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Psicologia Jurídica: teoria e

prática

Renata Maria Dotta – Doutora em Ciências da Saúde,


Professora da Faculdade de Direito Bacharelado da
Fundação Escola Superior do Ministério Público.
Breve Histórico
A atuação de psicólogos na área da Psicologia
Jurídica tem seu início no reconhecimento da
profissão, na década de 1960.

Trabalhos voluntários.

Foi a partir da promulgação da Lei de Execução


Penal (Lei Federal nº 7.210/84), e do ECA - Lei nº
8.069, de 13 de julho de 1990, que o psicólogo
passou a ser reconhecido legalmente pela instituição
penitenciária e no campo judiciário.
A história revela que essa preocupação com a
avaliação do criminoso, principalmente quando se
trata de um doente mental delinquente, é bem
anterior à década de 1960 do século XX.

Durante a Antiguidade e a Idade Média a loucura


era um fenômeno bastante privado.

Ao “louco” era permitido circular com certa


liberdade, e os atendimentos médicos restringiam-
se a uns poucos abastados.
As psicopatologias eram tidas como uma espécie de
possessão demoníaca.

Os tribunais da época eram a serviço de


aplicabilidade dos métodos ortodoxos da igreja como
as práticas de exorcismo, ordálias.

Provas impossíveis de se superar, característicos da


chamada SANTA INQUISIÇÃO – sentença divina.
A partir de meados do século XVII, a loucura passou a
ser caracterizada por uma necessidade de exclusão dos
doentes mentais.

Criaram-se estabelecimentos para internação em


toda a Europa, nos quais eram encerrados indivíduos que
ameaçassem a ordem da razão e da moral da
sociedade.

Século XVIII, na França, Pinel realizou a revolução


institucional, liberando os doentes de suas cadeias e
dando assistência médica a esses seres segregados da
vida em sociedade (Pavon, 1997).
Inicialmente, a Psicologia era identificada como uma prática
voltada para a realização de exames e avaliações,
buscando identificações por meio de diagnósticos.

Essa época, marcada pela inauguração do uso dos testes


psicológicos, fez com que o psicólogo fosse visto como um
testólogo, na primeira metade do século XX (Gromth-Marnat,
1999).

A testagem constitui apenas um dos recursos de avaliação


(Cunha, 2000).
PSICOLOGIA E DIREITO
Psicologia:
Estudo do comportamento humano e processos
mentais
Compreender os processos psíquicos (CS e ICS) individuais
ou grupais – indivíduo singular e indivíduo cidadão
indivíduo produto do seu meio (macrocontexto), da sua
história pessoal, constituição.
Volta-se ao mundo do SER
Homem: cidadão de dois
Direito: reinos
Regular o comportamento humano para uma melhor
convivência humana em sociedade (normas)
DEVER SER (lei geral = leis particulares de cada um)
PSICOLOGIA E DIREITO
Usa de todos os seus saberes para fazer frente aos
questionamentos formulados pela justiça,
cooperando e qualificando o exercício do Direito.

Ex: avaliação de testemunhos, capacidade de


responsabilidade dos agentes, predição da conduta
(definir saída da prisão, definição de horário de visita de
filhos, medidas sócioeducativas).

Utiliza-se da avaliação psicológica, técnicas de


entrevistas e outros instrumentos. Deve ter conhecimento
do sistema jurídico em que vai operar.
Distintas concepções de Sujeito

O sujeito do Direito = livre arbítrio (escolher


suas ações, é CSC de seus atos, controle de suas vontades, dotado de razão, cartesiano)

O sujeito da Psicologia = inconsciente


(comportamento sobre-determinado por razões e situações que muitas vezes ele desconhece, por
determinações inconscientes, conflitos, contradições, ambiguidades)
Psicologia e Direito são disciplinas
irmãs, que nascem com o mesmo fim e
compartem o mesmo objeto de estudo:
o homem e o seu comportamento.

A Psicologia é fundamental ao Direito, e


mais que isso, essencial à Justiça.
Uma grande parte dos erros judiciais
pode decorrer da falta de conhecimentos
essenciais.

