(e-mail: fabioleobrito@hotmail.com) “Hoje, o Governo não tem mais intermediários entre ele e o povo. Não mais mandatários e partidos. Não há mais representantes de grupos e não há mais representantes de interesses partidários. [...] Agora, precisa ser estabelecida a doutrina do Estado, que é que tem por objetivo o engrandecimento da pátria.”
“Sustentarei, com todas as forças, a união, a
integridade e a independência desta Pátria, dentro e fora de seus limites territoriais. Não apenas a herança admirável da unidade nacional, mas a concórdia de todos os brasileiros. Serei o presidente de todos eles, e não o chefe de uma facção.” • A partir de que olhares é possível compreender os regimes políticos no Brasil entre 1937 e 1945, e entre 1964 e 1985, como regimes autoritários?
• De que maneira é possível enxergar o
autoritarismo como uma perspectiva que extrapola os domínios da política instituída?
• Como algumas parcelas da juventude brasileira
reagiram aos regimes políticos autoritários? 1937 e 1964: versões e controvérsias • Alguns anos antes do primeiro discurso transcrito, um grupo formado por militares e oligarquias dissidentes derrubou a República, a partir de então chamada “Velha”, em nome de um “verdadeiro saneamento de suas práticas políticas”.
• A partir da ascendente liderança de Getúlio Vargas,
começava a ganhar forma um governo dividido entre múltiplas contradições: o Brasil é reconstitucionalizado, mulheres passam a votar, mas, em contrapartida, tais questões convivem com uma legislação do tipo corporativa, que propunha uma organização das relações sociais e de trabalho. • Para Ângela de Castro Gomes, a Revolução de 1930 pode ser vista como apenas um primeiro passo para o Estado Novo, porque assim o disseram e quiseram os ideólogos desse regime.
• Em primeiro lugar, segundo a autora, a
arquitetura institucional republicana precisava abandonar o “velho princípio de separação de poderes”, que vinha sendo criticado, e transformado no modelo germânico de “harmonia de poderes”. • Superava-se, com tal opção, o falso impasse entre democracias (liberais) e ditaduras, na medida em que se abria a possibilidade de existir um Estado forte e democrático mediante a revitalização do sistema presidencial de governo.
• Um dos procedimentos para que, no Brasil, se
pudesse construir um novo tipo de “democracia” era justamente a conversão da autoridade do presidente em “autoridade suprema do Estado” e em “órgão de coordenação, direção e iniciativa da vida política”. • Essa autoridade, encarnada na figura do presidente-Executivo, tornava impossível a manutenção de partidos políticos e parlamentos, todos, segundo as perspectivas de época, lentos, custosos, ineptos e, sobretudo, órgãos de manifestação dos antagonismos sociais.
• A identificação entre Estado e nação, bem como a
concentração da autoridade do Estado na figura do presidente, nessa proposta, eliminava a necessidade de “corpos intermediários” entre o povo e o governante, segundo o modelo de partidos e assembleias que traduziam interesses particulares e desagregadores. • Em torno do regime político criado em 1937, Ângela de Castro Gomes estabelece uma análise dos discursos que firmariam a imagem do presidente como um elemento que atravessaria subjetivamente a nação.
• Nesse sentido, Getúlio Vargas encarnaria, no
imaginário político construído à época, uma figura paternal, com a qual o povo estabeleceria uma relação de “intimidade hierárquica” (GOMES, 1998, p. 525). • Da mesma maneira que em torno do Estado Novo, o regime político brasileiro que se iniciaria em 1964 é permeada por uma série de “verdades” estabelecidas pelos discursos construídos a posteriori.
• A esse respeito, Carlos Fico analisa as formas
como a Ditadura Civil-Militar brasileira foi construída discursivamente, em torno de uma série de versões, que passam tanto pelo cunho memorialístico quanto pelas práticas historiográficas. • Um dos polos possíveis de discussão historiográfica a respeito do período parte da leitura de Daniel Aarão Reis Filho, que pensa o período mediado entre o início e o final dos anos 1960 como a transição de um modelo político- econômico nacional-estatista para um modelo internacionalista-liberal.
