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II

Melhores Contos
Lygia Fagundes Telles

Seleção Eduardo Portella


Análise Baseada no Trabalho da Professora
Cláudia Regina Silveira
Melhores Contos

• Autor: Lygia Fagundes Telles


• Escola Literária: Pós- Modernismo /
3.ª Geração do Modernismo
• Ano de Publicação: 1982
• Gênero: Contos
• Divisão da Obra: 16 Contos
Melhores Contos
Lygia Fagundes Telles

RESUMO DOS CONTOS


OBSERVAÇÃO

RESUMO DOS CONTOS


ALGUNS CONTOS RECEBERAM MAIOR DETALHAMENTO, DADA SUA
MAIOR COMPLEXIDADE
CONTOS DO LIVRO

Antes do baile verde


Lygia Fagundes Telles
1970
Verde Lagarto Amarelo
SÍNTESE

• Eduardo visita Rodolfo, os dois


conversam sobre trivialidades e
relembram o passado, o que
significa uma tortura para
Rodolfo, pois lhe traz lembranças
dolorosas da infância.
Verde Lagarto Amarelo

• Em Verde Lagarto Amarelo, escrito em 1969 e


inédito até a publicação de Antes do baile verde
(livro), o tema desenvolvido no conto está
relacionado à importância da infância e às
consequências dos dramas infantis na vida de
duas personagens adultas. Afinal, de que cor é o
lagarto? O título talvez tenha sido escolhido com
a intenção de despertar a curiosidade do leitor:
apenas por seu intermédio não é possível a
formação de um projeto virtual sobre o conto,
também pode associar o personagem Rodolfo às
características do camaleão (adaptável).
Verde Lagarto Amarelo

• A narrativa é subjetiva, pois existe no


discurso a presença de um “eu”, Rodolfo, o
narrador. Esse esclarecimento feito pelo
narrador parece servir para reforçar a
impressão positiva sobre Eduardo. Assim, se
ele anda sem fazer ruído, é com a intenção de
não incomodar, e não para surpreender
Rodolfo sorrateiramente, como faz um felino
ao caçar uma presa.
Verde Lagarto Amarelo

• Com o sorriso de Eduardo, têm início as recordações


da infância, para Rodolfo. E o leitor recebe a
informação que Eduardo é irmão de Rodolfo. A partir
desse momento, o conto passa a ser construído com a
intercalação de trechos que representam o passado
das personagens, com outros que se situam no
momento presente da narrativa, na cena que se
desenvolve no apartamento de Rodolfo. O passado é
composto por recordações da infância, nas quais
Rodolfo faz conjeturas sobre o próprio
comportamento e o dos outros membros da família,
especialmente o do irmão e o da mãe.
Verde Lagarto Amarelo

• O diálogo entre os irmãos transcorre normalmente, com a


evocação das qualidades de Eduardo por parte do narrador.
Pela forma como Eduardo é apresentado, percebe-se que
existe um engajamento afetivo do narrador em relação a
essa personagem e que, aparentemente, o narrador procura
fazer com que o leitor sinta simpatia por Eduardo.
Entretanto, a partir do trecho citado a seguir, o drama de
Rodolfo passa a ser apresentado para o leitor: “Respirei de
boca aberta agora que ele não me via, agora que eu podia
amarfanhar a cara como ele amarfanhara o papel. Esfreguei
nela o lenço, até quando, até quando?!... E me trazia a
infância, será que ele não vê que para mim foi só
sofrimento? Por que não me deixa em paz, por quê? Por que
tem que vir aqui e ficar me espetando, não quero lembrar
nada, não quero saber de nada!..”
Verde Lagarto Amarelo

• Rodolfo afirma ser “um tipo meio esquisito”,


“meio louco” o que parece ser uma máscara
que utiliza para esconder a tristeza que sente,
a amargura que traz dentro de si. Eduardo é
oposto ao irmão.
Verde Lagarto Amarelo

• A consciência da diferença sufoca Rodolfo.


Para resolver o problema, pensa em morrer,
“Era menino ainda mas houve um dia em que
quis morrer para não transpirar mais”. Chega-
se ao clímax do conto. Rodolfo adivinha o
motivo da visita do irmão. O impacto da
descoberta faz com que ele sinta uma dor
“quase física”.
Verde Lagarto Amarelo

• A única coisa que era verdadeiramente sua, o


único talento que sobrara para Rodolfo, seu
único canal para se expressar e conseguir um
pouco de admiração, era o ato de escrever,
agora também “roubado” por Eduardo. A
surpresa e a decepção são grandes demais.
“Senti meu coração se fechar como uma
concha”.
Verde Lagarto Amarelo

• Eduardo tornar-se escritor, o que é sugerido


pelo conto, cujo final permanece em aberto,
sem a confirmação de Eduardo – é o golpe de
misericórdia na tentativa de Rodolfo de
manter a compostura.
Verde Lagarto Amarelo

• A intertextualidade está presente no conto


com o drama entre os irmãos Abel e Caim,
descrito na Bíblia. Caim sente inveja do
outro, que é o predileto do Senhor, e a ira
cresce a tal ponto que o leva a assassinar
Abel.
Apenas um saxofone
SÍNTESE
• Apenas um saxofone
• A narradora é uma mulher rica e fútil, que se
lembra da paixão que viveu com um
saxofonista. Ele era dedicado em extremo,
julgava-a a coisa mais bela e importante do
mundo.
• Ela, com medo de um amor tão puro e
autêntico, pede que ele a deixe.
Apenas um saxofone

• É a história de uma mulher e rica aos 44 anos.


Tinha um homem velho e rico que a sustentava,
relacionava-se com um jovem que lhe satisfazia
sexualmente e com um professor espiritual com
quem dormia e discutia filosofia.
• Possuía joias, tapetes e uma mansão, no entanto
vivia infeliz. Vivia na saudade do seu grande
amor, um saxofonista que se dedicara a ela
completamente, ela era a música dele. Ele tocava
com paixão o saxofone e assim mantinha a
mulher.
Apenas um saxofone

• Com ele ela se sentia viva, pois o saxofonista a


idolatrava. Eles artista e pobre se esforçava para
satisfazer seus desejos frívolos: um sapato, um
vestido , uma joia... Sempre antecedidos pela
frase de Luisiana: Se você me ama, ...
• Seus desejos ficam por demais exigentes. Até que
ela diz: Se você me ama, se mate...
• E ele ir desaparece de sua vida. Assim ela vivia só
com a lembrança.
Apenas um saxofone

• Ela pode recuperar, pela memória, pessoas, gestos, sons,


objetos que, na verdade, simbolizam o tempo perdido, o
desejo de resgatar algo que só foi valorizado no momento
de maturidade da vida.
• Luisiana, em crise existencial, já satisfeita de outras
necessidades, agora quer apenas “ouvir o saxofone”. Ela
mergulha na memória, guiada pela música na figura de um
objeto-símbolo remetendo-se a outro tempo, e transporta-
se para outro espaço de sua vida, o qual percorre,
recordando-se de um amor da juventude.
• “A lembrança é uma imagem construída pelos materiais
que estão, agora, à nossa disposição, no conjunto das
representações que povoam nossa consciência atual”.
Apenas um saxofone

• Sob essa ótica, a voz narradora coloca-nos diante dessa


personagem no instante em que ela se depara com sua juventude
ao lembrar-se do que passou e agora não há mais. A pergunta que a
consome encabeça uma lista de objetos de sua posse numa espécie
de balanço cujo resultado é sua certeza de que trocaria tudo por
um momento de seu passado jovem com o amor que só entendeu
agora ser o importante de sua vida:

• “Onde, meu Deus? Onde agora? Tenho também um diamante do


tamanho de um ovo de pomba. Trocaria o diamante, o sapato de
fivela e o iate – trocaria tudo, anéis e dedos, para poder ouvir um
pouco que fosse a música do saxofone. Nem seria preciso vê-lo,
juro que nem pediria tanto, eu me contentaria em saber que ele
estava vivo, vivo em algum lugar, tocando seu saxofone”
Antes do baile verde
SÍNTESE

• Tatisa se prepara para ir ao baile de carnaval.


Ela pede ajuda para a empregada, para
terminar sua fantasia. Enquanto isso seu pai
está no quarto ao lado à beira da morte.
Antes do baile verde

• Em Antes do baile verde, conto de Lygia Fagundes


Telles, uma jovem se prepara animada para o grande
baile a fantasia de sua cidade, em que todos devem
comparecer vestidos com roupas verdes. No quarto ao
lado, seu pai doente agoniza em seus últimos minutos
de vida.
• Tudo acontece no apartamento de Tatisa, que
juntamente com sua empregada, Lu, preparam-se para
um Baile Verde de carnaval. Ambas estão apressadas,
em especial Tatisa, preocupada em chegar atrasada ao
encontro de seu namorado, Raimundo. Lu vai ajudando
Tatisa a terminar sua fantasia.
Antes do baile verde

• É nessa situação que a empregada chama a atenção da


jovem para a saúde de seu pai. Disse que esteve lá (no
mesmo prédio); que o pai de Tatisa estava morrendo e
que seria bom que ela fosse vê-lo. No decorrer da
conversa, a garota deixa transparecer seu egoísmo em
total indiferença ao pai. Transfere não só a culpa disso,
mas também a responsabilidade para outrem (o
médico e a própria empregada).
• Depois, tenta convencer a empregada de ficar com o
pai naquela noite. Esta reluta a ideia alegando que não
perderá o desfile de carnaval por nada. Tatisa tenta se
convencer
Eu era mudo e só
SÍNTESE
• Manuel sente-se oprimido pelo casamento
que o afastou dos amigos. Abandonara sua
profissão e foi trabalhar com seu sogro − com
máquinas agrícolas− apenas para manter o
nível de vida da mulher.
Eu era mudo e só

• Para construir a narrativa em Eu Era Mudo e Só, de 1958,


Lygia Fagundes Telles criou o personagem Manuel, o
marido que se sente oprimido com o casamento. É por
meio do olhar de Manuel que o leitor conhece a esposa,
Fernanda.
• O conto tem início com uma cena familiar, Manuel observa
Fernanda, que está lendo um livro à luz do abajur, já
preparada para dormir. Nesse primeiro parágrafo, o
narrador emprega a focalização externa para iniciar a
caracterização da esposa: descreve o traje que ela está
usando e o aspecto e perfume de sua pele. Por meio das
características empregadas para compor a personagem, o
leitor pode perceber que se trata de uma mulher vaidosa e
que, provavelmente, tem um alto poder aquisitivo.
Eu era mudo e só

