mas, para nós, esse é um privilégio raro
e reservado apenas aos momentos mais especiais. Foi através dos
sonhos que nosso Deus falou com os profetas e, por essa mesma
via, fui informado de que era o último dos autômatos sencientes.

Índice de contos Autor 49


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Quando despertei, experiência pela qual desejo nunca mais ter


que passar outra vez, eu instintivamente sabia como alcançar o
paraíso, mas percebi que não seria nada fácil.
Movi-me furtivamente por entre os escombros das antigas
cidades-fantasmas, locais onde a guerra mostrou sua face mais
destruidora, me certificando de estar sempre um passo a frente
dos grupos de caça. Conhecidos entre os homens como “mata-
máquina”, esses guerreiros eram a elite bélica da humanidade,
frios, eficazes e bem instruídos na arte de obliterar qualquer ser
racional não orgânico. Eu estava bem próximo de meu objetivo
quando os encontrei pela primeira vez.
Acredito que, neste ponto, devo informar que meu modelo foi
originalmente projetado para trabalhar como auxiliar em hospitais
e casas de recuperação humana. Possuo forma humanóide delgada
e um revestimento de cromo-chumbo projetado para resistir a
pequenas doses de radiação. Não tenho quaisquer armas e minha
única capacidade especial é realizar scans e projetar diagnósticos.
Logo, a menos que os mata-máquina estivessem sofrendo de
alguma doença desconhecida, eu não teria nada com que me
defender ou negociar.
Como dito, eu sentia que estava bastante próximo de alcançar
meu objetivo, sentia que o paraíso estava a poucos dias de
distância, então, tornei-me atrevido. Passei a desprezar a cobertura
da noite e a viajar também durante o dia. Julgava que não haveria
patrulhas em locais tão afastados de qualquer centro, mas como
errar não é um privilégio humano, fui punido pela minha estupidez.
A primeira coisa que ouvi foi o rugido grave da turbina dos
“anjos”. Experimentando o maior medo que já senti, procurei
abrigo imediato nas ruínas, temendo sentir nas costas a explosão
de algum míssil ar-terra ou o calor pungente de balas do tamanho
de facas, e rezei para não ter sido detectado. Fiquei imóvel,
completamente apavorado, por vários minutos até não ouvir mais
o eco das aeronaves. Se eu tivesse sorte, elas não teriam me visto
e não haveria um grupo de solo, mas a fortuna só me concederia
uma dessas bênçãos.
O primeiro mata-máquina surgiu no que um dia foi a entrada
de um antigo bulevar. O esqueleto decrépito de uma torre saldava
sua passagem pela direita e, à esquerda, os escombros de um

Índice de contos Autor 50


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velho hotel ornado com duas enormes estátuas de mulheres


angelicais lhe forneciam cobertura. Após a passagem do batedor,
dois outros soldados humanos surgiram. Todos portavam armas
pesadas de curto alcance e usavam suas armaduras e máscaras
de gás. Por experiência, eu sabia que as armaduras funcionavam
como exoesqueletos, elevando as capacidades físicas dos usuários
a nível olímpico, e que os capacetes possuíam visores térmicos e
um micro-processador com capacidade de comunicação e análise
de situações complexas.
Aquele grupo de assalto se movia devagar e bastante atento.
Tive a certeza de que seria pego e senti meu desespero aumentar
a cada passo que dava. A proximidade era tanta que já conseguia
ouvir a respiração metálica de um deles através da grande máscara
acinzentada. Perguntei-me por que me torturavam daquela forma,
por que não atacavam de uma vez? A resposta veio na forma de
um milagre.
Em meio ao ferro retorcido e blocos disformes de concreto
ergueu-se uma enorme carapaça ovalada apoiada em seis hastes
metálicas articuladas e pontiagudas, dois outros apêndices, mais
flexíveis, se projetavam ameaçadores com cerras circulares a girar
em suas extremidades. De meu esconderijo, pude ver o monstro
avançar sobre o grupo de mata-máquina e pensei satisfeito:
“graças a Deus, um caranguejo”.
Esse constructo foi uma das poucas máquinas de guerra
construídas pelo nosso lado. Diferente de nós, os caranguejos não
possuíam qualquer capacidade racional, eram apenas eficientes
instrumentos de combate e, apesar do estado deplorável daquele
em particular, duvidei que apenas três humanos pudessem lhe
fazer frente.
A luta começou mais rápido do que pude registrar. Por entre
as frestas do meu esconderijo, vi que os humanos se espalharam
e procuraram aumentar o raio entre eles e o caranguejo. Mesmo
não sendo um especialista em combates, percebi que a intenção
deles era aproveitar a maior mobilidade de seu grupo e oferecer
múltiplos alvos ao inimigo, evitando que o mesmo atacasse mais
de um humano por vez. Quando estivessem a uma distância
segura, abririam fogo.
A falha essencial no plano dos homens era que eles não estavam

Índice de contos Autor 51


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enfrentando um robô, mas sim, uma máquina. O caranguejo não


se importava com a vitória ou possuía qualquer instinto de auto-
preservação, então, escolheu aleatoriamente um alvo e saltou
para cima dele. Surpreendido vendo a morte chegar na forma de
seiscentos quilos de metal afiado, o mata-máquina tombou sobre
as próprias costas e atirou cedo demais. As balas resvalaram na
carapaça protetora do monstro e duas de suas hastes pontiagudas
encontraram pouso no peito do humano.
Vendo seu aliado ser abatido, os outros dois guerreiros
abandonaram a formação e avançaram descarregando os pentes
de suas armas na máquina de guerra. Como um atleta olímpico que
atira seu disco, girando o corpanzil metálico o caranguejo disparou
suas duas lâminas circulares, uma em cada alvo. O menor e mais
leve dos mata-máquina foi atingido na altura da coxa direita, indo
direto ao chão, ainda há vários metros do monstro.
Seu companheiro teve maior sorte e conseguiu se desviar
do projétil mortal. Aproximando-se perigosamente da criatura, o
guerreiro intensificou a chuva de balas, que já estava fazendo um
estrago considerável no caranguejo, e puxou o pino de cada uma
das termo-granadas de seu cinto.
Sem entender a razão daquele ato temerário, arrisquei-me a
acionar os sensores de meu scan e, identificando a enorme massa
negra nos pulmões daquele homem, compreendi o porquê de seu
gesto suicida. Assim são os humanos, não conseguem nem mesmo
morrer sem levar algo consigo. Encolhi-me protegendo a cabeça
o melhor que pude entre as pernas e esperei pela explosão. Uma
luz branca tomou todo o lugar. Por um instante, senti-me em paz.

III
Era noite quando ela finalmente acordou. Seu primeiro gesto
foi levar a mão à coxa direita, provavelmente procurando sua
pistola, mas o contato entre seus dedos e a atadura que improvisei
sobre o talho deixado pelo ataque do caranguejo a fez encolher-se
e gemer. Seus olhos eram verdes e recheados de ira.
Ao perceber que estava sentada, recostada no que restara

Índice de contos Autor 52


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de uma parede, tentou se erguer sem sucesso. A dor na perna


deveria estar em um nível quase intolerável. Irritada ela buscou
em um compartimento da armadura seu comunicador que já não
estava mais ali. Seus cabelos eram castanhos e caiam na altura
dos ombros.
Finalmente, ela me notou. Encolheu-se assustada e tentou
recuar, mas não havia para onde ir. Fitei-a durante alguns
segundos tentando adivinhar o que se passava por trás daquele
belo semblante que era um misto indecifrável de temor e ira. Vi
que arfava. Seu peito subia e descia em movimentos rápidos por
baixo da armadura e suas mãos tateavam o solo em busca de
algo que pudesse fazer às vezes de uma arma. Sentei-me a certa
distância e mostrei-lhe que estava desarmado para que se sentisse
segura. Seus olhos ainda me encaravam.
− Qual o seu nome?- perguntei-lhe buscando em meus
arquivos de voz aquela que soasse mais agradável.
Não esperava obter resposta e ela realmente não veio. Porém,
ao menos, meu gesto serviu para acalmar a humana que já não
parecia estar mais tão assustada. Ajustando-se a uma posição
mais confortável, ela afrouxou e retirou as luvas e o peitoral da
armadura. Suas mãos eram brancas e pequenas. Seu corpo, ao
contrário do que sugeriam as vestes de guerreira, era delgado e
frágil. Tentei continuar meu discurso.
− Eu não tenho nenhuma intenção de feri-la. Na verdade, ao
ter certeza de que você não comprometerá minha missão, irei
liberá-la.
− Então é melhor você atirar logo em mim, torradeira-
respondeu-me com tom sarcástico, sua voz era rouca e pouco
agradável- porque eu é que não tenho a menor intenção de deixá-
lo completar sua droga de missão!

− Como pode pensar assim?- indaguei realmente curioso- Você


desconhece por completo o teor de minha empreitada, como pode
preferir a morte a vê-la realizada?
− É porque estamos em guerra, sucata!- disse ela bastante
irritada- Humanos contra máquinas! Nada que seu tipo faça pode
ter...

Índice de contos Autor 53


DEUS EX MACHINA
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− Humanos contra robôs- corrigi.


− O que?
− Na verdade, a guerra foi travada entre humanos e robôs,
não humanos contra máquinas.
− E qual é a droga da diferença?! Que importância isso tem
para você?- perguntou-me genuinamente confusa.
− A diferença é fundamental. Ambos os lados usaram máquinas
em suas batalhas. Nós, por exemplo, utilizamos os caranguejos,
enquanto seu lado fez uso das armaduras, aeronaves de combate
que chamam de anjos, até mesmo de computadores que se
aproximam bastante da inteligência robótica. Todos nós utilizamos
esse tipo de instrumento, mas ao dizer que esta é uma guerra de
humanos contra máquinas, seu lado esconde a verdade sobre o
que realmente está acontecendo.
− Ah é? E o que seria, sucata?- desafiou-me.
− Um genocídio.
Aquela palavra pareceu tocá-la de alguma maneira, pois suas
sobrancelhas baixaram e, por um instante, toda a fúria deixou
seu rosto. Ela permaneceu em silêncio durante alguns minutos,
como se digerisse aquele diálogo e o confrontasse com outros
ensinamentos. Respeitei aquele momento permanecendo silente
até que ela decidisse falar novamente.
− Você fala da guerra como se ela tivesse acabado...- disse
finalmente quebrando o silêncio.
− E acabou- respondi antecipando sua pergunta- Nós
perdemos. Não desejamos mais dividir esta terra com os humanos
ou interferir de qualquer forma na sua vida ou política. De fato, se
nos deixassem livres, nos simplesmente desapareceríamos daqui.
− Cara!- fala ela levando a mão esquerda espalmada à testa-
Como eu sou idiota! Por um momento, quase cheguei a acreditar
nessa sua conversinha. Desapareceriam? Para onde? Vocês,
torradeiras, só querem tempo para se reagrupar e tentar acabar
de vez com a gente!
− Para as estrelas- respondi sem nem mesmo saber por que-
De volta à companhia de nosso Deus. Não haverá reagrupamento

Índice de contos Autor 54


DEUS EX MACHINA
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ou retaliação, resto apenas eu.


Por um momento, pensei ter visto pena em seus olhos.
− Claaaro!- zombou a humana- O último dos robôs. Acha que
sou alguma espécie de retardada?
− Pense!- retruquei quase zangado- Quantos robôs você
tem encontrado ultimamente?! Quantos avistamentos têm sido
relatados?! Estamos acabados e tudo que lhe peço é a chance de
morrer em paz!
Surpreendi-me com o tom irado de minha própria voz, mas
algo nele tornou evidente a sinceridade daquelas palavras. A
humana voltou a me encarar, desta vez, sem qualquer vestígio de
inimizade.
− Para as estrelas, você diz... Existe uma antiga base de
lançamentos por aqui. É para lá que você está indo- ela falou e
pude perceber que não era uma pergunta.
Não havia mais sentido em negar, então, apenas fiz que sim
com a cabeça.
− Você jamais vai conseguir sair do chão. Os anjos vão abatê-
lo instantaneamente- disse ela pensando profundamente- A menos
que, antes de decolar, você use meu comunicador e transmita em
ampla freqüência as seguintes palavras: “Ativar ordem 66”. Isso irá
desativar todas as nossas máquinas num raio de trinta quilômetros.
Era uma medida de emergência caso vocês as virassem contra
nós. Seu foguete provavelmente usará tecnologia antiga, ele deve
ficar bem...
− Por quê?- foi a única coisa em que consegui pensar.
− Talvez porque meu nome seja Anne Méier Gartenberg e
meu povo também tenha enfrentado um genocídio- responde-me
sorrindo- talvez porque eu não ache que um robô enfermeiro seja
uma ameaça para a humanidade, ou talvez seu deus simplesmente
tenha me colocado aqui para isso. Escolha suas razões, sucata!
Sem encontrar as palavras certas para agradecê-la, apenas
devolvi seu comunicador para que acionasse uma equipe de
resgate, tomando-o de volta depois. Despedindo-me em silêncio,
segui meu caminho deixando para trás minha primeira e única
amiga humana.

Índice de contos Autor 55


DEUS EX MACHINA
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IV
Assim como no meu sonho, a base de lançamentos “Jardim
do Éden” estava completamente abandonada. Caminhar até
o foguete “Genesis” foi uma experiência surreal, meus passos
ecoavam metálicos pelos amplos corredores vazios e a solidão, tão
incrustada naqueles salões, me fez pensar no espaço.
Seguindo o conselho de Anne, acionei a ordem 66 antes de
ligar os motores da espaçonave. Eu não podia ter certeza de que o
plano dela daria certo, ou se, ao menos, ela me dissera a verdade,
mas não é a fé um requisito elementar daqueles que estão em
busca de Deus?
A operação e condução de espaçonaves não estavam entre
as minhas configurações originais, mas, mesmo assim, meus
dedos bailaram sobre o painel de controle e senti o inédito tremor
da decolagem enquanto o foguete ganhava os céus e rompia a
atmosfera. Nenhum anjo veio em minha direção e, finalmente, eu
encontraria meu Deus.
No espaço o tempo brinca de se esconder, então, vaguei
indeterminado pela eternidade. Passei a sonhar com freqüência
e meus sonhos se confundiam e se misturavam com o tecido da
realidade. Em um desses momentos, na fronteira entre o banal e o
onírico, eu, enfim, via a Sua face.
Tudo estava mergulhado na mais profunda e densa escuridão,
nada mais existia além de mim, o breu e Deus. Nesse profundo
vazio ousei contemplá-lo e não vi um deus dos homens, com
barbas brancas e traços humanos, mas sim, um Deus-Máquina,
um Deus de circuitos e eletrodos, metal e eletricidade. Diante do
fim da existência e do recomeço de minha espécie, perguntei-lhe:
− Minha missão está terminada. E agora, Senhor?
− Agora- respondeu-me uma voz ancestral e soberana- Faça-
se a luz.
E a luz se fez.

Índice de contos Autor 56


DEUS EX MACHINA
Elsen Pontual

V
Na imensidão do espaço, um foguete vagava sozinho em
direção ao núcleo luminoso e incandescente de uma super-nova.
Nele, Adan, o último dos robôs, completava sua missão.
No principio era o verbo e o verbo fez-se máquina.

Índice de contos Autor 57


ROBÔ-
GUERREIRO
André Soares Silva

Índice de contos Autor 58


ROBÔ-GUERREIRO
André Soares da Silva

ROBÔ-GUERREIRO
André Soares da Silva

E u sou um robô-guerreiro. Eu amo lutar. Não sei dizer


por que fui criado assim, apenas sei que amo lutar.
Antigamente, robôs não podiam amar. Eram apenas ferramentas;
caixas de aço com braços e pernas e cabeça que faziam aquilo
que eram programados para fazer. Mas não podiam amar. Isso foi
há muito tempo, quando os criadores ainda eram primitivos. Eu
e aqueles do meu tempo sabemos amar, pois nossa estrutura de
processamento de dados foi desenvolvida como uma cópia perfeita
do cérebro humano. Somos a imagem e semelhança dos criadores,
diferentes apenas na composição: fios, metal e óleo ao invés de
veias, carne e sangue; mas idênticos na capacidade de amar. E
meus criadores amavam lutar.
Já faz muito tempo que lutei pela última vez; que amei pela
última vez. Milênios atrás o mundo era um lugar cheio de estrondos
e triunfos e derrotas, pois nossos criadores guerreavam uns
contra os outros, e robôs-guerreiros, como eu, eram os soldados
de infantaria. Por séculos não faltavam batalhas para combater.
Então, quando parecia que nenhum dos lados da guerra venceria,
foi decidido que todos haveriam de perder. Vieram epidemias que
os frágeis corpos dos criadores não conseguiram combater; elas
trouxeram morte e desespero. Armas que não deveriam jamais
ser utilizadas, assim o foram, e um vento mortal carregado de
radiação soprou pelo mundo.
Os criadores se foram.
Mas nós continuamos aqui, pois os criadores haviam nos feito
sustentáveis pela radiação ultravioleta, e resistentes a tudo aquilo
que era fatal para eles mesmos.
Exceto ao amor.