• No âmbito da produção de memórias, no
entanto, os discursos ganham configurações diversas nas falas de remanescentes do governo militar e de militantes dos movimentos de esquerda, que atribuem a ele seus sentimentos e ressentimentos. Os cercos do cotidiano: ditadura e autoritarismo numa perspectiva micrológica • “[...] um cara suado e de gravata, cara de ódio, passa por mim na conde de bonfim, cara de uns quarenta anos, cara de pai de família classe média típico nacional, passa no seu fusquinhasinho e quando me vê dá um berro: - cachorro cabeludo! [...] são uns loucos. são uns totalitaristas: cabeludo não entra. são uns chatos, são loucos, totalmente loucos e perigosos. ou não?” (Torquato Neto) • Ditaduras e autoritarismo no Brasil em uma perspectiva micrológica.
• Em que medida o autoritarismo brasileiro está na
matriz formativa da própria sociedade e extrapola a esfera institucional?
• “Em fins de fevereiro de 1945, quando José Américo de
Almeida rompeu o cerco da censura, e 29 de outubro, com a deposição de Vargas, a sociedade brasileira, em pleno processo de democratização política e mobilizada em dois campos antagônicos, assistiu e participou de um movimento de massa, de proporções grandiosas, conhecido como queremismo” (FERREIRA, 2010, p. 15) • Para Jorge Ferreira, a mobilização queremista é comparável, em proporções e sentimentos envolvidos, apenas, em período anterior, à Aliança Nacional Libertadora e, décadas depois, ao movimento das “diretas já”.
• O queremismo, dessa maneira, apresenta-se aos
intelectuais liberais ou das esquerdas, como estranho: cai a ditadura do Estado Novo, mas cresce o prestígio do ditador; vislumbra-se o regime democrático e, no entanto, os trabalhadores exigem a permanência de Vargas no poder. • “O queremismo, antes de ser apressadamente interpretado como a vitória final de um suposto condicionamento homogeneizador da mídia do Estado Novo, expressou uma cultura política popular e a manifestação de uma identidade coletiva dos trabalhadores, resultados de experiências vividas e partilhadas entre eles, ao mesmo tempo políticas, econômicas e culturais, antes e durante o ‘primeiro governo’ de Vargas” (FERREIRA, 2010, p. 15). • Assim como no fim do Estado Novo houveram manifestações populares, a voz das pessoas nos primeiros anos da década de 1960 deixa claro que as noções de ditadura e autoritarismo, para além da prática política, mostram-se presentes nas micrologias do cotidiano.
• Um dos elementos que marca as ações de uma
parcela da sociedade, defensora dos tradicionalismos, da moral e dos bons costumes, aparece no “cerco aos cabeludos” que ocorreria nos anos 1960, demarcado por ações de repressão a práticas diferentes do usual. • “Historicamente, o cerco aos cabeludos serve para mostrar como a Ditadura Militar não é uma entidade acima da sociedade brasileira e repressora do conjunto da nação. Ela é, na verdade, desejada e está entranhada de tal maneira nas pessoas que elas reproduzem com naturalidade a repressão em escala micro, questionando e procurando fazer cessar os modos de subjetividade alternativas ao modelo padrão” (CASTELO BRANCO, 2005, p. 94). • Na perspectiva defendida por Edwar de Alencar Castelo Branco, o autoritarismo na década de 1960 era desejado por uma maior parte da sociedade.
• “As pessoas desejam o autoritarismo porque
projetam nele um instrumento para barrar o ritmo das mudanças e reinventar cotidiana e reativamente a tradição” (CASTELO BRANCO, 2005, p. 94).
• Havia, no entanto, quem lutasse contra ele.