• Utilizando o recurso do monólogo interior, o


narrador apresenta uma analepse externa, por
meio da qual o leitor conhece a opinião de tia
Vicentina sobre Manuel: “‘Ou esse seu filho é
meio louco, mana, ou então...’ Não tinha coragem
de completar a frase, só ficava me olhando,
sinceramente preocupada com meu destino.” (p.
95). Entretanto, com a continuidade do
monólogo interior, o leitor toma conhecimento
que Manuel é um homem materialmente bem
sucedido, contrariando os prognósticos da tia
Vicentina
Eu era mudo e só

• “Penso agora como ela ficaria espantada se me


visse aqui nesta sala que mais parece a página de
uma dessas revistas da arte de decorar, bem
vestido, bem barbeado e bem casado,
solidamente casado com uma mulher
maravilhosa: quando borda, o trabalho parece
sair das mãos de uma freira e quando cozinha!...
Verlaine em sua boca é aquela pronúncia, a voz
impostada, uma voz rara. E se tem filho então, tia
Vicentina?! A criança nasce uma dessas coisas,
entende?... Tudo tão harmonioso, tão perfeito.”
(Telles, 1982, p. 95)
Eu era mudo e só
• Ao pensar no futuro de Gisela, o narrador prevê que a situação pela
qual ele, Manuel, passou, ao ser apresentado à família de Fernanda,
irá se repetir, um dia:
• “Era o círculo eterno sem começo nem fim. (...) A perplexidade do
moço diante de certas considerações tão ingênuas, a mesma
perplexidade que um dia senti. Depois, com o passar do tempo, a
metamorfose na maquinazinha social azeitada pelo hábito: hábito
de rir sem vontade, de chorar sem vontade, de falar sem vontade,
de fazer amor sem vontade... O homem adaptável, ideal. Quanto
mais for se apoltronando, mais há de convir aos outros, tão
cômodo, tão portátil.”(Telles, 1982, p. 99)
• O mundo de Fernanda e do senador era belo, mas irreal. Manuel
sabe que não faz parte daquele mundo, que se quiser continuar a
ser como é deve permanecer do lado de fora, contentando-se a
apenas admirá-lo.
As pérolas
SÍNTESE
• Tomás e Lavínia são casados. Ela se prepara
para ir a uma reunião, enquanto ele está
deitado e doente. Por ciúmes, ele esconde o
colar de pérolas da mulher, mas depois o
devolve.
As pérolas

• Em As Pérolas, conto de 1958, o pano de


fundo para tratar o tema é um diálogo entre
marido e mulher. as personagens que formam
o casal apresentado em As Pérolas, Tomás e
Lavínia, se amam.

As pérolas

• O que gera a tensão no conto é o fato de Tomás estar


doente, e ambos sabem que a morte do marido está
próxima. Lavínia preocupa-se com o estado de saúde
de Tomás. O leitor não consegue definir o que é pior
para Tomás, se a certeza da proximidade da morte ou a
iminência da traição. Ele sabe que a situação entre os
dois irá mudar depois dessa noite, depois do encontro
que acontecerá entre Lavínia e Roberto: “Depois ela
não lhe diria mais nada. Seria o primeiro segredo entre
os dois, a primeira névoa baixando densa, mais densa,
separando-os como um muro, embora caminhassem
lado a lado.”
As pérolas

• Essa certeza o deixa desesperado, mas o grito


de angústia não é verbalizado, fica apenas
dentro da mente de Tomás: “‘Lavínia, não me
abandone já, deixe ao menos eu partir
primeiro!’(...) ‘Não podem fazer isso comigo,
eu ainda estou vivo, ouviram bem? Vivo!’”
As pérolas

• Tomás não pode alterar o destino que lhe cabe. A


morte está próxima. Lavínia e Roberto ficarão juntos.
“(...) Seria triste pensar, por exemplo, que enquanto ele
ia apodrecer na terra ela caminharia ao sol de mãos
dadas com outro? Hein?...”.
• Entretanto, ele pode se permitir uma pequena
maldade, a subtração de um detalhe importante na
cena, o colar de pérolas que Lavínia usou no
casamento e que pretende usar no jantar dessa noite.
No fim, Tomás decide aceitar os fatos e entrega o colar
à sua mulher.
Herbarium
SÍNTESE
• A menina se apaixona por um primo que
estava doente e viera passar uns dias em sua
casa. O garoto colecionava folhas.
Herbarium

• Herbarium – Em sensível narrativa, esse conto nos traz


uma pequena história contada, em 1ª Pessoa, por uma
menina, criança à beira da adolescência, que descobre
a paixão num primo doente e mais velho que vem ficar
alguns dias em sua casa.
• Não se sabe a causa da doença do primo. Sabe-se que
ele é estudioso das plantas e está frequentemente
apanhando folhas para seu herbanário Todas as
manhãs eu pegava o cesto e me embrenhava no
bosque, tremendo inteira de paixão quando descobria
alguma folha rara (...) ele tinha em casa um herbanário
com quase duas mil espécies de plantas (...).
Herbarium

• A menina narradora, desconcertada e apaixonada pelo


primo, passa a coletar várias amostras e faz de tudo
para impressioná-lo. Deixa de roer as unhas e passa,
infantilmente, a ocupar-se somente da presença do
primo, mudando algumas atitudes e comportamentos
que até então não importavam. A convite do próprio
primo aceita ser uma espécie de assistente dando asas
à sua paixão e imaginação, até que vem a notícia da
partida do rapaz O chamado era urgente, teriam que
voltar nessa tarde. Sentia muito perder tão devota
ajudante, mas um dia quem sabe? (...).
• ouro, tinha rompido o sol. Encarei-o pela última vez,
sem remorso, quer mesmo? Entreguei-lhe a folha.
Herbarium

• Triste e sem graça, a menina tenta encobrir seus sentimentos que, a


cada passo desengonçado, ficam mais evidentes. Chateada com a
notícia da partida e mais a chegada de uma moça que veio buscar o
primo, nossa narradora acha uma rara folha que pensa em ocultar
do primo só por birra Estendi-lhe o cesto, mas ao invés de segurar o
cesto, segurou meu pulso: eu estava escondendo alguma coisa, não
estava? (...) Enfiei a mão no bolso e apertei a folha, intacta a
umidade pegajosa da ponta aguda, onde se concentravam as
nódoas vermelhas. Ele esperava. Eu quis então arrancar a toalha de
crochê da mesinha, cobrir com ela a cabeça e fazer micagem, hi hi!
hu hu! Até vê-lo rir pelos buracos da malha, quis pular da escada e
sair correndo em ziguezague até o córrego, me vi atirando a foice
na água, que sumisse na correnteza! Fui levantando a cabeça. Ele
continuava esperando, e então? No fundo da sala, a moça também
esperava numa névoa de
Pomba enamorada ou história de amor
SÍNTESE
• Pomba enamorada era uma jovem moça que
possui uma paixão não correspondida por
Antenor. Ela sofre, depois casa-se com outro,
tem filhos, mas nunca desistiu de seu
primeiro amor.
Pomba enamorada ou história de amor

• Pomba Enamorada ou Uma História de Amor –


Outra narrativa que apresenta a figura masculina
como grosseira. Numa narrativa em terceira
pessoa, acompanhamos as desventuras do
decorrer do tempo de uma mulher que se
apaixona, ainda na adolescência, por uma figura
ríspida, Antenor. É uma obsessão que vai até a
velhice. No começo, perseguia-o insistentemente,
seja ao telefone, seja indo até o local de trabalho
dele.
Pomba enamorada ou história de amor

• Não desiste nem mesmo quando fica sabendo do


casamento do objeto amado. Tenta suicídio,
frustrado. Recupera-se e diz ter amadurecido e
nunca mais querer incomodá-lo. No entanto, faz
questão de escrever uma carta para Antenor,
para deixar tal resolução clara. O tempo passa e
ela, sempre descobrindo o endereço dele, até a
nova profissão (de mecânico passara a motorista
de ônibus) manda cartas, falando do casamento
dela, enviando notícias dos filhos dela
Pomba enamorada ou história de amor

• . No final, já com filhos crescidos, um deles


casado, vai à cartomante e esta lhe diz que um
grande amor iria entregar-se a ela na
rodoviária no domingo próximo. Sua ida ao
terminal de ônibus claramente indica que
nada havia mudado no coração da sonhadora.
Seminário dos ratos
SÍNTESE
• Ratos invadem uma mansão onde vai
acontecer um seminário entre autoridades
políticas justamente para tentar exterminar
ratos que invadem a cidade.
Seminário dos ratos

• Seminário dos ratos, é um conto de Lygia


Fagundes Telles, e está também presente no
livro de mesmo nome. Neste conto a autora
também rompe com a realidade e com a
lógica racional.
Seminário dos ratos

• Conto em terceira pessoa que apresenta uma alegoria


de nossas estruturas político-burocráticas. Trata-se de
ratos, pequenos e temerosos roedores, numa treva
dura de músculos, guinchos e centenas de olhos luzindo
negríssimos, que invadem e destroem uma casa recém
restaurada localizada longe da cidade. Ali aconteceria
um evento denominado VII Seminário dos Roedores,
uma reunião de burocratas, sob a coordenação do
Secretário do Bem-Estar Público e Privado, tendo como
assessor o Chefe de Relações Públicas. O país fictício
encontra-se atravancado pela burocracia, invertendo-
se a proporção dos roedores em relação ao número de
homens: cem por um.
Seminário dos ratos

• O conto aparece em livro homônimo, no ano


de 1977, época em que o Brasil se encontrava
em um momento histórico de repressão
política. No trabalho gráfico da capa da
primeira edição do livro Seminário dos ratos,
aparecem dois ratos empunhando estandartes
com bandeiras à frente de uma figura
estilizada – uma espécie de monstro com
coroa, um rei no trono, a ser destronado pelos
animais?
Seminário dos ratos

• O próprio nome do conto "Seminário dos ratos"


já causa uma inquietação. Um seminário evoca
atividade intelectual, local de encontro de
estudos, possuindo etimologicamente mesma
raiz de semente/sementeira – local para germinar
novas ideias.
• Também traz uma ambiguidade: seminário no
qual se discutirá a problemática dos ratos, ou
seminário no qual os ratos serão participantes?
Essa questão ficará em aberto ao final do conto.
Seminário dos ratos