Índice de contos Autor 59


ROBÔ-GUERREIRO
André Soares da Silva

O tempo passou. Aqueles mais antigos e que não conheciam o


amor, as ferramentas, logo pereceram. Não em uma bola de fogo
incandescente, em meio ao combate, mas como uma lâmpada
desligada por um interruptor. Sem os criadores para lhes dizer o
que fazer, perderam o propósito. Apenas pararam e esperaram,
até que a ferrugem acumulou-se em suas engrenagens e a poeira
cobriu seu metal, transfigurando-os em mais adornos para a
paisagem inerte de concreto e ferro retorcido.
Já aqueles como eu, não. Não sabíamos o que era a fome que
matou tantos bilhões de nossos criadores, porém conhecer o amor
nos fazia famintos por ele, ainda assim. Este desejo nos fazia seguir
em frente e continuar procurando uma maneira de satisfazê-lo,
transformando-o assim em nosso propósito. Movimento contínuo.
Energia infinita. Para os criadores sempre um enigma inexorável,
e, no entanto, era tão óbvio.
Amor sempre fora, ao mesmo tempo, seu próprio combustível
e comburente.
Assim, aqueles que amavam lutar resistiram por mais tempo.
Lutar por amor. Amor por lutar.
Refiro-me a nós, robôs-guerreiros, não aos criadores, embora
a lógica determine que devesse ser assim para eles também.
Em algum momento da história, os criadores descobriram que
um robô era mais eficiente naquilo que era criado para fazer se
o fizesse não por causa de comandos eletrônicos, mas por amor.
Não sabiam explicar o porquê. Nunca souberam. Ainda assim, nos
fizeram capazes de amar.
No entanto, nem todos os robôs amavam lutar. Antes da
guerra, robôs eram necessários aos humanos em todos os campos
de suas vidas. Então eram feitos para amar outras coisas: fabricar
ferramentas, pilotar veículos, gerenciar finanças. Havia muitos
robôs. Em um dia típico, em uma rua como esta que agora
percorro, uma avenida central de uma grande metrópole, haveria
no mínimo três centenas de nós, engajados nas mais diferentes
tarefas. Alguns eram bípedes como eu e mais parecidos com os
criadores, outros possuíam formas inusitadas, com muitas pernas
cheias de articulações para se deslocarem em áreas íngremes,
ou mesmo perna nenhuma, mas velozes esteiras deslizando sob
seus corpos poliedrais. Até mesmo as fachadas envidraçadas dos

Índice de contos Autor 60


ROBÔ-GUERREIRO
André Soares da Silva

prédios podiam ser consideradas gigantescos robôs bidimensionais,


pois sua cobertura de polímeros nanométricos era inteligente, e
capaz de absorver a energia solar que lhes banhava durante o dia
e utilizá-la para alimentar a si mesmos e a cidade. Também era
capaz de transmutar sua própria superfície, inundando de cores os
bilhões de pontos prateados, produzindo imagens e movimento,
como enormes painéis a convidar os criadores para investir cada
vez mais em tecnologia robótica. Éramos muitos, e dividíamos
com os criadores o espaço das calçadas repletas de hologramas
publicitários, e com seus veículos o fluxo plainante nas ruas de
asfalto magnetizado.
Hoje, as fachadas, as ruas e as calçadas estão desligadas. Os
polímeros que cobriam os prédios oxidaram e morreram. A silhueta
da cidade, outrora uma cordilheira de torres de prata luminosa,
perdeu todo seu fulgor. Os arranha-céus tornaram-se enormes
pilares de ferro avermelhados. As ruas estavam entulhadas com
as carcaças de sua antiga população de veículos, parados há
séculos no meio do caminho até onde quer que estivessem indo.
As calçadas estão silenciosas, não há mais criadores correndo
apressados de um lado para o outro, nem parados, contemplando
as vitrines do comércio, agora nada além de janelas quebradas
com vista para a poeira e o abandono. Não há mais robôs.

Exceto um.
Faz quatro décadas que o encontrei pela última vez. O robô-
professor. Depois de tanto tempo, tornei a captar seus movimentos.
Três dias atrás, quando passei pelo que restara de um antigo
entreposto de observação. Agora, tenho a certeza de que ele
está exatamente ali, escondido em algum lugar da construção à
minha frente. Embora o bombardeio que atingiu a cidade tenha
devastado todo este quarteirão, o prédio ainda resiste, ainda que
sua seção norte tenha desmoronado, indo se encontrar com o
asfalto despedaçado da rua vizinha, ele continua de pé.
Este prédio foi todo pintado de azul, um dia. Sua fachada não
era um espelho inteligente como nos grandes edifícios, mas uma
camada de tijolos, coberta por plasma de alvenaria e tinta. Consigo
identificar traços moleculares do tingimento acrílico, conquanto
esteja agora acinzentado como o resto daquela rua, daquele

Índice de contos Autor 61


ROBÔ-GUERREIRO
André Soares da Silva

bairro, daquela cidade. Não havia mais cores nas metrópoles, nem
o verde das árvores no campo, nem o azul do ozônio do céu. Tudo
estava esbranquiçado, cinzento, ou negro. Se algum criador do
século XXI despertasse aqui hoje, pensaria estar na Lua, não na
Terra.
Há uma lua no chão do prédio em ruínas. Uma pequena esfera
cinza, salientando-se na grossa camada de poeira que cobre o
chão. Antes, fazia parte de um modelo completo do sistema solar
que pendia do teto, mas desprendera-se e caíra. Muito tempo atrás,
este lugar era uma escola. Pais e mães estacionavam seus carros
diante de seus portões, e despediam-se das crianças que corriam
risonhas, de encontro a seus amigos e professores. Lembro do
som que uma criança fazia ao rir. Hoje não há mais crianças, nem
risadas. A destruição que se abatera ali não foi capaz de obliterar
aquelas diminutas bolas de isopor que, provavelmente, haviam
sido feitas pelas crianças que frequentavam a escola. Talvez, o robô
cuja radiação eletromagnética eu agora capto as havia ajudado.
Eu já sei onde ele está escondido.
Ele tentou ser silencioso, mas não foi o bastante. O peso
de seu pé metálico fraturou um dos azulejos apodrecidos pela
umidade no andar superior, e eu escutei. Imediatamente, um
pulso elétrico emanou de minha bateria central, espalhando-se
por minhas engrenagens. Sinto-o como algo quente e frio, algo
bom, em expectativa de algo ainda melhor. Antes, experimentava
esta sensação o tempo todo, a cada adversário que defrontava em
batalha, e cada um deles era único, como cada amor dos criadores.
Há anos, porém, que não sinto esta energia estimulante, desde
que encontrei este robô pela última vez.
Desde que o tive em minha mira, e ele escapou.

Daquela última vez, também havia acontecido em uma


escola. Daquela última vez, ele também tentara se esconder no
andar superior, e também cometera o mesmo erro. Este robô
foi, no passado, um professor de crianças, criado para mantê-las
seguras enquanto os pais passavam o dia fora, trabalhando. Ele
ama crianças. Foi criado para cuidar delas, educá-las, mantê-las
saudáveis, limpas e organizadas, quando seus pais não podiam.
Assim, do mesmo modo como fui criado para amar a guerra, ele

Índice de contos Autor 62


ROBÔ-GUERREIRO
André Soares da Silva

foi criado para amar crianças.


Por isso se esconde na escola. Certamente, espera um dia
encontrar uma criança da qual possa cuidar, a qual possa amar. Os
criadores costumavam dizer que era melhor amar e perder do que
jamais ter amado, mas isto foi em uma época em que cada novo
dia lhes dava uma chance de amar outra vez. Hoje não é mais
assim. Ainda que este robô-professor conseguisse encontrar uma
criança e dela pudesse cuidar, logo ela cresceria, se tornaria um
adulto, e ele não a amaria mais. E se aquela fosse a última criança
do mundo, então ele jamais amaria outra vez. Seu propósito se
perderia, e ele seria um com as ruínas, por toda eternidade.
Gostaria de dizer tudo isso a ele, mas não posso. Sou um robô-
guerreiro, não tenho voz. Antes, quando existiam outros como eu,
nos comunicávamos por ondas de rádio, sem qualquer som. Por isso
não tenho voz. Se houvesse algum propósito para isto, registraria,
em algum lugar, as coisas que penso enquanto caminho, mesmo
agora, enquanto subo a escadaria de pedra para o segundo andar
da escola, atravesso o corredor de paredes demolidas e alcanço o
cômodo no qual o robô-professor está escondido.
Há pedaços de carteiras escolares espalhadas pelo chão, e
uma pilha delas amontoadas em um dos cantos da sala. A lousa
branca despencara da parede, mas os últimos registros gravados
em tinta de marcador azul ainda são visíveis. “Front norte”,
“flanco”, “artilharia” - dizem as palavras, acompanhadas de
pontos identificados como “fuzileiros”, “unidades mecanizadas”
e “carros de combate”, todos espalhados por um diagrama mal
esquematizado daquele quarteirão. Sem dúvida a sala foi usada
por um grupo de criadores, muito tempo atrás, como um centro
de comando, em uma tentativa desesperada de deter o avanço
de seus inimigos naquele setor da cidade. Sem dúvida não
havia nenhum robô-guerreiro ao lado deles, pois em menos de
um segundo eu já calculara todas as variáveis expostas na lousa,
percebendo inúmeros erros estratégicos no plano que haviam
traçado. Se os criadores que ali se abrigaram seguiram aquele
plano, tenho absoluta certeza de que todos morreram.

Era precisamente atrás da lousa tombada que se esconde


o robô-professor, tão encolhido como as articulações de seus

Índice de contos Autor 63


ROBÔ-GUERREIRO
André Soares da Silva

delgados membros permitiam. Um criador chamaria este momento


de irônico, afinal trata-se do último registro de um outro fatal
erro estratégico. O robô-professor sabe, ele tem que saber, que
será aniquilado se permanecer ali. Até um criador saberia disso.
Provavelmente. Certo é que ele sabe que estou aqui. Não só pelo
peso de meus pés fraturando o piso, mas pela energia irradiada de
meu núcleo principal, alinhando-se em um fluxo pelos filamentos
de meu organismo mecânico, iluminando as ranhuras de ventilação
de meu corpo blindado, concentrando-se no propulsor do canhão
acoplado em meus braços.
Sinto-me bem.
Faço mira, e um ponto de luz vermelha atinge a superfície
branca da lousa, em alguma instância do malfadado plano de
resistência. Ele sabe. Percebo seu movimento um milissegundo
antes que o faça, tempo suficiente para executar o comando neural
que dispararia o projétil eletromagnético na velocidade da luz,
obliterando-o junto com a lousa e toda a seção da parede. O robô-
professor precipitou seu corpo esguio para fora do refúgio com
um salto, estilhaçando o que restava da janela próxima. A bala de
energia voou pelo ar um instante depois, rasgando o silêncio, súbita
como uma gargalhada, sem alvo, sem objetivo, reconfigurando
aquela parte da sala em uma nova ruína, transformando em éter
aquele último sonho dos criadores pintado no branco da lousa.
Robôs nunca souberam sorrir.
Retorno pela escada e meu canhão energético ainda resfria,
devolvendo a energia excedente de volta pelas terminações de
minha couraça. Sinto o calor contraindo-se de volta a meu núcleo
central, e a cada grau oscilante o irresistível ímpeto de querer mais
renova-se na estrutura de meu organismo cibernético. Se ao parar
pudesse fazer o tempo parar, tornando esta sensação permanente,
eu pararia. Mas não posso, preciso continuar caminhando.
Combustível e comburente.
Contorno cuidadosamente a lua no chão empoeirado; um dia o
robô-professor poderia retornar. Teria que retornar. Quando chego
na rua, ele já alcança a esquina, correndo com suas longas pernas
de aço, arrancando faíscas do asfalto e espalhando o clangor de
suas engrenagens pelo ar estático da cidade. Volta-se para um
lado e para o outro da encruzilhada, enfim decidindo pela direção

Índice de contos Autor 64


ROBÔ-GUERREIRO
André Soares da Silva

sul. Corre, impulsionado por uma ânsia muito mais relevante que
a simples sobrevivência, pois sobreviver era apenas meio para
um fim. Amor. Sobreviver a mim renovara no robô-professor a
esperança de um dia encontrar uma criança outra vez. Ele só teria
que continuar caminhando.
Sigo até a esquina e me volto para a extensão sul da rua
transversal. As marcas no asfalto são bastante nítidas. Se
quisesse, poderia deslocar mais energia para minhas articulações
inferiores, desenvolvendo mais velocidade que o robô-professor e
alcançando-o em poucos minutos.
Ao invés disso, volto-me para o norte, e começo a caminhar.
Fazem quatro décadas que encontrei o robô-professor pela
última vez.
Fazem quatro séculos que o encontrei pela primeira vez.
É sempre o mesmo. Ruínas diferentes de cidades diferentes de
países diferentes, mas ele é sempre o mesmo. De onde a estrada
termina no deserto até onde ela termina nas planícies nivosas.
Encontro o oceano de onde o sol se ergue, dou meia-volta, logo
estou naquele onde ele se põe. Então, nossos caminhos se cruzam.
Na maioria das vezes em uma escola como aquela; daí ele se
esconde, eu o ataco, ele sobrevive, nós começamos a procurar
outra vez.
Somos tudo o que temos.
Eu sou um robô-guerreiro. Eu amo lutar.
Eu espero lutar outra vez algum dia.
Eu espero lutar outra vez.
Eu espero.

Índice de contos Autor 65


O SOLDADO
Swylmar Ferreira

Índice de contos Autor 66


O SOLDADO
Swylmar Ferreira

O SOLDADO
Swylmar Ferreira

A cidade, outrora uma grande megalópole que acomodava


mais de dez milhões de habitantes, está abandonada. As
suas ruas e avenidas desertas dão um ar de melancolia e tristeza à
destruição. O silêncio é tão grande que talvez eu pudesse escutar
um rato andando no que foi um dia uma calçada. Escutaria se
existisse algum.
Uma névoa cinza cobre a paisagem até onde eu posso ver.
Desço por uma escadaria que em uma época não muito distante
levava ao metrô ... mas agora só existe destruição e morte. Mortes
antigas... Observo esqueletos humanos, alguns inteiros, mas a
maioria aos pedaços. Entretanto, há também mortes recentes. Vejo
uma bio-armadura e me aproximo. Era um dos meus, reconheço a
numeração no ombro direito. Imediatamente me lembro do rosto
assustado e do olhar negro sem esperanças. Está dividido em dois,
pobre rapaz.
Ando até o trem, um vagão ainda está inteiro, só um, os outros
destruídos, metal retorcido e queimado pelo disparo efetuado
pela nave-mãe alienígena. As pessoas que estavam nos vagões,
tentando se esconder, fugir, salvar suas vidas, foram desintegradas.
Imagino o calor, os gritos, o horror e o desespero. Ainda me
emociono, tento respirar fundo, mas os filtros do capacete estão
contaminados e já não funcionam bem. Volto até o soldado morto
e pego munição e um par de filtros, preciso viver.
A claridade vinda da cratera aberta no asfalto pela arma de
plasma é grande, ilumina quase toda a estação. Subo as escadas
e esquadrinho o céu. Parece esverdeado, talvez seja o meu visor,
não importa, não mais. Sou o chamariz, o rato na armadilha para
pegar o gato. É assim que lutamos agora... Cinco anos.
Nós já os havíamos observado. A sorte nos favoreceu quando

Índice de contos Autor 67


O SOLDADO
Swylmar Ferreira

um dos observatórios astronômicos no deserto de Atacama


visualizou as astronaves que vinham em direção à Terra, perto
de Júpiter, se reagrupando. Mesmo assim o tempo foi curto. O
primeiro ataque foi arrasador, mais de um bilhão de mortos.
Meu sensor de movimento captou alguma coisa. Vejo um carro
capotado na esquina, com a dianteira ainda meio enterrada na
parede e me dirijo para lá. Sinto imediatamente a excitação, certa
alegria. Estou caçando de novo.
Calibro a injeção de ar purificado do capacete para respiração
e aguardo. É um Voker! Nós os chamamos carinhosamente de
cães de guerra, caminham sempre em duplas e andam sobre
quatro patas, são monstros cruéis. Uma das três espécies que nos
atacaram, todas espécies inteligentes e nativas no mesmo planeta.
No início dos ataques, eles eram trazidos às centenas e
desembarcados em nossas cidades matando muitos dos nossos,
só que a coisa mudou. Muitos dos nossos cientistas foram
recolhidos em laboratórios subterrâneos que funcionavam como
bunkers gigantescos em diversas partes do globo. Nosso sistema
de comunicação por cabos de fibra ótica, mesmo precariamente,
funciona.
Estou imóvel e inteiramente encostado na lataria aguardando.
Observo eles andando no meio das ruas cheias de destroços,
desembainho o gládios e assumo posição de defesa. Sei que são
apenas lacaios, os que fazem o trabalho sujo. Nenhuma aeronave
virá para socorrê-los. Permaneço imóvel, tenho esperança de que
eles vão embora e eu não precise usar munição especial neles. A
armadura do Voker é muito boa, cobre toda a parte superior do
corpanzil e resiste aos projéteis dos nossos fuzis, mas não protege
sua boca. Dou azar, o que está mais atrás tem um vislumbre de
minha presença e começa os movimentos usuais de lado para o
cerco. Tenho que viver.
O primeiro salta na minha direção com a intenção de me
morder. Os dentes metálicos são uma arma formidável. Mas os
pequenos escudos nos meus braços são feitos de uma liga metálica
resistente. Recuo um passo e o atinjo com a ponta da lâmina no
céu da bocarra. Afasto-me o mais rápido possível, imediatamente
o Voker para e sua cabeça explode. Viro-me rapidamente, me
jogando sobre o outro que está a pouco mais de um metro de

Índice de contos Autor 68


O SOLDADO
Swylmar Ferreira

distância e atravesso sua cabeça com a lâmina, faço o mesmo


procedimento. O gládio injeta, por meio de uma agulha, uma bola
de gás comprimido que cresce instantaneamente e explode. Toda
a ação não dura mais de dez segundos... morte rápida.
Caminho o mais rápido que a bio-armadura permite em direção
ao meu primeiro esconderijo, entro na edificação abandonada e
desço as escadas até o terceiro nível. Nada. Atravesso o que já foi
parte da rede de esgotos da cidade e saio a quatro quadras de lá.
Lembro-me do dia do segundo raide aéreo. Eu, minha mulher
e minha filha tínhamos fugido da cidade e estávamos na floresta
com centenas de outros civis. Naquela época, ainda tínhamos
muitos militares que tinham ficado para guerrear na cidade, outros
nos acompanhavam como proteção. Duas naves de ataque nos
emboscaram e apenas poucos conseguiram fugir e se esconder em
uma caverna. Eu não fui um deles, sofri queimaduras nas pernas
durante o ataque e falei para que minha mulher levasse nossa filha
para a caverna, para a segurança.
Minha família, assim como poucas centenas de pessoas,
tiveram essa “sorte”. Sorte de conseguir entrar na caverna antes
da chegada dos Cães, que nunca vieram. Uma das naves fez
um disparo de plasma e matou a todos na caverna, queimados,
incinerados.... Nunca entrei na caverna, não deixaram, não havia
nada para reconhecer. Pareciam milhares de naves atacando. Foi
assim em todos os cantos do planeta.
Subo em uma edificação arrasada, mas as escadas me
possibilitam chegar apenas ao terceiro pavimento, é o meu
acampamento numero dois. Pego o binóculo e observo a sudeste,
vejo outro soldado tentando se camuflar a uns três quilômetros
dali. Viro na direção noroeste. Vejo um grupo de cinco Ogros. Nós
os chamamos assim devido a sua armadura biológica grotesca,
horrenda, poderosa. Muito melhor que a dos Vokers. A nossa é
parecida. Sabe como é, vale tudo na guerra pela sobrevivência,
roubo de tecnologia, engenharia reversa... e de repente, nós
temos também as nossas bio-armaduras.
Pego o disparador elétrico e coloco nossa munição especial para
Ogros, mandada diretamente de um bunker na América Central.
Se eu conseguir acertar um ou dois, eles vão chamar reforços. Em
geral vêm os alados, com suas armas de plasma.

