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198 AJUSTICA DETOGA no param enquanto as virtudes passivas e pragmiéticas se enfeitam com epigramas e se envaidecem em artigos dos periéicosjuridicos ‘Nossa grande experiéncia como hago, nossa mais fun- damental contribuigao-&moralidade politica, é uma grande ideia que forma wrpd ria ‘ag seguintes proposigies. Primeiro/a democracia N46 consisté em uma simples regra dda maioria, mas em ima coparticipagio no autogoverno. Segundo; éssa patceria ¢ estruturada e viabilizada por uma ‘oristituiggo moral que garante a todos os individuos os re- quisitos necessdrios & stia plenitude enquanto membios de suas comunidades. Terceiro, estamos; ¢omprometidos, por meio de nossa histéria, com a estratégia institucional de pedir aos jufzes — homens e mulheres com formagao juridi- ‘ca — que fagam cumprir essas garantias de igual cidadania, E claro que essa grande aventura politica envolve muitos riscos, como acontece em qualquer grande ambigéo politi- ca. Porém, apesar desses riscos, temos sido invejados por Tiossa aventura e somos cada vez mais copiados em todo o mundo, de Estrasburgo a Cidade do Cabo, de Budapeste a ‘Nova Déli, Nao vamos perder nossa forca exatamente no momento em que, em todas as partes do mundo, as pes- soas que seguiram nosso exemplo estio se fortalecendo cada vez mais. Capitulo 6 O pés-escrito de Hart ea questo da filosofia politica Arquimedianos O projeto de Hart Quando o professor H. L. A. Hart morreu, foi encon- trado em meio a seus papéis o esbogo de urn longo comen- tario sobre meu trabalho na teoria do direito, que ele apa- rentemente pretendia publicar, quando o condluisse, como epflogo de uma nova edigao de seu mais famoso livro, O conceit de direita, Nao imagino até que ponto ele estivesse ou nao satisfeito com 0 esboco, uma vez. que nele hi mui ta coisa que Hart talvez nfo tena considerado totalmen- te satisfatoria, Mas 0 esboco acabou sendo publicado como Pos-escrito de uma nova edigao do livro*. Neste capitulo, discutitei aacusagdo central e mais importante do Pés-escti- to. Him O aanceito de direito, Hart se propés dizer o que & 9 ge como 0 dteo vaido deve ser Henticado \cla de duas caracteristicas im- * Fart deacon os de ltmos anos deve vida aelaborar uma rexpos- ta detathads i objeoer de Ronald Dworkin, explana alguns dos ral e= ‘centes desenvevimentes a leria do diets ede a puiagio da pines ‘digo de seu uo O concede dian, ern 1961 les, parka, nko foi pose. Hit fteceu em 1994 ma Joseph Kae e Penelope Blok reves ¢ organi 2zaram urn ascanho enregue pela fain de Hate ublicram no en 1994 «como Ps-escito A segunda eligi de O cone de dio. (N do RT) ‘pretendé-compreender, mas nao avaliar, as complexas ¢_ segundo lugar, u nfo juridico, Compete 03 juristas tentar descobrir o que € 0 direito em casos es- pecifcos ~ se alguém que leva um leo para passear em Piccadilly esté afrontando o direito inglés, por exemplo. Contudo, a identificagao da natureza gerel do direito no constitul apenas um exercicio juridico particularmente am bicioso, mas sim um exereicio filoséfico que exige métodos totalmente diversos daqueles usados pelos juristas no dia a dia de sua profissao. ser conduzida de modo a proteger Se assim for/isso significd que a pr seia-se em julgamentos e convieg6 'e éticos. Afr- mei também que os argumentos jurfdicos habituais tém a ‘mesma natureza: um juiz ou um cidadio que precisa deci- dir o que é 0 direito quando se vé diante de alguma ques- tio complexa, deve interpretar o direito do passado para descobrir quais prineipios melhor o justfican, ¢, em segui- da, decidir o que tais principioa exigem no novo caso, Por- tanto, uma teoria do di sof do direito nao é diferente, em sua natureza — embora seja, sem davida, bem mais sania ~, das alegagées juridicas comuns que os ad- ‘vogados fazer nos casos em que atuam:~. No Pés-esito Fart nse que eu essa enada em ambas as avaliagdes: é0 nao tinha o direito, afirma ele, de negar a seu projeto o cardter filos6fico e descritivo especial que ele alegava ter. ruminagbes sobre o modo como. 08 juizes devem decidir os casos dificeis no direito so mo- ( — X'mais conbecida dessas'flosofi a ondstscuno nenasre a quesriona moson roumck 201 rais e engajadas, segund6 Hart, porque ao fazé-las estou cri> ticando e avaliando as atividades desses juizes. Mas ele, a0 contrério, simplesmente descreve essas atividades em ter- Biot pethis leeicon eo ane Ee siggo externa, nao como um participante ativo das bat juridicas, mas como um erudito que as observasse sem ne- nhum engajamento. A filosofia do direito tem espaco para ‘esses dois projetos, afirmou ele, mas trata-se de projetos diferentes. Aconcepeao de Hart acerca de sua prépria metodolo- gia é tipica de boa parte da filosofia contemporanea. Areas ‘especializadas da filosofia, como a metaética e a filosofia do, direito, florescem, cada qual supostamente em torno de al- gum tipo ou segmento da pratica social, mas sem nenhuma_ participacio ativa. Os fil6sofos langam um olhar de supe- oridade, de fora e de cima, sobre a moral, a politica, 0 reito, a ciéncia ea arte. Eles /S0)e primeira Grdem da ps 1e estudam — o discurso ‘de nao fl6sofos refletindo e apresentando argumentos s0- bre o que é certo ou errado, legal ou ilegal, verdadeiro ow falso, belo ou-prosaica— e sua plataforma de segunda or- dem "deta" cacarso. na qual_os conceitos de primeira cordem sio definidose explorados e as afirmac5es de pri meira ordem sao classificadas e atribuidas.a.categorias filo- séficas. Chamei essa concepgio d&filosofa de “arquime- / daiatye ela 64 idade de ouro do arquimedtianisio. yecializadas é a \ Phamada"'ietaética” JEsse conjunto de principios discute o ‘status l6gico dos“)tifzos de valor” que as pessoas comuns ‘emitem quando dizem, por exemplo, que 0 aborto é moral- mente errado ou que a discriminago racial ¢ infqua, ou que é melhor trair o proprio pais do que os amigos.’ Alguns)fi- Iésofos metaéticos dizem que essestjuizos de valof oui so. verdadeiros ou sao falsos, ¢ que, se forém verdadeiros, isso significa que-descrevem algum fato moral que independe da menté, Outros ‘hegam essa afirmagao: dizem que os jt z08 de valor no so descrig6es de uma realidade indeper distingSo entre'p discur-—> bh , 202, AJUSTICA DETOGA dente, mas sim expressdes de j ___pessoais, ou recomendages de comportamento, ou algo de ssubjetivo de natureza semelhante, Contudo, os filésofos de ‘ambos 08 grupos insistem que suas pris crete ria de que de } sexprimem ome jul lee ee filos6ficas de segunda ordem sobre os jufzos de valor, insis- tem 08 filésof0s, séo neutras,filosdficas e nao comprome- “tidas. Nao tomam posigéo alguma sobre a moralidade do Apresentel umacéegumentagéo contr } €€Peo da metaética pn uit artigo anterior: actedlite que as + teotias flos6licas sobre a objetividadle ou a subjetividade as opiniGes moras 36 so intligiveis enquano uns de rquanto muito gerais ou abstratos?. As afitmagées Wincloee seus proprios métodos ilustram uma forma ie arquimedianismo um tanto difetente, apesar de andlo- ‘ga, que é mais proeminente na filosofia politica ena filoso- / fia juridica que na filosofia moral. A dist shave, repe- tindo o que jé afirmei, d-se entre niveis de discurso: neste_ ‘que so feitas pelos fildsofos pollticos. As pessoas comins = politicos e jornalistas, cidadios e presidentes — discorrem acerca da importéncia relativa desses ideais, Elas discutem 8e as vezes é necessério transigir com a legalidade, a fim de assegurar o primado da justi¢a, ou se a liberdade deve as ‘vezes ser limitada a fim de se chegar a igualdade ou de se reservar a comunidade. Ao contrétio delas, os filésofos tentam descrever o que é realmente a legelidade, a liberda- de, a igualdade, a democracia e a justia, isto 6, sobre o que 4s pessoas discutem diverges Uma vez mais, o ta See Poutnica 203 J que a liberdade e a igualdade sio, e por a 1.€ una questo descri- itual, ¢ qualquer teoria flos6fica que respon- (4:3 osoen motes de segunda order é neutra relativa- ‘mente a qual desses valores é mais importante do que os sare art circunsténcias qual deve ser preferido ou io arquimedianismo também é equivoca- ee que as definicdes ou. dos c ceitos de lade, liberdade, direito etc, so tao substan- “Fivas, notinativas e engejadas quanto qualquer das opinioes: ‘contratias presentes nos embates que campeiam em torno _desses ideals. A ambicSo hartiana de uma solugéo puramen- } ‘te descrtiva dos problemas centrais da filosofia do direito é equivocada, assiin como as ambices semelhantes de mui- tos fil6sofos politicos de primeira linha. , O caso Sorenson Preciso expor de maneira mais detalhada a versdo de Hart sobre o arquimedianismo, e, para tanto, é ttl ter & mio um exemplo de uma questdo juridlica complexa?,A sta Sorenson softia de artrite reumatoide ¢, durante muitos anos, tomou um medicamento —Inventum = para aliviar seu softimento. Ao longo desse perfodo, 0 Inventum foi fabricado e comercializado com diferentes nomes co- ‘merciais por onze laboratérios farmacéuticos diferentes. Na verdade, o medicamento apresentava efeitos colaterais gra- vves ¢ nao divulgados, dos quais os fabricantes deveriam ter tido conhecimento, e a sra. Sorenson passot a ter problemas ‘cardiacos permanentes. Ela néo conseguitt provar quais comprimidos de qual fabricante havia tomado, nem quan- do, e € evidente que também no conseguiu provar quais comprimidos de que fabricante tinham, de fato, causado seu problema. Ela processou de uma s6 vez todos os labo- rat6rios que haviam fabricado o Inventum, e seus advogados 204 AJUSTICA DE TOGA argumentaram que todos eram responséveis perante ola de acordo com sua participagéo no mercado do medicamento durante os anos de tratamento da sra. Sorenson, Os labo- Tatérios farmac@uticos contestaram que a peticao da de- mandante era totalmente inédita e contradizia a antiga premissa da responsabilidade civil de que ninguém 6 res- ponsével por danos que nao se consiga provar que tenha causado. Para eles, uma vez que a sta. Sorenson néo tinha ‘como comprovar que nenhum demandado em particular a havia prejudicado, ou mesmo fabricado o Inventum por ela tomado, nfo era possivel exigir que ela fosse indenizada por nenhum deles. Como os advogados ¢ os juizes poderiam decidir qual das partes ~ a sra. Sorenson ou os laboratétios farmacéu- ticos ~ estava certa em suas afirmagées sobre o que é, de fato, exigido pelo-direito? Em fatto bono jf afr- mei aqui, les deveriam’tentar 65 prinefpios ge- rais que fundamentam e justitfiam 0 diteito estabelecido de responsabilidade civil do fabricante de um produto, € depois aplicar esses princfpios ao caso, les poderiam des- cobrir, como insistiam os laboratérios, que 0 piliicfpio de que nenhuma pessoa é responsdvel por danos que nio se ossa provar que tenham sido causados por essa pessoa ou por qualquer outra encontra-se téo eolidamente arrai- gado no precedente que a sta. Sorenson deve, portanto, ter suas pretensties categoricamente recusadas: Pr outro lado; eles também poderian\ encontrar apoio consideravel'a um principio “antagénico ~ por exemplo, aquele segundo o qual quem lucrou com algum empreendimento também deve atcar com seus custos ~ que possa justficar a aco ju- dicial para o problema inédito de participagao de merca- do’. Portanto, do ponto de vista que defendo, a sra. Soren- son poderia, mas nao necessariamente-obter 0 melhor re- sultado em sua agio judicial. Tido depende da melhor res- osta a dificil questao de saber que conjunto de princip ‘oferece a melhor justificagdo para essa dtea do direito como um todo. “at o diteito em casos dificeis como o da sra. Sorenson — de ares. Em ttinha opinias) o argumento jurid (0 POS: BSCRITO DE HART E A QUESTAO DA FILOSOFIA PouiTica 205 Actésposta de Hart @yasos semelhantes ao da sra. So- rensoh éa-be ‘No Pés-esctito ao qual me refe- 1, ele resumiu essa resposta nos seguintes term De acordo com minha teoria, a existencia ¢ 0 conteido, do dlreito podem ser identificados por meio de referéncia as . fontes cto (por exemplo, a legislacdo, as deci- _) Ses di, 08 costumes socas) e sem referéncia 8 moral, 4 nfo ser nos casos em que o dlreito assim identificado te- nha incorporado, ele proprio, ritérios morais para sua pr6- pri identificacéos (Chamarei esta