• Que século, meu Deus! – exclamaram os ratos


e começaram a roer o edifício. A imagem
evocada por este verso já traz um efeito em si,
remetendo à história de homens sem alma e a
construções sem sentido, que não vale a pena
conservar, condensando uma perplexidade
frente a situações paradoxais daquele século
surpreendente. O nome "esplendor" no título
do poema é uma ironia, visto que o edifício
descrito pelo poeta é pura decadência.
Seminário dos ratos

• O espaço privilegiado no relato é um casarão do


governo, espécie de casa de campo afastada da
cidade, recém-reconstruída especialmente para a
realização do evento. Portanto, o seminário
aconteceria em uma casa de ambiente acolhedor,
longe de temidos inimigos como insetos ou
pequenos roedores, equipada com todo o conforto
moderno: piscina de água quente, aeroporto para
jatinhos, aparelhos eletrônicos de comunicação,
além de outras comodidades e luxos.
Seminário dos ratos

• A narrativa fantástica transcorre neste cenário insólito com


protagonistas ambivalentes que carecem de nomes próprios.
Até mesmo os acontecimentos e seus indícios nesta
representação espacial transmitem uma sensação
ameaçadora ao leitor. A intenção política fica atestada nesta
escolha da mansão restaurada no campo, evidenciando um
plano físico/espacial expandido ao psicológico: distante,
porém íntimo para quem lá está. Embora o processo
psicologizante seja lento, a total e inevitável destruição ao
final é completamente bem-sucedida.
Seminário dos ratos

• A primeira personagem apresentada no conto é o Chefe das


Relações Públicas, um jovem de baixa estatura, atarracado,
sorriso e olhos extremamente brilhantes, que se ruboriza
facilmente e possui má audição. Ele pede permissão,
através de batidas leves na porta para entrar na sala do
Secretário do Bem Estar Público e Privado, a quem chama
de Excelência – homem descorado e flácido, de calva úmida
e mãos acetinadas [...] voz branda, com um leve acento
lamurioso. O jovem chefe encontra o secretário com o pé
direito calçado, e o outro em chinelo de lã, apoiado em
uma almofada, e bebendo um copo de leite. Curiosamente,
a personagem do jovem chefe é a única que sobreviverá ao
ataque dos ratos, restando ao final da história para
contá-la.
Seminário dos ratos

• As personagens desse conto são nomeadas


através de suas ocupações profissionais e
cargos hierárquicos, havendo portanto uma
focalização proposital nos papéis sociais.
Também nesse primeiro momento, há
descrição pormenorizada do físico das
personagens já apresentadas, que levam a
inferências sobre aspectos psicológicos, que
permitem conhecer a interioridade.
Seminário dos ratos

• No caso destas duas personagens, parece que ambos não


têm contato com seu inconsciente. Elas não se apoderam
de si mesmas: não está em contato consigo mesma, mas
com sua imagem refletida. As individualidades do chefe e
do secretário encontram-se completamente confundidas
com o cargo ocupado, resultando num estado de inflação,
num papel social representado, longe da essência de seus
núcleos humanos e de suas sensibilidades. A ênfase dada à
ocupação e ao cargo da primeira personagem mostra que
se trata do responsável pela coordenação dos assuntos que
dizem respeito ao relacionamento com o público em geral.
Em outras palavras, sua função está ligada aos tópicos
referentes à mídia, à comunicação com o coletivo.
Seminário dos ratos

• Esta primeira cena do conto já remete a uma


dualidade que acentua oposições: embora
seja o responsável pelo bem-estar coletivo, o
secretário sofre de um mal-estar individual,
pois tem uma enfermidade que ataca seu pé -
a gota - em cujas crises seu sentido da audição
também se aguça. Cria-se uma figura
contraditória: um secretário do bem-estar que
se encontra mal.
Seminário dos ratos

• A narrativa apresenta a divisão da unicidade física e


psíquica desta personagem, que já vem nomeada com
esta cisão de forças antagônicas: o público e o privado.
Este índice já pertence ao duplo – um pé esquerdo
doente – que desvela a cisão em que se encontra o
secretário. Embora aparentemente restrita ao nível
físico, há uma divisão da unidade psíquica também. No
outro dia ele calçará os sapatos, para aparecer "uno"
diante do mundo externo. Através do discurso, revela-
se uma bivocalização, uma relação de alteridade, uma
interação da voz de um eu com a voz de um outro.
Seminário dos ratos

• Este diálogo que se estabelece entre os dois acontece


com um pano de fundo: a crise de artrite que acomete
o secretário. A partir deste momento, estabelece-se
uma ênfase acentuada nesta parte-sustentáculo do
corpo humano, enfermo na personagem. Ao receber
em chinelos seu subordinado – que, também detém
um cargo de chefia – ele revela sua intimidade,
denunciando sua deficiência física e tornando-se
vulnerável. Confessa que fará o sacrifício de calçar
sapatos, porque não deseja apresentar-se assim aos
demais convidados. Dessa forma, o secretário
encontra-se destituído de um dos símbolos de sua
autoridade: os sapatos.
Seminário dos ratos

• No conto, o fato de o secretário estar com a


saúde do pé abalada, e não poder se
locomover (a não ser de chinelos) nem calçar
sapatos, parece significar justamente não
poder gozar de sua plena autoridade. É uma
pessoa fragilizada, com limitações expostas,
cuja "persona" não está sintonizada com o
exigido, além de beber leite, alimento
relacionado com a infância.
Seminário dos ratos

• Na continuação da conversa, o secretário solicita notícias sobre o


coquetel que ocorrera à tarde, ao que o Chefe das Relações
Públicas responde ter sido bem-sucedido, pois havia poucas
pessoas, só a cúpula, ficou uma reunião assim aconchegante,
íntima, mas muito agradável. Continua informando em que alas e
suítes estão instalados os convidados: o Assessor da Presidência da
RATESP na ala norte, o Diretor das Classes Conservadoras Armadas
e Desarmadas na suíte cinzenta, a Delegação Americana na ala azul.
Complementa dizendo que o crepúsculo está deslumbrante, dando
indícios do tempo cronológico do conto, que transcorre entre um
entardecer e um alvorecer: o ciclo de uma noite completa. A
conversa inicia quase às seis horas, indicando um momento de
passagem, de transição entre a luz/claridade e a noite, quando a
consciência vai pouco a pouco dando lugar ao mundo da escuridão,
do inconsciente. Como bem assinala Franz: ...a hora do poente pode
ser interpretada como dormir, o apagar-se da consciência.
Seminário dos ratos

• O secretário solicita explicações sobre a cor


cinzenta escolhida na suíte do diretor das
classes, por sua vez representando também
uma síntese de contrários, e o jovem Relações
Públicas explica os motivos de suas escolhas
para distribuir os participantes. Depois indaga
se o secretário por acaso não gosta da cor
cinza, ao que ele responde com uma
associação, lembrando tratar-se da cor deles.
Rattus alexandrius.
Seminário dos ratos

• O secretário os chama pelo nome latino, o que sugere


um artifício para minimizar a gravidade da situação.
Aqui é trazida uma perspectiva polarizada: norte-sul.
Entre as duas, uma zona cinzenta. É interessante
perceber que o ocupante desta área tem uma
responsabilidade contraditória de defender as classes
conservadoras com as forças armadas e com as forças
desarmadas. No conto, a cor da suíte que lhe é
destinada – cinzenta - remete a algo que não é preto
nem branco, mas à mescla destas duas cores, como se
faltasse uma definição na cor e nas forças que utiliza.
Seminário dos ratos

• No prosseguimento da conversa entre ambos, o secretário confessa ter


sido contrário à indicação do americano, argumentando que, se os ratos
são pertencentes ao país, as soluções devem ser caseiras, ao que o chefe
objeta ser o delegado um técnico em ratos. Fica evidente a posição
política contrária à intervenção americana no país, principalmente porque
na época havia suspeitas de que agentes americanos especializados em
repressão política vinham ao Brasil treinar torturadores. O secretário
aproveita para indicar ao jovem chefe (que está sendo orientado, pois é
um candidato em potencial) uma postura de positividade diante dos
estrangeiros, devendo esconder o lado negativo dos fatos: mostrar só o
lado positivo, só o que pode nos enaltecer. Esconder nossos chinelos. Aqui
a personagem expõe sua visão de mundo, suas relações consigo mesmo e
com o mundo externo - aspectos que são motivo de orgulho e
envaidecimento devem ser mostrados, porém aspectos da psique
individual e coletiva que envergonhem e representam dificuldades não.
Em outras palavras: o mundo da sombra deve ser escondido.
Seminário dos ratos

• No discurso sobre as aparências, a personagem relaciona os ratos com os


pés inchados e com os chinelos. O aspecto que estes três elementos têm
em comum é que são todos indesejáveis para a personagem: o rato, pela
ameaça da invasão, epidemia e destruição (além de prejudicarem sua
gestão e pôr em dúvida sua competência de zelar pelo bem-estar
coletivo), o pé enfermo por denunciar sua deficiência física, e os chinelos,
finalmente, por revelarem um status inferior, uma espécie de destituição
de seu poder. Também não agrada ao secretário saber que o americano é
um especialista em jornalismo eletrônico, solicitando ser informado sobre
todas as notícias veiculadas a esse respeito na imprensa a partir dali. Já se
encontram no sétimo seminário e ainda não solucionaram o problema dos
roedores, porém não desejam ajuda estrangeira. O jovem Relações
Públicas conta que a primeira crítica levantada fora a própria escolha do
local para o seminário – uma casa de campo isolada -, e a segunda
questão se referia aos gastos demasiados para torná-la habitável: tem
tanto edifício em disponibilidade, que as implosões até já se multiplicam
para corrigir o excesso. E nós gastando milhões para restaurar esta
ruína....
Seminário dos ratos

• O chefe continua relatando sobre um repórter que


criticou a medida do governo e este torna-se alvo do
ataque dos dois homens: estou apostando como é da
esquerda, estou apostando. Ou, então, amigo dos
ratos, diz o secretário. Franz sublinha que a sombra, o
que é inaceitável para a consciência, é projetada num
oponente, enquanto a pessoa se identifica com uma
autoimagem fictícia e com o quadro abstrato do
mundo oferecido pelo racionalismo científico, algo que
provoca uma perda constantemente maior do instinto
e, em especial, uma perda do amor ao próximo, tão
necessário ao mundo contemporâneo.
Seminário dos ratos