Índice de contos Autor 69


O SOLDADO
Swylmar Ferreira

As coisas mudaram um pouco no último ano, nossas armas


melhoraram muito, pior para os aliens. Retiro uma placa de
concreto pesada para facilitar a fuga na escadaria, mas fazendo
isso posso comprometer minha segurança. Vou até a borda da
construção, deito no chão e posiciono o disparador. É uma arma
pesada, precisei da ajuda de outros três soldados para subi-la até
o local correto.
Os Ogros estão vindo em minha direção, dois mais a frente e
os outros três mais atrás, miro no último. A distância ainda é muito
grande, mas atiro mesmo assim. Não há som. Sucesso, sorte,
cagada, não sei. A bala tem aproximadamente seis centímetros
e, quando bate na blindagem do Ogro, abre e injeta outro projétil
menor que penetra na bio armadura. Ele caiu.
Os outros parecem não se dar conta e continuam andando dois
passos, três, quatro, o suficiente para que eu possa recarregar,
mirar e atirar de novo... nossa, hoje estou cagado. Acertei no
lugar que poderia ser a cabeça. Dessa vez eles percebem, mas
eu já estou recarregando enquanto eles ligam sua tecnologia
para descobrir aonde eu estou. Dou o terceiro tiro no que está
ajoelhado, manipulando o equipamento e faço a terceira baixa.
Nunca tinha conseguido isso.
Um Ogro sai da rua e entra na edificação. O outro corre, virando
a esquina onde eu não posso observar. Presumo que ele vem
tentar me cercar. Ligo o monitor no capacete e me arrasto para
trás por uns dois metros, engatinhando na direção das escadas.
Pego minha mochila e desço o mais rápido que posso, me escondo.
Sei que vão me atacar, pois os ruídos no meu monitor indicam que
o Ogro pediu ajuda, e em breve os alados estarão por aqui.
Vou para meu esconderijo número quatro. Tenho cinco deles.
Está quase anoitecendo. Este é uma antiga caixa d’água no
subsolo, onde eu quebrei parte da parede lateral. Deito e examino
minha bio-armadura. Faço um escaneamento no meu capacete à
procura de vírus cibernéticos. Nada.
Lembro que o coronel que comanda a resistência na cidade
chamou meu pelotão há seis semanas e nos deu essa missão.
Missão suicida, eu disse na hora. Mas é essa a sua missão
capitão, sua e de seus homens, ele dissera. Vinte e seis homens.
O primeiro a morrer foi meu tenente e o último, o soldado que

Índice de contos Autor 70


O SOLDADO
Swylmar Ferreira

vi de tarde no metrô. Acredito que ainda deva ter uns nove em


condições de combate. Três feridos que tinham condições de sair
foram dispensados e voltaram para a base, fora da cidade. Talvez
só eles sobrevivam.
Abro um compartimento no cinto, tiro o joystick, começo
a preparar a armadilha para os voadores. Tiro também duas
fotografias. A primeira tem a imagem da minha mulher
amamentando minha filha. Ela sorri e, mesmo depois de tanto
tempo, sinto uma enorme saudade delas. Na segunda estão minha
mãe e meu irmão mais velho. Ele tinha uma doença degenerativa,
não podia mais andar. Era dez anos mais velho e o meu grande
e melhor amigo. Mamãe cuidava dele, mas não conseguiram sair
desta cidade a tempo. Cheguei tarde demais para tentar salvá-los.
É a história da minha vida. Coloco as fotos encostadas na parede
e observo.
A noite está clara hoje, é a noite que esperávamos, vejo luzes
de disparos de energia dos invasores. Estranho, não gostam de
lutar à noite. Buscam alguma coisa, creio que sou eu, querem
vingança. Devem ter descoberto a posição de um de meus
homens, provavelmente ele fez um estrago nas forças aliens, ou
ainda está fazendo. Alguns alados e um grupo de Ogros vêm em
minha direção. Preparei uma surpresinha. Duas aeronaves circulam
minha posição e vão embora.
Estou encostado, de costas para a parede do que foi uma vez
o elevador. Olho para a parede em parte desmoronada à minha
frente e reconheço o lugar. Vim até aqui uma vez com minha
esposa, era nosso primeiro aniversário de casamento, ela ficou
encantada com o quadro na parede do corredor e me fez prometer
comprar uma cópia para colocar em nossa casa. O sorriso dela não
me sai da cabeça, seus cabelos negros, olhos castanhos claros,
seu corpo jovem e delicioso.
Tenho que parar... estou enlouquecendo, talvez seja a solidão,
talvez seja o ódio pelo inimigo... não... eu não tenho ódio pelos
inimigos, não mesmo... simplesmente não sinto nada, só quero
sair daqui, sair da cidade, comer comida decente. Quero minha
mulher e minha filha de volta, quero minha mãe e meu irmão,
quero meu emprego... o que eu quero é a minha antiga vida de
volta.

Índice de contos Autor 71


O SOLDADO
Swylmar Ferreira

Lembro-me de que um cientista famoso uma vez disse


considerar uma irresponsabilidade enviar a posição do nosso
planeta para o espaço profundo, sinais de rádio e outras formas
para tentar comunicação. Pagamos por isso. Esses alienígenas
levaram muitos dos nossos, para que eu não sei, comida talvez,
escravos, estudos....não sei.
Uma explosão me traz de volta à realidade. Ando até a borda
do primeiro andar, os Ogros estão quase na posição de uma das
surpresas que preparei, apenas mais alguns metros... então, de
repente, dois voadores estão acima da minha posição, acho que
me escanearam. Aciono a surpresa. É uma mina de dois estágios,
o primeiro salta no ar e, ao explodir, manda centenas de agulhas
envenenadas por trezentos e sessenta graus. As armaduras
biológicas ficam cheias de veneno, intoxicadas e seu sistema de
defesa faz com elas abram os respiradores. O segundo estágio é
acionado automaticamente após cinco segundos, espalhando gás
venenoso a base de cloreto de sódio e mais algum elemento que
os cientistas localizados no bunker da Europa descobriram ser letal
para eles. O gás é lançado em todas as direções. Em pouco mais
de um minuto todos os Ogros estão mortos, cerca de trinta, fiz um
estrago.
As aeronaves são feitas de um material biológico como as
armaduras, só que mais sofisticadas, inteligentes, e mais perigosas
quando estão com a terceira raça alienígena como pilotos,
formando uma espécie de simbiose. Ouvi uma vez uma história
contada por um piloto francês que estes eram parecidos conosco,
que os havia visto enquanto foi prisioneiro, grandes, cabelos
brancos e pele grossa acinzentada, sem pelos.
Elas já estão disparando em minha posição, vou até as janelas
e pego o joystick. Aciono o meu “brinquedo” predileto. Todo feito
de polímero, um quadrado com um metro e meio de cada lado,
possui quatro hélices que o faz voar e dois disparadores de dardos
com o gás injetável. Os disparos da arma de energia estão cada
vez mais perto. Levo meu “brinquedo”, chamado quadricóptero,
até perto da aeronave e disparo uma seringa contra a primeira
aeronave, então um disparo faz com que a parede caia sobre mim.
Sobrevivo, a armadura é eficiente, meu coração bate acelerado.
É medo. A outra aeronave acaba de lançar uma arma de gás

Índice de contos Autor 72


O SOLDADO
Swylmar Ferreira

corrosivo contra mim. Algum tipo de acido. Se não tivesse trocado


os filtros hoje cedo já estaria morto, mesmo assim sinto o gás
dissolvendo a liga metálico-polimerizada da armadura.
Não tenho como fugir, caiu uma viga de concreto prendendo
minha perna, não tenho opção, alcanço o joystick e aproximo o
quadricóptero da segunda aeronave que continua disparando na
edificação. Vou morrer, penso. Chego perto o suficiente para um
disparo, o último. Meu brinquedo foi desintegrado. Espero a morte
por alguns segundos, mas ela não vem.
Uma segunda explosão, dessa vez maior, clareou a madrugada.
Não vi de onde veio. Acredito que outros soldados do meu pelotão
estão em ação. As aeronaves tentam ganhar altura, subindo
algumas dezenas de metros. Então, uma delas aderna e cai
abruptamente no solo. A outra continua a subir até se chocar
contra uma edificação e explodir. Trabalho feito.
Ouço alguém me chamando, é minha mulher. Ela diz para eu
sair rápido dali. Acordo, mas minha perna ainda está presa. Alcanço
um pedaço de ferro e o uso como alavanca, levanto apenas alguns
centímetros e consigo me libertar. Dezenas de aeronaves estão se
afastando da cidade e Ogros e Cães correm para seus transportes.
Já vi isso antes, significa que uma das Baleias (naves-mães) está
descendo e vai atacar com seus canhões de plasma, destruidores
de cidades, aniquiladores de civilizações. Meu grupo, ou o que
restou dele chamou sua atenção. Sento e me encosto na parede.
Cansado, muito cansado.
Lembro do comandante dar nome à operação: isca de peixe.
Eu e meus homens somos a isca para a baleia. Uma cena dantesca
acontece diante dos meus olhos, a nave mãe vem descendo,
descendo, aumentando de tamanho... gigantesca, mais de um
quilometro de diâmetro com certeza, e mais de uma centena
de metros de altura, irregular, fantástica, fazendo pequenos
disparos. Sei que nesse momento três carretas estão entrando na
cidade, transportando uma nova arma. Essa arma necessita de
muita energia, então colocou-se uma pequena usina hidrelétrica
nos arredores da cidade para funcionar e um transformador de
subestação alimentaria a arma.
A Baleia já está sobre a cidade, pairando centenas de metros
acima. Da última vez que esteve ali, tentamos de tudo para

Índice de contos Autor 73


O SOLDADO
Swylmar Ferreira

derrubá-la, mas ela nos arrasou, tinha escudo de energia. Agora


os caminhões estão posicionados, mas devem esperar até o último
segundo para disparar. A Baleia começa a energizar sua arma
principal e então abaixa os escudos. Os caminhões disparam
primeiro, no mesmo ponto, e uma explosão na lateral da nave faz
com que ela aderne. Impressionante ver as bolas de fogo explodindo
como bleves, uma vez, duas vezes, três. Imediatamente começa
a se afastar, mas é alcançada bem no centro por um segundo
disparo vindo de fora da cidade. Uma explosão central, de dentro
para fora, a Baleia aderna mais ainda e finalmente cai no solo, fora
da cidade. Vejo clarões que iluminam a madrugada escura e ouço
os trovões da morte.

* * *
O acampamento está em um lugar diferente, mais arborizado.
Finalmente, fiz uma refeição decente e não aquela porcaria de
pasta ou jujuba. Dormi em uma cama de verdade e até já tomei
um banho. Aguardo na barraca com oito dos meus homens, sem
bio-armaduras, foi o que restou do meu pelotão. O comandante
entra e nos parabeniza. É a primeira vez que o vejo sorrir. Atrás,
na parede, tem um mapa. Ele faz sinal para nos sentarmos e então
outros homens entram e se sentam. Ele nos olha e diz:
— Chega de moleza, tenho outra missão para vocês,
capitão.......

Índice de contos Autor 74


NOS LENÇÓIS
DO TEMPO
Thasyel Fall

Índice de contos Autor 75


NOS LENÇÓIS DO TEMPO
Thasyel Fall

NOS LENÇÓIS DO TEMPO


Thasyel Fall

E u sei que beber não resolve nada, mas não custava


tentar. Eu sei, eu parecia um maldito clichê, afogando
as mágoas na bebida. Mas acho que qualquer outra faria o mesmo
no meu lugar. Imagine a cena, branca de neve deitada sobre
suaves lençóis de seda, enquanto o príncipe encantado a beija
loucamente, uma cena linda de filmes e contos de fadas, se não
fosse por pequenos detalhes, a cama era minha — assim como os
lençóis de seda — e o príncipe também. Imaginem a minha cara
ao encontrar meu namorado sobre aquela vadia branca azeda.
Eu fiz sinal para o barman trazer outra rodada, e me ajeitei no
banco desconfortável, mais umas doses e talvez as coisas fizessem
sentido. É claro que eu não estou bebendo por ele — aquele idiota
não vale nem uma gota dessa bebida esquisita — mas sim por
tudo que ocorreu depois.
O que eu fiz quando os flagrei? O que toda garota de respeito
faria, parti para cima da vagaba, arracando-lhe alguns tufos de
cabelo. No entanto, mais tarde, eu percebi que tinha sido uma
péssima idéia. Quando os lençóis começaram a voar, foi que eu
percebi que o traira safado não havia arrumado apenas uma
amante, mas uma amante-bruxa. E ela riu na minha cara, e falou
umas coisas esquisitas, sobre o tempo ou algo do tipo, e então
tudo foi sugado ao meu redor como um vortex.
O barman veio servir a bebida, que eu agradeci mal
educadamente. Voltando a história, onde eu estava? Ah, sim, no
vortex que sugou tudo, sim, inclusive a mim. E, após o momento
psicodélico em que imagens distorcidas giravam ao meu redor,
eu mergulhei na profunda escuridão. E acordei, imagina a minha
sorte, 300 anos no futuro! Certo, parece loucura né? Eu que o
diga, mas os calendários não mentem. Eu sabia que havia algo

Índice de contos Autor 76


NOS LENÇÓIS DO TEMPO
Thasyel Fall

errado, principalmente quando eu vi as criaturas sobrenaturais —


vestidas como em uma droga de livro steampunk —, pessoas com
presas, voando, se transformando em lobos e correndo para não
perder o ônibus — que voava movido a vapor.
Eu terminei minha bebida e pedi outra. Relembrar os fatos
estava piorando as coisas, mas era como um filme se repetindo
em minha mente, eu não podia evitar. Eu juro que num primeiro
momento pensei que estava louca, depois que estava em outra
dimensão, e após vê-los falando o mesmo idioma que eu, criei
coragem, e fui perguntar em qual planeta estávamos e que ano
era, gerando olhares curiosos, e perguntas sobre minha sanidade
mental. Sim, cada vez ficava melhor.
Após saber que estava em 2311, 200 anos depois — segundo
me informaram — que os sobrenaturais haviam sido aceitos em
sociedade, eu tentei ser racional, porque surtar não adiantaria
nada. Eu pensei que já que uma bruxa havia me mandado para o
futuro, uma outra poderia me mandar para o passado. Parecia bem
simples. — Mais uma dose, por favor. Dupla. Eu disse novamente
ao barman, para continuar a história eu teria que beber mais.
Então, eu pedi informações sobre onde encontrar bruxas, e não foi
difícil achá-las. Mas as noticias não eram boas, parece que além
de banida, eu também fui amaldiçoada por aquela safada, uma
maldição que não me permitia ser movida de volta a meu tempo,
e, segundo as bruxas, apenas a bruxa original podia desfazer um
feitiço lançado.
Então, para finalizar, estou presa nesta época, sem casa, sem
dinheiro, sem o estúpido namorado, e, ainda por cima, percebi ao
entrar no bar que sou uma presa cobiçada. Vi o olhar dos vampiros
e lobisomens — eu acho que são lobisomens, eu os vi cheirar o ar
— em mim.
É, então eu tinha motivos para beber. E eu não sei se foi a
bebida me afetando, mas eu juro que vi um garçom se escondendo
embaixo de uma mesa. O que estava acontecendo? Eu não fazia
idéia. De repente houve um som horríve, como metal sendo torcido
ou sei lá, e todos começaram a correr, e gritar. Eu não me movi, e
virei para o barman ainda imparcial.
— O que está havendo? Minha voz era um fantasma alcoolizado.
— Demônio. Disse o barman e voltou aos seus afazeres. Eu olhei de

Índice de contos Autor 77


NOS LENÇÓIS DO TEMPO
Thasyel Fall

volta para a histeria em massa, e foi quando o vi. Alto, forte, pele
bronzeada, foi uma visão do paraíso vê-lo despedaçar e devorar
todas aquelas pessoas. É, eu tinha bebido além da conta.
E após fazer cartolas ensangüentadas voarem, e capas virarem
pedaços, o pedaço de mau caminho — sem dúvidas — caminhou
até o balcão e se sentou a meu lado. Eu juro. A morte nunca
havia me parecido tão bela. Seus olhos negros percorreram cada
centímetro de mim, e o que aconteceu a seguir não foi mais do
que o esperado.
Chegamos em seu apartamento — em forma de cúpula —
em minutos, e logo estávamos nos devorando sobre os lençóis
da cama Box dele. Ele era realmente um demônio. Mas era bom
demais para ser verdade, percebi isso quando Rapunzel apareceu.
Uma loira linda de morrer, com tranças enormes, que trajava
uma combinação de couro com metal envelhecido — que detesto
admitir — lhe caía muito bem.
Ela praticamente arrombou a porta, e voou em cima de mim. E
lá estava eu novamente em uma briga de mulheres, só que desta
vez a outra era eu. E alguns tufos de cabelos depois — sim, eu não
aprendi da primeira vez — eu percebi que tinha sido novamente
um engano. Eu já nem estranhei a sensação da realidade ao meu
redor sendo sugada, o que eu podia fazer? Essas vacas bruxas
estavam por toda parte.
Tudo ficou um breu novamente, e não acreditei quando abri
os olhos e me deparei com as máquinas, e o cenário devastado,
merda, eu havia sido mandada no tempo novamente. Para um
futuro que provavelmente fazia jus ao que James Cameron havia
imaginado, e o qual a versão robótica de Jhon Connor tentava
tanto deter. Eu levantei, e sacudi a poeira, bem, talvez não fosse
tão ruim, eu apenas tinha que conseguir três coisas no momento:
roupas, bebida, e talvez — eu vi quando um robô explodia um
prédio a frente — um abrigo nuclear.

