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PARIS, CAPITAL DO SECULO XIX Introducao® A histéria, como Janus, tem dues faces: quer olhe 0 passade, quer clhe 0 presente, ela v8 as rasmas coisas.” O objeto deste livro € uma iluséo expressa por Schopenhauer numa férmula segundo a qual para apreender a esséncia da histéria basta comparar Herédoto e 0 jornal da manha.” E a expressio da sensagéo de vertigem caracteristica da concepcio que no século XIX se fazia da histéria. Corresponde a um ponto de vista que considera 6-curso do mundo como uma série ilimitada de fatos congelados em forma de coisas. O residuo caracteristico dessa concepeio é0 que se chamou “A Histéria da Civilizacio”,® que faz inventério das formas de vida e das eriages da humanidade ponto a ponto. As riquezas que se encontram assim colecionadas no tesouro da civilizacio aparecem doravante identificadas para sempre. Essa concepgio atribui pouca importincia a0 fato de que devem nao apenas sua existéncia como ainda sua transmissio a um esforgo constante da sociedade, esforco através do qual essas riquezas encontram-se, além do sais, estranhamente alteradas. Nossa pesquisa procura mostrar como, em conseqiiéncia dessa representagdo coisificada da civilizacéo, as formas de vida nova ¢ as novas criag6es de base econdmica e técnica, que devemos ao século XIX, entram no universo de uma fantasmagoria. Tas criagdes sofrem essa “iluminacao” no somente de mancira tedrica, por uma transposiclo ideoldgica, mas também na imediatez da presenga sensivel Manifescam-se enquanto fantasmagorias. Assim apresentam-se as “passagens”, primeiras 30a “nrodurdo" ea “Condsio” deste epost, escrito am francs crite umaversio ale, reproduaide fem GS V, 1255-1288, e que foi consuitada na traducSo destes dis txts. (wb) ) * como font desta formula, Beam cha Remy de Gourmont; ct. $12, 2. © -kulurgeschichte", na versio alemé deste texto (GS ¥, 1255) (wb) formas de aplicagao da construcio em ferro: assim apresentam-se as exposigGes universais, cujo acoplamento 2 indistria de entretenimento ¢ significativo; na mesma ordem de fenémenos, a experiéncia do fléneur, que se abandona as fantasmagorias do mercado. A essas fantasmagorias do mercado, nas quais os homens aparecem somente sob seus aspectos tipicos, correspondem as do interios, que se devem a inclinacao imperiosa do homem 2 deixar nos cémodos em que habita a marca de sua existéncia individual privada. Quanto 3 fantasmagoria da prépria civilizagio, encontrou seu campeio em Haussmann e sua expressio manifesta nas transformagées que ele realizou em Paris. Esse brilho, entretanto, ¢ esse esplendor com os quais se cerca a sociedade produtora de mercadorias, ¢ 0 sentimento ilusério de sua seguranca nao esto ao abrigo de ameacas; 0 que lhe vém lembrar a derrocada do Segundo Império ¢ a Comuna de Paris. Na mesma época, o adversirio mais temido dessa sociedade, Blanqui, revelou, no seu Litimo escrito,"" os tracos terriveis dessa fantasmagoria. Nesse texto. a humanidade figura como condenada. Tudo 0 que ela poderd esperar de novo revelar-se-d como uma realidade desde sempre presente; € este novo seré to pouco capar de Ihe proporcionar uma solugio liberadora, quanto uma nova moda é capaz de renovar a sociedade. A especulacio césmica de Blanqui comporta 0 ensinamento segundo 0 qual a humanidade seri tomada por uma angtistia mitica enquanto a fantasmagoria ai ocupar um lugar, A. Fourier ou as passagens “Desses palacios as colunas magicas Ag amador mostram por todo |ad0 Nos objetos que seus pérticas. exibem Que 2 industrie € rivel dos artes Nouvaux Tableaux de Pars, Pars, 1828, 1, 9. 