• Entretanto, o jovem chefe salienta a cobrança de resultados por


parte da mídia. Acentua que, na favela, as ratazanas é que andam
de lata d’água na cabeça e reafirma ser uma boa ideia a reunião se
realizar na solidão e ar puro da natureza no campo. Nesta primeira
afirmação, percebe-se uma total falta de sensibilidade, empatia,
solidariedade e humanidade para com os favelados: tanto faz que
sejam as Marias ou as ratazanas que precisem carregar latas d’água
na cabeça. Esta parte do conto é reforçada pela citação supracitada.
Neste momento, o secretário ouve um barulho tão esquisito, como
se viesse do fundo da terra, subiu depois para o teto... Não ouviu
mesmo?, porém o jovem relações públicas nada ouve. O secretário
encontra-se tão paranoico com a questão dos ratos e do seminário,
que desconfia da possibilidade de um gravador estar instalado
veladamente, talvez da parte do delegado americano. O relações
públicas conta ainda que o assessor de imprensa sofrera um
pequeno acidente de trânsito, estando com o braço engessado.
Seminário dos ratos

• No prosseguimento da conversa, um ato falho do secretário faz


confundir braço com perna quebrada. Franz faz ver que os braços
são em geral os órgãos de ação e as pernas nossa postura na
realidade. O jovem chefe diz que o assessor de imprensa dará as
informações pouco a pouco por telefone, mas que virão todos ao
final, para o que ele denomina "uma apoteose". A tradução do
texto latino Finis coronat opus, ou seja, "o fim coroa a obra",
evidencia que para ele não importam os meios. Denuncia-se desse
modo a falta de princípios éticos das personagens. O secretário
confessa se preocupar com a incomunicabilidade, preferindo que os
jornalistas ficassem mais perto, ao que o jovem assessor contra-
argumento que a distância e o mistério valorizam mais a situação. A
preocupação da personagem é com o mundo externo, com os
meios de comunicação, com as boas notícias, mesmo que
inverídicas. Entretanto, permanece incomunicável com seu mundo
interno, não lhe dando atenção.
Seminário dos ratos

• O secretário pede inclusive para seu assessor inventar que os ratos já


estão estrategicamente controlados. Fica evidenciada no diálogo a
manipulação da informação, principalmente na vocalização do chefe: [...]
os ratos já se encontram sob controle. Sem detalhes, enfatize apenas isto,
que os ratos já estão sob inteiro controle. Além disso, aqui são visíveis os
mecanismos da luta pelo poder: o binômio mandante/poder –
executor/submissão representa parte de um sistema sócio-político
explorador e falso, prevalecendo a atitude de ludibriar.
• Novamente, o secretário chama a atenção para o barulho que aumenta e
diminui. Olha aí, em ondas, como um mar... Agora parece um vulcão
respirando, aqui perto e ao mesmo tempo tão longe! Está fugindo, olha
aí..., mas o chefe das relações públicas continua a não escutar. A
comparação com forças poderosas e potencialmente destrutivas da
natureza mostram o quanto ele estava apreensivo. O barulho
desconhecido e esquisito que persegue o secretário aparece como uma
ameaça severa, como se algo já existente em potencial estivesse por
acontecer.
Seminário dos ratos

• O secretário afirma que escuta demais, devo ter um


ouvido suplementar. Tão fino. e que é o primeiro a ter
premonições quando coisas anormais acontecem,
evocando sua experiência na revolução de 32 e no
golpe de 64. Esta verbalização aponta indícios de que a
sede do sétimo seminário é o Brasil, ao menos como
inspirador do país ficcional do texto. No entanto, o
cenário é ampliado para a América do Sul, com o uso
repetido do termo "bueno" pelo jovem assessor, em
várias de suas vocalizações, e o nome da safra do
vinho, mais adiante analisado. Respira-se uma
atmosfera latina em função disto. Em geral há um tom
de tragédia, típico da simbologia isomorfa das trevas.
Seminário dos ratos

• O jovem assessor lança um olhar suspeitoso sobre uma imagem de bronze: aqui
aparece, sob a forma de uma estatueta – da justiça – uma figura feminina no
conto: tem os olhos vendados, empunha a espada e a balança. Desta, um dos
pratos está empoeirado, novamente numa alusão à situação de injustiças em que
vive o país. A balança é o elemento mais evidenciado da imagem, como se
estivesse em primeiro plano. Através dessa alegoria, há como um convite para
refletir sobre as diferentes polaridades que se evidenciam, já que se trata de um
instrumento que serve para medir e pesar o equilíbrio de duas forças que se
colocam em pratos opostos: bem estar x mal estar, pé sadio x doente, ratos x
governo, mansão x ruína.
• Os dualismos apontados acabam por sintetizar uma confrontação simbólica entre
homens e animais, entre racionalidade e irracionalidade. A espada é o símbolo por
excelência do regime diurno e das estruturas esquizomorfas. A arma pode
representar a reparação e o equilíbrio entre o bem e o mal. No tecido do conto, a
imagem da espada nas mãos da justiça adquire sentido de separação do mal.
Neste conto, a correspondência das situações e personagens apresentadas
corrobora uma significação dualista, através do uso de antíteses pela escritora.
• Somente então o secretário faz menção ao pé enfermo, usando o termo "gota"
pela primeira vez na narrativa.
Seminário dos ratos

• E o jovem assessor de imediato canta Pode ser a gota d’água! Pode ser a
gota d’água!, estribilho da canção popular do compositor Chico Buarque
de Holanda, na época um crítico dos fatos políticos do país. A associação
musical do chefe parece não agradar ao secretário. O jovem chefe
defende-se, dizendo ser uma música cantada pelo povo, ao que o
secretário aproveita a deixa para declarar que só se fala em povo e no
entanto o povo não passa de uma abstração [...] que se transforma em
realidade quando os ratos começam a expulsar os favelados de suas casas.
Ou roer os pés das crianças da periferia. O secretário complementa que
quando a "imprensa marrom" começa a explorar o fato, aí "o povo passa a
existir".
• Na afirmação de que o povo não existe enquanto realidade, o secretário
parece ser um secretário mais para privado do que para público, porém é
forçado a reconhecer o povo quando suas mazelas e infortúnios aparecem
nos jornais, expostos em manchetes, o que muito abomina.
Seminário dos ratos

• Na rede de intertextualidade do Seminário dos ratos, a alusão à canção "Gota


d’água" completa uma série de referências presentes no conto a poetas brasileiros:
Carlos Drummond de Andrade, Chico Buarque de Holanda, Vinícius de Moraes,
presentes no texto. Poderíamos contar ainda com a presença da letra de "Lata
d’água", música de carnaval tipicamente brasileira. É como se a narrativa quisesse
enfatizar as coisas boas do país, em contraponto com a situação política vigente.
• Outra teia intertextual possível é o conto de fadas O flautista de Hamelin: a
personagem-título livra a população da peste dos ratos apenas com sua música. A
condução/expulsão dos ratos para longe é um contraponto ao texto de Lygia, que,
por sua vez, trata da chegada de ratos.
• Órgãos públicos como RATESP – numa clara referência aos ratos e à cidade de São
Paulo – parecem não alcançar nenhum resultado contra os ratos que se
multiplicam em uma cidade sem gatos exterminadores. O secretário lembra
também que no Egito Antigo, resolveram esse problema aumentando o número de
gatos, ao que o assessor responde que aqui o povo já comera todos os gatos, ouvi
dizer que dava um ótimo cozido!, em uma resposta claramente irônica, aludindo
ao fato de que o povo estaria esfaimado a ponto de comer carne de gato.
Seminário dos ratos

• Com o escurecer, o jovem relações públicas recorda que o jantar será às


oito horas, e a mesa estará decorada com a cor local: orquídeas, frutas,
abacaxi, lagostas, vinho chileno. O preparo cuidadoso e aparência
requintada do alimento não o afastará de ao final tornar-se comida dos
animais. Aqui aparece outro fio intertextual – com a política de outro país
da América do Sul, o Chile - pois na narração o nome da safra do vinho é
Pinochet, referência explícita ao ditador na época da publicação do conto,
recentemente julgado por seus atos.
• O ruído retorna de forma bem mais forte: agora o relações públicas
identifica-o, levantando-se de um salto. Aparece a satisfação do secretário
ao ver confirmadas suas intuições, porém ele mal imagina que esta
satisfação logo irá também por sua vez inverter-se, pois é a confirmação
de um barulho prenunciador da catástrofe que logo a seguir se abaterá
sobre o casarão, o ruído surdo da invasão dos ratos que se articula.
Novamente compara com vulcão ou bomba, e o jovem assessor sai
apavorado murmurando: Não se preocupe, não há de ser nada, com
licença, volto logo. Meu Deus, zona vulcânica?!....
Seminário dos ratos

• No corredor, ele encontra-se com Miss Glória, secretária da delegação americana,


a única personagem feminina do conto, com quem conversa rapidamente em
inglês, praticando seu aprendizado de idiomas. Parece haver uma ironia também
no nome, pois contrariamente à glória esperada, o seminário parece fadado ao
fracasso. Ela tem um papel secundário no seminário, que aparece como um
evento de poder eminentemente masculino. O chefe encontra-se em seguida com
o diretor das classes conservadoras armadas e desarmadas, vestido com um
roupão de veludo verde e encolheu-se para lhe dar passagem, fez uma mesura,
‘Excelência’ e quis prosseguir mas teve a passagem barrada pela montanha
veludosa, e ainda lhe admoesta sobre o ruído e o cheiro. Informa-lhe que os
telefones estão mudos (no país os meios de comunicação estavam sob censura), o
que o surpreende. A comparação que a escritora faz com uma montanha veludosa,
em correspondência ao chambre de veludo verde, neste contexto, alude à cor do
conservadorismo e do poder. Trata-se de cor muito utilizada pela escritora, já
referido em outros contos. O uso desta cor na obra da escritora é tão notável, que
mereceu análise de Fábio Lucas no ensaio Mistério e magia: contos de Lygia
Fagundes Telles.
Seminário dos ratos

• Neste momento surge a personagem do cozinheiro-chefe, que anuncia a rebelião


dos animais, aparece correndo pelo saguão – sem gorro e de avental rasgado –
com mãos sujas de suco de tomate que limpa no peito, a cor vermelha em clara
alusão a sangue, revolução, esquerda – dizendo aos gritos que acontecera algo
horrível: Pela alma de minha mãe, quase morri de susto quando entrou aquela
nuvem pela porta, pela janela, pelo teto, só faltou me levar e mais a Euclides! - os
ratos haviam comido tudo, só se salvara a geladeira. Relata, como o secretário, que
o barulho fora percebido antes, feito um veio d’água subterrâneo. Depois havia
sido um apavoramento, um espanto com aquela invasão despropositada e
aterrorizante em meio aos preparativos para o seminário. O estranhamento que
causa a invasão dos ratos dentro desta atmosfera é abrupta, apesar dos indícios,
pois não existe uma explicação lógica da desmesura dos ataques. A violência do
ocorrido, de uma certa forma, reflete aspectos "monstruosos" dentro do homem,
e que também dá a medida de como a sociedade se constitui. Aqui, o fato
fantástico instala-se no âmago do real, confundindo os parâmetros racionais e
provocando uma ruptura da ordem do cotidiano. A não resolução da narrativa e o
sistema metafórico fazem da narração, um drama e da leitura, um exercício
conflitiva.
Seminário dos ratos