concepcdo ~ sobre o modo de identifi- *ta5e das fontes” de Hart,) Bart e eu divergimos, portanto, ‘no que diz respeito a determinar até que ponto e em que sentido 0s juristas e juizes seus proprios “jul 0s de valor’a fim de identificar 0 direito em casos particu- ‘mento tpica-e-compléfamente moral. Os juristas dever deciit qual desses gonjuntos concorrentes de prinefpios ‘oferece & melhor jusfificaco da Brito juriica como um todo, isto é, que seja ntais peremptéria em termos motais. Ree a Deru es aa ‘mento juridico substantivo s6 € normativo quando as fon tes sociais tornam os critérios morals parte do direito. Ne- hima Assembleia Legislativa ou decisdo judicial do pas sado tornou a moral pertinente no caso da sra. Sorenson, de modo que, para Hart, nenhum juizo ou deliberagio mo- ral entra na questio de saber se ela tem o direito ao que pediti, No que diz respeito ao direito, diria Hart, ela deve eee Tina Ver que Hart ¢ ga tems opievBes diferentes s0- bre a mesma questo — como decidir acerca da validade ou no do pedido da sra. Sorenson -, fica dificil dar crédito & afitmagio dele de que, na verdade, ndo estamos divergin- do, ow que no estamos tentando responder as mesimas perguntas. Contudo, permanece a questo de como se po- | } 206 AJUSTICADETOGA deria caracterizar 0 projeto que compartilhamos. Pés-esctito, ele declarou que sua exposi deseritiva no. Sentido que no procura justificar ou enaltecer, em bases. siiorais ou de outra ‘hatureza, as formas e estruturas qu aparecem em minha exposigo geral do direito”. Ble diz ser possivel que eu estefa certo e ele erracio sobre o modo ‘como se deve identifcar 0 diteito. Talvez eu esteja certo ao pensar que juristas e juizes devam emitir juizos de valor para encontrar o direito em todos as casos ditfceis. Porém, caso eu esteja certo a esse respeito, insiste Hart, 96 0 esta ria porque minha exposigéo da pratica juridica de primeira cordem é melhor enquanto uma descrigdo de segunda or- dem dessa pritica do que a dele. Portanto, divergimos 1. apenas sobre 9 modo de identificar o direito, mas tara sobre que tipo de teoria constitui uma resposta geral a essa questo, Fle acreditava que tal teoria é apenas ¢ puramen- te uma descrigéo da prética juridica, Eu acreditb que ela é uma interpretacio da pritica juridica que faz alegages mo- rais e éticas e nelas se fundamenta, Sob determinado aspect, porém, estamos no mesmo “barco. Ambos acreditamos que entenderemos melhor a ‘) ratica ¢ 0s fe 38 jurfdicos se nos propuserm: tudar—nao o direito em alguma de suas manifestagoes es- pecificas, como a responsabilidade civil do fabsicante de Produtos na Eseécia, mas 0 préprio vonceito de direito. Nosses afirmagSes diferentes sobre a hatureza eos méto- dos adequados desse estudo conceitual poderiam, contudo, rade mise, sinda que por rand fren pensar que seu estudo conceitual é”descritivo"? Que sen- tido de“ descrtivo" terd ele em mente? F comum que as in- vestigacSes conceituais também sejam comparadas com as valorativas. Como posso pensar que utha andlise seja tanto conceittal como valorativa? De que maneira a decisao so- bre como o diteito deveria ser pocle nos ajudar a ver aquilo OPs-ESCRITO DE HARTE A QuESTAO DA FILOSORIA PoLfTIcA 207 que, em sua propria natureza, ele realmente €? Bssas ques- tes tém importancia suficiente para justificar a mudanga de tema ao longo de varias paginas. Conceitos politicos Os filgenfos politicos elaboram definicées ou andlises de conceitos politicos fundamentais:ustica liberdade, igual- dade, democracia etc. John Stuart Mill ¢ Isaiah Berlin, por exemplo, definiram ¢ Hberdady (em termos aproximados) como a cepacidade de Fazer'o que se quer sem a restrigao ‘ou a coergéo dos outros, ¢ essa definiglo é muito conhect- da entre o3 filésofos. Desse ponto de vista, as leis que prof- bem o crime violento sio violagies da liberdade de todas as pessoas. Quiase todos 0s filésofos que admitem essa propo- sigdo acrescentam rapidamente que, embora essas leis real- mente violem a liberdade, elas sio plenamente justificiveis fem eles, As vezes deve dar lugar a outros TEsse novo juizo & um juizo de valor: toma partido fo-& importdncia relativa da liberdade e da sepirane, @ possivel que alguns libertério Po rém, thot Bet een eateecisicia ala leis contra a violéncia realmente comprometem a liberda- de, nao é um juizo de valor: néo é uma aceitagao, uma crf- tica_ ou uma ate cao da importancia da liberdade, mas ‘apenas uma alirmacao politicamente neutra do que a liber- dade devidamente entendidla realmente €. Algumas conclu Pelee nee oar neutra: em especial, ofato de que as duas virtudes pollticas de liberdade e igualdade deve, inevitavelmente em conflto na pratica. A escolha entre elas,@lirma Berl quando de fato conflitam entre si, é uma questatrde-walar_ sobre a qual as pessoas divergem. Mas 0 fato de que elas devem entrar em conflito, de modo que alguma escolha seja necesséria, no representava para ele uma questi di Faden Ad pole ree umn Spee de ats Sonesta | / | “Fic comiamn de discutir a iberdade e ¢ 208, .,_AnisnicaDETOGA (ea - Betlin bra, portanto, um arquimediano em flosofia po- Iitica?o-projeto de analisar 0 que a liberdade realmente sig- nifica, pensavarele, deve ser buscado por alguma forma de “nilise conceitual que nao envolva juizos, pressupostos ou raciocinios-nofinativos. Outros filésofos insistem que a li- berdade é entre outras coisas, uma fungao do dinheiro, de modo que a tributago dos ricos diminui sua liberdade. Essa definigdo, insistem eles, deb totalmente em aberto a {questo de saber se a tributaclo é, por principio, justtica- da, apesar de seu impacto sobre a liberdade. Ela permite 0 jufzo de valor de que a tributaao é perversa, mas tam! ‘0 juizo de valor contrétio, aquele segundo o qual a triata- $0, a exemplo da criminalizagao da violéncia, é unt com- prometimento justifieavel da liberdade. Outros filésofos politicos tém tratado outros valores politicos de modo se- ‘nelhante. Por-exemplo, existe uma ideia muito popular de que a’democracia }ignifica 0 governo da meioria, Diz-se que essa definigéo deixa em aberto, no que diz respeito a deci- io e & argumentagdo substantivas, questées como a exce- éncia ou a falta de qualidades da democracia, ou se & pre~ ciso impor-Ihe uma solugio conciiatéria por meio de res- trigBes a0 governo da maioria que poderiam ineluis, por ‘exemplo, um sistema constitucional de direitos indivicuais contra a maioria imposto pelo controle judicial de constitu- «ionalidade. Segundo o ponto de vista arquimediano, estas ‘ikimas questdes sfo substantivas e normativas, mas a ques- tio inicial, que diz respeito ao que é a democracia, é con- ceitual e descritiva. Bssas diferentes versées da liberdade ia so arquimedianas porque, embora sejam tei sobre in pita socal normatva a préia pol feriocracia — no se ‘Ao coniratio, afim 88F teorias Bloséficas oui conceituais que 86 so descritivas Ga peitica Social e neutras no Ambito das controvérsias que | ‘constituem essa prética. ‘Essa afizmacao se complica, porém, devido'a duas dili- culdades correlatas, Em primeiro lugar, a argumentagao-po- (0 POS-ESCRITO DE HART E A QUESTAO DA FILOSOFIA POLITICA 209 Iitiea frequentemente inclui, no apenas como um ponto de |) pattida neutro das controvérsias substantivas, mas como ‘elemento central de tais controvérsias, uma atgumentacao sobre as proprias quest6es conceituais que.as fildsofos,es- ‘tudam. Em segundo lugar’ b termof =tio"8 gu = ‘hd muitas maneiras ou dimensSes-nas_quais ‘uma prética ‘social pode ser“descrita”. Portanto, os arquimedianos de- “vem escolher um sentido mais preciso de descrigao cz pretendam tornar sua posigéo defensével. $6 que eles néo podem faz8-lo: cada sentido de“ descriglo”, individualmen- te considerado, mostra-se claramente inaplicével. De nossa parte, devemos examinar essas objegdes independente- mente fatais. A controvérsia sobre conceitos comum que as controvérsias dos filésofos também seam de natureza politica. Hoje mesmo, existe um intenso debate ~ nao £6 nos Estados Unidos, mas em todo o mun- “do =no qual se discute se o controle judicial de consti ifique 0 governo da maioria, de modo de constiuclonalidade sea por de nigéo néo democrético e a tinica questao que fique por re- solver é em saber se, ainda assim, ele se justifica. Ao con- ‘récio, 0s juristas e politicos discutem sobre o que é de fato, a democracia: alguns deles insistem que o controle judicial de constitucionalidade nao é incompativel com a democra- ia porque ela no significa apenas governo da maioria, mas o governo da maioria sujeito as condiges que o tor- nam justo’. A maioria dos que se opdem ao controle judi- cial de constitucionalidade rejeita essa definigao mais com- plexa de democracia e insiste que democracia significa ape- nas governo da maioria ou, talvez, governo da taioria limi- tado apenas por uns poucos diteitos procedimentais, entre jambiguo—~S 23.7 t ( 210 ‘AJUSTICA DETOCA (0s quais a liberdade de expressio, e ndo pelo pleno conjun- to de direitos que atualmente costumam ser protegidos nas constituigSes nacionais e internacionais, Os politicos que defendem a tributagdo nao admitem que ela Viole a iber~ dade, Ao contrério, negam isso e insistem que a tributagio em si nao tem absolutamente qualquer impacto sobre a li- berdade. Concordo que alguns politicos e eriticos declaram ‘enfaticamente que a tributagio hudibria a liberdade, mas, pelo menos nos Estados Unidos, todos os que o fazem si0 politicos que odeiam a tributagdo e gostariam de pér-lhe um fim. Se a definigio de democracia ou liberdade,é, de fato, um assunto ~ um ponto de partida — neutro sém im- _plicagdes para o debate e a decislo substantivos, éntéo “que os politicos e cidadaos devem perder tempo eaaifal dliscussdo? Por que o senso comum nao ensinou as pessoas comuns a simplesmente aceitar uma definicéo padoniza- da desses conceltos- que democradla signi gover da _maioria, por exemplo -, de modo que possam poupar suas. energias para questdes verdade! ‘Quase todos concordam que os valores em qu , / minimo, alguma importincia, talyez uma importancia { 4) muito grande, mas esse consenso deixa em aberto questes substantivas cruciais sobre o que, mais precisamente, esses valores so ou significam. Fercebemos isso mais dramatica- _ Mhente no caso do egnceito politicomais abstrato de todos: (a ustigays pessoas nfo iscufem muito aimportinda da (OPOS-ESCRMO DE HART EA QUESTAO DA FILOSORIA POLTICA 211 justica: em geral, trata-se de uma objegdo decisiva a uma deciséo politica injusta. As controvérsias sobre a jusiga ge- ralmente assumem a forma de uma argumentacdo, nao s0- bre quio importante a justia € ou quando deve ser sacrifi- cada em nome de outros valores, mas sobre o que ela real- mente é. 6 esse 0 tema principal. Portanto, seria extrema~ ‘mente implausfvel tratar uma teoria filos6ficadesse conceito como arquimediana: isto ¢, seria implausivel presumir que ‘uma teoria informativa sobre a natureza da justga pudesse ser neutra quando confrontada com questdes de argumen- taco politica substantiva. Sei bem que os filésofos da jus- tiga célicos— os que argumentam que a justiga esté apenas nos olhos do espectador, ou que as alegagoes de justia ndo passam de projesoes de emogdes ~ muitas vezes supdem {ue suas prdprias teorias sfo neutras. Contudo, seria mui- to surpreendente encontrar um filésofo que defenda uma concepcio positiva de justiga ~ que afirme, por exemplo, gue a justiga politica consiste nas providéncias que maximi- zain a riqueza de uma comunidade — que acreditasse que sua préptia teoria néo fosse uma teoria normnativa. Os 6 So eae en eran ae etna Bore juste nisi que fazem of p ‘os )s mais densos conceitos politicos: ‘e democracia desempenham o mes- mo papel na argumentagio politica, ¢ as teorias sobre a na- tureza desses conceitos também sdo normativas. Concorda- mos que a demoeracia é de grande importdncia, mas diver- re qual concepgao de democracia melhor expri- me e explica essa importancia, Nenhum dos estiidiosos que de constitucionalidade é ou nao incompativel com a democracia admitiria que a ques- tdo relativa ao que é, de fato, a democracia devidamente en- tendida, seja um problema descritivo a ser resolvido me- diante o estudo, por exemplo, de como a maioria das