Em razão de uma doença mental não


entendam o caráter ilícito da prática
criminosa.
Psicose pós-parto
“Eu peguei a nenê e coloquei ela na janela pensando que
era seu berço.” A queda foi instantânea causando a
morte da criança. (p. 287)

Conclusão do laudo pericial: Foi


considerada totalmente inimputável pelo delito cometido
e sugestão de que a medida de segurança seja cumprida
em regime ambulatorial. A internação foi contraindicada
por poder trazer mais prejuízos as suas relações
familiares (marido e filho).
Objeto de estudo

Legitima a existência de um campo de


interdisciplinaridade entre o Direito e
a Psicologia.

Supera o âmbito das disciplinas e do fazer


separado responsável pelas
abordagens reducionistas do ser
humano (homem e seu bem estar).
Rompimento de paradigma
Os saberes individualizados e disciplinários não
encontram vez em um mundo marcado pela
complexidade e pela globalização.

O tempo da solidão epistemológica das


disciplinas isoladas, dedicada ao seu próprio objeto,
reformulação para sobrevivência da ciência.

Teoria do direito deve atender a premência do


processo de integração dos conhecimentos
sociais = saída crise do pensamento jurídico
contemporâneo.
A Psicologia Jurídica (para o
Direito)
Leis particulares sejam escutadas e
consideradas, o judiciário pode contar
com a colaboração da Psicologia.

Ciência auxiliar ao direito =


iluminar os fins do direito, psicologia
aplicada ao melhor exercício do direito.
PSICOLOGIA JURÍDICA
Campo de trabalho e investigação psicológica.
Conjunto de intervenções especializadas aplicadas as
necessidades do Estado de Direito.
Coloca os seus conhecimentos à disposição do
magistrado.
Assessora em aspectos relevantes para determinadas
ações judiciais.
Traz aos autos uma realidade psicológica dos agentes
que ultrapassa a literalidade da lei.
Psicologia Jurídica # Psicologia Clínica

Função: esclarecer ao sistema jurídico


Diagnóstico: nem sempre é relevante, pois podem
não responder as reais necessidades dos solicitantes
- questões legais (quesitos)
Compreensão: exigência de categorização do
comportamento (capaz X incapaz)
Foco: comportamento (estado atual, passado e
futuro)
Responsabilidade profissional: contexto público
Perícia: psicológica,
psiquiátrica e social
Finalidade

• Elucidar fatos do interesse da autoridade


judiciária, policial, administrativa ou de
particular.

• Constitui-se como meio de prova


pericial.

• Esclarecer fatos para devidos fins


A perícia e o perito

O juiz profere sua decisão após ouvir os


argumentos das parte e cotejá-los com as provas
que apresentam.

No mais das vezes a prova é material (ex: análise


de um contrato de locação e a validade do pagto
efetuado), em que magistrado vale-se de seu
conhecimento técnico e jurídico para a decisão.
A perícia e o perito

Há situações nas quais seu conhecimento é


insuficiente.

Fazendo-se mister que se socorra de profissional


especializado no tema em questão.

Essa pessoa é denominada perito, e o seu trabalho,


perícia.
Perícia
 Conjunto de procedimentos técnicos que tenha como
finalidade o esclarecimento de um fato de interesse da
Justiça.

 Perito é o técnico incumbido pela autoridade de


esclarecer fato da causa, auxiliando, assim, na formação
de convencimento do juiz.

 A perícia é um meio de prova.

 Perito um auxiliar do juízo.


Perito forense
 Auxiliar do Juiz

 Conhecimento Técnico

 Conhecimento Jurídico

 Isenção e sem impedimentos (Art. 134, 135, 138, 146 CPC)

 Imparcialidade
Requisitos do perito

Conhecimento técnico + conhecimento


jurídico + imparcialidade
Assistente técnico
É a denominação que a lei dá ao profissional especializado em
determinado tema, contratado e indicado exclusivamente por qualquer
das partes, para que a auxilie durante a elaboração da prova pericial.

Perderam status de peritos escolhido pela parte (mas ainda auxiliar do


juízo) para auxiliares das partes (Lei 8.455/92) e fiscalizador e corretor
dos procedimentos periciais (incorreções, acertos e omissões).

Atende ao princípio da ampla defesa e do contraditório.