• O jovem assessor preocupa-se com as aparências, pedindo que o


cozinheiro-chefe fale baixo, não faça alarde sobre os
acontecimentos. A cozinha é, no conto, o local por onde inicia a
invasão dos roedores.
• Como é sugerido desde o título do conto, os agentes instauradores
da estranheza são os ratos, símbolos teriomórfico, uma vez que se
constituem responsáveis pela invasão, tomando conta do espaço
físico conhecido, e pela destruição do local. Convertem-se no centro
das preocupações das personagens e, depois, no ponto deflagrador
do pânico. Os atributos desses animais significam o poder
destruidor do tempo, possuindo uma grande resistência ao
extermínio. Ratos são considerados animais esfomeados, prolíficos
e noturnos, aparecendo como criaturas temíveis, até infernal. No
conto, os ratos são totalmente subversivos, no sentido de
corroerem a ordem e estabelecerem o caos e o terror.
Seminário dos ratos

• Na sequência do conto, o jovem chefe tenta que o cozinheiro volte à


cozinha, porém este mostra que a gravidade da situação não está sendo
compreendida pelo jovem: nenhum carro está funcionando [...] Os fios
foram comidos, comeram também os fios, ir embora só se for a pé, doutor.
Foram retirados todos os símbolos que remetem à acessibilidade e à
comunicação com o mundo exterior, e agora, sem subterfúgios externos
para se salvarem, somente restam suas próprias forças e recursos. Os
ratos devastaram toda a infraestrutura do VII Seminário de Roedores. O
relações públicas com olhar silencioso foi acompanhando um chinelo de
debrum de pelúcia que passou a alguns passos do avental embolado no
tapete: o chinelo deslizava, a sola voltada para cima, rápido como se
tivesse rodinhas ou fosse puxado por algum fio invisível.
• Esta imagem é dúbia, não se sabe se o secretário está sendo arrastado
junto com o chinelo ou se o chinelo é o que resta do corpo devorado;
voltemos à sua premonição: o pé fora roído por ratos como o das crianças
pobres? De qualquer forma, o destaque é dado para o chinelo, justamente
aquilo que fora desprezado pela personagem: era tudo o que restara de si.
Seminário dos ratos

• Nesse momento a casa é sacudida em seus alicerces por algo que parece uma
avalanche e as luzes se apagam. Invasão total. O texto compara a irrupção dos
animais aos milhares, brotando do nada e de todos os lugares, a uma erupção
vulcânica, incontrolável. A própria narrativa vai avisando que foi a última coisa que
viu, porque nesse instante a casa foi sacudida nos seus alicerces. As luzes se
apagaram. Então deu-se a invasão, espessa como se um saco de pedras
borrachosas tivesse sido despejado em cima do telhado e agora saltasse por todos
os lados numa treva dura de músculos, guinchos e centenas de olhos luzindo
negríssimos.
• Do ataque rapidíssimo dos roedores, salva-se somente o chefe das relações
públicas, que se refugia entrincheirando-se na geladeira: arrancou as prateleiras
que foi encontrando na escuridão, jogou a lataria para o ar, esgrimiu com uma
garrafa contra dois olhinhos que já corriam no vasilhame de verduras, expulsou-os
e, num salto, pulou lá dentro, mantendo-a aberta com um dedo na porta para
respirar, logo em seguida substituindo-o pela ponta da gravata.
Seminário dos ratos

• No início do conto, a gravata representa o status, o


prestígio, o mundo das aparências. Já no final, aparece
como símbolo de sobrevivência. Há aqui, portanto, uma
transformação de um símbolo em função das ameaças e do
perigo que se apresentaram à personagem, modificando o
contexto. E ainda pode-se apontar mais uma inversão: as
pessoas fogem espavoridas enquanto os ratos se instalam,
e o chefe das relações públicas esconde-se na cozinha
(depósito de mantimentos) como se fosse um rato.
• Aqui tem-se o início do segundo bloco. Em flashback, avisa-
se ao leitor que, após os acontecimentos daquele dia,
houve um inquérito – medida obscura que ocorria no
panorama do país naquela época. É a única coisa que o
narrador conta de concreto após os fatos.
Seminário dos ratos

• O elemento invasor, portanto, conseguiu


exterminar o seminário.
• A estada do jovem chefe no interior da geladeira
parece ter se constituído em um ritual de
passagem, até mesmo um cerimonial, pois de um
certo modo ele não renasceu? Afinal, somente
ele sobreviveu e regressou ao social para relatar,
tendo ficado privado de seus sentidos, que
ficaram enregelados durante um tempo. A
personagem, buscando refúgio na geladeira,
tenta sobreviver e se salvar.
Seminário dos ratos

• Aqui o narrador suspende a história. Este final é ambíguo, talvez em uma


alusão aos ratos se reunindo para realizar o VII Seminário dos Roedores,
deliberando e decidindo o destino do país em lugar dos homens
dizimados... Após a iluminação do casarão, inicia-se uma nova era,
governada pelo mundo das sombras, com os ratos assumindo o poder.
• Todo o conto é filtrado por indicativos do fantástico, tendo seus limites no
alegórico. Predomina a inversão e os animais corporificam o duplo. O
clima permanente é o medo apavorante de algo que se desconhece – e
principalmente, que não se controla. E sob esta capa do fantástico, Lygia
compôs um conto denunciador da situação não menos terrificante em que
vivia o país, abordando uma temática sobre as complexas relações entre o
bem e o mal-estar coletivo e pessoal. O atributo sobrenatural – a
hesitação experimentada por um ser que só conhece as leis naturais, face
a um acontecimento aparentemente sobrenatural, aparece neste conto,
fazendo o leitor hesitar ao realizar a interpretação.
Seminário dos ratos

• Esta narrativa de Lygia é outro exemplo da literatura como duplo, ou seja,


o próprio conto como um todo é uma duplicidade de uma situação real.
Uma situação política de um país, as forças militares que nele operavam,
praticamente toda sua doença social personificadas nas personagens que
se desdobram, os ratos como imagem de um povo faminto de liberdade e
justiça que refletem (se duplicam) no conto literário. O epílogo do conto
prova a existência do povo, sob forma de ratos rebelados, que mostra sua
revolta e vingança, ao contrário da crença do secretário, de que ele não
existiria. Neste conto, na luta entre os homens do poder e os ratos (os
duplos - representantes do fantasmático), os vencedores são
aparentemente estes últimos, que conseguem aniquilar com o VII
Seminário. Porém, o final ambíguo (com a iluminação da mansão) e a
sobrevivência do Chefe das Relações Públicas podem encaminhar a outras
possibilidades de interpretação. Porém, a dúvida se instala: se os ratos
haviam roído a instalação elétrica, de onde provinha a iluminação? Mais
um enigma proposto pelo fantástico.
Seminário dos ratos

• Este conto, por se tratar de uma temática social,


distingue-se dos demais e traz um diferencial. Uma
praga sobrenatural de ratos: eis a fantasia de Lygia
Fagundes Telles para dizer de sua indignação com a
situação do país e com a censura instalada. Os ratos
aqui aparecem como elementos que subvertem a
ordem estabelecida. A ironia, o humor negro e o
sentido crítico perpassam as linhas dessa história
satírica, sem abandonar o sentido de uma invasão
sobrenatural dos animais. A inversão de papéis
realizada entre os animais e os homens apresenta-se
como a principal característica do fantástico e do duplo
nesse tenso universo representado no conto.
A confissão de Leontina
SÍNTESE
• A mulher está na cadeia, presa por ter
assassinado um homem em legítima defesa.
Ela conta sua triste história de vida, desde a
infância, a uma senhora que se propôs a
escutá-la
A confissão de Leontina

• A Confissão de Leontina - Quinto conto do livro: a narradora é uma


mulher pobre e de pouco verniz cultural, que reclama por não confiar em
ninguém da cidade grande. Nasceu na pequena cidade Olhos D’Água e mal
sabe ler e escrever, além de não ter ninguém por ela no mundo. Lembra
do primo Pedro que, ao derrubar a pequena Luzia, irmã da narradora,
atingiu o cérebro da menina, criada desde ali como um vegetal.
• A mãe de Luzia e dela, Leontina, era uma lavadeira que criara o filho da
irmã, Pedro. Os poucos centavos, a melhor comida, a escola, tudo só dava
a ele, em quem depositava falsas esperanças. Quando ela morreu,
Leontina foi ser lavadeira. E também na formatura de Pedro, Luzia afogou-
se. Pedro não a quisera no colégio, mal podia aturar a miséria da nossa
narradora. Forma-se, pega o que pode e vai para São Paulo estudar
medicina e fazer o possível para vencer e esquecer Leontina e todo aquele
horrível passado de pobre. Obrigou-a a vender tudo que tinha e entregou-
a aos cuidados de um padre que a empregou na casa de uma perversa
mulher, mãe de um filho que quis abusar de Leontina.
A confissão de Leontina

• Nossa heroína vai à luta na cidade grande fugindo do interior. Dançarina


de aluguel, prostituta e... assassina? Com tantos elementos assim, Lygia
entrega ao leitor sua visão confortável de todo o nosso desconforto. É
como perguntaria Machado de Assis sobre Dona Plácida, de Memórias
Póstumas de Brás Cubas: para que existir deste modo?
• A narradora dirige-se a alguém que mal conseguimos distinguir. Há um
tom de tragicômico, desespero. A morte da mãe e da cachorra Titã no
mesmo parágrafo revela que o mundo é dos fortes: Pedro venceu, mesmo
quando nega conhecer Leo como sua prima. O primeiro “amor” da vida
dela, já dançarina de aluguel: um marinheiro; seu primeiro vestido: aquele
que vestiria na mãe para enterrá-la e que lhe foi deixado como herança.
• Minha mãe vivia lavando roupa na beira da lagoa (...) nunca vi minha mãe
se queixar. Era miudinha e tão magra que até hoje fico pensando onde ia
buscar forças para trabalhar tanto não parava (...) Pedro precisava estudar
para ser médico. Prometera a irmã e todos passavam necessidades em
nome dele. E ele as renegava.
A confissão de Leontina