pes- ‘soas emprega a palavra”“democracia”. Eles re sua discussdo é profunda e essencialmente substantive". SO aay AJUSTICA DE TOGA Devo enfatizar a diferenga entre a posicéo que agora defendo e a opinio mais conhecida de civersos fl6sofos, ‘aquela segundo a qual os principais conceitos politic conceitos desctitivos e notmativos”mistos”. Segundo essa ‘onhecida concepgio, 0s conceitos de democracia liberda- de etc, tém tanto componentes emocionais quanto descri- tivos, e os filésofos podem desentedé-los, O significado emocional é uma questéo de pratica e expectativa socais: em nossa cultura poltica, déclatar que alguma pratica nio € democratica & algo quase inevitavelmente recebido e en- tendido como uma artica, ¢ um estranho que néo com- preendesse isso teria deixado passar algo de crucial acerca do conceito, Segundo essa concepgio, porém, ainda assim a democracia tem wm sentido descritvo e neutro totalmen- te dissociavel: ela significa (de acordo com uma descrigio) governo de acordo com a vontade da maioria, e nao have- Ta contradigo, a despelto da surpresa que provocaria, em alguém dizer que os Estados Unidos so uma democracia, e tanto pior para eles que assim o seja. Desse ponto de vis- ta, portanto, os filsofos politicos arquimedianos que insis- tem que suas teorias sobre os valores politicos cruciais so politicamente neutras nao esto incorrendo em erro algum. Hees certamente tém consciéncia da forca ou do peso p tico de que tais conceitds so portadores, mas ignoram esse eso ao potem a descoberto o significado descrtivo subja- cente e, em si mesmo, neutto. ‘Afirmo que a verdade é diferente. Os berdade, democracia etc. funcionam, no pe discurso comuns, como Conceitos interpt le valor’ ~ eu sentido descrtivo é contestado, €& com "dé quial especifcagéo de um lescritivo or. O significa- do descritivo nao pode ser removido da forga valorativa por- jque o primeiro depende do segundo desse modo pattic lar, E claro que um filésofo ou um cidado podem insistir ue, afinal de contas, no ha valor na democracia, na liber- dade, na igualdade ou na legalidade, Mas ele nao pode de- fender esse ponto de vista simplesthente escolhendo uma (0 Ps-#SCRITO DE HART EA QUESTAO DA FILOSOFIA POLITICA 213, entre as muitas verses questionadas da liberdade, por ‘exemplo, e em seguida insistir que @ liberdade entendida dessa maneira nao tem valor. Ble deve afirmar néo apenas que a liberdade é instil nos termos de determinada con- cepso, mas que ela é inditl nos termos da melhor concep- do defensdvel, e esse é um empreendimento muito mais ambicioso, que nao separa os sentidos descritivo ¢ valora- tivo, mas tira partido da inter-telagdo entre eles, Descritioo em que sentido? “2, 2% ) A segunda dificuldade que mencionei torna-se evi- dente quando perguntamos em que sentido de“descritivo” © projeto flloséfico supostamente de segunda ordem de identificar um valor politico € um projeto descritivo, e no notmnativo, Seré o suposto ‘que tem por finalidade desvendar os-critérios que as pes- 80as comuns realmente usam, talvez sem qualquer cons- ciéncia disso, quando descrevem alguma coisa como uma violagio da liberdade ou como algo nao igualitério, antide- mocratico ou ilegal? Qu seré um projeto estrutural que pre- tende descobrir a verdadeira esséncia do que as pessoas descrevem daquela maneira, algo como o projeto cientifico de identificar 2 verdadeira natureza de um tigre em sua es- trutura genética ou a verdadeira natureza do ouro em sua estrutura atémica? Ou seré uma busca de algum tipo de sgeneralizacio estatfstica de grande magnitude ~ talvez uma, * busca aribiciosa que depende da descoberta de alguma lei sobre a natureza ou o comportamento humanos, que leve as pessoas a denunciar o mesmo ato como nao liberal, por ‘exemplo, ou talvez. um tipo menos ambicioso de generali- zagid que simplesmente afirme que, na verdade, a maioria das pessoas realmente considera como nao liberal um tipo especitico de decisao politica? Devemos conduzir nosso trabalho’a6 long bre- ve reldgio de possibilidades. A gugestao semangla pre \ jeto uma andlise semantic” 9. que todos. tos so regi __étos comuns ag pele meng 214 AJUSTICA DETOGA _ Poe determinados antecedentes factuais. Prescupde que 0 ‘uso de”liberdade”,"democracia”e os outros nomes de con- £eitos politicos é regide ‘nitro iguma fe entre 05 d de inicio, 0 que S80 esses critérios - na ver- dade, se vale a pena realizar 0 projeto filoséfico, isso nao seré ébvio. Contudo, uma cuidadosa atengio, auliada pela indagagao intelectual acerca do que pareceria certo di- zer em situacées especticas, faré com que esses critérios vvesse uma tinica folha de papel com algo impresso como ‘um livro, estaria cometendo um erro, pois existem crtérios comuns para a aplicacio do conceito de livro, e eles ex- cluem uma tinica pégina. O fato de eu empregar ou ndo a palavra ‘livro” corretamente vai depender de como a pala- vra é habitualmente usada, e, se eu disser que uma pagina de texto é um excelente livro, ferei feito uma. _H0 fala. ge Alguns filésofos cometeraly o errO)acredito, de pensar dessa maneira por ct erro de pressupor, de um (0. importancia para os fildsofés politicos, © pano de fundo\, _flos eritérios comuns néo se aplica— retorsando nosso exem- plo mais fécil~ a0 conceto de justiga. Na verdade, pode/ ‘mos imaginar afitmages sobre a justica ou a injustiga que, com base na seméntica, pareceriam descartadas, Eu estaria cometendo un erro conceitual se insistisse, e pretendesse afirmar literalmente, que sete é 0 mais injusto dos niimeros, pprimos"”, Mas nao podemos imaginar o descarte, dessa ma- neira, de afirmagées sobre a justica, nem mesmo das que contém muito pouca importancia ou contetdo polémico. (OPOS-ESCRITO DE HART EA QUESTAO DA FILOSOFIA POLITICA 215 Isso também é verdade, como jé vimos, em relago aos cconceitos mais densos de igualdade, liberdade, democracia, patriotismo, comunidade et. que € ‘sem esse <0, por exemplo, de q pais se toma automaticamente menos democratico quando Sue pric atmenféie anal aumnent Nao M, po- térios-padréo de usd), partir dos quais se poderia ‘ de uma maneira ou de outra, se o controle judicial de constitucionalidade poe a democracia em perigo, ou se ‘todas as leis criminais violam a liberdade das pessoas, ou se a tributagio ete a liberdade, Tampouco alguém ppensa que o{uso-padrao\possa resolver essas controvérsias. O fato de o corttrole judicial de constitucionalidade ser ou ’o incompativel com a democraci 10 depende do que ‘pensa ou como fala a malaria dag pessoas; além disso, as pessoas tém divergéncias genuinas)acerca da democtacia, da liberdade e da igiatdade, a despeito do fato de cada uma uulizar uma concepgao, ft tanto je desses valores / | politicos. Na verdade, af divergéncias politicaddas pessoas phe cet crises pati 0 partici divergem soe oque é de. nae aliberdade ou a igualdade. ‘Devemos, portanto, retomar a segunda possibilidade de nossa relagao, Alguns de nossos conceitos nao sao repi- im ques- | | ie t __ to fatos que podem ser objeto de exros muito comiins. O que os zodlogos chamam de “espécies naturals” nos Torne- cce exemplos bastante claros. As pessoas usam a palavra“ti- gre” para descrever certo tipo de animal. Mas os zodlogos podent descobrir, por meio de uma anilise genética apto- ptiada, que somente alguns desses animais que as pessoas chamam de tigtes so, de fato, tigres; alguns deles podem. ser um animal diferente, com uma composigao genética 216 AJUSTICA DETOGA ‘muito diversa, mas cua aparéncia ¢m nada difere da dos ti- sgres. Desse modo, ao identificar 0 DNA caracteristico do ti- gre, 08 cientistas podem ampliar nosso entendimento da natureza ou esséneia dos tigres. Podemos apresentar um exemplo semelhante sobre outras espécies naturais, inclu- sive, por exemplo, o ouro. As pessoas podem estar totalmen- te equivocades quanto aquilo que, falvez unanimemente, chamam de ouro, Uma anélise quimica sofistiada pode ‘mostrar que alguma parte (ow mesmo tudo) daquilo que a maioria das pessoas hoje chama de ouro nao é realmente ouro, mas sim pirita ou“ouro de tolo”. ‘Os conceitos politicos de democracia iberdade, igual- dade etc. sero assim? Esses conceitos de se ndo cespécies naturats, pelo menos espécies politicas que, como no caso das naturais, se pode pensar que tenham uma e3- ‘rutura ou esséncia bésica inerente? Ou, pelo menos, uma estrutura que seja passivel de descoberta mediante algum processo totalmente cientifico, descritivo, nao normativo? 5 filésofos podem esperar descobrit 0 que a igualdade ou a legalidade realmente & por meio de algo semelhante ao DNA ou & anélise quimica? Nao. Isso é absurdo. Pode ser ‘que pretendamos ter uma ideia desse tipo, Podemos fazer uma relagdo de todos os sistemas de poder politico, passa- dos e presentes, cuja natureza democratica admitirfamos e, ‘em seguida, perguntar quais caracteristicas, dentre aquelas que tais exemplos compartilham, sao essenciais a sua con- digéo de democracta, e quais s40 apenas secundiias e dis- penséiveis. Mas essa reformulacio pseudocientifica de nossa pergunta em nada nos ajudaria, pots ainda assim precisa- riamos de uma descrigéo do que é que torna uma caracte~ ristica de um sistema social ou politico essencial & sua na- tureza enquanto democracia, ¢ olitra caracteristica apenas contingente, e, uma vez rejeitada a ideia de que a reflexao sobre 0 significado da palavra “democracia” poderia nos fornecer tal distingéo, nada mais poderé fazé-Io. Isso € verdadeito nao apenas em relagio aos conceitos politicos, mas a todos os conceitos de diferentes tipos de sis- (OPOS-ESCRITO DE HART EA QUESTAO DA FILOSOFIA POLITICA 217 temas ou instituigées socias. Suponhamos que uma forga- tarefa fosse criada para compilar uma longa lista dos dife- rentes tipos de sistema juridico e social ao longo dos sécu- Jos que atualmente descreveriames como exemplos de ca- samento, a despeito de suias grandes diferencas institucio- nais e de outras naturezas. Suponhamos que descobrimos que, em todos 05 casos de nossa imensa lista, detectasse- mos a ocorréncia de uma ceriménia, e que em nenhum cago essa ceriménia se teria realizado para unir duas pessoas do mesmno sexo. Surge entéo a questo ~ imaginem que pela primeira vez — de saber se uma sociedade conjugal de fato é realmente um casamento ou se os homossexuais po- dem, etn termos conceituais, unir-se em matriménio. Nao seria tuma loucura imaginar que essas questdes sobre a na- tureze mesma do casamento pudessem ser Tesolvidas me- diante exame, por mais longo que fosse, da lista que com- pilamos? Pottanto, nfo se pode demonstrar que a ani fica dos conceitos politicos vestigacio cientifica das espéci \liberdade nao. tem DNA.Voltemo-nos, entéo, para a(terceira possibilidade cde nossa lista. Suponhamos agora que a filosofia politica ar- vediar ja cientifica em sentido mais informal: Como aiaotem em mira as ‘generalizagées histéricas, assim como poderfamos dizer que, na verdad, nenhum casamento ho- mossexual foi reconhecido em lugar algum no passado, também poderfamos dizer, caso nossas evidéncias susten- tassem tal proposigao, que no passado as pessoas sempre consideraram © controle judicial de constitucionalidade como algo incompativel com a democracia. Mas isso pare- ce nao apenas mais fragil do que as afirmagdes conceltuais que 08 filésofos f 4 filosofia politica da it tiga, Isaiah Berlit'nio afirmou apenas que a liberdade e a ighaldade térr-sido frequentemente consideradas. confi tantes entre si, mas que, de falo, elas so conflitantes por iteza, é ele no poderia ter defendido essa ambiciosa * 218 AJUSTICA DETOGA lesment lando (mesmo que isso fos- se verdade) que quase ninguém jamais a pos em diivida. & bem verdade que poderfamos aumentar o interesse dessas enetalizagées sociol6gicas mediante a tentativa de exp cé-las segundo 0 direito ou a teoria biolégica, cultural ou econdmica. Mas isso nao seria de grande utilidade. O fato de insistir que existem boas explicagées darwinianas ou econdmicas do porqué de 0 casamento homosexual ter sido rejeitado em toda parte nao fornece nenhum argu- mento s6lido em favor da proposigao de que o casamento 6 por sua prdpria natureza ou esséncia, restito aos casais heterossexusis. Conceitual e normatioo? Ainda assim, do mesmo modo como ha alguma