Artigo 429 do CPC, compete aos peritos e assistentes técnicos os


mesmos poderes, ou seja,

“utilizar-se de todos os meios necessários, ouvindo testemunhas, obtendo informações, solicitando


documentos que estejam em poder de parte ou em repartições públicas, bem como instruir o laudo
com plantas, desenhos, fotografias e outras quaisquer peças.”
Psicologia e Psiquiatria Forense
Atividade pericial acerca do ser humano.
Perícias psiquiátricas voltadas para a investigação da
responsabilidade penal.
Intervenção, apoio, mediação, aconselhamento,
orientação, encaminhamento e prevenção
(desmistificação da visão estritamente pericial).
Âmbitos de atuação: Varas de Família, Juizados da
Infância e da Juventude, Varas de Execução Penal,
Unidades de Custódia.
Tipos de perícias forenses
 TRANSVERSAIS: Interdição
Superveniência de DM
Dano psíquico ou abuso

 RETROSPECTIVAS: Anulação de testamento


Responsabilidade penal

 PROSPECTIVAS: Direito da família


Exame Criminológico
Cessação de Periculosidade
TRANSVERSAIS
 Avaliações transversais: examina uma situação do
presente – o “aqui e agora”.

 Esfera cível:
 perícias de interdição – busca-se estabelecer a
presença de um transtorno mental e se essa condição
prejudica o seu necessário discernimento. Declara-se
incapaz para todos ou alguns atos da vida civil.
 constatação de dano psíquico ou maus tratos a criança.
TRANSVERSAIS
Esfera criminal:

Superveniência de doença mental (SDM) –


interrupção do cumprimento da pena e
transformação em medida de segurança
RETROSPECTIVAS

Esfera cível: ocorrem em processos de anulação de ato


jurídico e de anulação de testamento.

• Visam a estabelecer a condição psíquica da pessoa ao praticar


determinado ato em momento preciso do passado.

• Estabelecer se padece de algum transtorno mental, como essa


doença evoluiu ao longo da vida.

• Se a pessoa já é falecida, realiza-se perícia indireta, buscando


informações com familiares, amigos, médicos, enfermeiros, análise
de prontuários hospitalares e documentos de quaisquer natureza.
RETROSPECTIVAS
Avaliações Retrospectivas: qual era a condição
psíquica do examinando em um determinado momento
do passado.

Esfera criminal: perícia de responsabilidade penal


(RP) - visa estabelecer se no momento do crime o réu
padecia de algum transtorno mental, quer total, quer
parcial, afetasse sua capacidade de entender o que
estava fazendo ou de se determinar de acordo com
esse entendimento (CP, artigo 26).

Era inimputável ou semi-imputável (a pessoa era ou


não penalmente imputável ao cometer o delito).
PROSPECTIVAS
Avaliações prospectivas: risco futuro de que
determinado comportamento venha acontecer.
São bastante imprecisas, as menos confiáveis das
perícias, de vez que é rigorosamente impossível
afirmar-se que alguém não virá praticar
determinado ato.
 Esfera cível:
 Afastamento dos genitores em defesa da integridade
física ou moral da criança. A primeira, transversal, para
constatar dano. As demais, prospectivas, para
estabelecer se o genitor já estaria em condições de
conviver com o filho e sob quais condições.
PROSPECTIVAS
 Esfera criminal:

 Exame criminológico: são realizados por


psicólogo, assistente social, psicólogos no
momento em que o detento atinge o tempo
mínimo de pena para receber um benefício
legal (ex: progressão de regime).

