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Melhores Contos
Lygia Fagundes Telles
• O jovem assessor lança um olhar suspeitoso sobre uma imagem de bronze: aqui
aparece, sob a forma de uma estatueta – da justiça – uma figura feminina no
conto: tem os olhos vendados, empunha a espada e a balança. Desta, um dos
pratos está empoeirado, novamente numa alusão à situação de injustiças em que
vive o país. A balança é o elemento mais evidenciado da imagem, como se
estivesse em primeiro plano. Através dessa alegoria, há como um convite para
refletir sobre as diferentes polaridades que se evidenciam, já que se trata de um
instrumento que serve para medir e pesar o equilíbrio de duas forças que se
colocam em pratos opostos: bem estar x mal estar, pé sadio x doente, ratos x
governo, mansão x ruína.
• Os dualismos apontados acabam por sintetizar uma confrontação simbólica entre
homens e animais, entre racionalidade e irracionalidade. A espada é o símbolo por
excelência do regime diurno e das estruturas esquizomorfas. A arma pode
representar a reparação e o equilíbrio entre o bem e o mal. No tecido do conto, a
imagem da espada nas mãos da justiça adquire sentido de separação do mal.
Neste conto, a correspondência das situações e personagens apresentadas
corrobora uma significação dualista, através do uso de antíteses pela escritora.
• Somente então o secretário faz menção ao pé enfermo, usando o termo "gota"
pela primeira vez na narrativa.
Seminário dos ratos
• E o jovem assessor de imediato canta Pode ser a gota d’água! Pode ser a
gota d’água!, estribilho da canção popular do compositor Chico Buarque
de Holanda, na época um crítico dos fatos políticos do país. A associação
musical do chefe parece não agradar ao secretário. O jovem chefe
defende-se, dizendo ser uma música cantada pelo povo, ao que o
secretário aproveita a deixa para declarar que só se fala em povo e no
entanto o povo não passa de uma abstração [...] que se transforma em
realidade quando os ratos começam a expulsar os favelados de suas casas.
Ou roer os pés das crianças da periferia. O secretário complementa que
quando a "imprensa marrom" começa a explorar o fato, aí "o povo passa a
existir".
• Na afirmação de que o povo não existe enquanto realidade, o secretário
parece ser um secretário mais para privado do que para público, porém é
forçado a reconhecer o povo quando suas mazelas e infortúnios aparecem
nos jornais, expostos em manchetes, o que muito abomina.
Seminário dos ratos
• Nesse momento a casa é sacudida em seus alicerces por algo que parece uma
avalanche e as luzes se apagam. Invasão total. O texto compara a irrupção dos
animais aos milhares, brotando do nada e de todos os lugares, a uma erupção
vulcânica, incontrolável. A própria narrativa vai avisando que foi a última coisa que
viu, porque nesse instante a casa foi sacudida nos seus alicerces. As luzes se
apagaram. Então deu-se a invasão, espessa como se um saco de pedras
borrachosas tivesse sido despejado em cima do telhado e agora saltasse por todos
os lados numa treva dura de músculos, guinchos e centenas de olhos luzindo
negríssimos.
• Do ataque rapidíssimo dos roedores, salva-se somente o chefe das relações
públicas, que se refugia entrincheirando-se na geladeira: arrancou as prateleiras
que foi encontrando na escuridão, jogou a lataria para o ar, esgrimiu com uma
garrafa contra dois olhinhos que já corriam no vasilhame de verduras, expulsou-os
e, num salto, pulou lá dentro, mantendo-a aberta com um dedo na porta para
respirar, logo em seguida substituindo-o pela ponta da gravata.
Seminário dos ratos
• Não podemos aqui falar em felicidade. Leontina é uma Macabreia (de A Hora da
Estrela, de Clarice Lispector, 1977) que foi à luta e acabou na prisão. Lygia vai
tecendo a trama desta pequena novela. Onde está a narradora? O que aconteceu
com ela para estar assim? Com quem fala?
• A ruptura com o tempo cronológico faz o leitor viajar na mente tortuosa e ao
mesmo tempo simplista da personagem. '“Essa daí não é a tua irmã?", um menino
perguntou. Mas Pedro fez que não e foi saindo. Fiquei sozinha no palco com um
sentimento muito grande”, diz diante da primeira negativa de Pedro.