coisa dlaramente diversa entre 0 argumento de um jurista sobre a possibilidade ou nao de a sra. Sorenson ganhar sua sa.ea argumentagao de um fil6sofo sobre o que é o direito, também hé algo de diferente entre 0 modo como um poli- tico apela a liberdade, & democracia ou a igualdade e a con- cepedo cuidadosamente pensada que um fildsofo tem des- ses ideais, Se nao podemos distinguir entre os dois supondo que a iniciativa do fildsofo é descritiva, neutra e descom- promissada, entio como poderemos identificar a diferen- a? Poderemos dizer que 0 engajamento do filésofo é con- ceitual de um modo que o do politico néo ? Como pode ‘um argumento normativo ser também conceitual? E, se pu- det, por que 0 argumento do politico nao € igualmente > argumento que apresentei Je fto. Bd semelhangas lucida. argument. As espécies naturals tém as pro- ‘priedades importantes que apresento a segui suias caracteristicas dependem da (0 POS-ESCRITO DE HART EA QUESTAO DA FILOSOMA POLITICA 219 invenglo, da erenca ou da decisiio de quem quer que seja. ‘én uma estrutura profunda —seu perfil genético ou seu cardter molecular ~ que explica o restante de suas caracte- istics, inelusive as caracterfsticas superficiais por meio das quais as identificamos, tenhamos ou nao consciéncia dessa estrutura profunda, Identificamos a égua em parte por ela ser liquida e transparente & temperatura ambiente, por exemplo, e aestrutura profunda da 4gua - sua composicéo. :molecular-explica por que ela tem essas caracteristicas. Os, valores politicos e de outtra natureza sio, em quase to ‘meio lugat, o8 valores politicos também sao reais: a exis- téncia © a natureza da liberdade como valor nao dependem da invensao, da crenga ou da decisdo de ninguém. Bem sei que esta afirmacio é polémica: muitos filéeofos a questio- _nam. Mas vou supor que é verdadeira”. Fm segundo lugar, 08 valores politicos tém uma estrutura profunda que expli- ca suas manifestagbes concretas. Se a tributagio progressi- ‘ya é injusta, é injusia em virtude de’alguma propriedade mais gerale fundamental das instituigdes justas da qual ca- rece a tibutagdo progressiva. Esta afirmagdo também é po- lemica: seria rejeitada peloton’ ye acreditam que 03 fatos morais concretos sie-simplesiente verdade!- ros em si e por si mesmos, do modo como so, na opinio deles, apreendidos como verdadeitos, Uma vez mais, po- rém, vou supor que isso seja verdade. 'A diferenga entre espécies naturais e valores politicos, que enfatizel certamente subsiste depois que nos demos conta dessas semelhangas. A estrutura profunda das e=pé- cies naturais ¢fisica, A estrutura profunda dos valores polf- tico8 no € Haiea- € normativa,Porém,aosim como um cien- tista pode ter por objetivo, como um tipo especifico de pro- jeto, revelar a natureza mesma de um tigre ou do ouro 20 ‘expor a estrutura fisica fundamental dessas entidades, as- sim também um filésofo politico pode pretender revelar a nnatureza mesma da liberdade ao expor sua esséncia norma- tiva, Em cada caso, se for essa a nossa vontade, podemos aN 220 AJUSTICA DETOGA descrever o empreendimento como coneeitual. O fisico nos ajuda a ver a esséncia da agua; o filosofo nos ajuda a yer a csséncia da lberdade. A diferenca entre esses projelos, tio _grandiosamente descrtos, = entre descobrir a esséncia P ‘ura em que ela congela, ou entre identifcar a natureza da liberdade e decidir se a tributago compromete a liberdade ~,enfim, apenas uma diferenga de grau, Contudo, a abran- nental do estudo mais ambicio- ‘50 — seu objet “$40 fundamental ee que ele conserve a designacao cel femos alegar, de mancira sensate, | i rapa Bisse Ua Gia desengajada, Mas podemos alegar normative, engaja “€ conceitual, neutra ¢ wente que ela é O que hi de bom nisso? (1) que seja com- fe expleagho, 8 ~estrutura molecular de um metal. Fortanto, uma teorla ge- “ral sobre a justica fentaré aprender, em um nivel adequa- \damental, o valor da justica: tentara mostrar a © justiga, como poderfamos dizer, em sua melhor Iuz, Mas ‘--Same podemos fazer isso sem incorrer emypetigdo de prin- ‘cpio? Nao seria igual a tentar explicar a cof vermelha-sem nos tefetirmos & sua vermethidao?_Podemos dizer que a justiga 6 indispensével porque ica evit -injustica, ou que.a democracia ¢ valiosa porue oferece as [pessoas a possibilidade de se governarem a si prOprias, ou que aliberdade tem valor porque toma as pessoas livres, ou que a igualdade é boa porque trata as pessoas de modo a atribuir-thes a mesma importancia.Essas proposigies, po- ‘ se ‘ndo so tteis, porque utilizam a ideia que pretendem (0 20S-ESCRITO DE HART E A QUESTAO DA FILOSOMA POLITICA 221 explicar! Pome poderfamos esperar fazer melhor que isso? Poderiarfios tentar uma justificagao instrumental a justiga 6 boa porque a injustice degrada as pessoas, ou a democra- cia é boa porque geraimente promove a prosperidade, por exemplo. Mas essas_afirmacdes instrumentais nao ofere- cem resposta: queremos sal 4 bom na justica e na democracia, e nao que outros tipos de beneficio elas oferecem. A@escrigao”mist politicos que hé pouco mencionel pretenide furtar-se a essa dificuldade: permite que os filéeofos reconhegam o aspecto de“valor” do significado da democracia, como uma espécie “de fato nu e cru, e que em seguida se concentrem na reve- Jago da parte purs “descritiva”, Como afirmei, rem, iso tambén nao funciony: se queremos entender real- mente o que é a liberdade, @ democracia, 0 direito ou a jus- tiga, devemos enfrentar a dificil questéo. de saber como um valor. $6 podemos esperar fazé-lo 0 lugar do valor em uma rede mais ampla de cc essa argumentago sem antes introduzir outra importante distingdo. Valores autdnomos e integrados Queremos entender melhor o que significam justiga, democracia.¢ liberdade porque acreditamos que podemos ‘todos viver melhor, juntos, sé chejgarmos a'esse entendi- mento ¢ a uma posigéo consensual sobre ele. Contudo, ha duas concepgdes que podemnos assuimir acerca dat telagio entre entender um valor e vivet melhor ém corisequéncia disso. Fm primeiro lugar, podemos tratar 0 valor como algo auténomo em relaco a nossa preocupagao de viver bem e determinado independentemente dela: devemos respeité- Jo simplesmente porque ele constitui, em si mesmo, algo de valor que, de nossa parte, serd um erro ou uma improprie- dade nao reconhecer. Ou, em segundo lugar, podemos tra~ 'mista” dos valores) p! | | | 222 AJUSTIGA DETOGA tar o valor como algo integrado ao nosso interesse em viver pressupot que se trata de um valor, e que tem o cardter que tem, porque ofato de aceité-lo como um valor dotado de tal caréter entiquece a nossa vida de algum outro modo. As religides ortodoxas adotam a primeica concepgéo dos valores centrais de sua f6: tratam-nos como autono- ‘mos. Elas insistem que viver bem exige a devogao a um ou mais deuses, mas negam que a natureza desses deuses, ou sua posi¢ao como deuses, derive de alguma forma do fato de que uma vida feliz consiste em} respeité-los, ou que po- demos aprofundar nosso entendimento de sua natureza 20 perguntarmos como, mais exatamente, eles teriam de ser a fim de tomar o respeito a eles bom ou melhor para ns. AS- \ ‘sumimos o mesmo ponto de vista a respeito da importan- cia do conhecimento cientifico. Achamos que, para nds, é melhot entender a estrutura fundamental do universo, mas. no achamos — a menos que formos pragmatistas vulgares ou loucos ~ que essa estrutura dependa daquilo que, de al- sguma forma, seria bom para nés que fosse. Poderfamos di- zer que somos acessérios de um mundo fisico que j pos- suia, por si 56, e de maneira independente, toda a estrutu- ra fisica fundamental que possui agora, quando aqui esta- mos, Portanto, embora nossos interesses préticos sejam estimulos ¢ sinais em nossa ciéncia — ajudam-nos a decidir © que investigar e quando nos dar por satisfeitos com algu- ma afirmacao ou justificagao -, eles nao contribuem para a verdade da afirmagéo nem para o poder de convencimento da justificagéo, -Muitas pessoas adotam a mesma concepgaé acerca do Gaalor da atte. Somos acessérios, dizem elas, ao universo dese valot: somos responsaveis he descoberta do que existe de maravilhoso na atte e pelo respeito a seu encan- tamento, mes deveros ter cuidedo de to comete afall- cia de supor que alguma coisa é bela porque o fato de apre- ‘id-la torna nossa vida melhor, ou que podemos identificar ¢ enalisar sua beleza levando em consideragao © que, sob (0 POS-ESCRITO DE HART EA QUESTAO DA FILOSOFIA POLITICA 223 outros aspectos, seria bom que admiréssemos no modo como admiramos a arte. G. E. Moore defendia uma forma bastante radical da concepsao de que 0 valor da arte ¢ au- ténomo: dizia que a arte conservaria todo o seu valor ain- da que todas as criaturas que pudessem aprecié-la se fos- sem deste mundo para nunca mais voltar. Nao precisatnos ir tao longe para ptesumir que o valor da arte € auténomo; contudo, podemnos dizer que uma pintura ndo teria valor se no tivesse nenhum significado nem exercesse qualquer impacto sobre qualquer sensibilidade, sem presumir tam- bém que seu valor depencle do impacto que ela realmente exerce, ou do valor independente desse impacto para qual- quer criatura. Por outro lado, seria totalmente implausivel tratar as virtudes e as realizagées pessoais que tornam meritéria uma vida como se elas tivessem apenas valor auténomo. ‘Ser uma pessoa divertida ou interessante sfo virtudes a ser cultivadas e admiradas, mas somente devido & contribuigdo que dio ao desfrute de nossa vida e das vidas alheias. mais dificil identifcar a contribuicao de virtudes mais com- plexas, como a sensibilidade e a imaginagao, por exemplo, mas é igualmente implausivel que nosso reconhecimento delas enquanto virtuces sobrevivesse a um entencimento sgeral de que elas no oferecem absolutamente nenhuma contribuigio independente. A maiotia das pessoas aprecia ‘a amizade: elas consiceram que uma vida em que nao exis~ tem relagées estreitas com 0s outros é muito pobre. Mas indo pensamos que a amizade apenas é 0 que é, como um planeta, e que sta tinica ligagao com uma vida desejével & 6 fato de que uma vida desejével é aquela que a reconhece, qualquer que seja 0 seu desdobramento. Nao quero dizer, por cetto, que relacionamentos como a amizade 96 s80 va liosos pelos escassos beneficios que trazem aos amigos, como a cooperagdo na conquista de objetivos. Seu valor, porém, nao independe do modo como elas enriquecem a vida de outtas maneiras; podemos ter opinides divergentes sobre que maneiras sio essas, precisamente ~ a amizade é 204 ATUSTIGA DETOGA lum conceito interpretativo" -, mas ninguém acredita que a amizade continuaria sendo importante caso se conclufsse que ela nada faz. pela vida dos amigos, a nao ser tornd-los Contudo, embora seja implattsivel supor que alguna qualidade ou conquista pessoal s6 tenha valor auténomo, muitas vezes 6 difcl, como alguns desses exemplos stige- rem, identificar o modo como o valor dessa virtude ou con- uista esté ligado a idela mais abrangente de uma vida fe- liz, Consideramos a integridade, o estilo, a independéncia, a responsabilidade, a modéstia, a humildade e a sensibili- dade como virtudes, por exemplo, e a amizade, o conheci- mento teérico e © amot-proprio como conquistas impor tantes. Um cientista social darwiniano ousado pode de- ‘monstrar, um dia, que essas caracteristicas e ambigies ti- ‘nham valor de sobrevivéncia nas savanas ancestrais. Mas iio é assim que elas se nos apresentam: no achamos que ‘ sensibilidade, a integridade pessoal ou a conquista de al- ‘gum entendimento da ciéncia de nossa época so impor- ‘antes porque uma comunidade seria menos préspera ou correria mais tiscos de invasdes inimigas se seus,cidadaos ‘no as considerassem como uma virtude ou um objetivo. Em vez disso, consideramos esses valores como aspectos out ‘componentes de uma vida atraente e plenamente bem-s- cedida, e no como recursos instrumentais para vir a t8-la, Seria igualmente pouco sensato tratar os valores poli ticos que até aqui discutimos, como justice, iberdade, lega- lidade e democracia, como valores auténomes. A justica no é um deus ott um icone: nés a valorizamos, se 0 faze mos, devido a suas consequéncias para as yidas que leva _-Mos.enquanto individuos e coletivamente. £ verdacle que a Ctradigio arquimediaina.as vezes parece supor que a liberda- oF éxeriplo;assiin como a grande arte, é simplesmen- te o que é, e que, embora talvez devamos consultar nossas prOptias necessidades e interesses para decidir quao im- Portante ¢ a liberdade, tais necessidades e interesses no so pertinentes para se tomar decisdes acerca de sua natt- (0 POS-ESCRITO DE HART E A QUESTAO DA FILOSOFIA POLITICA 225 reza, Ou 0 que realmente significam a democracia, a igual- dade ow a legalidade, Nada sendo esse pressuposto pode- ria explicar a declaragao confiante de Berlin, por exemplo, de que a liberdade e a igualdade, exatamente como vem 20 «caso, so valores conflitantes; ow a afirmacao de outros fi- losofos de que a liberdade, devidamente compreendida, & comprometida mesmo pela tributagdo justa. No obstante, parece profundamente-Gontra-intuitivo que valores politi- cos importantes, que quase torlos devéin, as vezes, sacrifi- car-se para proteger, tenham apenas valor auténomo, e, até onde tenho conhecimento, nenhum dos arquimedianos politicos chegou a fazer tal afirmagéo. 