 Verificação cessação de periculosidade


(VP) – são realizados por psiquiatra para
atestar a cessação da periculosidade.
Caso – Idoso, 84 anos
Foi réu de um processo de interdição cujo autor era
um irmão mais novo, que o acusava de problemas
mentais e incapacidade.
Com a interdição pretendia desfazer um negócio de
troca de terras por outras de menor valor, feito pelo
réu alguns meses antes.
Solteiro, sempre viveu só, meio isolado, tratava-se
de pessoa com traços esquizóides.
Sua memória já apresentava alguma alteração,
mas nada de maior gravidade.
Ao exame psiquiátrico disse:
“ O meu irmão quer me interditar, eu sei. Mas é ele
que não consegue entender. Quando meu pai morreu,
nós ficamos cada um com a metade das terras dele. Eu
cuidava da minha parte e meu irmão da parte dele. Vivi
sempre no campo cuidando de mim do meu jeito;
sei que sou meio quieto. Acontece que a cidade foi
crescendo e onde era campo virou cidade. Queriam
fazer um loteamento nas minhas terras e me ofereceram
várias outras para que eu escolhesse a que mais me
agradasse, caso eu quisesse fazer uma troca.”
“ Eu quis até porque já andava meio incomodado com o
movimento em volta. Escolhi uma do mesmo tamanho,
com um riacho muito bonito. Eu já estou velho, vou
viver somente uns poucos anos e gostaria de
continuar vivendo como sempre vivi. Gosto do campo
e gosto de pescar. É isso. Sei que em termos de dinheiro,
que as que cedi em troca, que as terras com que eu
fiquei valem menos estão praticamente dentro da
cidade. O meu irmão não aceita este meu jeito de
pensar. Ele é gente de negócios e é meu herdeiro, acho
que é por isso. Mas ele ganhou a parte dele do pai, está
bem de vida, não precisa de minha parte”.
Avaliação de nexo causal
 Um diagnóstico de personalidade esquizóide, associado a
alguns distúrbios de memória em uma idade relativamente
avançada, poderiam servir de argumento para interdição parcial
para tentar anular retrospectivamente a negociação.

 Todavia a compreensão da trajetória do réu, da sua escala de


valores e do seu modo de ver a vida, mostrou que suas atitudes
estavam coerentes com seu passado e que não houve um disruptura no
seu funcionamento psicológico.

 Não observa-se incapacidade civil no réu, pois não tinha nexo causal
com a negociação feita.
Ambitos de atuação
Separação
Divórcio Problemas
emocionais:
Regulamentação de visitas raiva, amor,
Disputa de Guarda ciúme,
medo,
Adoção vingança,
Destituição do poder familiar etc...
(melhor interesse da criança)

Interdição (causa: doença mental)


Âmbitos de atuação
Direito penitenciário: tratamento penal
Direito do trabalho: dano moral
Vara de violência doméstica contra a
mulher
Direito da Criança e do Adolescente
depoimento especial (criança é interrogada por profissional da
área do serviço social ou da psicologia)
Psicologia no Direito
Contribui para a formulação, revisões e interpretação
das leis.

Área emergente da Psicologia, que se relaciona com o


Direito, com a Justiça, com o Sistema Judiciário.

Pode ajudar a compreender o Hommo Juridicus e a


melhorá-lo, mas também pode ajudar a compreender
as leis e as suas conflitualidades, principalmente nas
instituições jurídicas, e melhorá-las também.
Psicologia no Direito
“O psicólogo jurídico atua no âmbito da
Justiça, em instituições governamentais
e não governamentais, colaborando no
planejamento e execução de políticas
de cidadania, direitos humanos e
prevenção da violência.”
(RAMIRES, 2009, p.210)
Psicologia para o Psicologia no Psicologia do
Direito Direito Direito
• Estudo das normas
• Ciência auxiliar ao jurídicas (produzir • Explicar a essência
Direito ou evitar do fenômeno
determinadas jurídico, uma vez
condutas). que todo o direito
• Ao lado da Medicina
Legal, Antropologia, • Contribuição na está repleto de
Sociologia elaboração de leis conteúdos
mais adequadas à psicológicos.
sociedade.
“a psicologia até pode ser exterior ao
direito, mas não é exterior à Justiça”.
(SANI, 2002, p.15)
Críticas à Psicologia Jurídica
Disciplina identificada como meio diagnóstico de
patologização (Foucault, 1993) – e segregação.

Visão estritamente pericial – relacional.

Valorização das abordagens quantitativas de


categorização do sujeito.
Avanços

Ruptura com a solidão epistemológica das


disciplinas.

Duplo ganho – interdisciplinaridade.

Concepção de sujeito-singular e sujeito-cidadão,


cujos direitos e deveres se constituem no espaço
público e não exclusivamente no psicológico.
Conclusões
Parte dos erros judiciais está associado ao
desconhecimento de assuntos psicológicos.

Se pretendemos aprimorar a Justiça e as Instituições


devemos conhecer os mecanismos psicológicos do
comportamento humano.

Conflitos jurídicos são decorrentes, motivados ou


mantidos por questões de natureza emocional e
psicológica.

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