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Teses sobre Teatro

BADIOU, Alain. Pequeno manual de inestética.


Tradução de Marina Appenzeller. - São Paulo: Estação Liberdade, 2002,
p. 97-102.
Tese 1. A ideia-teatro só acontece no palco
O teatro (a arte) pensa
Teatro é arranjo, a dança é corpo que permutar ar e terra
Arranjo de componentes materiais e ideais - texto, lugar, corpos, vozes,
trajes, luzes, público – unidos no acontecimento da representação
Mesmo que se repita, é singular, como qualquer acontecimento
Teatro é acontecimento do pensamento que produz ideias-teatro
(a dança produz mais a ideia de que o corpo porta ideias)
As ideias-teatro acontecem no teatro com todos componentes
(não num componente em separado),
dentro de e através da representação.
Tese 2. A ideia-teatro é abertura pública da história e da vida
O teatro esclarece nossa situação, orienta nossa vida e nossa história,
torna legível a vida inextricável
Arte da simplicidade, mas presa na clareira do emaranhado vital
O teatro é a experiência material e textual da simplificação da vida,
que separa o que está embaralhado e confuso na direção da verdade
Mas, simplificar não é simples, e no teatro exige meios variados e difíceis
A ideia-teatro só ocorre no auge da arte
Tese 3. A vida inextricável é desejo sexual e poder sociopolítico
Tragédia é representação do Grande Poder e dos impasses do desejo
Comédia é representação de pequenos poderes, papéis de poder e
circulação fálica do desejo
A tragédia pensa a experiência estatal do desejo,
a comédia sua experiência familiar
Todos os gêneros intermediários tratam a família como se fosse Estado
(drama burguês) ou o Estado como se fosse família ou casal (surrealismo)
O teatro pensa no espaço aberto entre a vida e a morte
o entrelaçamento do desejo e da política sob a forma de acontecimento,
e acontecimento é intriga e catástrofe
Tese 4. No texto, a ideia-teatro é incompleta
Retida no texto como uma espécie de eternidade,
a ideia-teatro só surge no tempo breve da representação
A arte do teatro é a única arte que tem de
completar uma eternidade com o instantâneo que lhe falta
O teatro vai da eternidade ao tempo (e não o inverso)
A encenação teatral não é interpretação,
é complementação singular da ideia-teatro, um remate dessa ideia
Corpo, voz, luz, etc. rematam a ideia ou, se o teatro faltar a si mesmo,
tornam o que está no texto ainda mais inacabado
O efêmero não é os vestígios obscuros restantes no fim do ato teatral, é a
“ideia eterna incompleta na experiência instantânea de seu término”
Tese 5.
Teatro é complementação da ideia pelo acaso um pouco controlado
Se a experiência do tempo contém forte parcela de acaso, a encenação é
uma triagem pensada de acasos que completam ou dissimulam a ideia
A arte do teatro é uma escolha (douta e cega) entre
configurações cênicas aleatórias que completam a ideia com o que falta e
configurações que ficam de fora e contribuem à incompletude da ideia
Axioma: jamais uma representação teatral suprimirá o acaso
6. O público faz parte daquilo que completa a ideia
Dependendo do público, o ato teatral entrega ou não a ideia-teatro,
complementando-a. Se faz parte do acaso, o público deve ser aleatório
Público não é comunidade, substância pública, conjunto consistente, e
sim representa a humanidade em sua inconsistência e variedade infinita
Quanto mais definido e unificado socialmente, nacionalmente etc.,
menos o público pode complementar a ideia,
menos sustenta no tempo sua eternidade e universalidade
O público é genérico e casual
Tese 7. A crítica deve manter o caráter aleatório do público
A crítica leva a ideia-teatro a quem está ausente e anônimo, e os convoca
a comparecer e completar a ideia (ou que ela não merece público)
A crítica deve ser múltipla, fortuita, vigiar a moda, o plágio, o diz-que-diz,
o "navegar ao sabor do vento" ou se colocar a serviço de uma audiência
socialmente marcada, demasiadamente comunitária.
Um bom crítico (a serviço do público-acaso) é caprichoso, imprevisível
Não se pode pedir que o crítico seja justo, mas que seja
um representante instruído do acaso público
Além disso, deve tentar não se enganar sobre as ideias-teatro.
Tese 8. A época é do teatro da capacidade (contra teatro da incapacidade)
A principal questão de nossa época não é o horror, sofrimento, destino
ou desamparo, saturamos disso e
da fragmentação disso em ideias-teatro
Nossa questão é da coragem afirmativa e da energia local.
Menos tragédia moderna que comédia moderna:
o teatro de Beckett se corretamente encenado é hilariante, e é mais
inquietante que não saibamos revisitar Aristófanes ou Plauto do que
rejubilante verificar que sabemos dar força a Ésquilo
Nosso tempo exige invenção que entrelace em cena
a violência do desejo e os papéis do pequeno poder local,
que transmita em ideias-teatro a ciência popular
Tese 9. O obstáculo à uma energia cômica é a recusa da tipificação
A "democracia" consensual tem horror à tipificação das categorias
subjetivas que a compõem: gingar no palco ou ridicularizar um papa, um
grande médico, um figurão de instituição humanitária, dirigente do
sindicato das enfermeiras
Temos infinitamente mais tabus que os gregos
O teatro deve recompor em cena situações vívidas, articuladas,
valendo-se de tipos essenciais
Deve propor para o nosso tempo o equivalente dos
escravos e criados da comédia, gente excluída e invisível, que de repente,
pelo efeito da ideia-teatro,
representam no palco a inteligência e a força, o desejo e o domínio
Tese 10. O público quer comover-se com ideias-teatro desconhecidas
A dificuldade do teatro sempre é sua relação com o Estado. Formas
modernas dessa relação: reivindicar o teatro como profissão assalariada,
o que faz dele setor lamuriento da opinião pública, funcionarismo
cultural. O teatro não deve flutuar ao sabor das flutuações da política
Sua ideia geral deve usar equívocos e divisões do Estado, o artista deve
jogar a plateia contra o público nobre, esnobe, devoto
É preciso outra ideia-teatro, pois descentralização, teatro popular,
“elitista para todos” etc. são imprecisas demais (daí a lentidão)
O teatro pensa sua própria ideia. Não é cultura, é arte: o público não vai
ao teatro para ser cultivado, mas para a ação (contra medidores de
audiência) que comove com ideias-teatro desconhecidas
Não sai culto, sai aturdido e cansado (pensar cansa), devaneando
Tese 11. No teatro, o que acontece é o encontro físico com uma ideia

O que distingue o teatro “aparente rival azarado” do cinema, com quem


compartilha intrigas, roteiros, figurino, sessões, mas sobretudo atores,
esses “bandidos bem-amados”
No teatro se trata explicita e quase fisicamente do
encontro com uma ideia,
enquanto no cinema trata-se de sua passagem
quase de seu fantasma

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