0 que hl cde bom nisso? (TD) Esse fato aparentemente irresistivel — 0 de que Jores politicos sao integrados e néo autdnomos remontar diretamente a dificuldade com que nos de} mos anteriormente. Como podemos explicar 0 que hd de bom nesses valores sem incorrer.em petisio de principio? Essa exigéncia é menos ameacadora no caso dos valores auiténomos d6 que no dos valores integrados. Podemos con- siderar que é uma loucura até mesmo imaginat, por exem-_\.« plo, que a questo do motivo de a grande arte ter valor: deria ser respondida sem recorrer & petigao de principid, Se valor da arte se encontra exatamente ein seit pt6prio va- Jor auténomo, entéo na verdade seria igualmente tao estra> nho pedir uma descrigao desse valor em outros termos ‘quanto pedir, também em outros termos, uma definigéo do vermelho, Afinal de contas, nada nos impede de pér em dévida a afitmagio de que a arte realmente tem valor. Mas ‘no seria sensato afirmar, como prova de que tal valor ine- xiste, de que é impossivel especificar tal valor de uma ma- neira nao circular, Contudo, néo podemos nos livrar tao fa- cilmente da dificuldade no caso, dos valores integrados, ‘uma vez. que nao pressupomos apenas que a existéncia de é 226 AJUSTIGA DETOGA tum valor integrado depende de uma contribuigéo que Gia algum outro tipo de valor independentemente especi- ficével, como a boa qualidade das vidas que as pessoas po- dem levar, mas também que a caracterizacio mais precisa cde um valor integrado — por exemplo,a descr a isa do que &, de fato, a liberdade ~ depen. cat essa contribuigio, Imagine umd discusséo sobre alguma virtude: a modéstia, por exemplo, Perguntamos se a mo- déstia é afinal, uma virtude, e, se a resposta for positiva, qual é a linha diviséria entre a virtude e o vicio da abnega 80, Seria perfeitamente apropriado esperar, ao longo des- sa reflexo, que se nos apresentassem algumas vantagens da modéstia, e, se ndo se encontrasse nenhuma além da- quela em que se enuncia que a modéstia constitui a sua propria recompensa, teriamos de considerar essa auséncia fatal para as alegagies de virtude, Potanto,nio podemos evita e devenos agora enfen- mo 6 valor dos valores integrados, m politicos, podern ser identificados. Al guns valores integrados, como a beleza, podem ser consi- derados totalmente instrumentals, Os mais interessantes, porém, como a amizade, a modéetia e o3 valores politicos, ‘do sio instrumentais em nenhurn sentido evidente. Nao valotizamos a amizade apenas pelas vantagens limitadas que ela pode trazer, nem a democracia apenas porque ela & boa para os negécios. Se pudéssemos ordenar esses dife- rentes valores integrados em uma estrutura hierérquica, talvez conseguissemos explicar a contribuigéo dos que fi- cam mais embaixo na hierarquia a0 demonstrar de que modo eles contribuem com os mais dios ou ajudam a xeal- sé-los. Poderiamos ser capazes de mostrar, por exemplo, que a modéstia é uma virtue porque contribui de alguma forma para a capacidade de amar oi fazer amigos. Mas esse projeto parece imposstvel, pois — emibora seja possivel cons- fatar que alguns valores éticos dio sustentacao a outros de alguma manera —a sustentagao parece mais miitua do que hierérquica, Uma pessoa modesta poderia por esse motivo, (POS ESCRITO DE HART EA QUESTAO DA FILOSOFIA POLITICA 227 ter uma capacidade maior de amar e fazer amigos, mas 0 amot ¢ a amizade profundos também podem contribuir para tomar as pessoas modestas. Nenhium aspecto sinico daquilo que consideramos como uma vida atraente e bem sucedida parece suficientemente dominante para tomar plaus{vel que todos os outros abjetivos e virtudes que reco- nheceros estejam apenas a servigo dele. Creio que é pos- sivel especilar sobre a natureza geral de uma vida feliz. J& afirmiei em outro livo, por exemplo, que deveriamos ado- tar um moéelo de desafio para a ética —viver bem significa ter bom desemp resposta a um desafio que pode ser bem resolvido sem, por outro lado, afetar a histéria hu- ‘mana —em vez. de um modelo que, para avaliar éxito de ‘uma vide, fenha de perguntar em que medida ela melho- rou a historia humana’. Todavia, nenhum modelo geral para a ética pode servir de teste final ou definitivo para ob- jetivos e virtudes secundétios. Podemos admitir que viver bem significa reagir bem a uma modalidade espectica de desafio sem, com isso, decidir se viver com inteligéncia sig nifica reagir bem ou apenas cuidar-se bem, ou se, em de- terminadas circunstancias, a humildade é, de fato, subser- vigncia, ou se a nobreza é aviltada por interesses comer ciais, ou se a democracia nada mais € que 0 governo da maioria Se quisermos entender melhor os valores integrados no instrumentais da ética, devemos tentar compreendé- los de modo holistico ¢ interpretativo, cada_um a luz. dos. “demas, organizados nao hierarquicamente, mas na forma __de uma cipula geodésica. Devernos tentar determinar o que -€-auinizade, a integridade ou 0 estilo, e quao importantes , sao esses valores, percebendo que concepgio de cada um e 3. que atcibuigio de importancia a eles melhor se ajustam a 8 (Ce, nossa percepsio das outras dimensdes do viver bem de ser | 88 bem-sucedidos diante do desafio de viver nossas vidas. A. [Bh eX fética & uma estrutura complexa com diferentes objetivos, (© realizagdes e virtudes, e a parte que cada um desempenha +" gi nessa estrutura complesa $6 pode ser compreendida me- BT yerrsan on A ) BP ‘ i 228 AJUSTICA DETOGA diante a elaboragio de seu pape! em um projeto geral esta~ belecido pelos outros. Enquanto formos incapazes de per- ceber de que modo nossos valores éticos permanecem tni- dos dessa maneira, de modo que cada tum possa ser testado em comparagao com nossa descricao proviséria dos outros, io conseguiremos entender nenhum deles. Nao obstante, dduas das imagens filos6ficas mais desgastadas pelo uso so adequadas neste contexto. Nas questaes de valor e de cién- cia, reconstrufmos nosso barco em alto-mar, uma tébua de cada vez, Ou, se preferitem, a luz espalha-se lentamente sobre a totalidade. 05 valores j deve Incorpo nessa_grande estrutura. Deve almejar, primeiro, elaborat | concepgbes ou interpretagdes de cada um desses valores que fortalegam os outros — por exemplo, uma concepgao de Fee ‘que seja titi] a igualdade e a liberdade, ¢ con- Jeepgdte de cada um desses outros valores que sejem titeis a dembcracia assim concebida. Além disso, seu objetivo deve ser elaborar essas concepeées polit parte de ma estrutura de valor ainda mais inckisiva, que ligue a ‘rutura politica nao apenas a moral em termos mais gerais, mas também A ética. Tudo isso, sem divida, parece impos. sivelmente e, talvez, até mesmo desagradavelmente holis- tico. Mas no vejo de que outra maneira os filésofos podem. abordar a tarefa de attibuir 0 maximo possivel de sentido critico a quaisquer segmentos dessa vasta estrutura huma- nista, que diré dela toda, Se compreendermos que essa ter sido a responsabilidade coletiva dos fildsofos ao longo do tempo, cada um de nds perceberé melhor nossos préprios papéis individuais, periféricos ¢ incrementais. —-Devo admitir que esta concepea0 dé filosofia politica se opé8)a dois dos mais notéveis exemplos da pesquisa ‘cofttetpordnea nessa érea: 0 iberalismo*politica” de john Rawls § 0 pluralismo politico associado ¢ Isaiah Berlin, Mi- wendacdo € semelhante ao bequilibrio: Rawls, que pret i (© POS-ESCRITO DE HART A QUESTAO DA FILOSOFIA POLITICA 229 teorias sobre a justica. Todavia, a diferenga com a metodo- logia de Rawls & mais surpreenidente do gue as semelhan- cas, pois 0 equili ‘nao fica: tica. Se a filosofia politica ndo for abrangente em suas am- bigdes, deixard de resgatar a percepcio crucial de que os va~ lores politicos sao integrados, e nao autSnomos. ‘Nao posso aprofundar aqui a descrigdo da filosofia polt- tica assim concebida, mas recamendo meu livro Sovereign Vir- tue [A virtude soberana) como um exemplo de texto no qual, a0 ‘menos de modo autoconsciente, pode-se encontrar essa mes- ma disposiglo de espiito". Devo enfatizar que esse projeto abrangente nao se baseia na premissa absurda de que, na filosofia politica ou na teoria dos valores em termos mais ge- a verdad seja uma questo de coeréncia. Certas teorias ccbee nails alla, eso qUanAO SlSgaNTeE © p= rmorosamente coesas, podem ser falsas, quando nao repul- sivas. Nao visamos & coetncia pela coeréncia, mas sim & conviegdo e ao maximo de coeréncia que pudermos obter. 'Esses objetivos afins podem — na verdade, acho que frequen temente devern — fortalecer-se mutuamente. E mais facil encontrar um sentido profundo de exatidéo. em um con- junto de valores unificados e integrados do que em uma ls ta de tompras. Nao devemos perder de vista, porém, que os dois objetivos podem trazer problemas um a0 outro. Po- dem fazé-1o, por exemplo, quando nossa percepcéo inicial dda natureza de dois valores - 0 patriotismo e a amizade né famoso exemplo de E. M, Forster’, por exemplo, ou a liber~ dade e a igualdade do modo como Berlin as explica ~ mos- ‘ra qute eles esto em conflito, Podemos ser capazes de ela "A rae em questo enconra-2e no romance Tao Cheers fr Demacrney, de 1951: The the iden of eases, endif 1 had to chose Betoeen betraying my ‘aunty and betraying my fren, Thope should ave the guts to Betray my country. (Odeo a idea de causes, ese ivesse de pear ere alr meu pals alr mes Amigo, gostaia dete a coragem de trac meu pais“) (N. do) itu clitca, mas ee inchal tanto a moral pessoal eae 230 AJUSTIGA DETOGA ‘borat concepedes de patriotismo e amizade, ou de liberda- de e igualdade, que eliminem o conflito. Mas. er ~GGes podem nao falar & nossa alia: podem parecer art tncias lamentaveis, afirmava Plato, é melhor que as auto- ridades sejam obrigadas a seguir o que se determinou no, ppassado, pois nfo se pode confiar em sta capacidade de to- mar, por si mesmas, boas decides 2 enuye vivern Conservadores politicos como Burke 4 Blackstone frequen- temente defenderam a legalidade em ter to pareci dos. Para eles, 0 direito estabelecido era um repositorio de sabedoria acumulada e pensamentos claros, o que o torna: va mais confiavel do que as decisbes de individuos de card 7 246 AQISTICA DETOCA [ ter conhecimento ¢ habilidade limitados, particularmente \ aquelas tomadas no calor da hora. _A segunda razo para supor que a legalidade methora diferente: ndo se baseia em nenhura estabeleci- dos sejam mais sébios e justos do que as decisoes tomadas ros casos atuais, e sim ruma concepeao de legalidade que Perit que os cron pam og pate estabeleido favo Fecam, ou mesmo assegurem, esse resultado, Of jusnatura- listas medievais-pensavam que o bom governo sigiificava’ goweino de acordo com a vontade de Deus, que a vontade de Deus se expressava nas leis morais da natureza e que os, sacerdotes e os governantes dotados de inspitagao divina, eram gulas confiéveis nos caminhos que levavam a tis les. Podemos entio dizer que eles se sentiam naturalmente atraidos por uma concepgao da legalidade que enfatizava essas auspiciosas relagSes entre legalidade e virkude politi- a, €, consequentemente, por citérios ji ore im ‘a exigéncia de valor ou aceitabilidade moral. No conceitp ahstrato de legalidade mio hé nada que