• Não podemos aqui falar em felicidade. Leontina é uma Macabreia (de A Hora da
Estrela, de Clarice Lispector, 1977) que foi à luta e acabou na prisão. Lygia vai
tecendo a trama desta pequena novela. Onde está a narradora? O que aconteceu
com ela para estar assim? Com quem fala?
• A ruptura com o tempo cronológico faz o leitor viajar na mente tortuosa e ao
mesmo tempo simplista da personagem. '“Essa daí não é a tua irmã?", um menino
perguntou. Mas Pedro fez que não e foi saindo. Fiquei sozinha no palco com um
sentimento muito grande”, diz diante da primeira negativa de Pedro.
• “Não conheci meu pai. Morreu antes de você nascer, respondia minha mãe
sempre que eu perguntava”. A narrativa é fragmentada e trabalha o discurso
indireto livre imprimindo ao texto um ritmo ágil: “Meu pai feito um Deus
desaparecendo atrás da montanha com sua capa de nuvem num carro de ouro”. É
um pai mítico e a menina o cria com elementos do seu universo particular: as
nuvens, quando se deitava na beira da lagoa e escolhia a cara que o pai devia ter.
• A velha Gertrude (e o filho João Carlos), sua primeira “patroa”, a tratara como um
animal: “Nem pra ir ao banheiro eu tinha sossego que ela ficava rodando a porta e
resmungando que eu devia estar cagando prego pra demorar tanto assim”.
A confissão de Leontina

• Na fuga de trem, ela vê uma “estrelinha verde brilhando lá longe” que a acalma e
também nos transmite o grau poético da cena.
• Rogério era o nome do marinheiro com quem ela “se perdeu”. Um quartinho de
hotel / pensão barato. Ele a chamara de Joana e não de Leontina: “Seu cabelo
encacheado é igual ao de São João do carneirinho”. Segunda referência à Bíblia,
Pedro faz a primeira: “Conte só com você que todo mundo já está até as orelhas
de tanto problema e não quer nem ouvir falar do problema do outro”, sentencia
Rogério ao prometer levá-la para conhecer o mar, comer uma peixada em Santos:
“Aprendi a tomar banho com Rogério. Você tem que tomar banho todo dia e lavar
as partes (...) em casa a gente só tomava banho de bacia em dia de festa, mas
outras vezes só lavava o pé. E na casa da patroa ela não gostava que eu me lavasse
pra não gastar água quente”.
• Às vezes o verde da tal estrelinha ou do sabonete do marinheiro esbarram com
nossa frieza de leitor: “Não sei por que pensei no meu pai quando Rogério passou
o braço por baixo da minha cabeça e me chamou, Vem Joana”. Depois da vírgula o
“v” maiúsculo do “vem”. Uma felicidade clandestina e efêmera de fazer amor e
fumar. Dava tristeza “fazer amor” com Rogério: ia “com cara de boi indo pro
matadouro”. "Ele dizia que minhas sobrancelhas eram como as asas das gaivotas.”
A confissão de Leontina

• Ele se foi. Ela decai e numa pensão, cheia de artistas de circo,


conhece Rubi, quem levou Leontina para lá foi o Milani, colega de
Rogério. Personagem secundário mas Lygia os tece com carinho de
mãe.
• Leontina trabalha em inferninhos rodeada da escória típica destes
locais: “Nunca dizia não pro freguês”.
• A segunda vez que encontra Pedro, e ele fingiu não conhecê-la, foi
na enfermaria da Santa Casa. Aqui a narradora faz a inevitável
comparação com Jesus. Leontina é tentada.
• Ao apreciar um vestido marrom com rosa de vidrilho vermelho no
ombro, ela é assediada por um velho rico dono de jornais “e mais
isso e mais aquilo”: “Amaldiçoada para que enveredei por aquela
rua e parei naquela vitrina. O vestido estava numa boneca e tinha o
meu corpo”.
A confissão de Leontina

• O duplo está estabelecido: o jogo completamente armado.


O ritual do sacrifício se encaminha para um desfecho
dramático: ela deixa na loja o vestido branco. O velho a
proíbe de voltar. Ele lhe comprara o vestido que ela queria.
A estrada, o repúdio, o carrão, a estrada: “Era rico e feio
com aquele jeito de peru do bico mole molhado de cuspe
(...) boca inchada e roxa como se tivesse levado um murro”.
• “O bofetão veio nessa hora e foi tão forte que me fez cair
no banco (...) o punho do velho desceu fechado na minha
cara. Foi como uma bomba (...) achei uma coisa pura e fria
no chão. Era o ferro...”.
• Depois de tudo ela volta à loja para buscar o vestido branco
a polícia está lá. A vendedora dera a reconhecer.
Missa do galo
SÍNTESE
• Versão moderna de um conto homônimo de
Machado de Assis, no qual a personagem
Conceição, mostra-se sedutora e sensual em
seu diálogo com o garoto Nogueira.
Missa do galo

• Neste conto, Lygia disseca a intertextualidade com o conto de


Machado de Assis, no qual nos é apresentada uma mulher da
segunda metade do século XIX: Conceição, casada, vítima de um
marido adúltero, que a deixa praticamente só numa noite de Natal.
Esta senhora mantém um insinuante diálogo com um hóspede
adolescente, o Nogueira (que é leitor, tal qual a senhora, de
romances românticos, como Os três mosqueteiros, ou os do senhor
Joaquim Manuel de Macedo). Ele faz hora esperando um amigo
para juntos irem à tal missa do galo.
• Ela “deixou travesseiro e quarto numa disponibilidade sem
espartilho, livre o corpo” e Lygia cria um narrador que vai invadindo
o espaço do não dito, nas entrelinhas, de Machado, coloca até na
alcova do adúltero com uma certa “mulata”.
Missa do galo

• A relação do jovem Nogueira com Conceição também é, digamos


assim, intensificada nesta recriação. Lygia apimenta-a, vasculha-a
como um psicanalista provocador.
• O insólito é observado: “Durante o dia Conceição parece tão
objetiva, eficiente. E agora esta inconsistência”. Seu narrador
observa pelas vidraças da casa, ele está na rua da “noite
antiguíssima”. Sente desejo de entrar e vive um tempo anacrônico
como a interferência de uma lembrança de algo escrito em um
caminhão (!): “Matérias perecíveis”. Mas “aquela casa”, o narrador
contrapõe, é “imperecível”, no ”bojo de tempo”. A obra de
Machado.
• Conceição: “bruxa” ou “belíssima”? Quer gritar, é hora de calar:
“Vocês sabem que dentro de alguns minutos será nunca mais?”,
pergunta-nos. O menino de 17 anos estará na igreja e ela no
quarto.
Missa do galo

• Parece Clarice Lispector, amiga de Lygia: “Faça alguma


coisa”, pede o narrador insistentemente com o coração
pesado diante desses dois indefesos no tempo.
• Metalinguagem e intertextualidade aqui se confundem
quando o amigo do rapaz chega, ele vai para a missa,
Conceição volta para o quarto e o narrador conclui:
• Quando volta ao quarto, pisa na tábua do corredor,
aquela que range. Rangeu, paciência! Agora está
desinteressada da mãe e da tábua.
No canapé, a almofadinha das guirlandas um pouco
amassada.
Apago o lampião.
A estrutura da bolha de sabão
SÍNTESE
• A narradora reencontra, depois de anos, uma
antiga paixão, um físico, que agora estava
casado e à beira da morte e estudava a
estrutura da bolha de sabão.
A estrutura da bolha de sabão

• A estrutura da bolha de sabão - Neste conto, que dá título


à obra, Lygia cria um narrador em primeira pessoa: uma
mulher que encontra o ex-marido com a atual esposa num
bar. Sente ciúme e testa a incomunicabilidade entre os
seres, a aprendizagem dos sentimentos: uma delicada teia
de relacionamentos. Ele é físico e estuda a estrutura da
bolha de sabão (sólida / líquida / gasosa): híbrida. Ele, ela
percebe aos poucos, está com uma doença terminal. Ela
pensa na própria infância, revê sua vida em labirinto: “No
escuro eu sentia essa paixão contornando sutilíssima meu
corpo”. Lygia é dona de uma sintaxe especial, particular.
Pratica o intimismo com maestria. Sua poesia narrativa é
uma espécie de ritual sem sangue, sem grito: “Amor de
transparência e lembranças condenado à ruptura”.
A estrutura da bolha de sabão

• Em relação à outra mulher, a narradora mostra-se superior:


“Como ele podia amar uma mulher assim?”. São frases
insólitas como: “Me refugiei nos cubos de gelo amontoados
no fundo do copo”. Ela tem ciúmes e ao saber da doença do
ex-marido vai à casa dele. É recebida pela fulana que agora
ocupa o “seu” lugar. Quando a “outra” sai, ela se aproxima
do homem que já foi seu. Ela não tem nome no conto. Ela
flui. Ele usa um roupão verde, mãos “branquíssimas”, está
quase lívido. Ela começa a sentir uma falta e não sabia do
que era. Descobre: “Ô! Deus – agora eu sabia que ele ia
morrer”.
• Este final vago e brusco nos conduz ao amor interrompido,
petrificado em narrativa de prosa lírica, urbana, metafísica.
A caçada
SÍNTESE
• Um homem visita uma loja de antiguidades e
fica fascinado com uma tapeçaria que está na
parede. Ele se sente preso à imagem, como
se fizesse parte da caçada a qual ela ilustrava.
A caçada

• A caçada
• Em A Caçada, de 1965, Lygia Fagundes Telles emprega um narrador
extradiegético, com relação ao nível narrativo, e heterodiegético, quanto à
sua relação com a história, ou seja, a voz que conta está ausente da
história.
• O cenário é uma loja de antiguidades e é apresentado ao leitor por meio
do discurso narrativizado. Para compor o espaço físico onde a ação irá se
desenvolver, o narrador emprega imagens de percepção sensória. Assim, o
leitor sente o cheiro da loja: “tinha o cheiro de uma arca de sacristia com
seus panos embolorados e livros comidos de traça” (p. 41); tem a
sensação do tato, por intermédio da personagem, que, “com a ponta dos
dedos” (p. 41), toca em uma pilha de livros; vê detalhes do lugar, “uma
mariposa levantou voo e foi chocar-se contra uma imagem de mãos
decepadas” (p. 41).
• As imagens literárias produzidas com o uso de detalhes transferem maior
verossimilhança à narrativa.