Quem eram? Que resistências foram criadas contra os regimes autoritários? Militantes e libertários: juventude e contestação no Brasil • “A rua assemelhava-se a uma praça de guerra: jovens estudantes, rugindo palavras de ordem, avançavam em passeata, deslocando-se na contramão. [...] Faixas com mensagens agressivas e palavras de ordem ecoam por todos os cantos. Em instantes os militares, também ruidosamente, irão compor aquele cenário de guerra, surgindo de vários pontos ao mesmo tempo, atacando impiedosamente os manifestantes com cassetetes, gás lacrimogêneo e, mesmo, armas de fogo. [...] Demonstrando uma extrema hostilidade, os manifestantes respondem à agressão policial com paus, pedras, bolinhas de gude [...]. Nos rostos, lenços embebidos em amônia trazidos especialmente para neutralizar os efeitos do gás lacrimogêneo. Na garganta, ameaças contra o governo. No pensamento, uma revolução desejada” (CAVALCANTE JÚNIOR, 2007, p. 57). • O movimento estudantil enquanto uma categoria histórica.
• João Batista Vale Júnior aponta que, desde a década de
1930, as movimentações estudantis já se apresentavam como espaços de resistência às ações governamentais.
• Fundadas sob os auspícios do Estado Novo,
organizações como a União Nacional dos Estudantes (UNE), surgem como instrumentos para “promover no seio de parcelas consideráveis da juventude urbana uma estranha combinação entre o impulso renovador e adequação às políticas hegemônicas” (VALE JÚNIOR, 2010, p. 116), essas últimas interpretadas pelas lideranças estudantis como parte do processo de modernização trazidos com o Estado Novo. • Nesse momento histórico, segundo o autor, o movimento estudantil aparece oscilando entre o reformismo nacionalista e o liberalismo ortodoxo, representados, naquele momento, pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e a União Democrática Nacional (UDN), respectivamente.
• O vínculo do movimento estudantil às posições
mais hegemônicas da política brasileira começa a se transformar quando, diante das propostas desenvolvimentistas de Juscelino Kubitschek, o ambiente universitário se torna mais heterogêneo, na medida em que se inicia uma maior abertura do ensino superior à classe média (CAVALCANTE JÚNIOR, 2007, p. 59). • No auge da crise política despertada pela renúncia de Jânio Quadros, a UNE se mobiliza em defesa da posse do vice-presidente João Goulart, fazendo repercutir um discurso que se tornaria politicamente hegemônico naquele momento, bem como uma aproximação com o Partido Comunista Brasileiro, o que se mostraria uma constante a partir de então.
• De que maneira, então, se mobilizou o
movimento estudantil com a emergência do regime civil-militar de 1964? • A partir de 1964, o movimento estudantil ganha caráter de oposição direta à política instituída no país, e passaria a ser um referencial na oposição dos sujeitos históricos do Brasil deste período como, necessariamente, de direita ou de esquerda.
• Na invenção do movimento estudantil brasileiro, essas
designações, que apontam para um reducionismo que pouco explica como as coisas se processavam na prática, ajuda a entender como se dividiam os pensamentos políticos da época.
• A direita era, necessariamente, o falso, o outro contra
quem se deve lutar (CAVALCANTE JÚNIOR, 2007). • Para além das manifestações estudantis, e da partição da sociedade em dois lados, no entanto, uma parcela da juventude brasileira insistia em não localizar-se, necessariamente, como direita ou esquerda.
• Tal parcela, manifestando-se menos contra a
política instituída, apresentava-se menos como uma resistência ao regime político da época e mais como uma prática dissonante dos valores sociais tradicionais, ou seja, contra a experiência autoritária na política do cotidiano. • “Em 1968, portanto, a juventude não ficou presa às deliberações das vanguardas estudantis. Ela pulverizou suas reivindicações em lutas que objetivavam todas as formas possíveis de libertação: da liberdade política em regimes autoritários ao direito de pagarem ingresso mais barato no cinema de uma pequena cidade. Havia então um mundo divino e maravilhoso a ser descoberto, oferecendo aos inquietos jovens do período infinitas possibilidades de realização dos seus desejos, desde que eles se dispusessem a visitar os seus limites, o que significou, para a maioria daqueles jovens, colocar seus próprios corpos à disposição de novas experiências” (CAVALCANTE JÚNIOR, 2007, p. 74).