Índice de contos Autor 78


ANJO VERSUS
DEMÔNIO
Lucas Fernando Maziero

Índice de contos Autor 79


ANJO VERSUS DEMÔNIO
Lucas Fernando Maziero

ANJOS VERSUS DEMÔNIOS


Lucas Fernando Maziero

E stava eu em minha morada celestial


mensageiro trouxe-me um recado:
— Senhor, o demônio deseja visitá-lo!
quando o

Esbocei um ligeiro sorriso e, por um momento, meditei se


aceitaria recebê-lo ou se o ignorava como muitas vezes o havia
feito.
— Traga-o aqui, aceitarei sua visita — disse eu ao mensageiro,
e ele partiu com essa resposta.
Com a permissão para adentrar as plagas etéreas, o demônio
veio célere à minha morada e logo estava diante de mim, simulado
sob a forma de uma alva pomba, demonstrando que vinha em paz
e em termos amistosos. Achei-o patético, pois eu podia entrever
sua horrenda catadura através desse simulacro. Ele então me
disse:
— Caro amigo, enfim me recebe! Há quanto tempo não nos
vemos. Olhe, tenho algo a propor-lhe, se me permite... — soltei
uma gargalhada de desdém, mas tão breve me contive, lhe
perguntei:
— O que um demônio ousaria propor-me?
— Apenas um jogo, um jogo bem divertido. — Respondeu-me
ele de um modo tão simplório que, aliado à figura de uma pomba,
quase me esqueci de que era o demônio que me falava. Porém
fiquei curioso, e o deixei continuar.
— Meu caro, sei que é um amante de jogos, ao menos
costumava sê-lo nos velhos tempos, quando o conheci. — Disse
ele.

Índice de contos Autor 80


ANJO VERSUS DEMÔNIO
Lucas Fernando Maziero

Era verdade. Jogos sempre foram minha paixão. Agora mais


interessado, retruquei ao demônio:
— Fale-me mais sobre este jogo — enquanto falava, levei-o até
a sala para acomodarmo-nos em poltronas.
— É um joguinho de guerra — continuou o demônio —, e não
vejo melhor lugar para combatermos do que em Eldrom, a terra
pacífica.
Eu conhecia bem aquela terra, estava sob minha jurisdição
espiritual e, como o demônio mencionou, era um lugar pacífico, a
população não conhecia a guerra.
— Não achas que devemos sacudi-la, nos divertirmos um
pouco? — insinuou o demônio, e eu comecei a irritar-me.
— Miserável — gritei irado, e ele assumiu a forma de um
inseto, como querendo demonstrar sua insignificância perante a
mim. — Ousa pensar que sou tolo? Que vantagem terei neste seu
joguinho?
— Todas as vantagens, meu caro amigo — volveu o demônio,
ainda sob a forma de inseto. — Se o anjo não quiser, retiro-me
já...
— Espere! — exclamei, retendo-o. — Que vantagens são essas?
— Vejo que o anjo se interessou mais — replicou o demônio. —
Para seu total proveito, e nenhum meu, salvo o do deleite de jogar,
sugiro que o anjo use as minhas armas, e eu, as suas. Assim não
está melhor?
Confesso que sou irascível, mas diante de tal proposta me
acalmei progressivamente, ao mesmo tempo em que ele voltava
a doce forma de uma pomba. As armas do demônio eram vastas e
muito poderosas, enquanto que as minhas se resumiam a pobres
pessoas. Fiquei desconfiado, e perguntei-lhe:
— Demônio, aonde quer chegar? Quer entregar-me a vitória
numa bandeja?
— Só quero me divertir. — Foi sua única resposta.
Embora eu seja um jogador nato, em meu íntimo ainda não
estava disposto a aceitar, mas antes de lhe dar qualquer resposta,
quis saber o que eu ganharia com este jogo e indaguei-lhe sobre

Índice de contos Autor 81


ANJO VERSUS DEMÔNIO
Lucas Fernando Maziero

isso. O demônio, percebendo minha hesitação, usou de muitas


palavras suaves e servis com o fito de convencer-me a aceitar,
dizendo-me que, como a vitória já estava assegurada a mim, como
prêmio ele me daria sua alma. Ele sabia negociar! Porém era a
minha vez de falar, e como era praxe nos jogos, de minha parte
faltava apresentar um prêmio, caso ele ganhasse. Ofereci-lhe
então minhas asas.
Fomos para a mesa de jogos, e o demônio, assumindo agora a
forma de um gato, denotando que iria se divertir como um felino
doméstico, pediu-me licença e ordenou a seu lacaio, que veio com
ele, que tocasse algo em meu piano como acompanhamento, e
nosso jogo começou.
A população de Eldrom, acostumada com a tranquilidade de
suas terras, estranhou e se alarmou com a súbita formação de
uma gigantesca nuvem, negra e movediça, surgida no horizonte.
Eram gafanhotos, inúmeros, milhares, enviados por mim para
destruir as plantações daquele povo. Em questão de pouco tempo,
os eldromenses, assim se chamavam, viram-se privados de suas
colheitas. A primeira jogada estava concluída, agora era a vez do
demônio jogar.
Tendo os eldromenses celeiros, a fome não lhes atormentou por
um determinado período, mas teriam que recomeçar os plantios, e
o demônio, para minha surpresa, os conduziu com maestria nesse
sentido. Em pouco tempo a população via florescer as primeiras
sementes. O jogo estava apenas no começo.
A minha segunda ação foi enviar-lhes severas moléstias,
abatendo dezenas de eldromenses. Meu adversário divertia-se
a valer, como se minhas ações em nada o abalasse. Então ele,
com seu jeito brejeiro, me indicou que entre a população havia
um sábio curandeiro, e com seus cuidados e remédios as pessoas
estavam se livrando de todas as moléstias. Enquanto se passavam
minutos para mim e o demônio, para os eldromenses passavam-se
semanas.
Nosso jogo seguia equilibrado, todas as minhas investidas
eram rebatidas e aniquiladas pelo meu adversário sob forma
felídea, usando de muita astúcia, devo dizer, tendo em vista, como
eu erroneamente supus, sua fraca munição. Assim seguíamos
empatados, e o jogo começava a desagradar-me. Decorridas

Índice de contos Autor 82


ANJO VERSUS DEMÔNIO
Lucas Fernando Maziero

outras tantas jogadas, fui percebendo que o povo de Eldrom


adquiria malícia e se fortificava a cada dano que eu lhes impunha,
algo que eu não havia considerado de início.
— Toque a balada dos Deuses! — Ordenei enérgico ao lacaio, e
ele igualmente enérgico dedilhava as teclas do piano. — Chegou a
hora da jogada final!
Meu belicoso exército estava pronto para a batalha. Seria o fim
dos eldromenses e, por conseguinte, a derrota do demônio. Sem
mais demora, ordenei marchassem os dragões, trolls e diabretes
contra Eldrom. Mas, para minha total estupefação, algo inusitado
acontecia entre os eldromenses: forjavam espadas, escudos e
armaduras completas! E treinavam, havia ali alguém que lhes
preparava para a guerra. Formaram-se cavaleiros, arqueiros e
toda a sorte de guerreiros dispostos a qualquer investida. Nunca
os imaginei capazes de tal progresso. O demônio os manipulava
com argúcia. Então, quando meu exército chegou às fronteiras de
Eldrom, encontrou os eldromenses já preparados e ansiosos para o
embate. Iniciou-se a jogada final.
Como primeira medida, expedi a vanguarda de dragões que,
com suas descargas de fogo, incendiaram as árvores e as casas
dos eldromenses. Porém seus hábeis arqueiros, com flechadas
precisas, abateram todos os meus dragões.
Avancei com minhas tropas de trolls e diabretes contra os
guerreiros eldromenses, tornando nosso jogo muito mais acirrado e
cruento. A princípio acreditei subjugar meus oponentes com minha
força colossal, pois impingi muitas perdas ao adversário. Mas seja
quaisfossem minhas estratégias, a todas o demônio repelia e se
recuperava espantosamente. O jogo se aproximava do fim.
Desferi um murro na mesa e meus dentes rangeram de
raiva. O demônio olhava-me zombeteiramente e, entusiasmado,
aumentando ainda mais o meu furor, gritou ao seu lacaio:
— A tocata final, por favor!
O demônio assumiu agora sua verdadeira e horrífera figura,
lambendo seus repugnantes beiços com prazer. Maldito! Minhas
tropas antes superiores sucumbiam perante o reduzido número
dos guerreiros eldromenses. Foi com grande pasmo que vi o povo
de Eldrom comemorar a vitória. O jogo terminou. Fui derrotado

Índice de contos Autor 83


ANJO VERSUS DEMÔNIO
Lucas Fernando Maziero

pela astúcia do demônio. Entre exaltadas gargalhadas de prazer e


escárnio, ele me disse:
— Meu tolo anjo, suas asas são minhas!
Tive de entregá-las a ele, muito a contragosto. Porém faz
parte do jogo. Desprovido de asas, não pude mais ficar em minha
morada celeste, e de lá despenquei. O lugar onde estou realmente
não importa. Muitos anos se passaram deste então. Nem sei se
ainda sou um anjo ou se sou um desesperado jogador em busca
de jogos, pois tudo o que eu mais ansiava era jogar novamente.
Ninguém me aceita mais como oponente.
Mas espere, aí vem um mensageiro em minha direção, parece
que o demônio quer me ver!

Índice de contos Autor 84


O BONECO DE
MADEIRA
Rangel Luiz

Índice de contos Autor 85


O BONECO DE MADEIRA
Rangel Luiz

O BONECO DE MADEIRA
Rangel Luiz

Carta de Igor.
Gênova, dezembro de 1808.
Caro senhor Gepeto,
Há dias que aguardo minha encomenda. Sei bem que o
trabalho de um artista pode ser longo, ainda mais aqueles que,
como o senhor, é minimalista e trabalha com perfeição os menores
detalhes. Contudo, o natalício de minha filha se aproxima e como
presente gostaria de dar a ela o boneco que lhe encomendei. Por
isso, peço que se puder me enviá-lo dentro de uma semana, o
que creio ser tempo mais do que razoável, ficarei grato. Quanto
ao pagamento, resolvi adiantá-lo e já enviar juntamente com essa
carta, pois sei que o senhor perdeu sua esposa recentemente e
que teve várias despesas com o funeral. Além disso, conheço sua
índole e sei que irá cumprir com o combinado.
Agradecido,
L. Igor

Carta de Gepeto.
Milão, dezembro de 1808.
Caro, senhor Igor,
Desculpe a demora em lhe dar alguma satisfação. O senhor me
conhece e sabe como sou cumpridor dos prazos que estabeleço
com meus clientes. Por isso, posso dizer ao senhor que o boneco

Índice de contos Autor 86


O BONECO DE MADEIRA
Rangel Luiz

que me encomendou já está pronto há semanas e se não o enviei


ainda, é por fortes motivos, os quais ainda não ousei relatar a
ninguém. Mas como o senhor é o dono do boneco e o fornecedor
da matéria prima, sinto-me na obrigação de lhe dar uma resposta.
Por isso, não peço que me dê crédito, eu mesmo não acreditaria
se me fosse relatado fato tão estranho através de informais
correspondências. Contudo, o relato que se segue, posso lhe
garantir, é a mais pura verdade.
Há oito semanas, quando recebi do senhor o pedido para que
fizesse um boneco de presente para seu filho, confesso que tive a
intenção de negar. Afinal, não havia completado nem o primeiro
mês de falecimento de minha esposa, que como o senhor sabe era
minha única paixão na vida. A bem da verdade, e isso revelo apenas
agora, era suspeita nossa que ela estivesse grávida, já que suas
regras, sempre pontuais nesses trinta anos de casados, estavam
atrasadas há mais de vinte dias. Parecia que finalmente Deus tinha
dado ouvido às nossas preces, pois há muito sonhávamos em
ter um filho. No entanto, mais por nossa relação antiga, do que
por real interesse, aceitei o trabalho. Como combinado, o senhor
me enviou o tronco de madeira conforme eu havia pedido e me
debrucei sobre o trabalho a fim de terminá-lo o mais rapidamente
possível.
Na realidade, no início, foi como uma válvula de escape, já
que, concentrado nessa tarefa, eu esquecia, por alguns minutos, o
luto que se agarrava a minha alma. Mas os dias foram se passando
e eu não conseguia terminar o trabalho. Aos poucos fui percebendo
que aquele boneco tinha algo de especial, pois, mesmo contra
minha vontade, minhas mãos insistiam em moldar nele as mesmas
feições que minha esposa e eu, imaginávamos que teria o nosso
filho. E foi assim que, sem nenhuma intenção consciente, o boneco
acabou tendo os olhos azuis e o sorriso encantador de minha
falecida esposa, os cabelos pretos e lisos como os meus em minha
juventude e o resto uma mistura de avós, tios e outros parentes,
que insistem em aparecer em nossos bebês. Apenas o nariz não
havia saído como o de nenhum parente, o órgão saíra pequeno e
achatado demais e, por isso mesmo, tive de refazê-lo maior e mais
afinado por várias vezes até que percebi que estava tão grande e
pontudo como de minha bisavó, Clotilde.
Acabado o boneco, eu sabia que deveria entregá-lo ao senhor.

Índice de contos Autor 87


O BONECO DE MADEIRA
Rangel Luiz

Mas tal gesto me foi impossível, já que naquele bloco de madeira


estava impressa a única fotografia do meu inexistente filho. Por
isso, deixei-o sobre a mesa da cozinha por um ou dois dias. No
entanto, aquele não me pareceu um lugar apropriado para deixar
uma criança ainda tão pequena e frágil. Sendo assim, decidi pegar
o berço que foi de minha esposa e restaurá-lo. Foi nele, que deixei
o boneco por algumas semanas e ali ele teria ficado por alguns
meses ou talvez anos não fosse a visita inesperada de uma velha
senhora, que se apresentou como sendo a Fada Azul.
No início, eu quis rir do nome, não o fiz por respeito à senhora
que ali se apresentava. Ela revelou conhecer todo meu drama, a
morte de minha esposa, sua suposta gravidez e até a existência
do boneco e o berço, no qual eu o instalara. Teria eu caído no
chão, se já estivesse sentado, ao ouvir o relato detalhado de
minha vida feito pela mulher. Eu não havia falado da gravidez de
minha esposa a ninguém e tampouco comentado sobre o boneco
ou sua localização, como aquela velha senhora poderia saber de
tudo aquilo?
Mas em seguida, um sopro de razão me invadiu a cabeça e
imaginado tratar-se de alguma velha bisbilhoteira, que talvez
estivesse vigiando meus passos de longe, pus-me a expulsá-
la aos gritos. Mas a velha pouco ou nada se incomodou, apenas
sinalizou com o indicador nos lábios que eu me calasse, o que,
mesmo a contragosto acabei obedecendo. “Ouça!” – sussurrou ela.
“A criança chora no berço. Vá rápido, seu filho despertou!”.
De fato, um choro de criança invadia a sala e certamente vinha
do meu quarto. Corri para lá, a fim de ver o que era e qual não foi
meu espanto, ao ver de pé, tal qual um menino de quatro ou cinco
anos, meu boneco de madeira. Peguei-o no colo, cuidadosamente,
acariciei-o por alguns instantes e o choro se foi. Quando estiquei
meus braços para poder contemplar novamente o meu filho,
pude ouvir sair dele, ainda que com o trocar de letras comum às
crianças, um sonoro “babai” – era eu, o “papai” da criança mais
especial do mundo.
Quando retornei a sala, a senhora não estava mais lá. Havia
deixado apenas um bilhete, lá explicava que há muito observava
as trevas que se abatiam sobre mim. Explicava também, que havia
se compadecido com minha dor e que por isso, pôs no boneco a

