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A celebração dos ciclos naturais é certamente uma das formas mais antigas de
rito humano. O caráter cíclico da natureza foi reconhecido pela espécie humana
há muitos milênios, e a própria sobrevivência da espécie foi relacionada a esses
ciclos. Quando
dependíamos da caça e da colheita, era vital acompanhar as manadas em seus
deslocamentos sazonais, conhecer os momentos propícios para colher os frutos ou
armazenar alimento. Depois, com o desenvolvimento da agricultura, o conhecimento
desses ciclos passou a ser ainda mais essencial.
Dentro do neopaganismo, uma das tradições que melhor expressa a idéia do ciclo,
mitologicamente, nos foi transmitida pelos povos que habitavam a Europa
Ocidental pré-cristã, e está sintetizada na Roda do Ano. Como veremos adiante,
embora a Roda do Ano tenha os seus similares em praticamente todo o mundo, foi
esse mito em particular que acabou por influenciar toda a ritualística
ocidental, ao ser absorvido e sincretizado pela cristandade.
Os quatro Sabás Menores são, portanto, celebrações dos equinócios (os dias do
ano em que o dia e a noite têm a mesma duração) e dos solstícios (o dia mais
longo e a noite mais longa do ano). Os quatro Grandes Sabás são festas que
marcavam a passagem do ano celta, e eram realizadas, aproximadamente, no dia
médio entre os equinócios e solstícios. De qualquer forma, a sucessão dos oito
sabás e as tradições a eles associadas constituem, em seu conjunto, um mito que
passaremos a narrar. Esse mito tem origem européia, e está profundamente ligado
às variações sazonais daquele continente (o que discutiremos depois), mas, nesse
ponto, o que nos interessa, realmente, é o seu simbolismo, e este é aplicável a
qualquer lugar do planeta.
O mito da Roda do Ano está centrado nas figuras do Deus e da Deusa. Estes
representam os princípios fundamentais da natureza, sendo portanto deuses sem
nome, ou deuses com muitos nomes, assumindo, no decorrer da narrativa,
diferentes características particulares. Mas, de uma forma geral, Ela é a
própria Terra, a mãe dos frutos e das dádivas naturais, enquanto Ele é o Sol, o
princípio do qual a vida depende para desenvolver-se. Ela é perene, apesar de
mutável, e Ele é antes mutável do que perene.
Embora, como o próprio nome diz, a história seja cíclica, não se podendo,
portanto, distinguir exatamente um início ou um fim, devemos escolher um ponto
de partida. Que este seja, portanto, o final do inverno, quando, segundo o mito,
tanto a Deusa quanto o Deus são pueris. A terra começa a livrar-se do peso da
longa noite invernal, da estação infrutífera, ao passo que o sol, brilhando
timidamente no céu, mal consegue aquecê-la. Nesse momento, tanto a Deusa quanto
o Deus são crianças, frágeis como o próprio equilíbrio natural, no início de um
novo ciclo.
Antes de mais nada, é importante reparar que, embora as datas de realização dos
sabás tenham se mantido como pontos fixos no gráfico, elas agora representam o
inverso do que representavam no gráfico anterior. O motivo disso, é claro, é o
fato da inversão das estações no hemisfério sul, em relação ao hemisfério norte.
Quando aqui é verão, lá é inverno, e vice-versa. O nosso dia mais longo do ano
(solstício de verão) corresponde ao dia mais curto do ano no hemisfério norte
(solstício de inverno). Estou frisando esse ponto agora, pois isso será
fundamental mais tarde.
No entanto, o que se vê nos gráficos acima é que, independente da localização
geográfica, o ciclo de nascimento, crescimento, decadência, morte e renascimento
da natureza, repetindo-se a cada ano, segue o mesmo padrão. As datas dos
Pequenos Sabás,
situadas nos equinócios e solstícios, marcam justamente os momentos de ápice de
cada estação do ano, ao passo que as datas dos Grandes Sabás, marcam os momentos
iniciais de cada estação. Digo isso pois, apesar do costume ter estabelecido os
solstícios e equinócios como o início de cada uma das estações do ano, o que se
verifica na prática é diverso. Esses momentos são na realidade o ponto alto de
cada estação. Assim, por exemplo, quando chegamos ao solstício de inverno, que é
considerado o início dessa estação no calendário usual, atingimos os dias mais
frios do ano (teoricamente) e os mais curtos, mas o processo de resfriamento e
encurtamento dos dias já se iniciou antes, está apenas se completando. A
tendência, dali por diante, é o crescimento da duração dos dias e o progressivo
aquecimento, até que os dias e noites tenham a mesma duração, o que será o ápice
da próxima estação, a primavera.