exclua essa relacao, Ese 0 vetdivere valor da legal a8 fat entero ~ através de uma concepgio que o formalize, entao tal con- “cepsao parecerd irresistivel aqueles que aceitam 05 conjun- tos de percepedes aos quais ele se ajusta. Em stas diferen- | tes formas e manifestagoes, a tradigao do direito natural tem ‘como premissa esse modo de entender por que a legalida- de tem o valor que tem. Eficigncia. Todvia, Jeremy Bentham* — ue no minimo foi o fundador da forma inglesa de positivismo juridico — nao se * Bentham fol um filsofo muito proieu ¢ sua obra éformada prin menos eseios, mats ada no publleados. Grande parte desse material ‘ryanizada epublica durante oséeulo pasado, mas sua fideldace € ques- tiondve.O Bentham Proje, desenvovido na Faculdade de Dieto do Univer- sity College, de Londies, ¢ fomentado por aigimas importantes insitugtes buiinkeas std organzando uma ecgio defitva da obma de Bentham pre- ‘ata para totalizat 40 volumes. (N. de RT) objeto de-um guide (0 POS-ESCRITO DE HART EA QUESTAO DA FILOSORIA POLITICA 247 sentia atraido por nenhum desses dois conjuntos de pres- supostos, ara ele, os critétios antigos niio eram bons; a0 contrario, Bentham era um inovador obstinado, até mesmo radical. Ele no acreditava que a lei motal fosse evidente na natureza de Deus; ao contrétio, achava que a propria ideia de direitos naturais era um grande absurdo, Sua concepgao da virtude da legalidade nio estava baseada na exatidao, politica) pensava ele, en- ‘no'bem maior para o maior numero, € a melhor rmaneira de asseguirar que isso aconteca ido é por meio'das diferentes decisdes coercitivas ou politices tomadas por di- ferentes autoridades com base em seus julgamentos ime- diatos e divergentes, mas sim por meio de esquiemas poli s consequiéncias complexas podem ser so éstudo preliminar, e que podem set formulados detalhadamente, de preferéncia em com- pices dls jjuridicos, e aplicados ao pé da letra. Somen- te desse modo se podem resolver os enormes problemas de coordenagao com que se depara o gaverno de uma socie- dade complexa. O positivismo juridico é um resultado na- tural dessa compreensio do ponto fundamental @ d6 Ver= dadeito valor da legalidade. Para ele, quando se incluem critérios morais entre os critétios juridicos, a legalidade tor- na-se objeto de concessdes ou vai sendo destruida aos pou- os porque os crtérios morais permitem que os cidadios e as autoridades que divergem, em geral ferrenhamente, acerca das exigéncias da moral, sobreponham seu proprio julgamento Aquele ja estabelecido: a desorganizagio resul- tante no produzira utilidade, mas caos. Portanto, Bentham seus seguidores insistiam que o direito é tudo 0 que’ eretado pat um goyernante ou Parlamento so- e nada além disso: a lei para onde termina o de- Somente esse modo de entender as coisas pode pro- legor.a eficéncia do direito. (Os positivistas posteriores se mantiveram leais a essa ‘renga: todos eles enfatizam o papel do direito na substitui- a0 das incertezas das imprecagSes morais ou consuetudi- 248, AIUSTICA DETOGA ‘nérias por uma orientagéo firme-e-decisivé, Hart Jscreveu, cde modo muito afinado com Thomas Hobbes) um positivis- ta de uma era anterior, que a legatiatletaftige as deficién- cias de um estado mitico de nat _nuito anterior a0 Estado de Direito ose “a esséncia da legalidade é a autoridade, que a autoridade ser prejudicada ou solapada a tmenos que se possam iden- tificar suas dizetrizes sem recotrer aos tipos de motivos pata agir que 0s cidadiios apresentam antes que a autoridade se tenha manifestado. Ele insiste em afirmar que a autoridade 86 pode atender a suas finalidades se suas diretrizes subs- tituirem os motivos alegados pelas pessoas, em vez de ape- nas virem somar-se a eles, Como afirmei, a eficiéncia nao & o tinico valor que os positivstas levam em consideragao para formar suas con- cnet re vale a pena mencionar alguns dos outros(Bentham) por exemplo, considerava importante que o pablico mantivesse um saudével sentimento geral de des- confianga, e mesmo de ceticismo, a respeito do valor moral de suas leis: as pessoas deviam entender a diferenca entre © direito como ele é e como deveria ser. Ele se preocupava com a possibilidade de que, se os juizes pudessem apelar de maneira adequada & moral para decidit 0 que é o direi- to, essa linha divis6ria crucial se tornaria confusa: as pes- soas poderiam presumir que qualquer coisa que os juizes declarem como direito nao pode ser muito ruim por ter passado por esse teste moral, Entre os postivistas contem- Pordneos, Liam Murphy apelou & importancia da vigilancia pilblica ao defender sta propria compreensio positivista do valor da legalidade”. Hart ndo estava preocupado ape- as coma eficiéncia, mas com um aspecto independente da imparcialidade politica. Se 0 direito de uma comunidade se 6 simplesmente desco que declaradlo pelas fontes sociais pertinentes - pelo poder ‘Tegislativo, por exemplo ~, entéo os cidadéos devem ficar atentos ao momento em que o Estado vai interyir em seus __ interesses com o objetivo de ajudax, difcultar ou punir. Por (0 POS-ESCRITO DE HART E A QUESTAO DA FILOSORIA POLITICA 249 cutro lado, se as decisdes dessas fontes forem submetidas a ‘urna complementago ou atenuagao por meio de considera- Ges e prinefpios morais, os cidadéos no vio poder, tao fa- cilmente ou com o mesmo graut de confianca, saber em que pé se encontram, Nos Estados Unidos, alguns constituciona- listas se deixam atrair por uma versio do positivismo por um motivo totalmente diverso. Caso se admita que a moral se encontra entre os critérios do direito, entao os juizes cujas ‘opinides morais seriam decisivas nos casos constitucionais tém um poder muito maior sobre os eidaddos comuns do ‘que tetiam se a moral fosse considerada irrelevante a seu oficio, Patticularmente quando os juizes siio nomeados, ¢ no eleitos, e nao podem ser depostos pela vontade popu- lar, esse aumento de seu poder é antidemocritico®. Portanto, os positivistas juridicos podem defender sua concepsao da legalidade, que insiste que a moral néo é per- tinente a identificagao do direito, demonstrando quo bem a legalidade assim compreendida serve A eficiéncia, ¢ tam- bém a esses outros valores. Essa defesa pressupée, por cer- to, concepcdes particulares desses outros valores, ¢ essa concepgGes podem ser e tém sido questionadas, Poder-se- ia argumnentar que eficiéncia politica significa coordenar 0 compottamento de uma popuilacao de modo a encaminha- la para objetivos virtuosos, por exemplo, € no simples ‘mente para quaisquer objetivos; que se faga a devida adver- téncia, pelo menos em alguns contextos, por meio da pro- messa ou da ameaga de que os critérios morais serao apli- cados na avaliagio de comportamentos especificos; que 0 jufzo eritico do grande puiblico ¢ estimulado, e nao dimi- nufdo, por um entendimento “protestante” do direito que Ihe permite divergir, em parte por motivos morais, das de- claragbes oficiais sobre o que é exigido pelo direito; e que a Scarce significa pao apenas governo da maioria, mas {la Sujeito as concligdes, que so condigées morais, cue conferem imparcialidade|a essa forma de go- verno. O positivism rejeita essas e outras leituras alterna. tivas — isto é, nao apenas escolhe os valores politicos a se- 250 “AMUSTICA DETOGA tem enfatizados na elaboragio de uma representacao da le- ‘galidade, como também interpreta esses outros valores, de 2 luz de sua prépria concepeao de k de aineagadoramente circular nessa ‘complena interagao conceitual; ao contrério, trata-se exata- ‘mente daquilo que requer o projeto filoséfico de situar um valor politico como a legalidade em uma rede de valores mais ampla. ntegridade. A eficiéncia do Estado, em qualquer concepéo plausivel do que isso signifique, é sem diivida um impor- tante produto da legalidade, e qualquer explicagao plausi- vel do valor da legalidade deve enfatizar esse fato. Nenhum governante, nem mesmo um tirano, sobrevive por muito tempo out realiza seus objetivos, mesmo quando da pior qualidade, se abandonar totalmente a legalidade por capri cho ou terror. Mas hé outro valor importante a0 qual a le- gelidade também poderia aparentemente servir, néio em compeligéo com a eficiéncia, mas com suficiente indepen- déncia desta para oferecer, aqueles que 0 consideram de grande importincia, uma concepeao diferente dos objeti- ‘vos da legalidade. Refiro-me & integrids i _nifiea igualdade perante o direito io apenas “que ele seja imposto conforme escrito, mas no sentido miais ppertinente de que o Estado deve goverar de acordo com lum conjunto de princfpios em principio aplicavel a todos. A. coergo ou a punigao arbitréia infringe essa dimensio cr- cial da igualdade politica ainda que, de vez em quando, realmente tome o governo mais efciente. ‘A integridade tem sido um ideal popular entre os filé- sofos politicos ha séculos, e sua relacao com a legalidade tem sido frequentemente notada. A relagio as vezes 6 ex- pressa pelo preceito segundo o qual, no Estado de Direto, nenhum homem esté acima da lei; mas a forca dessa afir- ‘maggo, como deixam claro as diversas discuss6es que lhe dizem respeito, nao se esgota com a ideia de que cada lei _dleve ser aplicada. contra cada individuo em seus pr (OPOS-ESCRITO DE HARTE A QUESTAO DAFILOSOMA PoLtTICA 251 ‘ermos, Essa estipulagio seria atendida por leis que, segun- do seus proprios termos, se aplicasse somente avs pobres ‘0u isehtasse os privilegiados de deveres, impostos, obriga~ Bes etc, e os fil6sofos que descrevem a legalidade desse modo tém em mente a igualdade substancial perante a lei, endo a mera igualdade formal’ A.V. Dicey)por exemplo, em seu estudo dlassico sobre a Constituigao inglesa, faz a se- guinte distingdo: Queremos dizer, em segundo lugar, quando nos referi- mos a0 Fstado de Direito, (.) nfo apenas que, para nés,ne~ ‘nhum homem estéacima da lei, mas (0 que ¢ diferente) que s0b esse aspecto cada homem, qualquer que soja sua classe ‘041 candigéo soca, estésujelto 8 el ondindtia do reino (... mais adiante,. a isso como" ideia de igualda- de fair A Ho ‘uma afirmagéo muito pareci- da, muito emt ‘ue nao nos surpreende — cle a ass0- cie & liberdade, e nao a igualdade. Em uma obra cléssica, ele escreveu: ‘Acconcepgio de liberdade de acordo com os critérios da. ei, que constitul a preocupagio central deste livro, baseia-se na alegacio de que, quando obedecemos a leis, no sentido de regras gerais abstratas estabelecidas a despeito de sua aplcabilidade a nés, nfo estamos sujeitos & vontade de ou- ‘ro homem e somos, portanto, lives (.. Contudo, isso 36 sera verdadeiro se, por“lei", entendermos as regras gerais {que se aplicam igualmente a todos. Esea generalidade talvez, seja oaspecto mais importante desse atributo do direito que cchamamos de” abstratividade”. Assim como uma verdadeira lei ndo deve especificar qualquer detalhe particular, tampou- ‘co deve ter como alvo qualquer pessoa ou grupo especitico de pessoas.” neira, estatemos favorecendo uma concepcéo da primeira) | que fefletee estimula a associagéo. Preferimos uma descr. Se associarmos a legalidade a integridade dessa = ‘gao do que € direito, e de como se pode identificé-lo; uma 252 AJUSTICA DETOGA | descrigao que incorpore o valor a integridade ~ cuja per- tinéncia e impottancia reconhecemos. Se uma maneira de decidir 0 caso da sra. Sorenson 6 traté-la como igual peran- te 0 diteito, no sentido assumido pela integridade, e se ou- ‘tra ndo o fizer, daremos preferéncia a uma concepcao de le- galidade que estimule a primeira decisio e desestimule a segunda. Tentei elaborar uma concepcio de diteito semne- Ihante em O inpério do direito; & a descrevi resumidamente neste ensaio e ngo vou ampliar a descrigo agora. Em vez disso, quero enfatizar que O império do direito apresenta apenas um modo pelo qual a integridade e a legalidade po- ddem ser mutuamente compreendidas em seus termos, e que 08 leitores insatisfeitos com minha elaboracio nao devem rejeitar 0 projeto geral por esse motivo. Imagino, porém, que devo antecipar uma objesao dife- rente que alguém poderia fazer a esse respeito, Essa pessoa ‘pode alegar que a decisio correta no caso da sra, Sorenson depende do que o direito realmente 6, e nao do que gosta- rfamos que fosse por nos sentirmos atraidos