• “Não conheci meu pai. Morreu antes de você nascer, respondia minha mãe
sempre que eu perguntava”. A narrativa é fragmentada e trabalha o discurso
indireto livre imprimindo ao texto um ritmo ágil: “Meu pai feito um Deus
desaparecendo atrás da montanha com sua capa de nuvem num carro de ouro”. É
um pai mítico e a menina o cria com elementos do seu universo particular: as
nuvens, quando se deitava na beira da lagoa e escolhia a cara que o pai devia ter.
• A velha Gertrude (e o filho João Carlos), sua primeira “patroa”, a tratara como um
animal: “Nem pra ir ao banheiro eu tinha sossego que ela ficava rodando a porta e
resmungando que eu devia estar cagando prego pra demorar tanto assim”.
A confissão de Leontina
• Na fuga de trem, ela vê uma “estrelinha verde brilhando lá longe” que a acalma e
também nos transmite o grau poético da cena.
• Rogério era o nome do marinheiro com quem ela “se perdeu”. Um quartinho de
hotel / pensão barato. Ele a chamara de Joana e não de Leontina: “Seu cabelo
encacheado é igual ao de São João do carneirinho”. Segunda referência à Bíblia,
Pedro faz a primeira: “Conte só com você que todo mundo já está até as orelhas
de tanto problema e não quer nem ouvir falar do problema do outro”, sentencia
Rogério ao prometer levá-la para conhecer o mar, comer uma peixada em Santos:
“Aprendi a tomar banho com Rogério. Você tem que tomar banho todo dia e lavar
as partes (...) em casa a gente só tomava banho de bacia em dia de festa, mas
outras vezes só lavava o pé. E na casa da patroa ela não gostava que eu me lavasse
pra não gastar água quente”.
• Às vezes o verde da tal estrelinha ou do sabonete do marinheiro esbarram com
nossa frieza de leitor: “Não sei por que pensei no meu pai quando Rogério passou
o braço por baixo da minha cabeça e me chamou, Vem Joana”. Depois da vírgula o
“v” maiúsculo do “vem”. Uma felicidade clandestina e efêmera de fazer amor e
fumar. Dava tristeza “fazer amor” com Rogério: ia “com cara de boi indo pro
matadouro”. "Ele dizia que minhas sobrancelhas eram como as asas das gaivotas.”
A confissão de Leontina
• A caçada
• Em A Caçada, de 1965, Lygia Fagundes Telles emprega um narrador
extradiegético, com relação ao nível narrativo, e heterodiegético, quanto à
sua relação com a história, ou seja, a voz que conta está ausente da
história.
• O cenário é uma loja de antiguidades e é apresentado ao leitor por meio
do discurso narrativizado. Para compor o espaço físico onde a ação irá se
desenvolver, o narrador emprega imagens de percepção sensória. Assim, o
leitor sente o cheiro da loja: “tinha o cheiro de uma arca de sacristia com
seus panos embolorados e livros comidos de traça” (p. 41); tem a
sensação do tato, por intermédio da personagem, que, “com a ponta dos
dedos” (p. 41), toca em uma pilha de livros; vê detalhes do lugar, “uma
mariposa levantou voo e foi chocar-se contra uma imagem de mãos
decepadas” (p. 41).
• As imagens literárias produzidas com o uso de detalhes transferem maior
verossimilhança à narrativa.
•
A caçada
• Assim que as moças chegam ao quarto, percebem que o antigo morador esqueceu
um pertence, um caixote deixado em um canto. Curiosas, resolvem avaliar o que
tem dentro e percebem um conjunto de ossos. A estudante de medicina, logo se
interessa, e avaliando mais de perto, percebe que o conjunto, apesar de estar
totalmente completo, é bastante pequeno, e portanto que se trata de um raro
esqueleto de anão.
• Resolvem então dormir, e no meio da noite, e todas as noites que se seguirão,
serão preenchidas com um forte cheiro de bolor e uma invasão quase
inacreditável de formigas. O rastro dos animais segue sempre para debaixo da
cama, mas especificamente para dentro do caixote de ossos, que fora guardado
ali.
• O que deixa tudo ainda mais intrigante e estranho, é que na primeira noite
naquele quarto, a protagonista ainda nos conta que teve um sonho um pouco
bizarro, no qual um anão de olhos azuis a fitava firmemente.
• Ao perceberem as formigas, as primas se perguntam o que poderia ter chamado a
atenção dos animais para os ossos. Uma delas então abre o caixote e percebe que
os ossos mudaram de posição. Mesmo assim, resolvem simplesmente matar as
formigas e voltar a dormir.
As formigas