Colocando datas no que acabei de dizer, para uma compreensão melhor, teríamos o
seguinte: observando o primeiro gráfico, veremos que, no hemisfério norte, o
período mais quente do ano e com os dias mais longos, estende-se de 1º de maio
até 1º de agosto, tendo o seu auge no ponto médio desses dias, o solstício de
verão, por volta de 20 de junho. O período temperado a seguir, o outono, vai de
1º de agosto até 31 de outubro. Por ser um período temperado, seu auge é
justamente quando os dias e noites têm igual duração, ou seja, no equinócio, por
volta de 20 de setembro. A partir de 31 de outubro o esfriamento passa a ser
cada vez maior, estendendo-se o período frio (inverno) até o início de fevereiro
e tendo seu auge novamente no solstício, por volta de 21 de dezembro.
O que acabei de explicar está demonstrado na figura a seguir. Nessa figura, as
setas partindo do centro representam a duração dos dias. Vê-se, portanto, que os
quatro Grandes Sabás (Imbolc, Beltane, Lammas e Samhain) marcam exatamente o
início de cada período do ano, de forma bem mais precisa do que os equinócios e
solstícios (Pequenos Sabás), que representam, na realidade, o ápice de cada uma
das estações.
A celebração do Yule pode parecer dúbia, por se situar numa época do ano que
incita ao recolhimento, principalmente nos lugares de clima mais frio, e ser a
alegre celebração do nascimento do Deus. No entanto, deve-se ter em mente que
ela é o início de uma fase de recuperação e crescimento, e é justamente isso que
se saúda. Um antigo costume reza que as cinzas da fogueira acesa na noite do
Yule devem ser espalhadas pelos campos, o que nos traz justamente o espírito
desse sabá. O calor, simbolizado pela fogueira, está preste a retornar e, ao
espalhar as cinzas dessa fogueira, a idéia é que o sol venha fertilizar a terra,
na primavera
vindoura.
Imbolc
O sabá do equinócio de primavera tem o seu nome derivado da Deusa Eostre, deusa
saxônica da fertilidade, cujos símbolos eram o ovo e o coelho. É portanto, um
festival de fertilidade, um festival de plantio, onde se pediam as bênçãos para
a germinação das sementes recém-plantadas.
Pela tradição da Roda do Ano, poderia-se dizer que em Ostara anula-se de vez a
imagem da Deusa como mãe e do Deus como filho. A face de mãe ou de anciã da
Deusa, que prevalecia até aqui, é substituída pela face da donzela, pronta a
assumir seus atributos sexuais, como a própria terra a ser semeada. O Deus por
sua vez, encontra-se aqui na figura do jovem vigoroso, apesar de ainda não
apresentar a plena força e maturidade. A duração igual de dias e noites,
alcançada neste sabá, é mais uma noção a ser levada em conta, visto que pode ser
tida como o próprio equilíbrio da natureza se restabelecendo. A partir daqui o
Sol e a Terra caminharão juntos, como casal divino.
Este sabá e o próximo são dos poucos que preservaram, no hemisfério sul,
comemorações independentes das datas estabelecidas no hemisfério norte, fora do
meio pagão. O equinócio de primavera, aqui, acontece em setembro, e existem
inúmeras comemorações no Brasil nessa época que, de uma forma ou de outra,
remetem a antigos ritos pagãos, como o próprio costume de eleger-se nas escolas
uma Rainha da Primavera.
Beltane
Talvez esse deslocamento da data para o mês seguinte tenha origem na tradição
celta que proibia casamentos no mês de maio, por ser este consagrado unicamente
ao casamento da Deusa e do Deus. Dessa forma, nada mais natural que o mês
seguinte fosse dedicado aos casamentos e, posteriormente, aos santos
casamenteiros. Por outro lado, a celebração do.casamento divino ficou
indelevelmente marcado, pois paradoxalmente hoje maio é considerado o Mês das
Noivas pelos cristãos, e o mês dedicado a Maria (a esposa-divina).
O dia mais longo do ano marca o auge do poderio do sol. Em Litha, o Deus atinge
a maturidade e prenuncia o seu declínio, ao passo que a Deusa, grávida, assume a
face da futura mãe. Como no solstício de inverno, o solstício de verão marca uma
pausa, um momento de repouso entre as duas metades da Roda do Ano. Aqui, o
período não é o repouso forçado pelo inverno, mas sim o repouso prazeroso do
verão, o intervalo entre o plantio e a colheita. É de se notar que até hoje, se
considerarmos os calendários escolares, teremos férias justamente nesses dois
períodos (auge do inverno e auge do verão).
Segundo uma das tradições ligadas ao solstício de verão, esse seria o momento em
que o Rei do Carvalho, aspecto do Deus que reinou durante a primeira metade do
ano (a fase de crescimento, ou seja, do nascimento à maturidade), seria
derrotado e substituído pelo Rei do Azevinho, que governará a outra metade (da
maturidade à morte). Há aqui um interessante sincretismo, apontado por Robert
Graves, conforme citado por Stewart Farrar em A Witches' Bible. Ocorrendo sempre
em torno de 20 de junho, no hemisfério norte, a data deste sabá praticamente
coincide com o Dia de São João Batista. É interessante notar que, segundo a
mitologia cristã, João Batista, o feroz pregador, foi substituído em sua missão
por "aquele que veio depois dele", ou seja, o sábio e manso Jesus. Eis aqui,
portanto, assimilada pelos cristãos a derrota do impetuoso Rei do Carvalho pelo
sábio Rei do Azevinho.