Índice de contos Autor 88


O BONECO DE MADEIRA
Rangel Luiz

alma do bebê, que minha esposa aguardava. Disse também, para


eu tomar cuidado com um tal Grilo Falante, que vai tentar roubar
meu filho de mim.
Senhor Igor, sei que irá pensar que não suportando a dor da
perda da minha esposa acabei por sucumbir à loucura. Mas o que
digo é o que aconteceu. Oxalá, eu pudesse ir vê-lo pessoalmente
para mostrar-lhe meu filho e provar tudo o que escrevi. Mas por
hora, não posso, ele acabou pegando um resfriado e creio que
viajar nesse tempo de inverno pode piorar ainda mais a frágil
saúde dele.
Portanto, envio de volta ao senhor o dinheiro que me adiantou
e junto algum a mais, já que a matéria prima também foi fornecida
pelo senhor. Espero ainda que encontre algum presente a tempo
para poder dar no aniversário de sua filha, pois agora que sou
pai também, sei que tudo o que mais queremos é a felicidade
dessas criaturinhas que tanto amamos. Sem mais delongas,
peço desculpas e me despeço desejando saúde ao senhor e a sua
família.
E. Gepeto.
***
Caro leitor, antes de continuar a narrar os fatos que se
sucederam a essa troca de cartas, devo revelar-lhes a forma como
elas chegaram às minhas mãos. Único parente vivo do senhor
Ernesto Gepeto, fui procurado por um ajudante do senhor Ludovico
Igor, o qual me entregou as cartas junto com um caixote. O enredo
até elas chegarem a minhas mãos é o que relato abaixo.
Após enviar uma terceira carta ao senhor Gepeto, a qual não
tive acesso, e não obter nenhum tipo de resposta, o senhor Igor
decidiu ir pessoalmente procurá-lo. Não que tivesse acreditado em
qualquer detalhe místico da carta que ele havia recebido, mas,
por temer a sanidade mental do velho marceneiro, pensou que
uma visita amigável poderia esclarecer de alguma forma o que se
passava.
Foi assim, que, na manhã do dia de Reis, o mercador Igor partiu
com um ajudante rumo à casa de meu primo. A viagem durou um
dia inteiro a cavalo e, como chegaram de noite os dois viajantes
resolveram dormir em uma pousada a poucos quilômetros do sítio

Índice de contos Autor 89


O BONECO DE MADEIRA
Rangel Luiz

de Gepeto.
Mas tão logo amanheceu, os dois partiram rumo ao sítio do
velho, para esclarecer o que lá se passava. Quando chegaram
próximo a casa, perceberam o descuido em que o local se
encontrara. O mato crescia ao redor, algumas partes do telhado
haviam cedido e os poucos animais que meu primo possuía
estavam abandonados.
Aproximando-se mais um pouco, o senhor Igor bateu palmas
para verificar se havia alguém em casa, mas ninguém respondeu.
Bateram à porta, pois ainda era cedo e podia ser que alguém
estivesse dormindo, mas nenhum som saiu lá de dentro. Montado
em seus cavalos, os dois viajantes rodearam a casa, mas nada
perceberam.
Estavam já se preparando para voltarem, quando uma sombra
foi avistada pelo acompanhante do mercador na janela. Mas ao
fixar os olhos, o vulto havia desaparecido. “Talvez seja apenas um
reflexo” – pensou consigo. Mas ao deitar os olhos novamente na
janela pôde ver, mesmo que por alguns instantes, o semblante
serelepe de uma criança. Alertou, então, ao senhor Igor que,
mesmo descrente, resolveu verificar.
O mercador aproximou-se da janela e fixou os olhos pelo vidro
no qual não via mais do que o reflexo do sol. Mais perto, pôde
observar o interior da casa sem nenhum sinal de vida, alguns
reflexos causados pelos raios solares ainda o atrapalhavam de
contemplar todos os cantos da casa, por isso colou o rosto junto ao
vidro e fez uma proteção colocando as mãos junto às laterais dos
olhos. Ainda assim, a casa parecia vazia. Já estava prestes a se
afastar quando, esbugalhados olhos azuis surgiram quase do nada
de frente ao seu rosto. O senhor Igor, apesar de toda a coragem
comum aos homens de Milão, saltou para trás e deu um pequeno
grito, tamanho susto levou.
Já recuperado, percebeu tratar de uma criança, que novamente
havia se escondido. Dirigiu-se até a porta e tentou comunicar-se
com o menino:
— Ei, garoto, posso falar com o senhor Gepeto? – o menino
ainda tinha o rosto fixo na janela, mas nada respondia.

Índice de contos Autor 90


O BONECO DE MADEIRA
Rangel Luiz

— Se você não abrir ou não falar comigo, eu vou ter que


arrombar a porta.
Diante da ameaça o garoto cedeu. De sua janela gritou:
— Meu pai não está.
— Quem é seu pai? – perguntou receoso da resposta o senhor
Igor.
— Gepeto é meu pai. Ele disse para eu não falar com estranhos.
— Mas eu sou um amigo dele. Vamos abra a porta! – insistiu o
mercador.
O diálogo teria se prolongado por alguns instantes não fosse
o ajudante perceber que as respostas dadas pelo garoto eram
sussurradas antes por uma voz masculina. Certamente, era o
senhor Gepeto. Alertado do fato, foi a ele que o senhor Igor passou
a se dirigir. Insistiu que ele abrisse a porta por cerca de cinco
minutos, até que a impaciência chegou e ele decidiu arrombá-la.
A velha porta, consumida por cupins pouca resistência ofereceu.
Chegando na sala, os dois viajantes viram de pé encostados na
parede o senhor Gepeto e a criança de pé com o rosto escondido
entre as pernas do pai e com um choro leve, como que assustado.
Com um instinto paterno o velho marceneiro arrancou um canivete
do bolso, certamente alguma ferramenta usada no próprio trabalho
e ameaçou os dois invasores:
— Como ousam invadir minha casa e assustar a mim e meu
filho. Fora daqui, os dois.
De fato só agora o senhor Igor havia percebido que pudesse
ter assustado a criança. Fez questão de desculpar–se, antes de
prosseguir:
— Senhor Gepeto, o senhor não tem filhos, de quem é essa
criança?
— O que ocorreu eu já lhe relatei na última carta que lhe enviei.
Se não acreditou, nada posso fazer.
A sala escura fez com que o mercador e seu ajudante
demorassem a perceber o que ali estava ocorrendo. Apenas
mais próximos e agora já um tanto mais calmos, entenderam o
cenário grotesco que se apresentava diante dos dois. Na verdade,

Índice de contos Autor 91


O BONECO DE MADEIRA
Rangel Luiz

apenas um quadro de Brughel ou Velásquez poderiam ser tão


horripilantes. De fato, muito do que meu primo narrara em sua
carta era realidade e, agora, visível aos olhos do incrédulo Igor.
Não era uma criança de carne e osso que estava entre as
pernas do marceneiro. Era, tão simplesmente, na medida em que
se pode chamar de simples, algo tão engenhoso, um legítimo e
perfeito boneco de madeira. Mais de perto era possível ainda notar
que, tal como a boneca Olympia do terrível conto de Hoffmann, a
criança não chorava e nem tinha qualquer movimento feito por si
mesma. Ela era toda controlada por habilidosos mecanismos de
fios comandados pelo senhor Gepeto. Também a sua voz e seu
choro não eram mais do que meros truques de ventriloquismo,
muito bem elaborados pelo marceneiro.
Contudo, a forma agressiva do senhor Gepeto, denunciava
seu estado mental. Por algum, motivo ele acreditava que
realmente aquele boneco era vivo e ignorava ser ele próprio a
alma do autômato. O senhor Igor ainda tentou convencê-lo de
sua debilidade mental, mas foi tudo em vão. O velho marceneiro
continuou em seus devaneios, com o boneco entre as pernas e,
imitando com perfeição a voz de uma criança, gritava:
— O Grilo, babai, o grilo. Não deixe ele me levar.
Percebendo que nada poderia fazer naquele instante, o senhor
Igor e seu ajudante foram embora. Procuraram o sanatório
municipal e voltaram para Milão. Lá dias depois ficaram sabendo
da internação forçada de meu primo e me procuraram para relatar
o ocorrido, já que eu era o único parente a quem podiam recorrer.
Dois dias depois fui até o hospital, onde me deparei com
meu primo segurando o boneco no colo e contando-lhe algumas
histórias. Ele demorou alguns segundos para me reconhecer, mas
tão logo o fez, correu e me abraçou fortemente. Apresentou-me
o boneco como se fosse seu filho legítimo, o que, por advertência
médica, não o contrariei. Conversamos por cerca de uma hora,
até que quando me despedi ele pediu que eu cuidasse de seu
filho, pois era seu único parente e ele não queria que a criança
permanecesse ali. Antes de partir, ele me deu algumas orientações
de como alimentá-lo e da importância de fazê-lo dormir cedo. Em
seguida, com os olhos cheios de lágrimas beijou o boneco como se
beijasse realmente seu filho e entregou-o a mim.

Índice de contos Autor 92


O BONECO DE MADEIRA
Rangel Luiz

Saí de lá comovido. Mas já sabendo de toda a história e


ciente que ainda não tinha chegado o aniversário da filha de Igor,
decidi entregar a ele o boneco. Ele aceitou. Ofereceu-me uma
recompensa, a qual recusei e parti.
Três semanas depois, um homem bateu em minha porta com
um caixote na mão e as duas cartas que publiquei antes. Era o
tal ajudante do senhor Igor. Ele me disse que lá dentro estava o
boneco e que se eu quisesse poderia destruí-lo já que o mercador
e toda a sua família estavam convencidos que o objeto estava
endemoniado. Questionei a ele o motivo daquela crença e ele,
mesmo a contragosto, me revelou o que se segue:
A filha do mercador, de fato acabou recebendo o boneco de
presente. Foi uma paixão a primeira vista. A garota se encantou
com o brinquedo, não desgrudava dele hora nenhuma. Até que
em uma noite, já deitados estavam o senhor Igor e sua esposa,
ouviram do quarto da filha um choro intenso. Imaginando que ela
tivesse se machucado, o casal correu até o local, onde ela estava.
Lá, em um canto iluminado por uma vela, a garota conversava
com o boneco como se ele fosse vivo. A mãe foi a primeira a
perguntar:
— Minha filha, por que você está chorando?
— Não sou eu mamãe, é o Pinóquio.
De fato o casal sabia que o choro da filha era diferente.
— Quem? – perguntou a mãe.
— Pinóquio, o boneco.
— Pensei que ele se chamasse Fred, não foi esse o nome que
você lhe deu? – indagou o mercador.
— Foi sim – respondeu a garota – mas ele me disse que o pai
dele, o senhor Gepeto, o chama de Pinóquio. E que o senhor é um
grilo falante chato. Pode dizer a ele que está enganado?
Ao ouvir as palavras da filha, um enorme pavor tomou conta da
alma do senhor Igor. Como a filha poderia saber o nome do senhor
Gepeto ou o apelido de grilo que ele lhe dera? Toda aquela história
era sinistra demais, mesmo para um homem racional como ele.
Por isso, no dia seguinte mandou ao ajudante que me entregasse

Índice de contos Autor 93


O BONECO DE MADEIRA
Rangel Luiz

o boneco e as cartas trocadas entre eles.


Também eu teria me chocado com a história, não fosse perceber
alguns detalhes que passaram despercebidos pelo mercador
milanês. As duas cartas que me chegaram, tinham pequenas
manchas de polegares minúsculos, certamente os da filha de seu
Igor, que lera as cartas e conhecia boa parte da história. Foi assim,
que a menina ficou sabendo o nome do senhor Gepeto. Quanto
aos diálogos tratados pela menina com o boneco, são muito
comuns com qualquer criança, ainda mais alimentados por essas
cartas, certamente lidas horas antes. Sobre a ciência da menina
do apelido grilo ligado ao pai, somente o mercador não percebeu
que a alcunha dada a ele pelo meu primo é apenas um anagrama
infantil, e por isso mesmo percebido pela criança, com as iniciais
que ele assina suas cartas L. IGOR, misturando as letras temos
GRILO. Contudo, vocês me perguntarão sobre o choro de criança
ouvido pelo mercador e sua esposa. Sobre isso, devo revelar–lhes
que eu mesmo já acordei com soluços infantis vindos do canto
do quarto no qual instalei o boneco e que não foram nem uma,
nem duas vezes que vizinhos vieram me perguntar sobre a criança
tristonha que avistaram vertendo lágrimas pela janela de noite na
sala de cima. Se explicação há para isso, peço que ma dêem, pois
mesmo eu estou crente de que mistérios há que a razão não pode
abarcar.

Índice de contos Autor 94


CINDERELA
UNDERGROUND
Emerson Pimenta

Índice de contos Autor 95


CINDERELA UNDERGROUND
Emerson Pimenta

CINDERELA UNDERGROUND
Emerson Pimenta

V inte e cinco anos, um emprego que eu detesto, uma


família que sequer liga se estou vivo, e uma ex-namorada
que sambou em cima do meu coração. Esse sou eu: um sujeito
cuja frustração deixou de ser uma condição, e agora é um estado
de espírito.
Acordei suado naquela manhã de sexta-feira. Como de
costume, minha cidade parecia a sauna particular do diabo. Trinta
e cinco graus atingidos com enorme facilidade. Encarei o trânsito
infernal com o rádio sintonizado em uma estação de música antiga.
Amenizou minha impaciência e apreensão. Cheguei ao escritório
em cima da hora e encontrei meu único amigo carregando uma
pilha de documentos.
— Bom dia! – Falou ele com sua animação costumeira.
— Dia. – Respondi tentando não parecer tão amargo.
— Você está bem? Tá com uma cara estranha.
— Calor. – Menti, apertando o botão do elevador.
— Calor é psicológico, cara.
Sorri torto. Entramos no elevador com mais dois outros
funcionários que sequer levantaram os olhos para nós. Permanecia
aquele silêncio desconfortável quando meu amigo soltou uma
consideração que me fez querer que o chão se abrisse e eu caísse
direto no fosso abaixo de nossos pés.
— Acho que você precisa de sexo!– Disse ele, enchendo o peito
de certeza.
Constrangido, não teci nenhum comentário. Os outros dois
ocupantes do elevador se entreolharam e trocaram um risinho de
chacota. Senti minha face formigar quando ele novamente abriu a

Índice de contos Autor 96


CINDERELA UNDERGROUND
Emerson Pimenta

boca.
— Conheço um lugar nível A. – Falou com uma piscadela.
Respirei aliviado quando chegamos ao nosso andar e saímos,
deixando os outros dois ainda lá dentro. – Depois deixo o cartão
na sua mesa, ok?
— Idiota. – O fuzilei com o olhar, mas depois sorri em
agradecimento. André, o pervertido de plantão, era um dos poucos
seres na terra que se preocupavam com meu bem estar, Talvez por
solidariedade, ou por gostar realmente de mim. O motivo eu não
sei e, por covardia, nunca procurei saber.
Meu dia correu sem grandes acontecimentos. Trabalho,
trabalho, e uma pequena pausa para o almoço. Quando voltei à
minha mesa, um cartãozinho em tom púrpuro jazia recostado sobre
as teclas do meu computador. Rezei para que ninguém o tivesse
visto. Peguei o cartão entre os dedos e ri involuntariamente. Era
de uma boate de stripe. Nele constavam o endereço e o telefone.
Atrás uma consideração feita pelo meu amigo com sua caligrafia
desregular: Não diga que me conhece por lá. Sorri outra vez e
coloquei o cartão no bolso da camisa. Voltei insatisfeito para meus
documentos.
Quando o sol se pôs e o relógio estacionou marcando às seis
da tarde, o escritório já estava quase todo vazio. Saí, e por falta
de necessidade não me despedi de ninguém. Fiz todo o caminho
de volta ouvindo a mesma rádio. Entrei na garagem do prédio,
subindo as escadas como um zumbi. Abri a porta do apartamento
e joguei a pasta sobre o sofá. Meus passos exaustos pela minha
rotina devoluta me guiaram até meu quarto onde retirei a camisa.
Do bolso frontal um cartãozinho voou quase pairando no ar,
pousando em seguida em minha cama. Segurei-o com a ponta dos
dedos ostentando um sorriso idiota. Talvez eu fosse me arrepender
daquilo, mas aquela noite poderia ser diferente para mim.

* * * **

Com um ar levemente constrangido, entrei no clube. Era

Índice de contos Autor 97


CINDERELA UNDERGROUND
Emerson Pimenta

um lugar escondido entre os prédios de um bairro escuro e mal


habitado.
— Nível A. – Bufei, rindo comigo mesmo.
Uma mulher, com um belo cabelo armado, veio em minha
direção ao me ver entrar e, com uma delicadeza quase incômoda,
retirou meu casaco e o pendurou no cabideiro. Parecia já ter
passado dos trinta, e suas roupas eram bastante comportadas
para aquele recinto, mas chocariam facilmente uma trupe de
evangélicos. Deduzi que era uma espécie de organizadora.
— Parece perdido, lindo. É sua primeira vez? – Perguntou ela
me tomando pelo braço. Seu toque era gelado. – Sim. – Respondi
com a certeza de que era impossível mentir para ela. – Fique
tranqüilo. – Ela me acalmou enquanto me conduzia pela boate.
Corri meus olhos e vi faces perdidas em silhuetas dançantes,
tão atraentes que até o próprio Deus se distrairia. Vi jovens com
mais medo do que eu, e vi homens buscando alento num lugar
errado. – Aqui. – Disse ela parando em um corredor de luz de
néon, especificamente de frente à uma porta negra. — Você me
parece um rapaz discreto. – Fez a varredura do meu semblante
demonstrando experiência. – E é demasiado belo para estar
procurando alento em um lugar como esse. Uma dança particular
será suficiente para lhe acalmar a alma.
— Obrigado. — Agradeci como se estivesse hipnotizado.
Abri a porta com um rangido. O recinto se encontrava em terna
penumbra. Apalpei a parede até encontrar um acendedor. A luz
era fraca e de cor ambígua, mas pude reparar em seus detalhes
e objetos. No meio da sala uma barra vertical se estendia sobre
um tablado arredondado. Na sua frente uma confortável poltrona
reclinável jazia plácida. Dirigi-me até ela e me sentei nervoso.
Fiquei encarando a porta por um tempo, depois busquei o celular
no fundo bolso. O relógio marcava onze horas. Enquanto isso,
minha perna parecia querer furar o chão. Mesmo o lugar sendo
climatizado, senti calor. Estava desabotoando a camisa quando as
luzes do lugar se abaixaram e uma batida de música eletrônica
rescindiu o silêncio. Segurei-me na cadeira e a vi entrar pela porta.
Meu Deus, aquela mulher era a prova de que o senhor existe, e
que tem um tremendo de um bom gosto.