A caçada

• Existem duas personagens, uma velha, provavelmente a dona da


loja, ou então uma funcionária, há muito tempo no
estabelecimento, e um homem, que vai ao estabelecimento atraído
por uma tapeçaria antiga, com a representação de uma caçada. As
personagens não têm nome e o narrador não faz descrições sobre
seus aspectos físicos para caracterizá-las. O tempo da história
abrange um período de dois dias. No primeiro dia, o homem vai à
loja de antiguidades.
• No dia seguinte, o segundo dia da história, o homem vai,
novamente, à loja de antiguidades, mais cedo do que de costume,
"– Hoje o senhor madrugou.” (p. 44). Essa mesma personagem diz
para o homem “Pode entrar, pode entrar, o senhor conhece o
caminho...” (p. 44), referindo-se ao local onde está pendurada a
tapeçaria, na loja. O homem murmura “Conheço o caminho” (p.
44), referindo-se ao caminho do bosque, representado na
tapeçaria.
A caçada

• Chega-se, então, ao clímax da narrativa. Mais uma vez, são


empregadas imagens sensoriais: “aquele cheiro de folhagem e
terra” (p. 44), “a loja foi ficando embaçada” (p. 45), “seus dedos
afundaram por entre galhos e resvalaram pelo tronco de uma
árvore” (p. 45). Nesse trecho se alternam as focalizações externa e
interna, caracterizando a mistura do real e do fantástico, e
retratando o possível delírio pelo qual passa o homem. “Imensa,
real só a tapeçaria a se alastrar sorrateiramente pelo chão” (p. 45),
passa a impressão de que apenas a tapeçaria é real, tudo o mais
são elementos do delírio da personagem. Observe-se o segmento
em discurso indireto livre: “Era o caçador? Ou a caça? Não
importava, não importava, sabia apenas que tinha que prosseguir
correndo sem parar por entre as árvores, caçando ou sendo caçado.
Ou sendo caçado?...” (p. 45).
As formigas
SÍNTESE
• Duas estudantes hospedam-se em um quarto
de pensão. À noite, elas veem formigas
misteriosas andando pelo quarto e indo em
direção a uma caixa de ossos− os insetos
montam o esqueleto de um anão.
As formigas

• O enredo do conto se passa em uma pensão simples, na qual duas


estudantes, e primas, resolvem morar para ficar mais perto da
universidade. Quem conta a história é a própria protagonista, portanto
vemos o ocorrido através dos olhos de quem viveu tudo que aconteceu.
• Logo de início, sabemos que tudo se passa à noite. A protagonista começa
dizendo que já era quase noite, ou seja, que a luz do dia já estava indo
embora. Aliás, durante todo o conto, pouco sabemos a respeito da vida
diurna das protagonistas, uma estudante de medicina e outra de direito.
• A pensão é um lugar decadente, apresentado a nós como um lugar velho,
triste, sombrio e até um pouco assustador. As personagens obviamente
não desejam ficar ali, mas infelizmente não há muito escolha, já que o
lugar é o único que poderiam pagar. A narradora conta ainda que ainda
antes de entrar, ambas ficaram imóveis, avaliando a fachada da pensão,
que parecia um rosto entristecido.
• Elas entram na pensão decadente, em salas escuras e móveis velhos. Até a
mulher que as atende parece algo triste, envelhecido, vestida em pijamas.
As formigas

• Assim que as moças chegam ao quarto, percebem que o antigo morador esqueceu
um pertence, um caixote deixado em um canto. Curiosas, resolvem avaliar o que
tem dentro e percebem um conjunto de ossos. A estudante de medicina, logo se
interessa, e avaliando mais de perto, percebe que o conjunto, apesar de estar
totalmente completo, é bastante pequeno, e portanto que se trata de um raro
esqueleto de anão.
• Resolvem então dormir, e no meio da noite, e todas as noites que se seguirão,
serão preenchidas com um forte cheiro de bolor e uma invasão quase
inacreditável de formigas. O rastro dos animais segue sempre para debaixo da
cama, mas especificamente para dentro do caixote de ossos, que fora guardado
ali.
• O que deixa tudo ainda mais intrigante e estranho, é que na primeira noite
naquele quarto, a protagonista ainda nos conta que teve um sonho um pouco
bizarro, no qual um anão de olhos azuis a fitava firmemente.
• Ao perceberem as formigas, as primas se perguntam o que poderia ter chamado a
atenção dos animais para os ossos. Uma delas então abre o caixote e percebe que
os ossos mudaram de posição. Mesmo assim, resolvem simplesmente matar as
formigas e voltar a dormir.
As formigas

• Na noite seguinte, as moças percebem o mesmo cheiro, a volta das


formigas e mais uma vez, que os ossos mudaram de posição dentro do
caixote. Por isso, na terceira noite, resolvem ficar acordadas até descobrir
de onde e por onde, chegam as formigas. O problema é que elas se
sentem muito cansadas e sem perceber, acabam adormecendo.
• Quando acordam, ficam ainda mais assustadas, já que ao observar o
caixote, encontram o esqueleto de anão quase totalmente formado,
faltando apenas um osso da perna e um braço para ficar completo.
• O medo então toma conta das duas estudantes, que resolvem que não
irão ficar mais tempo para descobrir o que vai acontecer. Elas pegam suas
coisas e deixam a pensão desesperadas, assustadas com toda a história e a
montagem dos ossos de anão pelas formigas que só chegam a noite.
• Como leitores, ficamos presos neste mistério. Jamais seremos capazes de
descobrir a razão pela qual as formigas montavam o esqueleto, e o motivo
pelo qual estava ali.
Noturno Amarelo
SÍNTESE
• Laura transpassa para outro tempo e espaço
(vai para casa de seus avós), enquanto está
parada, com o marido, na beira da estrada,
por falta de combustível.
Noturno Amarelo

• Família, cheiros, lembranças, calor, memórias, acerto de antigas contas: a


oportunidade via o fantástico. Esses ingredientes de "Noturno amarelo",
narrado ao sabor do intimismo de mais uma mulher, desta feita Laurinha
que nessa noite junto ao amado Fernando encontra-se em plena estrada
com o carro sem gasolina e que em breve irá rever velhos conhecidos.
• Enquanto espera Fernando providenciar o combustível, não sem antes
aludir que a relação amorosa não vai nada bem, chega até ela o cheiro
estonteante da Dama-da-noite. Instintivamente segue o perfume e se vê
no antigo cenário familiar de uma casa alta e branca fora do tempo, mas
dentro do jardim. Luzes se acendem nas janelas. A sempre boa, Ifigênia,
anos na cozinha da família, vem receber festivamente a narradora. Lá
dentro estão todos e principalmente aqueles que ela precisava encontrar:
- Que feio, Laura! A Chapeuzinho Vermelho atravessou um bosque cheio de
lobos só pra levar o bolo pra Avozinha que estava com resfriado, não era
um resfriado? (...) – Não veio buscar Ifigênia que queria cumprir promessa,
não trouxe meu espelho, roubou a torre do Avô, roubou o noivo de
Eduarda e não visitou a avó.
Noturno Amarelo

• Assim, não se sabe por quanto tempo, esteve entre todos


desculpando-se ou ao menos podendo conversar sobre suas culpas.
• O título do conto fica por conta de sua avó que ao piano mostra
uma composição de sua autoria: Noturno amarelo, para a neta
visitante, que vê sua irmã caçula, Ducha dançar ao som da música.
• De repente, rápido ou lento, Laura não sabe precisar, confunde-se
na lembrança e só recorda-se que todos começam a ficar distantes
saindo porta fora. Bastante emocionada, Laura consegue sair
também e ao dar volta pela casa certifica-se do que suspeitava:
nada havia ali atrás daquela porta, apenas um campo. Em seguida
reencontra Fernando que nem percebera que ela tinha saído ou
não do carro. Ou não terá saído? A viagem continua.
A presença
SÍNTESE
• Um rapaz de 25 anos hospeda-se em um
hotel para velho e é misteriosamente
assassinado.
A presença

• A Presença – O velho, o idoso e o desgastado versus o novo, o


jovem, a vitalidade em pessoa. Em "A presença", um narrador
oculto, em 3ª pessoa, conta-nos com certo mistério o conflito de
faixas etárias distintas quando um moço de 25 anos hospeda-se
num hotel ocupado por pessoas idosas, burguesas e acabadas para
o mundo lá fora. O porteiro, igualmente velho, à medida que faz o
registro do novo hóspede, tenta de todas as formas também
dissuadi-lo de não permanecer naquele lugar mofado e sem
atrativos para um jovem. O rapaz entende e continua firme no
propósito de ali se hospedar. O velho tenta novamente descrevendo
o mal que a juventude do moço poderá causar aos velhinhos
decadentes com seus feridos orgulhos já que muitos ali eram
artistas. Fala de uma ex-atriz que mal sai do quarto. Diz também
que os espelhos grandes que antigamente pipocavam pelo hotel,
foram removidos Era evidente o alívio dos hóspedes livres daquelas
testemunhas geladas, captando-os em todos os ângulos. (...)
A presença

• Diz que antigamente aquele hotel fora agitado com


inúmeras famílias passando o verão ali na bonita piscina.
Danças até de madrugada. Jogos. Competições... o hotel
dispunha de ótimos cavalos. Charretes. Mas aos poucos os
hóspedes mais velhos foram dominando, à medida que os
mais jovens começaram a rarear, não sabia explicar o
motivo (...).
• Ressalta que se lá fora não há espaço para eles, naquele
hotel eles conquistaram esse direito. Formavam uma
verdadeira comunidade uniram-se, e a antiga fragilidade,
tão agredida além daqueles portões, foi se transformando
numa força. Num sistema. E eram seres obstinados (...) se
não eram felizes, pelo menos conseguiram isso, a
segurança (...).
A presença

• O jovem não considera a advertência dada pelo


porteiro e instala-se no segundo andar. Antes do jantar
exercita-se na piscina exibindo seu corpo jovem e
observando as cabeças alvas que o espiam das janelas.
• No jantar comeu com apetite de ‘jovem’ e aplaudiu
muito os três velhos músicos que tocaram antigas
peças que alguns hóspedes (poucos desceram para o
jantar) ouviram imperturbáveis. Achou um certo
amargor na goiabada com queijo.
• Ao se deitar, depois de ter tomado o chá servido às
vinte e uma horas, ele já não se sentia bem.
A mão no ombro
SÍNTESE
• Um homem de quase 50 anos de idade
prenuncia a sua morte a partir de um sonho,
por meio do toque de uma mão em seu
ombro.
A mão no ombro