por algum ou- tro ideal, como a integridade. Porém, como venho tentan- ‘que ndo tena relagao alguma com a pré- ica jurdica: uma descrigio bem-sucedida de qualquer va- Tor deve permit que a vejamos como uma descrigao desce vvalor do modo como ele existe e funciona no contexto de “um esquenna de valores que compartilhamos. Assim como ‘uma afirmacéo sobre os direitos juridicos da sra. Sorenson (0 POS-BSCRITO DE HARTE A QUESTAO DA FILOSOFIA POLErICA 253 dade capaz de ajustar-se bem: é por esse motivo que temos diferentes filosofias judiciais representadas até mesmo em. ‘um mesmo tribunal. de \ to juridico é seu eleinento mor Positivismo interpretativo As dificuldades que até o momento descrevi sobre a metodologia preconizada pelo proprio Hart, que insiste que as teorias do diteito sao descritivas e neutras, podem ser resolvidas se reformularmos os argumentos dele & ma- neira interpretativa.que-venho sugerindo, Esforgamo-nos para entender @legalidage por meio do entendimento do que existe nela Portante € valioso, © nos sentimos cia de que 8 Tegalic também & um conceito contestado: pre descr idade que nos mostte que Valor ela con- ‘tém. A chave para essa niova questo eno! ra de outros valores que os positivistas juridicos tradicio- rnalmente exaltam, e, em particular, na eficiéncia que essa ‘autoridade traz. consigo..Como os positivistas desde Hob- ‘bes até Hart tém assinalado, e como tem sido amplariiente confirmado pela histéria, a autoridade politica toma posst- veis as diretrizes potiticas e a coordenacao, e muito embo- 1a ditettizes politicas e coordenagao possam nfo fiuhcionar, ‘tendo em vista o bern geral, trata-se de algo que fazem fre- ‘quentemente — ou mesmo habitualmente. Somos guiados por essa rfiatriz mais ampla de ideias’ao estabelecermos as ‘concepeies dos conceitos distintos que ela implica: o3 con ceitos de legalidade, eficiéncia e autoridade. Devemos esta- belecer concepgdes desses conceitos que Ihes permitam de- sempenhar seu papel no contexto mais amplo. tamos uma foncepgio positivista exclusiva’ de le que insiste que @ moral nao de- de wm argumen- u 254 AIUSTICA DETOGA sempenha papel algum na identificagao das verdadeiras de diteito, bem como a conceprio“de servigo" da autoridade, assim designada por Joseph Raz) que insiste ‘que autoridade s6 é exercida quando o que se determinou. Bre sr entice sem anecephade de ecorrer sr es 3-se, a prpria instancia determinante tem. Fs delectuetenar © nubsttuirs [é née presumimos ‘que essas afirmagoes conceitiais sejam\escavagies neutras arquimedianas de regras enterradas em conceitos passf- vveis de entendimento por qualquer pessoa com pleno en- tendimento do conceito ou total conhecitnento da lingua ‘gem. Também podemos afirmar, fazendo coro com os posi- Uivistas, que identificamos os aspectos proeminentes de ‘nossos conceitos que nos ajudam a entender melhor nés mesmos, nossa prtica ou nosso mundo, Mas agora torna- mos eplicito o que ¢ obscuro nessas afirmacoes _melhor conhecimento de nés mesmos e de nosses praticas, se dé de tum modo especifico — pela elaboragao de concep- bes de nossos valores que mostram aquilo que, apés um de reflexio, encontramos de mais valioso néles, “individualmente e no to ¥ conclusées sejam definitivas ou néo sofram a influéncia de | decisées politicas concretas. Se riossas formulagées mostra- rem que a maior parte do que as pessoas pensam sobre 0 direito 6 um erro - se mostrarem que as alegacSes de direi- | to feitas pelas duas partes no caso Sorenson estao erradas | porque nenhuma delas respeita a tese das fontes -, conclu emos que isso no representa um constrangimento para | nés, do mesmo modo como nao nos sentirfamos constran- \ gidos se nossas conclusdes sobre a igualdade demonstras- sem que a maioria das pessoas se equivoca profundamen- te quanto ao verdadeiro significadb da igualdade.) Em minha opinigo, isso é 0 inélhor que podemos fazer pelas afirmacées fundamentais do positivismo juridico, Sei _que parece insignificante e artificial, porque na verdade nos- “30 direito nao se tornatia mais exato ou previsivel, rem “Rosso governo mals eficlente ou eetvose, de rep (0 POS-ESCRTO DE HART EA QUESTAO DA FLOSORIAPOLfTICA 255 908 juizes se convertessem ao positivism jurdico e passas- .a defender, explcita e rigor se das fortes. “Ao conto nese caso 05) uzes be fundamen nu as palavras aoe e ‘ptetad: .Ainda que,_de alguma forma, evitassem essa assustadora conclusao, eles seriam obriga- dos a subverier a legalidade em vez de servi-la, mesmo nos termos da concepea0 po: que setiam obrigados a declaras, com demasiada frequencia, ou que 0 direito nada diz sobre a questao em litfgio, ou que o direito é por demais injusto, insensato ou ineficaz para ser _aplicado, Os juizes que considecassem intoleravel a inexis- {éncia de solucio jurfdica para Sorenson, por exemplo, se- riam obrigadlos a declarar que, apesar do fato de o direito favorecer 03 laboratérios demandados, eles ignorariam 0 direito e, portanto, a legalidade, e Ihe concederiam a inde- nizagao reivindicada, Eles declareriam ter 0 “poder discri- ionétio" de modificaro direito (ou, o que vem a dar no mes See i ls ees mee a inioen 2 mediante o exercicio de um novo poder legislative que con- tradiz.o mais elemnentar entendimento das exigéncias da legalidade, Portanto, pode parecer impr6prio ou, no mfnimo, pou- co generoso de minha parte atribuir aos positivistas uma defesa de seus pontos de vista que jé traz em si o proprio fracasso. Mas devemos mencionar entio 0 fato de que, ‘quando o postivismo foi proposto pela primeira vez, e quan do era uma forga concreta entre juristas e juizes e no ape- nas uma atitude académica, a situacdo politica era muito diferente, Bentham, por exemplo, escrevet em uma ce) I fem que osnegécios eram mais simples € estaveis,€ en que vigorava uma cultura moral mais homogenea: € perfeita-, ente compreensivel que ele esperasse, como de fato 0 fez, por codificagSes de leis que raramente deixariam bre- 256 AJUSTICA DETOGA has ou exigiriam interpretagbes controvertidas. Em tals cir- cunetancias, 8 juizes que brandiam entéios morals para © direito representavam uma ameaga diferente & eficiéncia utiitarista, que podia ser evitada de maneira muito simples, negando-Ihes tal poder. Mesmo nos primérdios do século 20% havia juristas progressistas que compartilhavam os pon- tos de vista de Bentham: o progresso, pensavam eles, podia ser alcangado por meio de érgéos administrativos que atuassem de acordo com delegagGes politico parlamenta- res de grande abrangéncia, promulgando legislagdes deta- thadas que pudessem ser aplicadas e executadas por técni- cos. Ou, nos Estados Unidos, por meio de cédigos unifor- ‘mes e minuciosos compilados por um instituto nacional de direito cujos membros seriam treinados por juistas acadé- ‘icos, cuja adogéo deveria ser proposta aos estados. Repe- tind em tal atmosfera, 08 juizes que reivindicassem 0 po- der de extrair principios morais do antigo e inadequado common law pareceriam arcaicos, conservadores ecasticos. © perigo de uma reivindicagio dessas foi brilhantemente ilustrado pela decisio Lochner, tomada pela Suprema Cor- te em 1904, que sustentava que a concepcio de liberdade inserida na Décirna Quarta Emenda tomava inconstitucio- nal a legislagio progressista que limitava o nimero de ho- ras didrias de trabalho que se podia impor aos padeiros®.O ‘positivism jurdico, pensavamn os progressstas, salvou 0 direito dessa moral reacionéria. _ * 2 © positivismo de Oliver Wendell Holmes era uma __doutrina jurfica funcional: ele citava o postivismo quando divergia de decisées da Suprema Corte nas quais, em sua ‘opinido, os jufzes haviam presumico um poder ilegitimo de riar seu proprio direito ao pretenderem encontrar prinef- ppios inseridos no direito como um todo."O common law no .uma onipresenca contemplat decaronreie em um famoso voto dissidente, “mas sim a: ilada de al- ‘gum soberano ou quase soberano que identifica- _do: embora alguias deiases das quals tenho discorGado 3 pategam terse esquecido dessefato™® Na teria do ci (0 POS-ESCRITO DE HART E A QUESTAO DA FILOSOFIA POLITICA 257 reito, o debate entre positivismo e teorias juridicas mais an- tigas estava no centro da longa controvérsia em que se pre- tendia decidir se 0s juizes federais, quando s6 tinham juris- digdo porque as partes eram de estados diferentes, estavam. constitucionalmente obrigados a aplicar 0 common law de ‘um desses estados porque esse direito havia sido deciarado pelos préprios tribunais do estado, ou se eles tinham per- isso para decidir de modo diferente, encontrando e apli- cando prinefpios de direito “geral” nao reconhecidos por nenhum tribunal estadual, No caso Erie Railroad vs, Tompkins, a Suprema Corte finalmente decidiu que no existia nada que se pudesse considerar como esse direito“geral”: existia apenas o direito conforme declarado por estados espectfi- cos.” Falando em nome da Suprema Corte, 0 juiz Brandeis* itou outra célebre passagem de Holmes: O direito,no sentido em que os tribunais a ele se refe- rem atualmente, nlo existe sem alguma autoridade definiti- ‘va em sua retaguarde. (..) A autoridade, e a inica autorida- de, € 0 estado, e, se assim for, a vor adotada pelo estado coro propria [quer provenhsa de seu Poder Legislative, quer de sua Suprema Corte] deve dara iltima palavra. Brandeis deixou clara a importéncia pritica de sua concepgio do direito: 0 ponto de vista contrério, hé muito seguido pelos tribunais federais, punha fim & uniformidade porqué procuzia resultados diferentes a respeito dos mes- ‘mos ptoblemas nos tribunais estaduais e federais, estimu- Jando demandantes de fora do estado a entrar com ages nos tribunais federais sempre que isso lhes fosse vantajoso. E claro que a Suprema Corte poderia ter chegado ao mes- mo resultado ~ por essas razées de ordlem pratica ~ sem * Louis Derits Brandeis fl indicado para 2 Supreina Corte norts- ameriena em 1915 pelo presidente Woodrow Wilson, penmanacerco no {0 até 1930. geralmente post ao lado de Over Wendell Holmes Benjamin IN Cardozo e Lnamed Hand come um dos melhores aires note-americaoe e todos os tempos, (N.do RT) 258 ‘ATUSTICA DETOGA adotar o positivismo, mas a vigotosa retérica dessa doutti na juridica tinha um forte apelo porque permitia que Hol- mes; Brandeis, Leamed Hand e outros “progressistas” re- tratassem seus adversérios mais conservadores como viti- ‘mas de uma metafisica incoerente. Contudo, as mudancas de expectativa da sociedad acerca do direito e dos juizes ja estavam na iminéncia de coneretizar-se, mesmo na década de 1930, quando eles escreveram, ¢ mais rapidamente ain- da nas décadas seguintes, tornando a concepgio geral de legalidade do positivismo cada vez. mais implausivel e con- denada ao ostracismo. Os complexos sistemas estabeleci dos por lei tornaram-se cada vez, mais importantes como fontes de direito, mas esses sistemas ndo eram ~ néo po- diam ser — eddigos detalhados(Eram cada vez mais consti- tuidos por afirmagoes gerais de\principios e dicetrizes pol ticas que precisavam ser elaborados em decisdes adminis- trativas ¢ judiciais concretas; se os jufzes tivessem continua- lo a dizer que o diteito parava onde a orientacéo explicita soberana terminava, eles teriam tido que declarar cons~ intemente, como afitmei, que a legalidade era ou imrele- inte para seus julgamentos-ou sujeita a acomodacées, “Alem diss, na Gada de 1950 yaros juizes da Supte- ‘ma Corte introduziram no jorte-americano uma no- ‘va reviravolta que transformou a teoria juridica em uma empolgante questo de politica nacional. Eles comecaram a interpretar as cléusulas abstratas da Constituicao, inclusive as clausulas do devido processo legal e da igual protecio, como se elas afirmassem principios morsis gerais que con- ferem a cada cidadao importantes direitos contra 0 gover- no federal e os governos estaduais, direitos cuja existéncia pressupunha que 0 direito néo se limitava & promulgaczo deliberada, e cujos contornos $6 podiam ser identificados por meio de um julgamento moral e politico substantivo. [Essa iniciativa inverteu subitamente a valéncia politica da ‘arguimentagao sobre a teoria do direito: 0s conservadores se converteram em positivistas que afirmavam que a Corte es- tava ctiando novos