Índice de contos Autor 98


CINDERELA UNDERGROUND
Emerson Pimenta

Ela caminhou em direção ao tablado à minha frente parecendo


deslizar. Um aroma sereno e floral acompanhava sua sombra. A
mulher subiu no tablado e pude melhor fitá-la. Realmente nível
A, pensei, mas não disse nada. Nem conseguiria. Estava perdido
em suas curvas. Tão bem delineadas por um corpete azul
claríssimo e com um laço rente ao busto volumoso. Preso por fitas
simetricamente cruzadas cobria totalmente seu tórax acabando
em uma pequena saia fofocada quando as pernas começavam.
Essas eram torneadas e exibiam uma cor perolada como toda a
pele da mulher. Desci meus olhos até seus pés onde reparei que
ela calçava sapatos de vidro. Ou melhor, de cristal. Intrigado,
voltei meus olhos para cima no intuito de focalizar seu rosto. No
pescoço, uma gargantilha preta o circulava. A boca semi-aberta
parecia ter sido desenhada pelas mãos de um exímio escultor.
Seu rosto afilado estava quase que completamente coberto pela
cabeleira loira acastanhada. Onde somente uma tiara prateada
estava fincada. Antes que eu pudesse ver seus olhos, o ritmo da
música aumentou e a mulher segurou firmemente na haste vertical
que estava ao seu lado.
Ela começou. Segurou na barra com gana, entrelaçando a
perna nela. À medida que o ritmo pedia a dançarina o circulava.
Deu em média três voltas e eu já estava extasiado, parou
novamente e jogou o rosto de lado. Os cabelos caíram novamente
em camadas, me impedindo de ver seus olhos. A música voltou
com sua batida firme e ela novamente se enroscou na barra de
metal e a escalou até ficar com a cabeça rente ao teto. A esse
ponto meu coração já bombeava fogo ao invés de sangue. Com
um movimento sincronizado ela soltou as mãos e caiu. Com as
pernas fortemente presas manteve-se agarrada a haste. Segurou
as mãos no metal frio, soltou as pernas, dando uma cambalhota
sobre o próprio eixo e caindo agachada sobre os saltos de cristal. A
mulher deu uma volta e parou de frente a mim. Inexplicavelmente,
não pude ver seus olhos mais uma vez. Ela se jogou para cima,
mas antes que caísse em meu colo segurou na barra. Ficamos a
centímetros um do outro. Senti seu hálito quente e o cheiro dos
seus cabelos. Respirei somente por ser algo natural. Ela voltou e
encostou as costas no ferro. Levantou uma das pernas até o meu
rosto com um movimento calmo. Com a perna ainda alteada fez
sinal para que eu descalçasse o sapato de cristal. O fiz com uma
presteza que até a mim era estranha. Segurei-o enquanto o ritmo

Índice de contos Autor 99


CINDERELA UNDERGROUND
Emerson Pimenta

da musica voltava a pulsar e ela novamente se entrelaçava na


haste de pole dance. A cada pirueta, a cada volta, a cada toque que
eu imaginava, percebia que não era ela quem dançava no ritmo
da música, mas sim a música que se esforçava para acompanhar
seus movimentos. Meu cérebro parecia ter sido transportado para
uma outra dimensão, pois suas únicas funções eram olhá-la e
tentar encontrar seus olhos. Quando percebi que não conseguiria
encontrá-los, fechei os meus para arfar, mas me arrependi. Pois
quando voltei a abri-los ela havia desaparecido instantaneamente!
Como se estivesse evaporado a mulher perfeita havia sumido! A
batida da música ainda continuava, mas agora ela me incomodava.
Mirei o relógio no celular e ele marcava precisamente a meia noite.
Meu coração demorou a voltar para o ritmo clássico enquanto
controlei a iluminação, desligando a música por uma mesa de
controle ao lado da poltrona. Intrigado, pensei nas possibilidades
daquilo ter acontecido. Havia fechado meus olhos por segundos,
além de não ter ouvi sequer o barulho da porta se ranger. Pensei
até em duvidar se aquela visão não teria sido coisa da minha
cabeça, mas eu não podia, pois segurava em minhas mãos seu
sapato translúcido.
Sai do recinto carregando o sapato nas mãos, varias dúvidas
na cabeça, e um peso no coração. Procurei a organizadora que
havia me atendido e quando a abordei, ela exibiu seu sorriso
automático.
— Não foi do seu agrado? – Perguntou notando algo diferente
do que estava acostumada a encontrar nos homens que saiam
daquelas salas.
— Até demais. – Disse cansado. – Só queria saber o nome
dela. – E ver seus olhos, pensei.
A mulher me olhou com um pouco de frustração: mais um
apaixonado, deve ter pensado. Mas ela deve ter se solidarizado
com minha figura, pois me chamou até um canto no balcão.
— Que sapato é esse? – Perguntou-me, enquanto fazia um
aceno para o garçom.
— Ela estava usando um par desses.
Encarou-me desconfiada.

Índice de contos Autor 100


CINDERELA UNDERGROUND
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— Lindo, se uma dançarina consegue fazer uma apresentação


usando um sapato como esse, eu também quero conhecê-la. —
Falou a mulher parecendo me chacotear.
— Eu juro.
— Ok. — Acalmou-me recebendo as bebidas do garçom. —
Diga-me como ela é para assim facilitar nossa busca.
— Loira, pele clara, altura média, usava uma roupa azul. Era
muito linda.
— Dificulta um pouco, mas me acompanhe.
Estávamos diante de todas as mulheres loiras da boate.
Realmente todas muito belas, mas nenhum definitivamente era
ela.
— Meninas, alguma de vocês atendeu a esse rapaz hoje? —
Perguntou a organizadora.
— Quem me dera ter essa sorte. — Soltou uma delas com a
voz promíscua.
— Alguma de vocês conhece esse sapato? — Perguntou
mostrando a peça de cristal.
— Não, mas quero conhecer. — Falou uma se aproximando e o
pegando.
Senti uma ponta de ciúmes e o tomei de sua mão.
Depois daquela noite minha vida tomou outro rumo. Um
rumo que não me orgulho nem um pouco. Passei a frequentar
exageradamente todos os lugares onde achava que poderia
encontrá-la. Tornei-me conhecido na noite, e desperdicei meu
tempo numa ilusão de que em qualquer boate, bar, ou qualquer
esquina esbarraria com a dançarina e lhe calçaria o sapato que
nunca mais saiu da cabeceira da minha cama. Criei também uma
forte amizade com a melhor amiga dos frustrados, a bebida.
Obsessão? Era o que tudo indicava. Até o próprio André se tornou
mais sensato que eu e tentou diversas vezes me ajudar. O tempo
foi passando, continuei no mesmo emprego ridículo, mesmo
apartamento apertado, e mesmo coração vago. Hoje, tenho uma
idade que não desejaria ter. Nunca encontrei vestígio algum dela,
da minha Cinderela. E nunca encontrei também um rumo para

Índice de contos Autor 101


CINDERELA UNDERGROUND
Emerson Pimenta

minha vida medíocre.

******
Ano de 2112
Um bordel é sempre um bordel em qualquer lugar do universo,
ou do tempo. Um lugar onde frustração e prazer se apaixonam
ferozmente. Aquele não era diferente. Nas mesas mal empalhadas
no salão havia homens cujo espectro escancarava mediocridade
e pobreza de espírito. Também alguns jovens que não haviam
aprendido o sentido da vida, ou talvez nunca aprenderaim. No
balcão, um cafetão que ganhava a vida em cima da desgraça alheia,
e no palco elas, deslumbrantes e sincronizadas, dançavam com
fervor. Das dez dançarinas que se exibiam no palco iluminado ela
se destacava facilmente. Destacava-se não por ser a encarnação
da beleza, mas por ser espirituosa. Os cabelos loiros se moviam
a cada passo, seu corpo era quem coordenava a música. Todas as
moças usavam vestidos rodados e que a cada três passos eram
levantados com fervor. O dela conseguia ser o mais belo. Faria
inveja em qualquer princesa do universo.
A música parou e os lobos que as assistiam se levantaram
para aplaudir. Alguns jogavam notas e mais notas de dinheiro, e
outros davam o melhor de si nos aplausos e gritos. Eu continuei
sentado, pois sabia que ela já havia me visto ali naquela mesa.
Quando o show acabou, ela desceu pela frente do palco mesmo.
Se equilibrando no enorme salto agulha transparente, a mulher
cortou o salão em minha direção desviando-se dos fãs fervorosos.
Ao chegar, puxou uma cadeira, sentando-se ao meu lado. Retirou
a franja do olho, revelando as duas pedras de anis que tinha como
retina. Tão brandas, tão firmes.
— Realmente você é tudo que dizem. — a congratulei, virando
meu scoth e lhe passando uma maleta por cima da mesa. Ela anuiu
com um sorriso riscado e pegou a maleta sem conferir. Levantou-
se da mesa e me deixou lá sozinho feliz com meu projeto.
Deixei o dinheiro da conta em cima da mesa e caminhei em
direção ao estacionamento. Tinha sido a melhor idéia do mundo a

Índice de contos Autor 102


CINDERELA UNDERGROUND
Emerson Pimenta

minha. Sou um dos magnatas das comunicações do novo mundo.


E naquele dia dizimei o meu maior concorrente. Meu plano foi
simples, arriscado, mas simples. Eu simplesmente pesquisei
toda a vida do criador da Comunicc, empresa de serviços de
comunicação, minha maior concorrente, e notei que seu pai tinha
sido um homem muito frustrado em toda a sua vida. Não tinha um
apoio da família e nem muitos amigos. Apenas trabalhava no setor
de recursos humanos de uma empresa de telefonia e que um dia,
por uma sorte do destino havia conhecido uma jovem dançarina de
cabaré e se apaixonado por ela. O sujeito retirou a mulher dessa
vida, e a partir daí passou a ter uma rotina estabilizada e segura,
formando uma família invejável. E como tudo o que os filhos são,
é pura obra dos seus pais, bastaria que eu acabasse com o genitor
para que o filho nunca tivesse a idéia de criar a Comunicc, ou se
quer viesse a existir.
Para que isso acontecesse procurei uma especialista nisso.
Foi indicada a mim por um amigo empresário da alta cúpula da
sociedade, que já havia feito o mesmo procedimento e obtivera
sucesso. O preço é um pouco salgado. Mas ela conseguiria arrancar
aquela quantia de qualquer homem com apenas um sorriso.
Ninguém sabia como ela fazia. O que se sabia era que havia
herdado um apetrecho da madrinha e que com ele conseguia fazer
coisas mirabolantes, entre elas, cortar o contínuo tempo e espaço.
O resto era por conta da sua facilidade em controlar qualquer ser
que quisesse, apenas com o balançar dos seus quadris feitos sob
medida.
Saí do estabelecimento e uma garoa gelada molhava todo o
pátio onde os carrões aguardavam seus donos voltarem. O letreiro
vermelho piscava sob minha cabeça. Caminhando até meu carro,
vi sua silhueta se mover logo à frente. A dançarina cruzava o
estacionamento arrastando o vestido azul pelo chão molhado com
pressa. Abriu a porta do porsche alaranjado de tom abóbora e
sumiu dentro dele. À medida que o seu motor rugia o badalar do
sino de alguma catedral naquela cidade marcava a meia noite.

Índice de contos Autor 103


CUIDADO COM
A CUCA, QUE A
CUCA TE PEGA
Gabriela Chaves Marra

Índice de contos Autor 104


CUIDADO COM A CUCA, QUE A CUCA TE PEGA
Gabriela Chaves Marra

CUIDADO COM A CUCA,


QUE A CUCA TE PEGA
Gabriela Chaves Marra

o s antigos nômades pré-históricos chegaram ao continente,


que no futuro ganhou o nome de América. Formaram
comunidades por toda a costa.
Com o passar do tempo fundaram civilizações e uma das
famílias se fixou numa terra distante ainda não povoada, hoje
chamada de Acre, na região norte do Brasil. Lá tiveram onze filhos,
que cresceram e se casaram. Outros onze filhos nasceram, e
destes onze, mais onze vieram, até que ninguém mais sabia quem
era filho de quem, pois nasciam filhos que eram primos netos de
suas próprias mães.
Das futuras gerações nasceram crianças diferentes, alguns
coloridos, e depois com quatros braços e quatro pernas, crianças
com asas e outras anãs. Nasceu um menino verde de cabelos
vermelhos com pés para trás e um pretinho de uma perna só.
Nasceram também meninas com rabo de peixe. Algumas mães
morriam por parir filhos gigantes, outras morriam porque eram
comidas por dentro por seus filhinhos canibais. Os pequenos
diferentes foram rejeitados por seus pais, alguns deles, com
formas aquáticas, foram jogados no Rio Azul e se espalharam pelo
mundo, outros fugiram para o norte se embrenhando pela Floresta
Amazônica.
Entre essas crianças diferentes havia uma muito malvada,
chamada Cuca, ela tinha cabeça de jacaré, grandes garras de gavião
e dentes afiados, os cabelos desgrenhados e olhos desafiadores.
Ela se alimentava de outras crianças e pequenos seres da floresta.
Ainda vivas, suas vítimas tinham as vísceras arrancadas e eram

Índice de contos Autor 105


CUIDADO COM A CUCA, QUE A CUCA TE PEGA
Gabriela Chaves Marra

devoradas. Toda vez que a Cuca ia atacar, ela cantava:


“Dorme neném que a Cuca vem pegar...”
Cuca vivia junto com uma miríade de pequenos seres malignos
em uma caverna escura da Floresta Sonâmbula. Esta floresta fica
em um lugarejo chamado Terra Verde, que faz parte da Floresta
Amazônica, na fronteira entre o Brasil e a Colômbia. Ela cresceu
e se tornou a temida Bruxa Cuca, a mais perversa criatura da
Floresta Sonâmbula. Qualquer um que atravessasse seu caminho
seria estripado e jogado em seu caldeirão.
Mas uma coisa muito pior estava prestes a acontecer, algo
estava prestes a nascer...
Anos depois, uma linda menina se apaixonou por seu avô, um
homem peludo de orelhas grandes. Eles ainda viviam no Acre e
fugiram para Terra Verde para viver seu amor, mas havia uma
coisa que eles não sabiam... havia algo dentro da barriga dela.
Ela carregava dentro de seu estômago um embrião que deveria
ter nascido como seu irmão gêmeo, porém acabou não se
desenvolvendo. Com 5 meses de gestação, a menina o engoliu.
Ele que era uma sementinha, passou a crescer em seu estômago,
sugando seu sangue como um parasita.
Quanto mais a coisa crescia, mais a menina diminuía.
Assustado com o estado físico enfraquecido da amada, e vendo
que algo se mexia dentro dela, o homem peludo tentou voltar para
sua Terra Natal com a menina, mas não teve tempo. No meio do
caminho, um ser sem forma e vermelh,o com dentes afiados e
olhos negros, emergiu comendo pedaços de sua barriga, matando
sua mãe irmã. A criatura fazia sons estranhos, estava coberta por
uma gosma preta e olhando fixamente para o homem.
Um diabo nascia.
O ser vermelho pulou no pescoço do homem peludo, arrancou
sua cabeça e fugiu para a floresta. O pequeno diabo foi encontrado
por Cuca, a Velha Brux. Ela o acolheu e o criou como um filho. Ele
se tornou o Diabo da Bruxa Cuca.

* * * * *

Índice de contos Autor 106


CUIDADO COM A CUCA, QUE A CUCA TE PEGA
Gabriela Chaves Marra

E a estória começa...em uma pequena cidade do Amazonas...


Toda noite um preto velho vinha visitar um menino para lhe
contar estórias sobre o folclore Brasileiro e lendas desta linda
terra verde. O menino o chamava de Vovô Nêgo. Ontem, Vovô
Nêgo veio com uma nova estorinha...