Lammas
O Lammas é o sabá que comemora a chegada das primeiras colheitas, juntamente com
o outono. Marca, portanto, a chegada dos primeiros frutos da Mãe-Terra que
alimentarão os homens, bem como a transição do Deus-Sol para o papel de protetor
e provedor. Convém lembrar que o termo Lammas já é um nome um tanto moderno (e
mesmo cristianizado) para esse sabá, motivo pelo qual eu diria que ele foi antes
absorvido do que anulado, mantendo-se vivo entre a cristandade na forma de
inúmeros festivais de colheita, em todo o mundo ocidental.
Samhain
Apesar do Samhain ser celebrado como o final do ano, muitos povos antigos não
comemoravam o início de um novo ano até o próximo Yule, considerando esse
período entre os dois sabás como sendo um tempo fora do tempo, um período de
suspensão da vida, repleto de magia e de perigos. A relação com os perigos do
inverno, com o recolhimento exigido nos países de clima frio nessa estação, com
a duração das longas noites invernais, é patente. O próprio nome gaélico
significa, literalmente, "fim do verão", evocando o final dos dias de calor. O
momento de maior fartura relativa, em todo o ano, marcava igualmente o momento
de maior comedimento, já que os estoques deveriam durar até a próxima primavera.
Essa dualidade do Samhain nos fala justamente do tema central da Roda do Ano, da
revelação do mais profundo dos mistérios. O momento da morte do Deus é o momento
do.conhecimento que ele gera a si mesmo, pois é ele a criança que gesta no útero
da Deusa e nascerá no Yule. O simbolismo da perpetuação da vida, da cadeia
circular que se auto-sustenta, da natureza que é inextinguível pois está
continuamente gerando a si própria, se expressa aqui tanto no plano divino
quanto no plano humano. Somos eternos pois aqueles que partiram continuam vivos
em sua descendência, e poder-se-ia dizer que o encontro com nossos antepassados
é o próprio encontro com nossos filhos.
Ecos desse festival estão ainda bastante presentes no imaginário popular. O Dia
das Bruxas, o Halloween, tão tradicional nos países de língua inglesa, mostra-
nos isso na forma de crianças fantasiadas de seres fantásticos - fantasmas - o
que seria uma forma distorcida de se interpretar os antepassados mortos e mesmo,
como dissemos acima, de representar as crianças como continuadoras da presença
dos que se foram. A tradição cristã associou à data tanto o Dia de Todos os
Santos (01/10) quanto o Dia de Finados (02/10). Pode se ver nas duas celebrações
cristãs o culto aos antepassados, tanto na forma de "santos" quanto na forma
direta.
Outra coisa que se torna patente ao observar o suceder dos sabás sob essa ótica,
é que conforme o ano caminha, tais celebrações deixam de ser centradas no
indivíduo e passam a ser centradas na família, no grupo, ou no clã. Poderíamos
aqui traçar um paralelo com o desenvolvimento do ser humano. Crianças novas não
são naturalmente gregárias mas, conforme vão crescendo, progressivamente
adquirem a noção do outro, se tornam cada vez mais inseridas dentro de relações
interpessoais
e, finalmente, ao atingir a idade adulta, buscam os relacionamentos de
integração que constituem os núcleos familiares. Assim, os quatro primeiros
sabás, aqueles da fase de crescimento do sol, são basicamente voltados a
sentimentos individuais, ao passo que os quatro últimos, os da fase de declínio
do sol, são voltados a sentimentos familiares e coletivos.
Anexo:
A Celebração dos Sabás -Hemisfério Norte ou Hemisfério Sul?
Particularmente, não concordo com uma posição nem com a outra. Atrelar as datas
dos sabás ao hemisfério norte me parece contradizer o próprio espírito destas
comemorações. Se o que buscamos é a sintonia com a natureza, como poderemos
desprezar o que se passa à nossa volta e nos conectarmos com o que ocorre em
outra parte do planeta? O argumento que tais cerimônias teriam se originado na
Europa me lembra, por exemplo, as missas rezadas em latim. O que é mais
importante? A compreensão e a sintonia com os elementos da celebração ou a
tradição?
Portanto, não vejo outra alternativa mais correta, quando se opta por seguir as
celebrações da Roda do Ano, do que fazê-lo da maneira que ela se apresenta no
local onde vivemos. O próprio fundamento do paganismo é o contato, a interação
com a natureza. As bases da crença nos dizem que fazemos parte da Natureza e
somos responsáveis pela sua manutenção e pela sua eterna recriação. De que forma
poderemos nos sentir assim se, logo de princípio, nos apartamos do momento
atravessado pela natureza que nos cerca, ignorando as estações do ano em nosso
próprio local de moradia?