direitos constitucionais de igualdade ra- ( POS-ESCRITODE HART EA QUESTAO DA LOSOMA POLITICA 259 cial ¢ liberdade em decisées referentes & reproducao, por exemplo, e, portanto, subvertendo a legalidade. Alguns dos liberais que aprovaram a orientagéo da Corte passaram en- tio do positivismo para uma concepgao diferente da leg lidade, que enfatizava a integridade baseada em princfpios do sistema constitucional norte-americano, Nas «iltimas ‘décadas, os juizes mais conservadores da Suprema Corte forjaram uma nova mudanga de valéncia: cada vez mais, suas iniciativas exigem gue eles ignorem boa parte dos pre- cedentes da Suprema Corte, motivo pelo qual eles encon- tram uma melhor justficagéo no principio politico conser- -vador do que em qualquer versio ortodoxa do positivismo juridico. Pi Quanto escreveu Q conceit do dirt, art nfo po- dia contar, como Bentham.e Holmes podiam, com-o apelo contemporineo. da concepgio positivista de legalidade, A ‘uma suposta tr tribal regida por normas primérias para a autoridade nitida das normas secundétias incorporadas por uma explosao li- ertadora e quase uniforme de posigies consensuais. Os que seguiam sua lideranga continuaram a escrever sobre autoridade, eficiéncia e coordenacio. Mas eles tampouco podem confirmar suas afirmagdes na prética politica con- creta, que talvez explique por que recorreram, assim como Hart, a autodescrig6es que parecem distanciar suas teotias de tal pratica. Bles dizem que estio investigando o proprio. conceito oua natureza do direito, que permanecem os mes- ‘mos apesar dos aspectos mutaveis da prética ou da estr- tura politica, ou que, de qualquer modo, oferecem apenas relatos descritivos do que ¢ essa prética, eximindo-se de emitir quaisquer juizos sobre o que ela deveria ser ou se tomat. Essa € a camuflagem metodolégica que questionei neste ensaio. Se, como afirmei, a autodescrigao ndo pode “defensével, devemos entéo ygente que tentei 260 AJUSTICA DETOGA introduzir em seu lugar — a descrigio positivista e substan- tiva do valor da legalidade que hé pouco nha opinigo, constitui uma virtude dessa desctigao o fato de conferir visibilidade & atragio que, no passado, 0 positi- vismo exerceu sobre juristas,jutzes e eruditos, em campos substantivos do direito, quando sua concepcio de legalida- de parecia mais plausivel do que hoje. Consideragées finais Venho enfatizando as semelhangas entre 0 conceito de legalidade ~ como fndamento da filosofia juridica ~ e ou- ros conceitos politicos, e encerrarei chamando a atengio para uma importante diferenca, A legalidade é sensivel, em sua aplicagao, ito maior grau do que a liberd: igualdade ou a democracia,’s histéria e as préticas belecidas da comunidade que Se propde respeitar o valoy Parque'a comunidade politica revela a legalidade, entre ou- ‘ras maneiras de fazé-lo, a0 se manter fel, em certos aspec- tos, ao seu pasado. Para a legalidade, é crucial que as de= cisbes executivas de um governo sejam guiadas e justfica- das por normasjé estabelecidas, e no por outras, criadas ex pst facto; além disso, essas normnas devem incluit néo ape- ‘as leis substantivas, mas também. normas institucionais que confiram autoridade aos diferentes servidores piblicos para que possam criar,aplicar e avaliaressas normas no fu- turo. A revolugéo pode ser compativel com a liberdade, & igualdade e a democracia. Pode ser, ¢ tem sido frequente- mente, necesséria a fim de se alcancer até mesmo um nivel Tazodvel desses valores. Mas, mesmo quando promete aper- feigoar a legalidade no futuro, a revolugio quese sempre implica uma agressao imediata a ela Portanto, qualquer descricio mesmo moderadamente detalhada daquilo que, em tetmos coneretos, a legalidade exige em alguma juriscicéo especifica, deve observar cuida- dosamente a historia e as praticas institucionais dessa juris- (© POS ESCHITD DE HART EA QUESTAO DA FLOSOFIA POUCA 261, / digdo, e mesmo uma descrigGo moderadamente detalhada do que se exige em um lugar serd diferente, c talvez.muito diferente, de una descrigo equivalente do que se exige em lugares, (A discussao e a decisdo acerca dessas exi- géncias concretas numa comunidade especifica é o traba- Iho cotidiano de seus advogados praticantes, em determi- nado nivel, e de seus juristas, em outro) Isso também se aplica, ainda que um pouco menos, ras virtudes polf- tieas 08 attanjos institacionais con: muito importan- tes pata se aperfeigoar a democracia, estimular a igualdade ‘ou proteger a liberdade em um pais com demografia e his- t6ria politicas especificas, podem ser bem diferentes em ou- ‘ro pais, no que diz respeito a aspectos que lhe sejam igual- ‘mente importantes Porém, ainda que, em comparacéo com essas outras vir- tudes, a legalidade seja claramente mais sensivel, nos deta- Ihes, as caracteristicas especificas da prética e da histéria politicds, daf no se segue ~ tanto em relagdo a legalidade quanto as outras virtudes — que nada de importante possa ou deva ser feito para explorar o valor em um nivel filos6- fico que transcenda a maioria dos detalhes relativos a este ‘ou aquele lugar, Iss0 porque, assim como podemos explo- rar 0 comceito geral de democracia através da formulagéo de uma atraente concepgao abstrata desse conceito, tam- bém podemos querer formular uma concepso de legalida- de com 0 mesmo grau de abstragao e, num segundo mo- mento, tentar percebet, através de proposigées concretas, ‘08 regultados obtidos em ambito local. Nao existe nenhu~ ma diferenga conceit [sgica claramente definida do ‘Tipo que os arquimedianos pretendem encontrar, entre a f Jos lireito_ assim concebida e as preacupacdes mais ‘comuns com as quais devem lidar, em seu dia a dia, os ad- “Vogados e estuciosos do direito que hé pouco mencionel. Ehisle, poréi,iuma diferenca suficiente, no nivel de abstra- co e das habilidades pertinentes, para explicar por que as questies filoséficas parecem diferentes das questoes mais conctetas, e por que delas geralmente se ocupam pessoas que receberam outro tipo de formag: 262 AJUSTICA DETOGA (Qualquer tentativa de chegar a uma concepgéo ect mica da legalidade er de se hayes com presses pove- nientes de dois lados. f, preciso que ela ‘conteudo su~ ficiente para evitar a falta de sentido, mas também um né- vvel de abstrago suficiente para evitar o provincianismo”, 3 exfticos ingleses afirmam frequentemente que meu pro- jeto tem inspiracSo provinciana— que pretende apenas ex- plicar a prética juridica de meu pafs ~ ou que é clarainente provinciano em seus resultados, porque de algum modo se pode perceber, sem gratides teflexdes ou pesquisas, que ele 36 se ajusta a essa pratica juridic®) Na verdade, minha ex- posicio aspira a uma grande generalidade, e em que medi- da esse objetivo € bem-sucedido é algo que s6 pode ser avaliado por um trabalho muito mais exaustivo de interpre~ taco juridica comparativa do que 0 que foi realizado-por ‘esses criticos. Ha pouco, ao discutir out politicos, | afirmei que néo podemos dizer de antemao até que panto podemos ser bem-sucedidos na tentativa de encontrar con- cepgies plausiveis desses valores que 0s reconciliem entre si em vez de deixé-los em conflito, como geralmente se diz que esto, Devemos nos empenhar ao maximo para depois ver em que medida nos saimos bem. Devemos adotar 0 ‘mesmo ponto de vista em relacao A questo distinta de des~ cobrir que grau de abstragdo uma exposigao informativa da legalidade consegue alcarigr. & preciso esperar para ver. Jsso me leva a uma tiltima historia, Ha algum tempo, conversando com o professokJohn Gardner, da Universida- de de Oxford, afirmei que, na minha Opinio, afilosofia do direito deveria ser interessante. Ble caiu em cima de mim, “std vendo?", respondeu. “fesse o seu problema,” Sou culpado dessa acusagio que ele me fez. Contudo, permi- tam-me explicar 0 que quero dizer por “interessante” Acre- dito que a filosofia do direito ceva ser do interesse tanto de ddisciplinas que sio mais quanto das que sa0 menos abstra- tas do que ela propria. Deve ser do interesse de outros Gam- pos da filosofia — da filosofia politica, sem divide, mas tam- bém de outros segmentos — e deve ser objeto de interesse (0.P0S-ESCRITO DE HAKT E A QUESTAO DA FILOSOFIA POLITICA 263 de juristas e juizes. Na verdade, grande patte da filosofia ju- tidica tem-se mostrado de grande interesse para advoga- dos e juizes, Atualmente presenciamos uma explosio do interesse pela filosofia juridica, no apenas nos Estados ‘Unidos, mas também na Europa, na Africa do Sul e na Chi- na, por exemplo. Mas essa explosio nao est acontecendo- \dos “teoria do direito”, os quais, receio, im tanto enfadonhos, mas sim em Areas sabstaiit 10 direito. constitucional, por certo, cujas preocupasdes tedricas j4 vém de longa data, mas tam- béthi 8 dominios da responsabilidade civil, dos contratos, dos processes judiciais, da jurisdigéo federal e, mais recen- temente, até mesmo do direito tributério, Nao quero dizer ‘apenas que esses cursos tratam de questes ao mesmo tem- [po tedricas e praticas: eles tratam exatamente das ques que venho discutindo: acerca do conteiido. da legalidade.e. de suias implicagies para ¢ lo do direito, Em minha opiniao, porém, os filésofos do direito que consideram seu trabalho descritivo ou conceitual, e nao normativo, perde- ram a oportunidade de se juntar a esses debates ¢ discus- ‘sdes, e, em decorréncia disso, o dominio da filosofia do di- reito ver perdendo terreno em algumas universidades. Em ocasides assim, fica diffcil resistir a falar diretamen- te aos jovens estudiosos que ainda nao se aliaram a ] extrcito doutringrio, Portanto, vou conciuir com coat he fp Gunde tnecn de: | Feito] Quando o fizerem, assumam as legtimas reapansabi- ldadles da filosofia e abandonem o manto da neutralidade. n em nome da sra. Sorenson e de todas as outras pes s0as cujo destino depende de novas afirmagSes acerca da- quilo que o dreito jé é. Ou, se nfo puderem falar em nome delas, pelo menos falem com elas ¢ expliquem por que eles tas ¢ julzes que terdo de se haver nova Lei dos Di jos Humanos do Reino Unido. Nao digam aos juizes que “eles dever exercer seu poder discricionério como acharem ‘melhor. Eles querem saber como entender essa lei enquan- nao tém direito Aquilo que reivindieam. Falem com 0s jus ‘ or 264 ‘ AJUSTICA DE TOGA to direito, como decidir, e a partir de qual fonte, de que modo a liberdade e a igualdade passaram a ser vistas em rnossos dias, ndo apenas como ideais paticos, mas também como direitos juridicos, Se voces os aju dace se falarem ag mundo dessa maneira, petmanecerio mais 10 génio.e a pabaio- bert Hart do que sé segulirem suas ideias éstreitas sobre a natureza e os limites da filosofia analitica _do direito, Devo, porém, adverti-los de que, se for esse 0 ca- ‘minho que escolherem, estaréo correndo o grande risco de se tornarem... bem, de se tornarem interessantes. Capital 7 Trinta anos depois Introdugio Em The Practice of Principle {A prética de principio], 0 professor Jules Coleman, da Faculdade de Direito deYale, de~ fende o que chamna de" uma versio do positivismo juridico””. ‘Uma forma cléssica dessa teoria juridica afirma que o direi- ‘to consiste apenas naquilo que seus legisladores declarararn como tal, de modo que é um erro presumir que alguma for- 69 ou instncia néo-positiva - por exemplo, a verdade mo- tal objetiva, Deus oui 0 espftito de uma época, a indefinida vontade do povo ou a marcha da histéria através dos tem- pos — possa ser uma fonte de direito, a menos que os legis- ladores assim o tenham declarado. Coleman situa sua discussdo em um contexto histéri- co limitado. Hé cerca de trinta anos, publiquei uma critica do positivismo® Argumentei que essa doutrina nao é fiel ig ppréticas concretas dos cidadios, dos jurstas e dos jufzes em comtinidades politicas complexas: na prética, afirmei, as pessoas que discutem o conteiido do direito se baseiam em consideragdes morais, e 0 positivismo é incapaz de explicar isso. Coleman trata meu artigo como um importante cata~ lisador dos avancos posteriores da posico que critiquei. Ele diz que embora meu questionamento fosse “equivocado em virios sentidos” (p. 67), ¢ que “atualmente ninguém considera essa argumentagéo convincente” (p. 105), apesar Le

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