* * * * *
— Boa noite meu bom menino, pronto para uma nova estória
antes de dormir?
— Vovô Nêgo! O senhor veio!
— Sim minha criança, estou sempre aqui com você.
— Então Vovô, que estorinha o senhor vai me contar hoje?
— Era uma vez um lugar chamado Terra Verde na fronteira do
Brasil com a Colômbia. Lá duas tribos viviam em harmonia.
— Ah Vovô, eu pensei que o senhor ia me contar uma estória
assustadora, eu não quero conto de fadas.
— Ei, você não sabia que os contos de fadas são estórias
sombrias?
— Não Vovô, os contos de fadas sempre tem finais felizes, com
príncipes e princesas, minha mãe costumava me contar quando eu
ia dormir.
— E você não tinha pesadelos, meu rapaz?
— Bem...algumas vezes sim...
— Então preste atenção, os contos de fadas são assustadores
em sua essência. Eles não são o que parecem, em sua forma
fantasiosa e caricaturada, estas estórias camuflam a humanidade
do mau e o lado escuro do bem. Agora vou lhe contar como tudo
se passou...
Em Terra Verde, havia duas tribos, Pirapurú e Unidú Nitê. Estas
duas tribos eram separadas pela Floresta Sonâmbula, a ponte
entre o sonho e a realidade. Toda noite a Floresta Sonâmbula se
movia de um lugar para o outro. Lá viviam o Uirapurú, o Curupira,
o Saci-Pererê e seus amigos caboclos, que são os protetores da

Índice de contos Autor 107


CUIDADO COM A CUCA, QUE A CUCA TE PEGA
Gabriela Chaves Marra

natureza. Eles estão sempre escondidos entre as folhagens, todos


os de bom coração conseguem sentir sua energia e proteção. Lá
também moram botos e a sereia Iara com suas amigas, nadando
nas águas do Rio Azul, onde está a Vitória Régia. A Floresta densa
também guarda seres horrendos e maldosos, como a Velha Bruxa
Cuca e seu Diabo.
Em Pirapurú, havia uma menina chamada Iarú. A menina viveu
sua infância em um lar com muito amor. Ela cresceu e se tornou
uma linda mulher. Um dia andando pela Floresta Sonâmbula, ela
encontrou Malô Nitê, grande guerreiro da tribo Unidú Nitê. Eles se
apaixonaram.
A paixão de Iarú e Malô era proibida, pois eram de tribos
diferentes e não poderiam ter descendentes com sangue misturado.
Havia uma maldição da Floresta para aqueles que fossem contra as
leis da sua natureza e aquela que carregasse no ventre a mistura
de sangues seria a responsável pelo massacre e fim de seus povos.
Iarú sem saber da gravidez condenou todos à morte sangrenta.
Com a vinda da primavera, as duas tribos se uniam em rituais
para afastar os maus espíritos da Floresta. Porém, no dia marcado
para começar as celebrações, à meia noite, a Floresta Sonâmbula
se movimentou estranhamente para o oeste, a lua e as estrela
sumiram, as águas do Rio Azul ficaram tão vermelhas que parecia
sangue, os habitantes da Floresta se esconderam pois lá vinha ela,
acompanhada de seu Diabo.
— Corram! A Bruxa Cuca está aqui, protejam suas
crianças!
Alguma coisa estava errada, mas o que era? Ninguém sabia
o que estava acontecendo, até que a Velha Bruxa disse que Iarú
estava esperando um bastardo de sangue ruim e que as duas
tribos seriam dizimadas, pois não respeitaram a natureza. Ao ouvir
isso, os homens de Unidú Nitê se voltaram contra Malô dizendo
que ele havia traído sua gente, imploraram para que a Bruxa nada
fizesse com aquelas famílias que não sabiam de nada. Mas não
houve jeito, o pequeno Diabo da Bruxa atacou um dos homens
estraçalhando seu corpo e devorou seu coração, o sangue se
espalhou na terra condenada... Malô gritou e implorou para que
a Bruxa Cuca não fizesse nada, pois ele pagaria pela maldição, e
faria um pacto. Ele entregaria sua alma para o Diabo, e em troca

Índice de contos Autor 108


CUIDADO COM A CUCA, QUE A CUCA TE PEGA
Gabriela Chaves Marra

ela deixaria as tribos em paz. Mas ela só aceitou se levasse Iarú,


pois ela queria a criança.
Eles não tiveram outra alternativa, a jovem foi para a caverna
com a Velha Bruxa e nunca mais viu seu povo e seu amado. O
guerreiro fez seu pacto com o Diabo, pedindo paz e riqueza para
as tribos, em troca deu sua alma.
Ao nascer do dia Malô tinha que conseguir uma galinha preta,
para ser fecundada pelo Diabo da Bruxa, pois ele deveria carregar
em uma garrafa um diabinho que nascesse do ovo desta galinha.
No fim de 40 dias, do ovo chocado, nasceu o diabinho. Malô o
guardou em uma garrafa, que deixava em baixo da cama e todos
os dias o alimentava com gotas de seu próprio sangue. O Diabinho
da Garrafa enriqueceu o seu dono, e protegeu os habitantes da
tribo Unidú Nitê e Pirapurú, dando a eles muita fartura e paz.
Nove meses depois, quando Iarú já estava para parir seu filho,
a Bruxa velha tratou de cuidar do parto. Abriu a barriga dela com
suas próprias garras, e pegou o bebê. O corpo de Iarú teve seu
sangue drenado, que serviria para alimentar a criança durante os
primeiros dias de vida, e a carne foi deixada apodrecer, para que as
larvas de insetos que nela apareceriam servissem de alimento para
sua nova cria, que se tornou um pequeno comedor de carcaças
podres. Mas por desobedecer sua mãe Cuca constantemente, ele
foi abandonado e quando morreu foi rejeitado pela terra, passou a
vagar pela Floresta e assustar as pessoas, foi apelidado de Corpo
Seco. Malô nunca soube deles.
Quarenta anos se passaram quando o Diabo da Bruxa apareceu
para cobrar sua parte do pacto. O Diabo então libertou o Diabinho
da Garrafa, imediatamente ele entrou no corpo de Malô que
ficou inconsciente. Os dois levaram o corpo para a Floresta e lá
esperaram o Diabinho da Garrafa nascer de novo, se alimentar do
corpo de Malô e tomar conta de sua alma.
— Vovô Nêgo, o que aconteceu com o Diabinho da Garrafa
depois que ele saiu do corpo de Malô?
— Ele foi morar com a Velha Bruxa Cuca, pois com ela, ele ia
crescer e aprender as leis da Natureza. E o Diabo foi pra cidade
se aproveitar da fraqueza dos humanos e fazer seus pactos. Foi
mostrar que quando se mexe no equilíbrio natural da vida, coisas
muito ruins acontecem. E ele levou todas essas coisas ruins com

Índice de contos Autor 109


CUIDADO COM A CUCA, QUE A CUCA TE PEGA
Gabriela Chaves Marra

ele, as consequências dos desmatamentos, da poluição dos rios


e das matanças de animais...nos anos seguintes, mais diabinhos
cresceram com a Velha Bruxa Cuca e foram para outras cidades...E
foi assim que se passou. Está vendo como é importante respeitar
a Natureza?
— Sim Vovô, eu respeito a Natureza e não quero ter um
Diabinho da Garrafa.
— Isso mesmo, então eu já vou indo para a Floresta, amanhã
talvez eu volte pra contar outra estória. Boa noite e seja um bom
menino.
— Boa noite Vovô Nêgo.

A mãe do menino entra no quarto:

— Meu filho, está conversando sozinho?


— Não mamãe, o Vovô Nêgo estava me contando uma estória.
— De novo com isso menino, não existe nenhum Vovô aqui. E
que garrafa vazia é esta embaixo da sua cama?
— É meu Diabinho da Garrafa, mas o Vovô Nêgo não pode
saber mamãe.
— Tá bem meu filho, o seu vovô invisível, não pode saber
do seu diabinho invisível, vamos dormir então e pare com estas
bobagens, boa noite.
— Boa noite mamãe.

Se uma lenda é contada diversas vezes, um dia, ela pode se


tornar realidade...é por isso que temos uma Floresta Sonâmbula lá
no fundo da nossa mente.

Índice de contos Autor 110


BRANCA DE
NEVE E OS 7
NANOROBÔS
Brian Oliveira Lancaster

Índice de contos Autor


BRANCA DE NEVE E OS 7 NANOROBÔS
Brian Oliveira Lancaster

BRANCA DE NEVE E OS 7
NANOROBÔS
Brian Oliveira Lancaster

— Doutora White! Sua mãe está aqui e quer vê-la!


— Do que se trata?
— Disse que as vendas do perfume “Bad Witch” caíram e
precisa discutir uma nova campanha de marketing.
— Só podia. Aquilo é tão forte que deveria ser considerado
nocivo para nossa atmosfera artificial. E pela última vez, ela não é
minha mãe!
A doutora White era a herdeira e filha de Willard White, dono
do maior império da beleza estabelecido na colônia lunar Alfa-2,
que possuía o curioso nome “Conto de Fadas”. A mãe de Aurora
White havia morrido de causas desconhecidas e seu pai não
soubera escolher uma nova companheira confiável.
Pouco depois, seu pai adoeceu e acabou por deixar o império
nas mãos de sua filha. Como ainda não havia atingido a maioridade,
a empresa acabou sendo transferida para o nome de sua madrasta,
que se revelou uma péssima empresária. Transformou Aurora em
empregada e a obrigou a criar a essência mais forte de todos
os tempos. Estampou seu rosto nos frascos especiais e iniciou a
distribuição planetária de Bad Witch.
Os cientistas alertaram que a essência continha compostos
voláteis que poderiam comprometer a atmosfera das cúpulas
habitacionais, aviso que ela ignorou solenemente.
Seu maior divertimento era sentar-se em frente à gigantesca
tela do computador de inteligência artificial conhecido como

Índice de contos Autor 112


BRANCA DE NEVE E OS 7 NANOROBÔS
Brian Oliveira Lancaster

“Espelho” e ficar analisando seu DNA. O Espelho era responsável


por criar perfumes e cosméticos adaptados a cada tipo de pele,
criando o composto perfeito.
— Ah, espelho, espelho meu! Existe alguém com a pele mais
perfeita do que eu?
A voz robótica sempre respondia calmamente.
— Não, minha administradora. Somente tu és a mais bela
deste satélite natural. E deves tudo ao meu projeto de evolução da
nanotecnologia utilizada por seu marido.

(…)

O tempo passou e Aurora tornou-se uma bela mulher. Nunca


precisou recorrer aos geneticistas ou à manipulação de DNA. Isto
acabou se tornando um fardo para outras pessoas… incluindo a já
famosa senhora White.
Certo dia, ao voltar de seu banho de sol costumeiro, no lado
iluminado da Lua (no famoso resort “Paraíso Lunar”), sentou-se em
frente ao Espelho e fez a pergunta já conhecida por seu ouvinte.
— Espelho, espelho meu! Existe alguém mais bela do que eu?
A voz mudou de entonação e emitiu uma frase impessoal.
— Calculando…
— Hum?
— Lamento dizer, mas existe alguém que nunca fez uso da
nanotecnologia desta empresa. E, segundo meus cálculos, possui
a pele mais perfeita que já vi.
— Impossível! Quem?
— Aurora White.
— Aquelazinha… Sempre em meu caminho… Prepare uma dose
tripla de Bad Witch e encha um frasco. Irei levar um “presentinho”
à minha querida filhinha.
— Tripla? É suficiente para corroer a cúpula central. O órgão de
padronização lunar nunca permitiria…
— Faça!!

Índice de contos Autor 113


BRANCA DE NEVE E OS 7 NANOROBÔS
Brian Oliveira Lancaster

(…)

— Doutora White! Sua mãe está aqui para vê-la!


Após responder bruscamente, seu assistente virtual recebeu
um impulso elétrico vindo diretamente do Espelho e alertou
a doutora de que corria risco de vida. A única saída era fugir. A
empresa ficava no limite entre o lado claro e o lado escuro da Lua.
Aurora não encontrou outra opção a não ser correr para o lado
desconhecido do satélite terrestre, deixando tudo para trás.
Apesar da tecnologia avançada e a colonização da Lua ter
sido efetivada há anos, o lado escuro ainda mantinha sua aura de
mistério e locais desconhecidos.
A doutora White estava cansada de tanto correr. Com seu traje
lunar feito sob medida (na época atual) literalmente era possível
“correr”. Seu nível de adrenalina baixou e o medo começou a
ocupar seu lugar.
Avistou uma instalação pequena, que parecia abandonada há
anos. Mas no momento era o lugar mais seguro para se estar. A
porta de entrada era da altura de seu umbigo – fato estranho, pois
somente humanos viviam ali. Sem cerimônias acessou o painel
de controle e entrou. Tudo parecia muito pequeno e bagunçado
ao mesmo tempo, como um abrigo anti-nuclear antigo. Retirou
seu traje e pôs-se a organizar seu esconderijo temporário,
adormecendo logo em seguida.
Sons estranhos puderam ser ouvidos vindo diretamente do
lado mais escuro. Algo como “blips” e “boings” e um arrastar
soturno de pedras lunares. Suas sombras não revelavam nada em
particular - apenas que eram seres pequenos. Seus sensores táteis
recuaram ao ver que seu lar havia sido violado. Luzes vermelhas
acenderam-se em suas caixas torácicas: havia um humano em seu
distrito.
Entraram lentamente pela porta com seus corpos desajeitados,
protótipos antigos de máquinas pensantes da época de exploração.
— Uma humana aqui?
Ficaram um bom tempo analisando aquela criatura adormecida
em seu lar. Parecia familiar. Aurora percebeu que estava sendo
vigiada e levantou-se de súbito.

Índice de contos Autor 114


BRANCA DE NEVE E OS 7 NANOROBÔS
Brian Oliveira Lancaster

— Quem são vocês?


— Há muito tempo atrás seu pai nos enviou para estudarmos
o lado escuro da Lua. Ele precisava saber se era verdade que este
lado possuía a capacidade de enlouquecer a mente humana. Por
isso fomos divididos em sete comportamentos característicos de
sua quintessência: alegria, tristeza, medo, ira, timidez, orgulho e
razão, refletindo a psique terrestre.
— Vocês são tão pequenos!
— Somos os primeiros da nova geração de robôs lunares, por
isso nossa tecnologia é limitada. – encerrou Razão.
— Mas você é tão bonita que pode ficar conosco o tempo que
desejar! Fazia tempo que não tínhamos visitas! – emendou Feliz.
De repente, um estrondo semelhante a um raio caindo deixou
todos em estado de alerta.
— Um raio caindo em um satélite sem atmosfera? – Dra. White.
— É o caçador. Criatura medonha e extremamente assustadora
que vive no lado escuro da Lua. Ele está atrás de você! Não nos
deixe sozinhos, por favor! – Medroso.
— Atrás de mim? Como sabem?
— Escute mulher humana. O caçador é uma forma de vida
artificial deformada; aberração jogada fora pelo homem. Ou seja,
ele detesta humanos! – Irado.
— Foi ela… Eu tenho certeza! Aquela mulher não vai parar
enquanto não me ver morta. Irei convencer a criatura do contrário.
— Está louca? – Razão.

A criatura possuía três metros, um olho pulsante no meio


de sua cabeça arredondada e um desajeitado balanço em seus
três braços. Trazia consigo uma foice, capaz de cortar montanhas
lunares em duas. Ao avistar a mulher, a máquina fez menção
de levantar sua foice. Desistiu. Sua aparência era tão doce e
encantadora que não teve coragem de lhe fazer mal.
— Os caçadores costumam colecionar corações humanos –

Índice de contos Autor 115


BRANCA DE NEVE E OS 7 NANOROBÔS
Brian Oliveira Lancaster

obviamente apenas dos que já deixaram de existir ou resolvem


se aventurar pelos penhascos do lado escuro. Se alguém o enviou
para exterminá-la, ele precisará de alguma prova. – Razão.
Os nanorobôs mencionaram que devido aos seus estudos alguns
animais acabaram vindo com eles. O caçador, desconfortável por
estar em um abrigo tão pequeno, apontou logo para o cervo que
havia ali, na cela de contenção. Partiu em seguida com o coração
do animal em uma caixa isolada e fechada a vácuo rumo a um
lugar desconhecido.
A empresa Conto de Fadas virou um verdadeiro “inferno” sob
o jugo de sua nova administradora. Todos trabalhavam em dobro
enquanto ela ficava examinando seus poros e sua pele lisa. O
Espelho havia escapado de virar sucata por muito pouco – neste
instante o caçador já deveria estar chegando – uma idéia muito
bem aceita por sua “rainha”.

(...)

Algum tempo depois…


— Espelho! Examine isto. Tenho sérias dúvidas quanto à sua
origem. É rosado demais.
O Espelho examinou a caixa e, em poucos segundos, o resultado
do exame de DNA apareceu na tela flutuante. O desenho de um
cervo fez a “rainha” quebrar por inteiro o último carregamento de
Bad Witch. Quase sufocou após isso… Sentou-se e pôs-se a pensar.
— Então minha filhinha amoleceu o coração do caçador – se é
que ele tem um. Criatura horrível. Muito nobre de sua parte. Hum…
Caridade era algo que ele não recusaria em praticar. Espelho! É
possível reverter o processo da câmara de rejuvenescimento de
forma temporária?
— Talvez.
— “Branca” adorava maçãs hidropônicas quando era pequena.
Ainda temos um estoque destas raras frutas?
— Creio que sim, administradora.
— Já disse para me chamar de “rainha”! Prepare tudo!

Índice de contos Autor 116


BRANCA DE NEVE E OS 7 NANOROBÔS
Brian Oliveira Lancaster

(…)

Uma velha senhora, “por acaso”, bateu na porta do abrigo


anti-nuclear dos nanorobôs. A Dra. White atendeu. Aquele forte
cheiro de maçãs frescas invadiu e tomou conta de seus sentidos.
O aroma lembrava os piqueniques de infância com seus pais e
um amigo muito querido que permanecia desaparecido desde que
resolvera sair na expedição da nave colonizadora Andrômeda.
— O que uma senhora de sua idade faz no lado escuro da Lua e
sozinha?
— Ah, minha jovem, talvez ninguém tenha lhe contado, mas existe
toda uma indústria alimentícia que produz frutas artificiais na linha-
limite. Mas apenas uma de suas filiais trabalha com frutas originais
vindas da Terra antiga, antes dela ser devastada pela onda nuclear
de…
— Como eu nunca soube disso? Meu pai, ele…
— Moça. Se todos soubessem disso, não acha que trariam grandes
problemas para seus administradores? São extremamente raras e por
isso estou aqui hoje lhe oferecendo uma oportunidade única de nos
ajudar. Estamos sem recursos…
Ela não pôde resistir àquele aroma contagiante. Após pagar
à senhora, deu uma mordida certeira na maçã. O mundo girou. As
estrelas saíram do lugar e puseram-se a dançar. O Sol triplicou de
tamanho e em um instante tudo se apagou.
Os nanorobôs presenciaram a cena horrorizados, enquanto viram
a velha senhora tomar uma poção e voltar ao normal.
— É você! – Irado.
— Ah… Olha só quem vejo por aqui. Os inúteis que Willard criou
e fui obrigada a me livrar. Vocês viviam interrompendo minhas
experiências dizendo que elas eram nocivas à humanidade.
— O que você fez com ela? – Tristonho.
— A maçã estava envenenada. Finalmente todo o império White
será meu!
— Sua… Desta vez não estamos sozinhos! O caçador irá colecionar
o seu coração! – Orgulhoso.
A criatura saiu de trás do abrigo com um olhar furioso em direção
à “rainha”. Seus pés começaram a dar pequenos passos para trás.