• Como anuncia o título, o conto "A mão no


ombro" expressa a anunciação da morte de
um homem de quase cinquenta anos, pelo
toque de uma mão no ombro através de uma
sonho. O conto constrói-se em torno dessa
narrativa onírica do protagonista, oriunda da
necessidade de refletir sobre sua vida antes
de enfrentar a iminência da morte, abordando
a passagem temporal.
A mão no ombro

• Uma frase do próprio conto: um homem (ele próprio)


fazendo parte do cenário – indicia os aspectos do
narrador. Pode-se classificá-lo como heterodiegético. O
narrador relata os fatos orientado pela percepção da
personagem, em determinados momentos como se
fosse um monólogo interior, pois são fatos que ele
próprio vivencia. O confronto com a situação de morte
iminente é protagonizado por ele, tendo seu processo
interno exposto através da voz do referido narrador. A
narração funciona como se fosse em primeira pessoa,
pois o homem participa da história.
A mão no ombro

• A narrativa divide-se em três blocos, separados através


de um espaçamento físico de três linhas. No primeiro
bloco, destaca-se o sonho no qual ele se encontra em
um jardim causador de uma série de estranhamentos,
em uma dada situação temporal. O espaço/cenário
dessa primeira parte é o jardim. No segundo bloco, em
outra situação temporal, a personagem aparece em
estado de vigília, cumprindo com sua rotina matinal. O
espaço/cenário dessa segunda parte é o interior da
casa: quarto, banheiro e sala de jantar. No terceiro
bloco, fundem-se os planos espaciais e temporais na
experiência da morte. O espaço/cenário dessa última
parte do relato é o interior do carro da personagem.
A mão no ombro

• No primeiro bloco, a personagem passeia nesse irreconhecível


jardim de plantas sem vida, com aquele céu verde com a lua de cera
coroada por um fino galho de árvore, as folhas se desenhando nas
minúcias sobre o fundo opaco, que parecem artificiais, cujo céu
verde-cinza é de fosca luminosidade. Esses elementos formam uma
ambientação na qual ela pressente uma força inusitada,
prenunciadora de algum acontecimento. Buscando uma orientação
temporal, o protagonista se detém a observar indícios das estações
- o tempo cíclico. Não há vida no jardim, não se consegue identificar
nenhuma das estações: eram as folhas cor de brasa, mas não era
outono. Nem primavera [...] Não era verão. Nem inverno.... Porém
não os encontra: sente, sim, situar-se em um jardim fora do tempo,
mas dentro do [seu] tempo, pensou. Esta afirmação denota um
tempo interno contrário ao fluxo e refluxo da vida, ao ritmo, ao ir e
vir da natureza, como o nascimento, a morte e o renascimento.
A mão no ombro

• O tempo não se ajusta a nenhum padrão a que esteja habituado.


Evoca o agasalho (um sobretudo), trazido pela associação com a fria
viscosidade das pedras. Além de indicar a ideia de proteção, o
agasalho comporta outras possibilidades: pode ser tanto um
símbolo utilizado para impressionar os outros quanto uma proteção
para ocultar-se dos outros, numa alusão à ideia de persona. Um
casaco é, muitas vezes, símbolo de abrigo protetor ou de máscara
que o indivíduo apresenta ao mundo. Tem dois propósitos:
primeiro, dar determinada impressão aos outros; segundo, ocultar
o íntimo do indivíduo da curiosidade alheia.
• A sensação de estranhamento experimentada pela personagem
remete ao desconhecido que, associado à perspectiva atemporal e
a seu mundo interno, reflete o onírico.
A mão no ombro

• Conto em terceira pessoa que começa com a narração de


um sonho que o protagonista tem, todo recheado de idéias
ligadas a morte: Cristo crucificado, trapezista acidentado.
No jardim em que o personagem principal se vê, sente que
alguém vem por trás tocar-lhe o ombro. Assustado, pois
intuí que se trata da morte, acorda imediatamente. A partir
de então, resolve começar o seu dia de forma diferente,
como se estivesse diante dos seus últimos momentos. Vive
o seu momento, dando especial atenção a tudo o que se
refere ao simples, mas importante ato de viver. Estava, de
alguma forma, preparando-se para a morte. No instante
em que prepara o carro para sair, vê-se fantasticamente no
mesmo jardim do sonho. Já não tem mais medo da mão
que vai tocar seu ombro.
A mão no ombro

• No conto "A mão no ombro", a escritora ironiza os


valores burgueses, o sistema da família de aparências
que vive mais para o social.
• A personagem está fora do tempo, sentindo-se sem
raízes, em um estado de expectativa ansiosa, enquanto
prossegue aventurando-se naquele estranho espaço.
Ela vivencia uma outra dimensão temporal na
experiência onírica. A linguagem do conto transmite a
angústia do sonhador. A focalização é a representação
da informação diegética que se encontra ao alcance de
um determinado campo de consciência, quer seja o de
um personagem da história, quer o do narrador
heterodiegético.
A mão no ombro

• A narração (as palavras, os pensamentos, as percepções e os


sentimentos), nesse conto, parece brotar direto do interior da
personagem. O narrar é discreto, apesar da interioridade densa, sendo
que é tão harmonioso que parece ao leitor que a história flui como se
contasse a si mesma. O ouvido do leitor acompanha o protagonista nas
profundezas de suas reflexões e remorsos, como se fosse ele vivenciando
o fato.
• O jardim, espaço selecionado como cenário desse conto, agrega
elementos diversos e essenciais ao simbólico da narrativa. Esta paisagem é
recorrente na literatura da escritora. Nesse conto, o jardim reúne um
mosaico de cores e percepções, que catalisam a irrupção das memórias
infantis do protagonista. Ele toma uma conotação de atmosfera pesada e
opressiva para a personagem. Trata-se de um jardim impregnado de
inquietação, um jardim sem vida, sem abelhas, formigas ou pássaros, onde
nem mesmo resina existe nos troncos: o jardim da morte, antítese do
jardim do paraíso.
A mão no ombro

• A cor verde é explorada principalmente na descrição do jardim,


tendo esta um simbolismo ambíguo, uma polaridade simultânea de
representar vida (da vegetação) e morte (dos cadáveres).
• A personagem sentia e sabia com muita força que alguma coisa ia
acontecer, o quê?! Sentiu o coração disparar. A premonição aparece
com mais intensidade. Este também é o primeiro indício do enfarte
final. Prosseguindo o caminhar pelo local, o homem se depara com
uma estátua: aquilo não era uma estátua? Aproximou-se da
mocinha de mármore arregaçando graciosamente o vestido para
não molhar nem a saia nem os pés descalços, que examina
minuciosamente: trata-se de uma jovem dentro de um tanque seco
– com pedras ao redor - com uma estria negra – cicatriz que vai da
cabeça ao meio dos seios e lhe decepa metade do nariz.
A mão no ombro

• Observa a cabeça encaracolada, os anéis se despencando


na nuca, imagem que desperta ternura e vontade de
acariciar. Faz um gesto para se relacionar com a estátua,
propondo-se até mesmo a ajudá-la. Todavia, assusta-se à
vista de um inseto desconhecido e cheio de penugens que
sai inopinadamente da orelha da estátua.
• É bem visível a representação de contrastes através das
características paradoxais do próprio jardim e da estátua, já
que o jardim não é paradisíaco e a estátua, embora jovem,
está deteriorada. O valor simbólico da estátua reveste-se de
duplicidade por tratar-se da estátua de uma jovem, porém
com características velhas, no sentido de estar carcomida,
corroída, tendo estado sujeita a intempéries.
A mão no ombro

• Também os pés, a par dos sinais de erosão, insinuam uma


delicadeza ao sugerir medo em escolher as pedras para pisar. Outro
exemplo é a deterioração visível da estátua, provocada pela cicatriz,
que marca seu rosto e peito, todavia com uma certa sensualidade,
pois se perdia ondulante no rego dos seios meio descobertos pelo
corpete desatado. Muitas dessas imagens parecem constituir-se em
símbolos da passagem do tempo. A personagem sente-se
sensibilizada pela estátua, a ponto de ensaiar uma fala com a
mesma. Aqui, temos a primeira vez em que o homem depara-se
mais explicitamente com a dualidade - o velho e o novo. A estátua
parece representar um espelho do homem: é ainda fisicamente
jovem, porém tem seu interior carcomido pela idéia da morte. A
estátua descomposta, as plantas sem vida, a fonte e o tanque secos
levam a crer em referenciais da passagem do tempo. Tais
elementos são indiciadores do regime diurno da imagem, que
reconhece e luta contra a passagem temporal.
A mão no ombro

• A personagem percebe os sentidos se aguçarem, mergulhada nesse


cenário esquisito, nesse jardim repleto de estranhas ervas
perfumosas, com um silêncio cristalizado como num quadro, tudo
muito estático, em meio a um torpor. O único movimento é o do
inseto saindo da orelha – em um movimento semelhante ao dos
insetos nos corpos dos mortos. Outra alusão à morte é o fato de ele
seguir andando com as mãos nos bolsos e encontrar dois ciprestes,
árvores típicas dos cemitérios, cujas fortes folhagens simbolizam a
imortalidade. Uma curiosidade, nesse primeiro segmento, é que o
sonhador faz uso de quase toda a sensorialidade, desenvolvendo
quatro sentidos: visão, audição, olfato e tato, somente faltando
alusão ao paladar que, em contrapartida, será resgatado no
segundo segmento, na cena do café da manhã. Aliás, o fato do
paladar não estar presente neste sonho corrobora seu sentido
como experiência da morte: esta, ao invés de nutrir, retira a vida do
corpo.
A mão no ombro

• Apesar da aparência inocente, o jardim é tão


inquietante quanto o jogo de quebra-cabeça de sua
infância. Nesse, seu pai estimulava sua perspicácia em
localizar rapidamente o caçador no bosque, sob pena
de perder o jogo: vamos, filho, procura nas nuvens, na
árvore, ele não está enfolhado naquele ramo? No chão,
veja no chão, não forma um boné a curva ali do
regato?. Ao final da narrativa, no detalhe desta
lembrança, temos a situação inversa no plano da
realidade, pois a personagem é caçada pelo caçador.
Porém, desta vez a morte é o ônus: o homem fantasia
a figura do caçador na escada como representação da
morte.

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