Você está na página 1de 5

DETALHES EM PRETO E BRANCO

Lacordaire Vieira

O negro, mesmo antes de ter


sido escravizado, tinha um
defeito que para muitos serviu
de justificativa para sua
escravatura, e esse defeito era
sua cor.

DAVIDBROOKSHAW

– Quantos hipopota será que tem aí? ,


Olhei vacilante para o rapaz que estava ao meu lado, à beira da cerca do paquiderme. Moreno brilhoso,
cabelos lisos à força, dentes claros e risonhos. Comigo, apenas a Tatiana, na pontinha dos pés, admirando a
cabeçorra sobrenadante do animal. Orelhas pequenas demais e focinho exageradamente grande atraíam os
seus olhinhos verdes. Festivos. À minha volta ninguém mais. Seria comigo? Ergui minha filha nos braços,
aconcheguei os seus cinco aninhos junto a mim e disse a ela qualquer coisa que também servia a ele como
resposta:
– Parece que tem mais dois lá na frente.
Um grupo barulhento se aproximou encantado, fez-se engraçado, jogou pipoca, sapatearam.
Indiferente, narinas flutuantes, monstruosamente encoberto, enigmático, africano, o gorduroso não se
move. Mas seu compatriota espectador agora gargalha, seu sorriso rindo, continuado. Quase conversa com o
animal, querendo de mim a resposta. Aproveito a chegada de alguém e, à sua distração momentânea, fujo
para a esquerda, com a minha Tate.
No lago dos cisnes, pousa a manzorra escura na cabecinha loira da minha boneca e lhe faz perguntas:
– Quem te deu esse sapatinho bonito, foi a mamãe? As águas estão tranqüilas. Os marrequinhos nadam.
O jaburu observa. Do outro lado é a rua, os prédios e o sol. As pessoas agora são outras. Algumas imóveis,
outras que vagam, crianças que pulam. Cambalhoteiam. A Tatiana esfarela o pão e joga aos peixes. Eu
contemplo e vejo a sua liberdade. Estou vendo o seu crescimento na tarde que morre serena. A paisagem só
se mancha por alguns fiapos insistentes de idéias escuras. Polícia. Política. Estupro. Criança. Retrato falado.
Mas é preciso ver a beleza. Pensar a paz. Sentir a paz. É preciso afastar o medo e recompor o quadro.
Retocar a pintura. Pintar a cena com tinta branca;
– Cadê o papaizinho? É aquele barbudinho lá? Finjo que não vejo, disfarço naturalidade, mas nos
afastamos (de mãos dadas), formando um par. Fitinha verde, vestidinho branco, perninhas curtas; jeans
desbotado, camisa esporte, tênis quarenta e dois: ela e eu. A placa agora fala dos quelônios. Hábitos,
alimentação, família. Estão dispersos. Cágados, tartarugas e jabutis. São pedras espalhadas, querendo ser
vida. O jacaré não se move. A sucuri é só um monte de cobra escura. É uma rodilha. Armadilha na certa. O
cafuzo some.
Livres do negro, nos viveiros das aves, explico os pássaros, cantos e cores. O verde, o azul e o violeta.
"Esse é o pavão, aquele o galinho-do-peito-amarelo. Essa é a rolinha, e periquito é esse outro. A arara é a
grande, papagaio é o médio. Cegonha não tem no Brasil. Elas vêm aqui só de vez em quando pra trazer as
crianças. Acho que as garças também podem fazer isso. O sabiá, o curió e o canário são músicos. Mas os
outros também têm a sua própria voz e a sua canto;ia. Nesse aqui não tem nada, está vazio, deve ter fugido.
E um prisioneiro que se evadiu. Igual os crioulos que fogem da cadeia. O homem nasceu do macaco."
Na jaula dos dois chimpanzés, o espaço externo é mais disputado. As pessoas se misturam e se perdem.
Próximas, não se vêem. Distraído, de lá, o negro ri do nariz do macaco esparramado pela cara, sobrancelha
cabeluda, dentes miúdos e testa quadrada. Malabarismo, negaceios e gestos. Em tudo o homem. O macaco
achando graça do macaco. Descasca banana, lambe a casca, faz que joga e come sorrindo. Safado e
saltitante, abraça a fêmea e rola no cimento, beijando na boca. Tatiana bate palmas. O mulato interrompe:
– Joga o chocolate pro macaco - diz, sem reservas, colocando o doce na mão da minha espiguinha loira.
Já se julga íntimo. Já não faz rodeios. Dirige-se a nós sem subterfúgios. O nariz alargado. Ventas abertas.
Língua vermelha, beiço roxo, às avessas. Braços longos e pernas tortas. Quer erguê-Ia mais alto para lhe
mostrar melhor os amigos prisioneiros. Tatiana choraminga, não se deixa engambelar e me chama pra ir
embora.
À noite, na hora de dormir, Tatiana reza comigo, mas me diz que não pode fechar os olhos. Não sei o que
responder de imediato. Olho seu quartinho rodeado de cinderelas rainhas e princesas encantadas. O lobo
mau, simpático, disfarçado por entre flores. Gato de Botas, Ali Babá, Os Três Porquinhos, posters de Xuxas e
bonequinhas rosadas.
– Você está com medo de quê?
– Daquele homem preto! ...
Contemplo por mais alguns instantes os quadros nas paredes. Os caçadores estão matando o lobo, o
coelho vence a onça, a princesa encontra o príncipe. No canto, o pianinho de brinquedo, um pedaço de
porcelana quebrada e uma caixa de fósforo vazia.
– Sabe, filha, o papai é mágico!. .. Ele vai prender o negro nessa caixinha de fósforo. Veja como é que ele
consegue fácil.
Contraio os músculos, pego o monstro, esmurro-lhe a venta, derrubo o canalha, amarro-lhe os pulsos e o
deixo imóvel por alguns instantes. Depois, suavemente, começo a encolher o inimigo, a diminuir-lhe o
tamanho, a reduzi-lo, até caber na caixinha Beija-Flor, para prendê-lo definitivamente ali, para sempre. Para
finalizar, tomo de um barbante, que enrolo garboso na pequena embalagem, como quem anovela, sem pressa,
uma linha qualquer num fuso antigo.
Ponho fogo na caixa para consolidar a minha vitória.
Mas já sem necessidade, porque a língua de luz já ilumina, no berço ao lado, o rosto sorrindo de um anjinho
que dorme.
Um pouco acima, um patinho feio se encolhe ao lado de um Cristo resplandecente. Dois olhos azuis
velam a paz. Serenamente.

(Vieira, Lacordaire. Detalhes em Preto e Branco. Goiânia, Ed. Redentorista, 1998.)

Você também pode gostar