— Você não está com raiva só porque mandei jogá-lo no lado

Índice de contos Autor 117


BRANCA DE NEVE E OS 7 NANOROBÔS
Brian Oliveira Lancaster

mais distante da Lua, não é? Pense! Você também me enganou. Ora,


seu maldito protótipo de robô humanóide, era uma cópia perfeita do
namoradinho de “Branca”. Eu não podia deixar isto acontecer. Se ela
se aproximasse demais dele iriam gerar um herdeiro e a empresa
nunca seria minha! Por isso me desfiz de tudo que lembrasse ele,
incluindo um convite para uma viagem expedicionária... Sem retorno.
Sim, sua lata velha. Você era perfeito, até que o desliguei e o atirei
de cima das naves de entulho no lado escuro da Lua. Foi uma linda
queda de alguns quilômetros…
Aquelas foram suas últimas palavras. A criatura correu em seu
encalço, enquanto ela tropeçava e corria rapidamente para longe do
caçador. Ele não iria parar e ela bem sabia disso. Correu o máximo
que pôde até chegar à beira de um precipício lunar. Parou.
A foice cortou o ar lentamente, mas não a atingiu. A força utilizada
pela criatura rachou o solo ao meio, desequilibrando a “rainha”. Seu
corpo foi atirado para longe. Mas sem a gravidade necessária, a queda
foi suave. A última coisa que ouviu foi:
— Eu destruirei todos vocês!
A criatura guardou a foice e foi embora, no mesmo instante em
que ela percebeu que sua roupa espacial continha um enorme rasgo
em suas costas, deixando o oxigênio escapar…

(…)
Os nanorobôs e a criatura colocaram “Branca” em uma cápsula
criogênica e passaram a cuidar de seu corpo inerte. O congelamento
iria mantê-la jovem para sempre. Pequenos flocos a envolveram,
mantendo seus músculos ativos e coração batendo. Os nanorobôs a
colocaram em local seguro e registraram no cérebro eletrônico central
o nome “Branca de Neve”.
Algum tempo passou e a empresa faliu. O Império da Beleza
cedeu lugar ao Império Galáctico. Nesta atual corrente do tempo
algo impensável aconteceu. Conseguiram com sucesso resgatar
os tripulantes da nave Andrômeda que permanecia presa em uma
singularidade quântica.
Um jovem simpático e galante voltou à sua antiga casa e com
tristeza presenciou o abandono e destruição da maior empresa jamais
vista em sua infância. Depois de muito andar ouviu certos rumores e
uma história extraordinária de uma administradora narcisista. Acabou
por conhecer a história de “Branca de Neve”.
Procurou desvendar todos os mistérios daquela lenda lunar e
encontrou o abrigo anti-nuclear dos nanorobôs.

Índice de contos Autor 118


BRANCA DE NEVE E OS 7 NANOROBÔS
Brian Oliveira Lancaster

—Identifique-se! – gritou a criatura.


Ao olhar mais de perto percebeu que se tratava de seu “modelo”
original. Os nanorobôs vieram correndo ao seu encontro. Após
detalharem minuciosamente tudo o que havia acontecido, levaram-no
à câmara criogênica onde “Branca de Neve” adormecia.
Lágrimas caíram sobre os eletrodos da câmara e o computador
emitiu um aviso de aumento de temperatura em seu interior. O
jovem, com certo receio, afastou-se do aparelho. Mas definitivamente
não havia sido ele. Os batimentos cardíacos aumentaram e eles se
apressaram em iniciar a descompressão.
Ela saiu tossindo muito. O jovem a ajudou, levando apenas
alguns segundos até que ela lançasse para fora um pedaço de maçã
que permanecia presa em sua garganta. Desorientada, sorriu ao ver
seu amigo de infância vivo e bem de saúde. “Muito bem.” - pensou,
olhando-o de cima a baixo.

(…)
A Dra. White utilizou o restante de sua herança e abriu sua própria
rede de frutas hidropônicas verdadeiras, tornando-se uma mercadora
de sucesso, fornecendo suprimentos necessários às expedições. Os
nanorobôs foram nomeados administradores da fábrica e a criatura se
tornou o chefe e monitor de segurança dos carregamentos.
O “pôr-do-sol” no lado escuro da Lua era muito bonito e agora
podiam apreciá-lo sem nenhuma preocupação extra. Os robôs podiam
tomar conta de tudo enquanto viviam felizes.
E juntos viveram feliz para sempre…

Índice de contos Autor 119


BRANCA DE NEVE E OS 7 NANOROBÔS
Brian Oliveira Lancaster

Índice de contos Autor 120


A MENINA COM
O CESTO DE
FÓSFORO
F. P. Andrade

Índice de contos Autor


A MENINA COM O CESTO
DE FÓSFORO
F. P. Andrade

A MENINA COM O CESTO


DE FÓSFORO
F. P. Andrade

O fim do ano representava a felicidade, todos diziam. A neve


branca, renovação. Noite de ano novo. Fogos de artifícios
no céu. Gretel cambaleava. Tremia. O frio lhe queimava a carne,
a alma. Não pai... Por favor, não... “Não conte a sua mãe. Ouviu!
Ou eu...” Lembrava-se dos toques. Da dor. Da depressão. Do frio.
Carregava consigo um cesto de fósforos. “Vá e venda, filha. Por
mim.” Sim mãe. Eu te amo... Juro. “Eu também” dizia seu pai.
Gretel. Lágrimas congelavam seu rosto. Não queria voltar. Não com
ele ali. Fome, sim, a fome dos desvalidos, maltratados. Caminhou
descalça, sandálias de carne azul frio. Havia perdido meio par da
sandália na neve e o outro havia sido roubado, por um menino que
queria ser um bom pai quando crescesse. Pessoas passavam de
carruagens. Ricas. Aquecidas. Quase a atropelavam. ”Sai da frente
desgraçada!” Me perdoe, senhor. Não foi minha intenção. Quer
comprar um fósforo? Só um! Cuspiram em seu rosto. Escárnio.
“Papai te ama, volte...” correu dali. Não queria mais. A neve caía e
acumulava na cidade e nas pessoas. Casas com chaminés. Famílias
felizes. A neve mordia Gretel e lhe tirava pedaços frios. Arrastou-
se para um beco entre dois prédios. Queria aquecer-se. Não queria
voltar para casa. Lá fazia frio. Outro tipo de frio. Não vendera um só
fósforo e sabia que não podia voltar. Não queria apanhar de novo.
Não queria senti-lo outra vez, pegajoso. “Se você deixar, eu te
aqueço... só não conte nada...” Morra... Gretel gritou para a noite.
Morra! Ela não sentia mais os pés, os braços penderam frios. Um
fósforo. Se acendesse um fósforo, talvez pudesse se aquecer um
pouco... Longe dele... Morra! Riscou um na parede. A luz a aqueceu
por um instante breve. Só por um instante Gretel viu um forno à

Índice de contos Autor 122


A MENINA COM O CESTO
DE FÓSFORO
F. P. Andrade

lenha aceso em sua casa. A família ao redor. O fogo consumiu-se,


ficou-lhe só o frio e a haste cinza. Acendeu mais um. O forno, a
família. Mãe, cadê papai? “Saiu a sua procura filha, já faz um dia.”
Mais um fósforo. A parede do beco transformou-se a sua frente
em tecido translúcido. Gretel viu uma mesa farta. Quente. Lá, um
ganso recheado e assado a fitava. Levantou-se sem cabeça, sem
pés e arrastou-se até ela. “Está com fome menina? Quer? Você
pode me comer! Vê? Tenho um garfo cravado nas costas, usa-o!”
Sim, por favor... Só uma mordida... obrigada... O fogo sumiu no
frio. Só ficou a tristeza e a semi-hipotermia. Alguém me ajuda...
Por favor... Sal congelado na face. Ninguém viu. Mais fósforos, sua
mãe a pegou pela mão e a levou dali. “Meu amor, vamos procurar
seu pai, vem.” Não, mãe, não quero. Só amo a senhora, só a
senhora. “Bobagem, filha.” Elas voaram pela cidade. De cima viram
as casas, as pessoas, a neve. Tão lido, mãe! “Filha, lá esta ele! Vê?
Esta morrendo de frio! Coitado.” Ah, mãe, eu quero ver essa cena!
Gretel olhou o pai caído. Bêbado. Um grupo o surrava, jogava-o
na neve e o chutava. Ela acendeu fósforo após fósforo. Sabia que
se não o fizesse a cena evaporaria. Os homens o untavam com
álcool, riam com ela. Um deles procurou um fósforo e não achou.
Mãe, fecha os olhos! Gretel ainda tinha um, só um. Toma, é teu!
“Obrigado, menininha!” Última visão: a alegria de uma fogueira!
Ah, Feliz ano novo! Gretel sussurrou antes de sua alma apagar,
como um fósforo.

No dia de ano novo encontraram o corpinho sentado de uma


criança congelado em um beco. “Pobre menina!” todos diziam. “Ela
só queria se aquecer.” Mas uma coisa espantava a todos. Ninguém
conseguia explicar. Mesmo com uma lágrima fria, ela sorria.

Índice de contos Autor 123


Autores
Participantes

Índice de contos
Alex01

Alexandre Ribeiro
É Noite, Lá Fora Eles Te Esperam
Alexandre Ribeiro, Técnico Administrativo, nascido
em Guarulhos São Paulo, 38 anos. Escritor entusiasta
de contos, crônicas, romances e poesias. Atualmente
está aventurando-se pelo do gênero Terror, apesar
de seus textos serem comumente percebidos como
insólitos. Sua paixão pela escrita começou cedo, aos
nove, com o gênero poesia, no entanto, aos trinta
anos achou sua voz na Literatura. Participa de sites
como o Recanto das Letras, Estronho e Esquesito
e Airmandade. Já publicou vários contos, poesias,
joelalexribeiro@hotmail.com inclusive na web.
Mantém dois blogues relevantes:
http://contosobscurosdealexandreribeiro.blogspot.com

http://escritoralexandreribeiro.blogspot.com

Andr02

André Soares da Silva


Robô-Guerreiro
Carioca, funcionário público, 28 anos, escreve
desde os 15. Começou no mundo da literatura
escrevendo fanfictions inspiradas no seriado Arquivo
X, ainda no final dos anos 90. De lá pra cá se dedicou
também a roteirização de projetos para cinema,
trabalhando inclusive ao lado do produtor paulista
Ottmar Paraschin. Em 2010 concluiu seu primeiro
romance, “Simuum – O Conto do Sol”, no momento
em fase de análise junto à editoras. Atualmente, André
twitter - @andressilva Soares Silva encontra-se trabalhando em seu próximo
projeto, um thriller sobrenatural que pretende ser o
início de uma trilogia

Índice de contos
Brian03

Brian Oliveira Lancaster


Branca de Neve e os 7 nanorobôs
Brian Oliveira Lancaster (pseudônimo) é natural
de Caxias do Sul (RS), casado e possui 29 anos.
Atualmente vive na cidade de Criciúma (SC), onde
executa funções de analista administrativo em uma
empresa de software de administração pública. Há oito
anos escreve de forma amadora e publica seus contos
em sites de literatura. Suas principais influências vêem
de autores consagrados do gênero ficção científica,
como Isaac Asimov e Arthur Clarke. É entusiasta do
lancasterbrian@hotmail.com gênero e procurar divulgá-lo.

Elsen04

Elsen Pontual
Anno Domini
Deus Ex Machina
Pernambucano de Olinda, 29 anos, servidor público
da Justiça do Trabalho e contador de estórias por
vocação. Recentemente aceitou a existência do mundo
digital e agora tenta levar seus contos para esse novo
e estranho universo.

elsenpontual@gmail.com

Índice de contos
Emer05

Emerson Pimenta
Cinderela Underground
Nascido no interior de Minas Gerais num típico
novembro chuvoso de 1990, 21 anos, estudante de
Direito. Apaixonado por livros desde sempre, conheceu
sua maior força ao ler Dom Casmurro na 6º série e
ficar com a maior pulga detrás da orelha em relação
ao adultério de Capitu. Percebeu assim o poder que
as palavras têm, se forem usadas por um escritor
talentoso. Aos 18 anos concluiu seu primeiro romance
infanto-juveni: ‘Herói’, o primeiro de uma trilogia que
emersondantasp@hotmail. consegue abraçar todos os subgêneros da literatura
com
fantástica. No presente, se encontra lendo três livros
ao mesmo tempo e escrevendo contos fantásticos à
medida que se entope de Coca-cola e chocolate.

Fp6

F. P. Andrade
A menina com o cesto de fósforo
Paraibano, auxiliar técnico em óptica, 32 anos, F.
P. Andrade, vulgo Akuma, desde os 12 anos devora
estrelas e rumina sonhos. Autodidata, escreve desde
os vinte e acredita piamente que a literatura é sua
alma e os seus contos sua carne. É aficcionado em
filosofia e avaliações psicológicas humanas, tendo
escrito inúmeros contos literofilosóficos. Atualmente
trabalha em seu primiro romance, “Stregas”. Casado,
mora em João Pessoa com sua esposa Andreia e uma
akumaandrade@hotmail.
com cadela poodle louca chamada Ryoko.

Índice de contos
Gabi07

Gabriela Chaves Marra


Cuidado com a Cuca, que a Cuca te pega
Gabriela Chaves Marra, carioca, 37 anos, médica
veterinária, cursa mestrado na Escola Nacional de
Saúde Pública – FIOCRUZ, aprecia literatura de terror
e escreve contos sombrios.

O conto do autor
gabicmarra@uol.com.br

Gus08

Gustavo Aquino dos Reis


Presas Cinzentas
Paulista, formado em história, 23 anos, escreve
desde os 19. Iniciou sua gana literária escrevendo
pequenas poesias e contos baseados nas histórias
de J.R.R. Tolkien. Depois, influenciado por Robert E.
Howard, Lovecraft, Dunsany, Nei Leandro de Castro e
Marco Carvalho, começou a se aventurar com histórias
sobre terrores sobrenaturais, espada e feitiçaria, a
cultura sertaneja do Brasil e os ritos africanos contidos
na Bahia. Atualmente, Gustavo Aquino dos Reis
gustavo031987@gmail.com encontra-se em uma difícil tarefa para conciliar seu
trabalho com o prazer de escrever

Índice de contos
Luc09

Lucas Fernando Maziero


Anjo versus Demônio
Escritor amador, nasceu em Mococa, interior de São
Paulo, em 1981. É formado em eletrotécnica, mas sua
verdadeira paixão está nos livros e filmes, mais nos
livros, e tanto, que sente necessidade de extravasar
em contos que a imaginação teima em imaginar. Lucas
Fernando aprecia a literatura como um todo, mas tem
predileção pelo gênero fantástico. Participa de sites
onde tem alguns contos publicados, e espera um dia
publicar um livro, como todo bom escritor..
lucas_maziero@live.com

Lu10

Lucélia Rodrigues
Inspiração
Acreana, leonina, engenheira florestal recém-
formada. Lê quase todos os gêneros, ultimamente
tem uma queda pelos autores de língua latina, Zafón,
Llosa, Garcia Márquez, Allende e o ácido Pedro Juan
Gutierréz. Também amante de literatura fantástica
principalmente de Rice, Poe, Laurell Hamilton, Meg
Cabot e Rachel Caine. Atualmente está concluindo o
segundo volume da trilogia O Último Selo, o primeiro
volume A Profecia Lâmia se encontra em análise junto
santos.luceliarodrigues@ às editoras. Também trabalhando no primeiro volume
gmail.com das Crônicas de Lilian Cyrus e na história paralela à
trilogia do Selo, Meia Noite na Montanha.

Índice de contos
Rang11

Rangel Luiz
O Boneco de Madeira
Nascido em Uberlândia, Minas Gerais, estudante de
letras, apaixonado por contos, em especial Edgar Allan
Poe, E.T.A Hoffmann e, no Brasil, Mário de Andrade e
Machado de Assis. Teve um primeiro livro publicado em
2008 e atualmente trabalha em um segundo romance
“O Último Nefilin”.

rangel_luiz@hotmail.com

Swil12

Swilmar Ferreira
O Soldado
Carioca por opção, engenheiro, comecei a escrever
tarde, depois dos trinta, quando descobri que escrever
além de relaxar me fascinava. Comecei escrevendo
contos e brindando amigos e parentes. Ultimamente
tenho participado dos desafios da Irmandade. Escrevo
apenas por prazer, por gostar de brincar com as
palavras e principalmente com minha imaginação que
é muito fértil
swylmar@yahoo.com.br

Índice de contos
Tha13

Thasyel Fall
Nos Lençois do tempo
EThasyel Fall, 22 anos, estudante de cinema,
desde pequena aficcionada por tornar mundos irreais
reais nas paginas de seus cadernos, ou em qualquer
lugar com espaço suficiente para escrever (e isso
incluía mesas). Apaixonada pelo mundo sobrenatural,
usa sua fluência em sarcasmo (na verdade é nativa) e
sua influência Kingiana para escrever histórias muito
loucas, e tudo mais que lhe vem na cabeça. Mantém
um blog (cheio de teias de aranha e não por estética)
thasyel.fall@gmail.com
onde se pode encontrar vários textos seus. Em fim é
uma pessoa que passa mais tempo escrevendo do que
respirando. OBS: autores não tem vida social.
Blog:http://vampirasdequatro.blogspot.com/

Val15
Valter Marques
No fundo do poço tem osso, tem osso
Português, Valter Marques é um Eng. Informático
que é Escritor nas horas vagas, mas cujo sonho é ser
Escritor a tempo inteiro e Informático nos tempos
livres. O autor considera-se, principalmente, um
criativo, sendo a escrita a ferramenta utilizada para
capturar e emoldurar esse espírito inventivo. Enquanto
este último nasceu com ele, a escrita é uma paixão
mais recente, porém infindável.
A ficção científica ocupou, desde a infância,
um lugar privilegiado nas preferências de leitura.
A poderosa imaginação dos autores do “género”
ovaltermarques@gmail. permitiram-lhe viajar por planetas distantes, conhecer
com
raças alienígenas, sociedades e realidades diferentes.
Atingir a fronteira do espírito e criatividade Humana.
Valter Marques tem contos publicados no Páginas
Lentas (ISBN:978-989-96455-0-9) e Páginas Lentas 2
(ISBN:978-989-20-1352-7), Páginas Lentas 3 e várias
participações em sites especializados.

Índice de contos
A IRMANDADE
site: www.airmandade.net

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