27 ‘A maioria das passagens de Paris foi construfda nos quinze anos apés 1822. A primeira condigio para seu aparccimento ¢ a conjuntura favoravel do comézcio téxtl Os magasins de nonveausts, os primeiros estabelecimentos a manter grandes estoques de mercadorias, comecam a aparecer. So 0s precursores das lojas de departamentos. Ea essa época que Balzac fiz alusio quando escreve: “O grande poema das vierines canta suas estrofes coloridas da Madeleine 2 Porte Saint-Denis.” As passagens so centros de mercadorias de luxo. Para expé-las, a arte pde-se a scrvigo do comerciante. (Os contemporineos no se cansam de admiré-las. Durante muito tempo permanecero juma atragio para os curistas. Um Guia M[ustrade de Paris dia: “Estas passagens, uma recente invengio do luxo industrial, sao galerias cobertas de vidro ¢ com paredes revestidas de mérmore, que atravessam quarteit6es inteiros, cujos proprietiios se tuniram para esse tipo de especulagio. Em ambos os lados dessas galerias, que recebem a #1 august Banguy, Etre par os Astras: Hypothese Asronomique, Pars, 1872. (RT) luz do alto, alinham-se as lojas mais elegantes, de modo que ral passagem € uma cidade, um mundo em miniatura.” Foi nas passagens que s¢ realizaram as primeiras experiéneias com a iluminagio a gs. A segunda condigio exigida para o desenvolvimento das passagens deve-se 0 inicio da construgio metilica. Sob o Império, essa técnica era considerada uma contribuisio para renovar a arquitetura no sentido do classicismo grego. Boetticher, 0 te6rico da arquitecura, expressa 0 sentimento geral quando diz que: “quanto &s formas de arte do novo sistema, 0 estilo helénico” deve entrar em vigor. O estilo Empire € 0 ‘estilo do terrorismo revoluciondrio para o qual o Estado é um fim em si. Assim como Napoleio nao compreendeu a natureza funcional do Estado como instrument de poder para a burguesia, tampouco arquiteros de sua época compreenderam a natureza funcional do ferro, com 0 qual o principio construtivo se torna preponderante na arquitetura. Esses arquitetos constroem suportes imitando a coluna pompeana, fibricas imitando residéncias, assim como mais tarde as primeiras estagies pareciam chalés. A construgio desempenha o papel do subconsciente. Apesar disso, 0 conceito de engenheiro, que data das guerras da revolugio, comesa a se afirmar, ¢ ¢ 0 inicio das fivalidades entre 0 construtor e 0 decorador, entre a Ecole Polytechnique ¢ a Ecole des Beaux-Arts. — Pela primeira ves, desde os romanos, surge um novo material de construgio artificial, 0 ferro, Ele vai passar por uma evolugio cujo ritmo se acelera a0 longo do séeulo, ¢ recebe um impulso decisivo no dia em que se constara que a locomotiva ~ objeco dos mais diversos experimentos desde os anos 1828-1829 - nfo funciona adequadamente senéo sobre trilhos de ferro. O trilho aparece como a primeira pega montada em ferro, precursor da viga. Evica-se o emprego do ferro nos iméveis ¢ seu ‘uso é encorajado nas passagens, nos pavilhdes de exposigoes, nas estagées de trem — todas clas construgées visando fins transitérios. “Nada de surpreendente no fato de que todo interesse de massa ultfapasse de longe seus verdacelros mites, i ideia ou na tepresentacae que fazemos, quando ‘eupe @ cena pela primeira vez © impulso mais profundo da utopia fourierisca veio do surgimento das méquinas. O falanstério devia reconduzir os homens a um sistema de relacdes no qual a moralidade nao tinha mais nada a fazer. Nero se tornaria nele um membro mais ici A sociedade que Fénelon. Fourier nfo pretende, para tanto, pautar-se pela virtude, ‘mas por um funcionamento eficaz da sociedade cujas forgas motoras sio as paixdes, Pelas engrenagens das paixées, pela combinagio complexa das paixSes mecanistas com a paixio cabalista, Fourier considera a psicologia coletiva como um mecanismo de relojoaria. A harmonia fourierista é © produto necessério desse jogo combinado, #2 kan Marc Fee Engels, MEW, vel Berm, 1957, p. 85. (RT)

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